1 Direito Subjetivo - base escolástica dos Direitos Humanos - Isabel de Assis Ribeiro de Oliveira XXII Encontro Nacional da ANPOCS outubro - 1998 GT: Desigualdades Sociais Sessão 3: Justiça e Cidadania 1 2 Direito Subjetivo - base escolástica dos Direitos Humanos 1- Isabel de Assis Ribeiro de Oliveira2 agosto 1998 Apresentação Neste texto apresento uma leitura do campo discursivo onde originou-se a formulação do conceito de um direito subjetivo, que tomo como termo central na construção do discurso sobre Direitos Humanos. Meu principal intuito é o de identificar mais cuidadosamente o contexto que propicia a formulação desta idéia de que cada um de nós é portador de direitos inalienáveis, cabendo à sociedade - organizada no Estado - sua proteção. Amplamente disseminada em nossa cultura política, esta idéia está expressa de forma mais completa no ideário dos Direitos Humanos3 . Não há dúvida, como assinala Villey(1983),de que, contemporaneamente, temos dificuldade em conceber um direito natural, idéia constituída no âmbito de uma filosofia que não encontra mais representantes. Ainda assim, restam vestígios desta filosofia na opinião contemporânea, “quando proclamamos o direito que o homem tem à felicidade ou à liberdade de consciência, ou mesmo quanto a vocação do homem para ser proprietário”(Villey,1983:101). Em todas estas circunstâncias estaríamos extraindo estes direitos, ainda que de uma maneira inconsciente, da essência do sujeito. Se 1 Paper a ser apresentado ao XXII Encontro da ANPOCS, 1998,produto da pesquisa “Concepções de Direitos na formulação de Políticas Públicas”, que vem sendo realizada por mim no âmbito do NIED/PRONEX/MCT. Agradeço M. Muskin a leitura atenta a uma primeira versão deste texto. 2 Prof. Do Dept. de Ciência Política do IFCS/UFRJ 3 Cf.Villey,1983; Haakonsen,1996; Tuck,1979; Hart,1955 e Lafer,1995. 2 3 estes direitos serão consagrados, protegidos, declarados pela lei positiva, a fonte da lei - fonte primeira - está no próprio sujeito. O direito subjetivo seria entendido , hoje em dia, como a vantagem que o indivíduo tem pelo fato de existirem leis objetivas, positivas. No entanto, isto se torna complicado na linguagem dos Direitos Humanos porque tais direitos, longe de serem criados pela lei, são “declarados” por ela, podendo, de resto, ser exercidos contra a lei4. Tal definição de direito subjetivo é, portanto, confusional, no sentido de abranger, simultaneamente, os direitos positivos dos indivíduos, aqueles que são criados por lei, e os “direitos humanos” em nome dos quais as próprias leis podem ser contestadas. A definição clássica de direito subjetivo que nos dá Villey é bem outra. Definindo subjetivo como atributo do sujeito, aquilo que pertence à sua essência, e objetivo como aquilo que é ajuntado ao sujeito, uma criação do nosso espírito, uma produção artificial, dirá que o direito subjetivo é uma faculdade, uma qualidade do sujeito, uma franquia, uma liberdade de agir. Villey argumenta então que, até o início da reflexão jurídica própria à Escolástica, o direito era entendido como a parte que cabe a uma pessoa enquanto resultado da administração da justiça. Não era, pois, uma qualidade do sujeito, parte de seu ser, mas algo objetivo, criado pela arte da jurisdição5. Aceitando o raciocínio acima exposto, penso que ao adquirirmos maior clareza acerca do conceito de direito subjetivo deverá tornar-se menos complicado lidar com as declarações contemporâneas dos Direitos Humanos, onde 4 Cf. Villey, 1964:99. Assim, Villey critica na linguagem contemporânea dos direitos, a enunciação do direito à saúde, ao trabalho ou à cultura. Sugere que estas demandas não deveriam ser tratadas pela linguagem do direito, uma vez que representam bem mais aspirações humanas do que direito, e que se vai falar em direito subjetivo, seria melhor se ater à tradição do Direito Natural Moderno que entende por direito a atividade da qual o sujeito é o indivíduo, como o direito de pensar, de escrever, de usufruir de tudo que existe, “mas não o direito individual à moradia, direito objetivo não apenas por conteúdo ( posto que a moradia é uma coisa, algo externo ao sujeito, posta frente ao sujeito) como por sua fonte (posto que o direito decorre da legislação positiva e não do poder do indivíduo). Villey recomenda, em prol da clareza, que não se use o mesmo termo para identificar duas coisas tão opostas(cf.Villey,1964:passim). 