A Concepção de Indivíduo Segundo Kierkegaard

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A Concepção de Indivíduo Segundo Kierkegaard
Valdinei Caes*
RESUMO
O objetivo da nossa pesquisa é o entendimento acerca da concepção de indivíduo em
Kierkegaard. O indivíduo é uma categoria cara à filosofia kierkegaardiana e, ao mesmo tempo,
complexa. Segundo o filósofo dinamarquês, o indivíduo está sempre em situações limítrofes na
existência, o que representa que há um processo de individualização. Não há um conceito
fechado e acabado de indivíduo, mas sim uma concepção, que por sua vez, é dinâmica em sua
natureza. Para tratarmos dessa questão, teremos como referência as seguintes obras: Temor e
Tremor e o Ponto de Vista Explicativo da Minha Obra como Escritor, onde há duas notas que
tratam especificamente sobre <<o Indivíduo>>, as quais, outrossim, vamos ter como alicerces
da nossa pesquisa. Dentre outras, teremos como base a obra Indivíduo e Comunidade na
Filosofia de Kierkegaard de Marcio Gimenes de Paula, que reflete com grande sutileza acerca
desta temática fundamental no pensamento de Kierkegaard.
PALAVRAS-CHAVE: concepção, indivíduo, limítrofe e processo de individualização.
Introdução
A categoria indivíduo é um elemento essencial na filosofia de Kierkegaard. O próprio
pensador afirma que: “Para mim, não pessoalmente, mas como pensador, essa questão do
singular é a mais decisiva” (apud DE PUALA, 2009a, p. 52). É a partir dessa categoria que o
filósofo nórdico desenvolve seu pensamento. A defesa do indivíduo ressalta sua crítica à
comunidade, ao aglomerado, em oposição ao processo de individualização.
*
Pós-graduando em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). E-mail:
[email protected].
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Na filosofia do pensador de Copenhague, o indivíduo não é posto em evidência por
acaso. O contexto dinamarquês, no qual o referido filósofo viveu, exaltava o que era público. O
geral sobrepunha-se ao singular.
Em termos de religião, Estado e Igreja estavam plenamente unidos. Kierkegaard
diagnosticou, nesse contexto, a superioridade da exterioridade sobre a interioridade. Assim
sendo, tornar-se cristão não passava pela decisão e adesão, mas por questões geográficas.
“Deus do céu, e os Estados dizem-se cristãos” (KIERKEGAARD, 1986a, p. 101). Para o
dinamarquês, é inadmissível o indivíduo se constituir a partir daquilo que o Estado lhe impõe.
“Tal imposição é inaceitável, pois tira a possibilidade de decisão do indivíduo, transferindo-a
para o Estado e à geografia” (DE PAULA, 2009b, p. 48). Ao aceitar a superioridade da
exterioridade sobre a subjetividade, sem a possibilidade de escolha, estaríamos diante de um
conceito e não de uma concepção de indivíduo. O conceito, por natureza, fecha-se em si, mas a
concepção é dinâmica em sua natureza.
O conceito se constrói em movimento inverso à concepção. O primeiro é imposição de
fora, e é para todos. O segundo, ao contrário, parte do interior, portanto, é próprio do singular,
é decisão, é possibilidade. A concepção de indivíduo, segundo Kierkegaard, subsiste porque na
interioridade reside a possibilidade. “A possibilidade é, por conseguinte, a mais pesada de todas
as categorias [...] Na possibilidade tudo é igualmente possível...” (KIERKEGAARD, 2010a, p. 164).
O indivíduo kierkegaardiano se constitui a partir do processo de individualização. Ele
não nasce pronto, entrementes, no transcorrer da existência, “torna-se o que é” (cf. DE PAULA,
2009c, p. 104), não por influência alheia, mas por decisão própria. O indivíduo passa pelo
processo do tornar-se o que se é. Para isso é preciso decisão, escolha; é necessário se assumir.
Em Kierkegaard “o existir como indivíduo e a consciência desse existir chegaram a ser [...]
condição absoluta da filosofia e até sua única razão de ser” (KIERKEGAARD, 1979, VI).
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Desenvolvimento
“A questão do indivíduo é decisiva entre todas”
(KIEKREGAARD, 1986b, p. 105).