5 3 4 encontramos conflito entre a proteção dos direitos individuais e a garantia dos direitos sociais, também chamados de “direitos de segunda geração”. Tal conflito inexistia, no momento em que se formula o conceito de direito subjetivo ; retornar a este princípio de justiça holístico que instaura a legitimidade da liberdade de ação individual, com vistas a determinar os termos em que tal relação podia ser percebida como relação harmônica é o objetivo central deste artigo. A análise que se segue está voltada para a descrição deste modo de pensar a justiça, conhecido como a Segunda Escolástica, que desenvolveu-se na península ibérica nos séculos XVI e XVII. Imediatamente anterior ao desenvolvimento pleno do conceito de direito subjetivo (que permitirá a enunciação da primeira Declaração dos Direitos Humanos), este pensamento tem sido classicamente desvalorizado, seja por conter elementos que rompem com a tradição escolástica ( posição assumida, entro outros, por Villey), seja por não rejeitar plenamente a tradição ( tese muito bem desenvolvida por Morse). Mas como suspeito que a enunciação dos direitos sociais, já em meados do século XIX, opera como que em um “retorno do recalcado”, entendo que uma compreensão mais completa da Segunda Escolástica possa ajudar no desenvolvimento de uma linguagem menos confusa sobre direitos, no contexto contemporâneo. Este texto está organizado de modo a apresentar, inicialmente, o conceito de justiça que se desenvolve no âmbito da Escolástica. A seguir, apresento a filosofia de conhecimento que Occam começa a desenvolver, o nominalismo, pois é aí que tem lugar a elaboração da noção de direito subjetivo. A seguir, examino a relação entre holismo e direito subjetivo, tal como estabelecida pela escola de pensamento identificada como a Segunda Escolástica. Finalmente, apresento minhas conclusões acerca do potencial elucidador do exame da concepção de justiça aí desenvolvida para o entendimento do ideário dos Direitos Humanos. 4 5 A concepção de justiça no âmbito da Escolástica Tomo, como de costume, o pensamento de Tomás de Aquino como principal expoente da teoria de justiça própria à Escolástica. Meu intuito aqui é o de apresentar, de forma sucinta, o ponto de partida para a reflexão da Segunda Escolástica. No entanto, como o pensamento tomista é tributário da tradição aristotélica, penso ser importante apontar, ainda que brevemente, para a maneira pela qual a justiça foi por ele tratada. A colocação central de Aristóteles a propósito da justiça está exposta nas Éticas ao Nicômaco: “ Parte da justiça (política) é natural, e parte é legal. Natural, a que tem a mesma força em todos os lugares, e não existe por que as pessoas dizem isto ou aquilo. ( A justiça) convencional, no entanto, concerne isto que, originalmente, é indiferente, mas que uma vez determinado passa a fazer a diferença, por exemplo, que o resgate de um prisioneiro deva ser uma mina, ou que deva-se sacrificar um ganso, e não duas ovelhas...”(pag.124)6. Para compreender esta distinção é preciso entender o conceito de natureza desenvolvido por Aristóteles, este que permite dizer que “a justiça natural tem a mesma força em todos os lugares, e não existe por mera aparência”. Aristóteles não concebia a natureza como algo imutável ou permanente, mas como “princípio de movimento”. A physis ou physei é - por oposição ao que é artificial - o que tem, em si mesmo, o princípio de seu movimento, cabendo portanto dizer que o ser natural realiza-se, atualiza sua potencialidade, conferindo à matéria sua forma perfeita. A 6Na Ética ao Nicômaco , sistematiza Yack, Aristóteles faz três menções ao direito natural. A primeira delas refere-se ao direito político ( tipo de justiça que desenvolve-se em comunidades legais formadas por homens livres e razoavelmente iguais ), que abarca um direito natural. Aristóteles menciona uma segunda vez este assunto quanto sustenta que a justiça existe “por natureza”(physei). Finalmente, Aristóteles argumenta que o direito natural é tão mutável quanto o direito convencional. 