Kierkegaard aborda uma temática antiga, porém numa perspectiva nova. A questão do
indivíduo já surgira na antiguidade. “A palavra indivíduo possui duas origens: em grego, se diz
atomon e, na língua latina, individuum. Em ambos os idiomas, o significado aproxima-se de algo
que possui uma unidade originária e singular” (DE PAULA, 2009d, p. 39). Passando também pelo
idioma dinamarquês, o indivíduo, o único, o singular, se diz en Enkelt, que traduzido para o
idioma inglês é sinônimo de single - singular. “O autor dinamarquês enfatiza o indivíduo e sua
subjetividade em meio a uma sociedade de massas” (DE PAULA, 2009e, p. 33).
O indivíduo kiekegaardiano, em tese, é o único, é o singular que sente a vida pulsar em
si, durante seu existir. Nesse sentido, “a cada indivíduo na geração [...], basta o seu tormento”
(KIERKEGAARD, 2010b, p. 09). Etimologicamente, a categoria indivíduo expressa singularidade.
Diante disso, uma indagação se impõe: Como se constitui o homem que Kierkegaard denomina
de “o Indivíduo”? (KIIERKEGAARD, 1986c, p. 96). No processo do tornar-se o que se é, o que se
evidencia é que “en Enkelt” (KIERKEGAARD, 2010c, p. 09) “está mais relacionado àquele
indivíduo que se assume existencialmente” (DE PAULA, 2009e, p. 140).
Quando o indivíduo se assume existencialmente, há a anulação da multidão, que é a
mentira. A consciência do indivíduo torna-se seu próprio guia. Não se permite conduzir apenas
pelo impulso. O que o conduz é “a decisão” (KIERKEGAARD, 2010d, p. 10). Vale ressaltar que, a
decisão é algo particular do indivíduo, que se assume existencialmente. Nessa circunstância, o
singular permite vir à tona sua particularidade. “A cada indivíduo na geração, tal como a cada
dia, basta seu tormento” (KIERKEGAARD, 2010e, p. 09). Cabe a cada indivíduo assumir-se.
Enquanto não houver isso, não acorrerá o primeiro passo no processo de individualização.
O processo de individualização, uma vez iniciado, coloca o indivíduo na “atmosfera das
suas condições limítrofes” (VIESENTEINER, 2011a, p. 01). A atmosfera, segundo Kierkegaard,
caracteriza uma condição tal, que ninguém, além do indivíduo, na sua mais íntima
singularidade, consegue avaliar a condição na qual ele se encontra inserido. Os anteparos
moralizantes estão suspensos. A condição limítrofe põe o indivíduo numa circunstância tão
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distinta, que nem mesmo ele, após vivenciá-la, será capaz de mensurá-la. “A condição limítrofe
é aquela em que o conhecimento humano já não tem mais nenhuma segurança de si e o
próprio pensamento perde o controle sobre ela, de modo que, nessas regiões fronteiriças, o
pensamento conceitual se torna impotente” (VIESENTEINER, 2011b, 01).
É sob essa condição limítrofe-atmosférica inapreensível que se encontra o ápice da
concepção de indivíduo em Kierkegaard. O indivíduo kierkegaardiano é a superação da
multidão. “O cristianismo jamais admitiu dar a cada indivíduo singular (enkelte individ) o
privilégio de poder iniciar da capo, num sentido exterior. Todo indivíduo começa dentro de um
contexto histórico, e as consequências da natureza continuam valer como sempre”
(KIERKEGAARD, 2010f, p. 79). O homem nasce em meio à massa. Cabe a ele escolher
permanecer nela ou buscar sua autenticidade, que passa pelo encontro com o ‘totalmente
outro’. Pois, “o essencial da conduta de um homem é a decisão” (DE PAULA, 2009f, p. 66). Ao
homem, na posteridade de seu surgimento lhe é concedida a possibilidade de assumir sua
condição, mas como indivíduo singular, porque a multidão também se assume, mas enquanto
objetivo comum. A massa é consequência conjunta da exterioridade. O indivíduo é resultado de
sua interioridade, ou melhor, de sua subjetividade. “'A subjetividade é a verdade' [...], afirma-se
(também) que o que existe realmente não é o conceito de indivíduo, e sim o indivíduo
concreto, vivendo aqui e agora, decidindo sua própria existência” (LE BLANC, 2003, p. 01).