5 6 natureza é, portanto, teleológica, buscando o fim que lhe é próprio, não devendo pois ser entendida como o que é original ou primitivo. Quando Aristóteles diz que o Estado existe por natureza, ele não está dizendo que o Estado é natural, e sim que o Estado expressa uma forma natural de desenvolvimento das associações humanas. O mesmo aplica-se à sociabilidade natural do homem. Não está sendo dito que o homem é originalmente social, e sim que ele orienta-se, naturalmente, para a vida em sociedade. Por isso, natural não é apenas o indivíduo, sendo os grupos, as famílias, as cidades e a estrutura deste grupos ( “substâncias segundas”, na linguagem do tomismo) algo da ordem da convenção. Para Aristóteles, todas as formas de sociabilidade são naturais. Entendido isto, cabe agora explicitar seu conceito de justiça/direito ( dikaion).Para Aristóteles, a justiça é pensada como um certo tipo de ordenação da polis, para a qual tende, pela própria natureza, a comunidade humana. A polis é o coroamento natural e necessário de um desenvolvimento da comunidade, pois é nela que os indivíduos expressam sua igualdade de cidadãos - politai - que corresponde à sua natureza política. Esta unidade da polis, entretanto, está fundada (contrariamente ao que postulava Platão) na diversidade dos membros da cidade . Esta diversidade, qualificada pelo fato de que os homens , movidos pela posse e pelo afeto, cuidam melhor do que lhes pertence do que daquilo que é de todos, torna imprescindível uma ação propriamente política. Esta política deverá estar pautada na justiça, que não deve ser entendida como compreendendo uma regra geral. Quem melhor esclarece este ponto é Leo Strauss (1986:147 a 149). A justiça natural é variável mesmo, uma vez que a única coisa que não varia é a hierarquia dos fins, o bem a que se quer chegar. O direito, que expressa as medidas tomadas para se alcançar o bem comum, é tão natural quanto a própria polis, que é natural e variável. Feita a desconexão entre justiça e lei geral, pode Strauss sustentar que para cada circunstancia existe um único resultado desejável, sem que com isso tenhamos que demonstrar que estes resultados derivam de uma regra geral, ou de uma lei. No mesmo veio está a interpretação dada por Yack(1990). Os cidadãos consideram que seus atos são justos ou injustos tendo em vista os acordos que estabeleceram entre si ou os méritos intrínsecos à ação. Nesta última modalidade de julgamento há algo que é natural , mas que não deve prestar-se ao mal-entendido de que, para Aristóteles, a natureza nos daria um padrão inerentemente correto para julgar. De acordo com a interpretação conferida por Yack , 6 7 Aristóteles está dizendo outra coisa. Ele está simplesmente sustentando que “a necessidade que os cidadãos sentem de julgar e desenvolver uma argumentação neste julgamento a respeito do valor intrinsecamente justo de suas ações é algo que desenvolve-se naturalmente dentro das comunidades políticas”. O que a natureza nos daria seria a capacidade de formar comunidades políticas onde dependemos uns dos outros quanto aos julgamentos acerca dos méritos intrínsecos de nossas ações. Yack nos adverte, assim, do equívoco de assimilar esta idéia fundamental de Aristóteles com suas referências ao caráter natural da escravidão ou do paternalismo, entre outras. Por sua vez, Villey(1987:51)especifica este outro tipo de justiça que ganha centralidade no texto: a justiça particular. A idéia central aqui é a de que a justiça refere-se à atribuição, a cada qual, do que lhe é devido. Este direito convencional, no entanto, não deve ser confundido com a opinião, posto que, uma vez feita a convenção, o direito está definido. Ora, estas convenções só se aplicam para situações onde não há valor intrínseco, e portanto onde não precisamos usar o bom julgamento : tanto faz um ganso como duas ovelhas. Por isso, não faz sentido associar o direito convencional com a opinião, porque ele exclui a maior parte das opiniões, dos costumes e das leis