Kierkegaard louva a originalidade do indivíduo, a singularidade. Não se pode ser singular apenas
repetindo o que outros já fizeram, é preciso originalidade, é preciso assumir-se.
É nesse sentido que o indivíduo para Kierkegaard torna-se uma categoria
eminentemente cristã. Por esse motivo é necessário indagar se é possível se tornar um
indivíduo sem se tornar cristão, segundo Kierkegaard?
No seu entender, o importante não é a igualdade entre os homens, mas a
afirmação da individualidade cristã. Nesse sentido, ele afirma o eu-mesmo
individual como humano absoluto, isto é, como indivíduo. Na visão
kierkegaardiana, o homem é um indivíduo diante de Deus (e não do seu
egoísmo) e, para tanto, ele deve imitar a Cristo (DE PAULA, 2009g, p. 29).
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De acordo com Márcio Gimenes de Paula, o indivíduo para Kierkegaard atinge sua mais
alta expressão quando se depara perante Deus. O indivíduo depara-se com Deus quando, em
seu interior, O reverencia. “Tornar-se este único, que todos podem ser, é querer aceitar a ajuda
de Deus” (KIEREKGAARD, 1986d, p. 98). É preciso querer tornar-se indivíduo, mas também é
preciso aceitar a intervenção de Deus. Se não houver a aceitação da ajuda não haverá a
intervenção. Deus não pode ferir a liberdade humana. Deus pode tudo, mas não pode tentar
contra o livre arbítrio do homem.
Em Kierkegaard, na gênese da concepção de indivíduo encontra-se uma dura crítica à
cultura da época, no que diz respeito ao cristianismo luterano. O cristão não se torna cristão
por opção própria, mas por imposição do Estado. “O cristianismo parece ter se tornado,
segundo o pensador de Copenhague, uma imposição estatal” (DE PAULA, 2009h, p. 48).
Kierkegaard não pensa o indivíduo em submissão ao Estado. O indivíduo kierkegaardiano está
sempre buscando sua autenticidade, ou seja, a presença do totalmente Outro: Deus. Dessa
forma, percebemos que há em Kierkegaard o homem que somente se torna um indivíduo
autêntico se for responsável perante Deus. Diante de Deus, não há multidão; existe apenas o
indivíduo e o que ele é em si.
Diante disso, podemos trazer à tona o exemplo de Abraão, expressão elevada da
concepção de indivíduo. Ao receber o anúncio do arauto de Deus, pedindo-lhe o sacrifício do
filho amado, Isaac, no silêncio, isto é, em sua interioridade, toma consigo o filho e se põe a
caminho, rumo ao local indicado. “Caminharam em silêncio durante três dias” (KIERKEGAARD,
1979, p. 114).
As grandes decisões que o homem faz na esfera da existência passam em primeiro
lugar pela “interioridade [que] reside na subjetividade” (DE PAULA, 2009i, p. 44). Uma decisão
que não passa pelos meandros da subjetividade não pode ser considerada uma grande escolha,
e não faz parte do indivíduo. É imposição exterior. O indivíduo em Kierkegaard pressupõe,
antes de qualquer coisa, o conhecimento do valor da subjetividade. É na subjetividade que, em
primeiro lugar, acontece a decisão. Para o filósofo dinamarquês “devíamos aceitar que as
decisões são individuais e particulares, e que se chaga a elas mediante um conflito interior...”
(PAPINEAU, 2009a, p. 154).
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É sob essa atmosfera que Abraão se coloca à caminho. É no silêncio que ocorre a
decisão. É no “silêncio [...] que o Indivíduo toma consciência de sua união com a divindade”
(apud DE PAULA, 2009, 106). Por essa razão, interioridade, subjetividade e silêncio tornam-se
elementos essenciais na dinâmica do processo de individualização. O indivíduo “jamais deve
trocar o silêncio da sua interioridade pela publicidade, sob pena de desobedecer a Deus” (DE
PAULA, 2009j, p. 67). O silêncio revela a interioridade, e a interioridade apresenta a
incomensurabilidade. O segundo não subsiste sem primeiro, pois na interioridade da
singularidade reside o incomensurável. Todavia, por que Abraão preferiu caminhar no silêncio,
sem comunicar a ninguém o que estava prestes a fazer? Isso explicita que a decisão é sempre
do indivíduo, nunca de seus semelhantes. A vida está cobrando uma decisão do indivíduo.