que nos regem. A obra de Tomás de Aquino pode ser lida como expressão da tentativa de conciliar esta visão clássica da política com a doutrina oficial da Igreja católica. Interessa aqui destacar a maneira como Tomás de Aquino desenvolve sua teoria do poder e das leis, bem como sua concepção da sociedade política como instância de realização do ser humano. Sua teoria do poder contempla uma noção de poder in abstracto , tomado como de origem e natureza divinas. Mas este poder tem suas raízes na própria natureza do homem, no sentido de que o poder corresponde a uma necessidade natural, pois é o exercício do poder que permite reunir os homens, naturalmente sociáveis, em torno de um princípio pelo qual torna-se possível governar a multidão. E este princípio, que informa a função central do governo, é a promoção do bem comum. Assim, para Tomás de Aquino, o poder não é algo decorrente do pecado, distanciando-se assim do pensamento de Agostinho, que fora central na cristandade. Por sua vez, o poder in concreto decorre de um puro direito humano. Se um homem determinado exerce um comando sobre outros homens, isso não se dá em virtude de uma escolha 7 8 direta e pessoal humana7. de Deus, mas de uma escolha meramente Sua teoria das leis segue de perto o legado aristotélico, mas produz sobre este uma transformação importante. Aquino irá associar a lei à razão, entendida esta última como uma faculdade que ordena a ação e a reflexão humana com vistas a realização de um fim. A lei, portanto, passa a ser uma ordenação da razão com vistas a alcançar o bem comum, estabelecida e promulgada por aquele a quem compete dirigir a comunidade. Sendo Deus o príncipe da comunidade universal, a primeira lei , Lei Eterna, é uma prescrição da razão divina, que regula tudo que existe, sujeitando o mundo à Providência Divina. Todos os seres participam, de certo modo, dessa lei, impressa por Deus em toda a criação, e esta lei inclina tudo que existe a executar os atos que lhes são próprios , atingindo assim seus próprios fins. Mas o homem, enquanto criatura racional, é capaz de prever as conseqüências de seus atos e dos movimentos dos outros, participando desta lei de um modo mais perfeito. A esta participação, Aquino dá o nome de lei natural. Discriminar o bem do mal, fazer o bem e evitar o mal, não molestar aqueles com os quais se tem de viver constituem os principais preceitos da lei natural, dos quais derivam-se muitos outros. Tais preceitos são comuns a todos os homens e a todas as épocas. Mas sua aplicação ocorre em situações particulares e concretas, em condições especiais e contingentes de tempo e de espaço. Daí a necessidade da lei humana que deriva, diretamente da lei natural, o que pode e não pode ser feito. Assim, o homicídio é contrário à lei natural, mas a punição do homicida varia , sendo o objetivo o de disciplinar a sociedade em obediência à lei natural. Assim, para Tomás de Aquino “parte” do direito divino, católica. Trata-se pois de absoluta, sendo variável expressão prática e histórica a lei natural passa a fazer tal como posto na doutrina uma lei eterna, imutável e apenas o direito positivo, do direito natural imutável. 7 O direito à resistência fazia parte integrante da filosofia política de Tomás de Aquino. A seu ver, as leis humanas poderiam ser injustas, se referidas mais à glória da pessoa do Rei do que ao bem estar do Reino, ou ao repartirem desigualmente os encargos impostos aos súditos, ou ainda quando não são da competência de quem as aplica. 8 9 O surgimento do conceito de direito subjetivo A literatura especializada reconhece duas grandes fontes de reflexão sobre a justiça que estão de alguma forma conectadas com a emergência do conceito de direito subjetivo, a saber , a tradição romana e o nominalismo. Mas não há consenso nesta literatura, sobressaindo-se na análise da primeira o argumento desenvolvido por Villey quanto a impropriedade de se falar de direito subjetivo antes de Occam. Cabe portanto apresentar, inicialmente, uma síntese de sua interpretação, orientada, inicialmente, para a clarificação do que seja direito . A formulação da idéia de direito, na Roma Clássica , é tributária da tradição grega, eqüivalendo o termo jus, derivado de justitia, ao termo grego dikaionsuné, que abarca ao mesmo tempo as noções de direito e de justiça. O primeiro ponto que Villey enfatiza, aqui, é o de que a idéia de direito é solidária da idéia de justiça, e que não compreende qualquer noção de “igualdade em liberdade e dignidade”. Trata-se, alternativamente, da partilha de “coisas exteriores”: funções públicas, honra, bens materiais, obrigações. O “direito de cada um” será o produto da divisão, e não será o mesmo para todos. Não que inexista uma idéia de “isonomia”, mas o ison não deve ser traduzido por igualdade, e sim por equidade. O aequitas traduz melhor esta idéia de proporção justa, que se obtém na distribuição de certas quantidades de coisas em função da qualidade das pessoas. Cícero definirá a finalidade do direito como sendo o serviço de uma justa proporção na partilha dos coisas e nos processos dos cidadãos. Estas coisas - rebus - não implicam em distinção entre espírito e matéria, separação que só muito mais tarde será feita por Descartes. Por processos entenda-se os processos litigiosos, e por cidadãos que fique clara a idéia que o direito é direito civil, isto é, aplicase a um conjunto de pessoas que partilham um igual status ( do qual, por exemplo, estão excluídos a família e o estrangeiros) . O direito , assim definido, é legítimo na medida em que levar em consideração regras gerais, que são as leis constituídas pela cidade (Cf.Villey,1983:33 e ss.). 9 10 Para Villey, portanto, o direito romano é direito que nada tem a ver com o direito natural, que tem sua origem na Segunda Escolástica, na moral cristã estóica, no nominalismo, no liberalismo de Hobbes e Locke, e no racionalismo de Liebniz. Não é que os termos “direito natural” não fossem usados : o “jus naturale” consta dos Institutos de Gaius ( séc.II), mas refere-se não a um conjunto coerente de regras, tirado da razão subjetiva do homem, mas designando, isto sim, um conjunto de “coisas”: relações jurídicas entre todos os seres vivos, inclusive animais. A ênfase aqui posta por Villey está nas coisas “enquanto competências, funções, papéis a exercer na vida social intersubjetiva”, que não comprometem uma apreensão da justiça pautada no valor da humanidade; mas este sujeito, capaz de conduzir sua vida com base em uma escolha refletida, sujeito da palavra, é um sujeito social. Já Strauss sustentará que Cícero, ao associar a tradição socrática com a tradição estóica, admitirá que haja em cada um de nós como que uma centelha divina. Mas, como somos livres, como temos vontade, podemos nos harmonizar ou não com o fim que nos é dado. Cícero sustentará então que a lei natural que rege as relações humanas emana da razão reta da qual todos são dotados. Tuck sustenta, contra Villey, que já no Direito Romano havia a noção de um direito subjetivo, originalmente posto nas relações entre os indivíduos que assumiam compromissos entre si, implicando tais relações na idéia de que o indivíduo possui um direito, algo já próximo da noção moderna de direito, isto é “un indeterminate right against the world”(1979:11/12). Mas concorda com Villey que Tomás de Aquino não tinha uma teoria do direito natural, e sim da justiça natural, faltando nele a noção de direito subjetivo, enquanto direito natural individual inalienável. Seja como for, há consenso de que a tradição romana estóica trata a liberdade individual como esfera não jurídica da vida humana, operando em uma dimensão externa ao domínio ou campo do direito. Em particular, Brett(1997:25 e ss.) chama nossa atenção para o fato de que a sociedade civil era percebida como constituída de tal forma que cada “dominum” guardava sua soberania sobre seu próprio território, assignado segunda a máxima “a cada um o seu”. Mas Brett assinala também a contribuição de Buridan, que escreve já em plena Escolástica. Buridan reconhece haver a justiça do “dominus”, que o dirige para ordenar a vida coletiva tendo 10 11 em mente o bem de seus “subjectum”, bem como uma justiça destes, que os dirige para obedecer tais ordenações. Com este reconhecimento, Buridan desenvolverá o raciocínio que