Assim como a cada dia basta seu tormento, para cada indivíduo cabe as suas escolhas. A
escolha é sempre do indivíduo. O autêntico indivíduo não permite que outrem escolha por ele.
A decisão é sempre do “eu-único individual” (DE PAULA, 2009k, p. 26).
Para o pensador dinamarquês, o eu:
É uma relação que não se estabelece com qualquer coisa de alheio a si, mas
consigo própria. Mais e melhor do que na relação propriamente dita, ele
consiste no orientar-se dessa relação para a própria interioridade. O eu não é a
relação em si, mas sim o seu voltar-se sobre si própria, o conhecimento que ela
tem de si própria depois de estabelecida.
O indivíduo encontra-se perenemente no invólucro da circunstância existencial. Assim sendo,
não podemos afirmar que Kierkegaard cria um conceito de indivíduo, mas traz à realidade um
primado inusitado, ou seja, a concepção de indivíduo que, ao mesmo tempo em que se revela,
não se deixa conhecer quem é, porque é o singular, o indivíduo. O indivíduo que se apresenta
gradativamente no processo de individualização é o mesmo que se oculta. O Abraão que se
coloca a caminho é o mesmo que permanece em silêncio.
O indivíduo não é simplesmente o que se apresenta, mas é isso também. Kierkegaard
não considera como indivíduo o ser que se apresenta aos sentidos. Não! Indivíduo é aquele que
se coloca no processo do vir a ser, ou seja, do “tornar-se (...) único” (KIEKEGAARD, 1986e, p.
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98). Esse é o indivíduo. Está “ao alcance de cada um tornar-se o que é, um Indivíduo;
absolutamente ninguém está excluído de o ser, exceto quem se exclui a si próprio, tornando-se
multidão” (KIEKEGAARD, 1986f, p. 102).
A multidão é incapaz de compreender o indivíduo. “Suspiro quando vejo que,
diversamente da Antiguidade em que ignorava relativamente o arrependimento, a multidão é o
ser todo poderoso, mas absolutamente privado de arrependimento, que se chama: ninguém”
(KIERKEGAARD, 1986g, p. 101).
O processo de ser tornar indivíduo é um projeto para toda a vida. Não é uma tarefa
que rapidamente se conclui. É uma tarefa, mas uma tarefa que se estende por toda a vida. Em
outros termos, é um processo; e como tal, não permite que alguém seja delegado ou
incumbido para fazer isso por outrem. Ao homem cabe a responsabilidade de se auto incluir no
processo de individualização. Essa tarefa é própria e particular de cada um. Não há a
possibilidade de ordenar ou implorar para que outro realize essa tarefa, por mais que haja
cumplicidade ao extremo entre dois seres. Cabe a cada um fazê-la por si e para si. O processo
de individualização requer a sua stemning1própria. Por isso, acaba se tornando sumamente um
processo antagônico à multidão.
A cada um é reservada a possibilidade de se tornar indivíduo por si mesmo. Essa é uma
tarefa que pressupõe arte. O homem é responsável para se tornar aquilo que ele é em
potência: “individuum” (KIERKEGAARD, 2010g, p. 30). Tornar indivíduo “é um ser capaz
[Kunnem], uma arte [Kunst], uma tarefa e arte prática, cuja prática às vezes exige as vidas de
seus praticantes” (GOUVÊA, 2009a, p. 371). Nesse sentido, nascemos humanos e, se quisermos
e com arte, podemos nos tornar o denominado indivíduo singular.
Ao perscrutarmos a concepção de indivíduo em Kierkegaard, observamos que há um
processo de individualização e que este processo, gradativamente, vai se evidenciando. O
homem não nasce indivíduo, mas pode se tornar um, desde que assume o processo de
1
“A atmosfera é o mais individual, o mais fugaz e incompreensível no pensamento mesmo, aquilo ao que não se
apreende e o que deve se suprimir caso se pretenda torná-lo compreensível”. Cf. VIESENTEINER, J. L. Kierkegaard:
pensamento e existência como paixão. 2011 (Prelo). Além disso, de acordo com Álvaro L. M. Valls, a Stimmung, em
alemão ou Stemning em dinamarquês, exprime um estado de ânimo, uma realidade interior. Em outros termos, é
uma totalidade inapreensível ao pensamento.