distingue a justiça do direito : “the justice of the dominus is prior to right and the right thing, whereas the justice of the subject is posterior”(Brett,1996:100).Ou seja, o regime de obrigações é justo quando o senhor é justo; e o senhor é justo quando ordena em vista do bem de todos. Esta tese é relevante para nossa questão porque aqui o direito não é mais algo que tenha a ver com a assignação de coisas, como interpreta Villey ( seguindo Aquino e Aristóteles), passando a ser tomado como algo que origina-se na justiça entendida como a vontade do senhor8. Brett não deixa de citar longamente um texto de Buridan, referido ao ius politicum em Aristóteles, onde este legitima a liberdade individual de adquirir bens, cujo limite é dado por efeitos perniciosos que possam advir daí para a comunidade. Brett tem clareza, entretanto, de que, apesar de defender este espaço de liberdade, Buridan não retira daí conexões com a linguagem do direito. Pois direito aqui ainda não tem o sentido de denotar as possibilidades da ação humana livre. Este espaço, para Buridan, é um espaço lícito, isto é, correto mas não regulado pela lei, pelas ordenações que constituem o domínio do direito. Esta tradição contrasta portanto, tanto com a escolástica quanto com a tradição de elogio ao príncipe, por não derivar a lei civil seja da lei natural, seja da vontade do príncipe. Era, a meu ver, uma representação menos normativa e apropriada a uma sociedade hierárquica, propiciando a divisão adequada de seu território entre as elites9. Será Guilherme de Occam (1285-1346/9) que inaugurará, propriamente falando, esta via moderna. Se a disputa sobre universais, que ocupou um espaço central no pensamento escolástico ( principalmente no final do século XI e início do XII), não estava referida a uma discussão sobre a justiça, o conceito escolástico de justiça será 8 Ou seja, compreende uma subjetividade, por contraste com o caráter objetivo da justiça aristotélica, voltada para a distribuição das “coisas”. 9 Uma boa síntese da discussão jurídica romana acerca do direito e do domínio encontra-se no primeiro capítulo do livro de Tuck(1979). A dinâmica do Império Romano e do feudalismo ocupam lugar central nesta sua recuperação da determinação da apropriação legítima. Esta vertente analítica, entretanto, não guarda importância para o tipo de entendimento do direito que estou buscando. 11 12 significativamente afetado pelo desdobramento nominalista que, de certa maneira, coloca um fim a toda esta polêmica. A compreensão deste movimento nos leva, inicialmente, para o pensamento grego clássico. Buscando responder à questão da identidade num universo em mutação, posta pelos présocráticos, Platão dirá que as Formas ou Idéias respondem, reflexivamente, pelos objetos individuais de nossa experiência. O posicionamento de Aristóteles, por sua vez, está referido a uma observação do mundo físico, que lhe permite desenvolver os conceitos de essência e substância que deverão dar conta da identidade das coisas. Se as substâncias se modificam, seu ordenamento é o mesmo. Chegase à essência das coisas pela abstração, sendo a mente capaz de abstrair dos indivíduos sua “natureza” isto é, aquilo que os constitui enquanto tal. A existência ou inexistência bem como a maneira de conhecer e operar com essa “essência” constituiu o centro do debate sobre o universalismo. Este debate, no âmbito da Escolástica, iniciou-se com a “prova ontológica” da existência de Deus, desenvolvida por Anselmo, ocupado em estabelecer a articulação entre fé e razão. Esta prova, que se assenta em conceitos, antes que na experiência, levaria à conclusão de que Deus - o maior ser existente - estaria em todos os domínios, pois se não estivesse seria possível às nossas mentes pensar em alma maior que Deus, o que seria uma contradição. O raciocínio de Anselmo estava permeado pela visão agostiniana ( e platônica, neste aspecto) da verdade, no sentido de que Anselmo concebia a existência de uma Verdade, da qual tudo que fosse verdadeiro dependeria. Está aqui posto o “realismo extremo”, em sua raiz10. Pois dentro desta perspectiva, o termo que refere-se ao conjunto de particulares, como os termos homem, casa, cão, teria seu correspondente real: uma “coisa” (res) universal estaria presente em cada homem, em cada casa ou em cada animal. Roscelin de Compiègne( circa 1125) foi o primeiro a reagir a este “realismo extremo” então em voga, sendo famosa sua afirmação de que o universal nada mais é do que o “flatus vocis” ( o sopro da voz) empregado para a classificação dos seres individuais. Cabe lembrar aqui que a dicotomia “palavra/coisa” já havia sido posta por Boécio(480-524), o 10Identificá-lo com o idealismo, como se faz hoje em dia, seria, de qualquer forma , despropositado. O melhor seria usar o termo fundamentalismo, porque aqui está indicada a particularidade desta filosofia que busca fundamento( sólido, eterno se possível for) para nossa linguagem. 12 13 tradutor do Organon de Aristóteles e Categorias de Aristóteles, de Porfírio. da Introdução às Abelardo(1079-1142) também reagiu ao “realismo extremo”, mas sem aceitar o nominalismo de Roscelin, seu mestre. Irá reorganizar a disputa sobre os universais obedecendo ao procedimento posto por Boecio. Para tratar do assunto, Boecio havia organizado o tema com estas três questões:: 1) os gêneros e as espécies existem ou são construtos mentais? 2) se existem, têm existência corpórea ou incorpórea? 3) os universais existem separadamente das coisas sensíveis, ou nas coisas sensíveis? Boécio teria respondido a estas questões considerando que, se para Platão os universais eram reais e incorpóreos, e que se para Aristóteles eram conceitos, desde que o universal é comum a vários indivíduos, não pode ele mesmo ser um indivíduo e, portanto, não pode ser uma substância sensível. Mas como o universal existe, não é simplesmente uma palavra, ele corresponde a alguma realidade. Então, Boécio afirma que o universal resulta de um trabalho da mente sobre os sentidos, subsistindo em seres materiais, apesar de ser ele mesmo imaterial. Boécio sustenta, pois, que o universal é uma coisa . Abelardo retomará estas questões11, sustentando que o universal não é uma coisa, uma Forma, como querem os realistas, porque se o fosse, não seria possível distinguir instâncias deste universal, como Pedro e Paulo. Para evitar a alternativa nominalista, desenvolverá sua teoria da abstração. Tomando o entendimento como uma atividade ( sensorial e intelectual), Abelardo dirá que a mente é capaz de distinguir entre matéria e forma, ainda que estas não existam em separado. É disto que trata a abstração que é um “sermone” ou “sermo”, um conceito, similar à coisa entendida. Se a imagem de um universal é confusa e geral, enquanto que a de um singular representa a forma própria e característica, o conceito segue sendo sua representação, e não uma outra coisa. A mente abstrai, toma algumas características da coisa que são idênticas a outras coisas 11 Abelardo agrega mais uma questão, quanto a permanência ou não do significado de um universal, caso seu referente deixasse de existir, que não interessa considerar dado o uso que estou fazendo desta problemática. 13 14 do mesmo grupo, Knowles,1996:103). e produz sua expressão(cf. O termo universal, tal como utilizado por Aristóteles, referia-se a algo que pudesse ser predicado de muitos termos e muitas coisas. Abelardo questiona esta definição, sustentando que os universais só podem referir-se a termos, posto que “coisas” não podem ser predicadas de muitos. Se os gramáticos dividem os nomes em próprios e apelativos, se os dialéticos os distinguem em particulares ( individuais) e universais, Abelardo dirá que o universal é aquilo que pode ser predicado de muitos termos devido a sua intenção (cf. Schoedinguer,1996:531). Dado que muitos nomes podem ser aglutinados por uma só palavra, o que o universal descreve é a unidade do significado. Trata então de indicar a razão pela qual conferimos um nome universal a certas coisas. Abelardo dirá que o que leva a isto é o fato de que tais coisas tem “algo” em comum , um status12, antes que essência, que não é, entretanto, uma coisa. Aqui, o “flatus vocis” será portanto dito de outro modo: os universais são palavras, uma representação da mente, que é menos indistinta