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individualização. O homem só se torna um “indivíduo autêntico se ele for responsável perante
Deus” (GOUVÊA, 2009b, 371). O tornar-se é possibilidade.
Ressaltamos que Kierkegaard não apresenta um conceito de indivíduo. O indivíduo,
segundo o dinamarquês, não é um ser distante da realidade, ao contrário, é aquele chafurdado
na realidade, no mundo, em prol de suas escolhas, defronte ao Absoluto, na singularidade,
sentindo o peso do existir. O indivíduo não é um conceito, mas uma realidade que sente a vida
pulsar em si.
Kierkegaard não cria por acaso a concepção de indivíduo. O pano de fundo presente
enfatiza a oposição a Hegel, pois este “defendia que os direitos do indivíduo derivam do Estado”
(GOUVÊA, 2009c, p, 371). Para Kierkegaard, não há indivíduo perante o Estado. Diante do
Estado o indivíduo deixa de ser o que de fato é para se tornar aquilo que os outros fazem dele.
O indivíduo é aquilo que ele é, mesmo quando não deseja ser. “Por outras palavras, cada um
pode ser este único, e Deus o ajudará” (KIEREKEGAARD, 1986h, p. 97).
Conclusão
Para Kierkegaard o homem é um individuum. O indivíduo é o singular, o eu, que
afirma: “O importante é descobrir uma verdade que seja verdade para mim, encontrar uma
ideia pela qual eu possa viver e morrer” (apud PAPINEAU, 2009b, p. 155). Essa razão pela qual
ele vive o distancia dos anteparos moralizantes. A arte de viver é própria a cada ser. Em
Kierkegaard, não há uma receita que faz com que o homem se torne um indivíduo. “Existir é
uma arte” (ALMEIDA; VALLS, 2007, p. 54). O que há é a existência e o querer se ‘tornar-se
único’, na medida em que o homem coloca no processo de individualização. Para ingressar
nesse processo é preciso assumir-se.
O pano fundo da construção da concepção de indivíduo em Kierkegaard tem como
objetivo fazer uma dura crítica à cultura massificante do século XIX, em Copenhague, em
relação ao conceito de cristão. “Na concepção de Clímacus, o cristianismo é um assumir-se
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enquanto cristão. Ter nascido numa pátria cristã...” (DE PAULA, 2009l, p. 48) não,
necessariamente implica na vivência do que é de fato ser cristão. Em outros termos, não é o
suficiente para se colocar no seguimento a Cristo e imitá-lo, é preciso bem mais do que
delimitação geográfica para segui-lo, é preciso escolher, é preciso decidir segui-lo por si mesmo.
Não há indivíduo sem a escolha por tornar-se um. Tornar-se indivíduo passa pela possibilidade
do vir a ser um indivíduo.
Na possibilidade tudo é igualmente possível, e aquele que, em verdade, foi
educado pela possibilidade entendeu aquela que o apavora tão bem quanto
aquela que lhe sorri. Quando, pois, um tal sujeito conclui a escola da
possibilidade e sabe, melhor que uma criança no seu ABC, que não se pode
exigir absolutamente nada da vida, e que o horrível, perdição, aniquilamento
moram na porta ao lado de qualquer homem” (KIEKEGAARD, 2010h, p. 164).
A cada homem ‘é igualmente tudo possível’. Portanto, torna-te naquilo que és: um indivíduo,
sem exigir absolutamente nada da vida, a não ser de ti mesmo, no transcorrer da existência.
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______________, Søren Aabye. Diário de um Sedutor; Temor e Tremor; O Desespero Humano.
Trad.: Carlos Grifo, Maria J. Marinho; Adolfo C. Monteiro. In. Pensadores. São Paulo: Abril
Cultural: 1979.
LE BLANC, Charles. Kierkegaard. Trad.: Marina Appenzeller. São Paulo: Estação liberdade, 2003.
PAPINEAU, David. Filosofia: grandes pensadores, principais fundamentos e escolhas filosóficas.
Trad.: Maria da A. Rodrigues; Eliana Rocha. São Paulo: Publifolha, 2009.
VIESENTEINER. Jorge Luiz. Kierkegaard: pensamento e existência como paixão. 2011 (Prelo).
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