que a coisa representada, omitindo o que não for comum ao gênero ou à espécie , e tendo lugar apenas na mente, não na realidade externa a ela. Gilbert de la Porré prosseguirá este debate, retomando a perspectiva neoplatônica, sustentando que o universal não é a substância ( a coisa, propriamente dita), mas o subsistente ( aquilo pelo qual a coisa existe, a Forma capaz de ser abstraída ou colhida pelo entendimento ). Mas é a resolução que Occam(1285-1346) trará para esta disputa que irá marcar o fim da Escolástica. Para compreender o nominalismo, é preciso entender que Occam parte da premissa de que a mente humana efetivamente formula termos universais, mas que a estes termos não correspondem seres, não tendo pois existência efetiva. Para Occam, a coisa individual é a única realmente existente; portanto, só ela pode ser conhecida ( Leff,1968:281), o que coloca em questão até mesmo a validade das inferências empíricas. Vejamos isto mais detidamente. 12 Leff (1968:110) esclarece: o status lida apenas com as características gerais presentes nas impressões sensoriais e abstraídas de um certo numero de indivíduos. Esta impressão, uma vez em nossa mente, não representa mais qualquer indivíduo particular e pode sobreviver às mudanças no objeto. 14 15 Occam privilegia o conhecimento intuitivo que, envolvendo uma consciência imediata de um objeto , permite-nos atestar a existência de uma coisa. O conhecimento abstrato, por contraste, visa a compreensão, o entendimento do que foi constatado, lidando com proposições. Aqui, estamos no campo da especulação, que não pode levar a uma certeza como no primeiro tipo de conhecimento. Assim, não é possível conhecer os universais, propriamente ditos, porque os universais não são uma coisa, mas um conceito. O conceito não tem existência objetiva, sendo uma “qualidade da mente”. O conceito tem, entretanto, uma relação de semelhança com a coisa que é, por ele, representada. Muito resumidamente, a argumentação de Occam pode ser posta nos seguintes termos. Admitindo, como teriam afirmado Aristóteles e Averroes, que toda substância é singular, Occam irá sustentar que antes mesmo da adoção de palavras, o intelecto contem noções de coisas que refletem os objetos que conhece. Estas noções são os signos das coisas, como a idéia de homem, ou cão; ”o signo pelo qual compreendo o homem é o signo natural para homens, tal como a fumaça significa fogo, os lamentos, dor, ou o riso, o apreciar, gostar. Este signo significa homem, na proposição mental, da mesma forma que a palavra pode significar a coisa, na proposição falada”(cf. sentenças 1,2, e 7, appud Leff,1968: 183).“Uma coisa individual, uma rosa, um cão, evoca na mente humana um sinal (“signum naturale”) que é o mesmo em todos os homens, como um riso ou um grito” (Leff,1968:295). Entendidos como as palavras que designam os atributos comuns a indivíduos, os universais são termos exclusivamente mentais, são conceitos sem qualquer realidade extra-mental (diferentemente das palavras que designam este ou aquele indivíduo, e que tem, portanto, como que um substrato empírico). Existem universais referidos aos signos naturais e universais por convenção. Em qualquer dos casos, o universal nada mais é do que uma intenção da alma: nada, nenhuma substância fora da alma é, neste sentido, um universal. Mas quando tomamos um universal por convenção, seu nome é simplesmente um signo, cujo significado é relativo às diversas realidades que designa, conforme o ponto de vista daquele que o usa. De acordo com Libera (1998:429), é possível, para Occam passar do conhecimento intuitivo para o conhecimento conceptual, porque o conhecimento intuitivo de uma coisa singular produz , simultaneamente, seu conhecimento em sua singularidade e seu conhecimento como membro de uma espécie. Assim, “(a) intuição do singular é simultaneamente empírica 15 16 e eidética ( ao ver este homem vejo um homem). Passa-se assim do singular para série, representada pelo conceito. Já para Knowles, ao definir e justificar o que considerava ser o conhecimento, Occam teria abandonado não apenas qualquer forma de realismo ,como qualquer forma de abstração intelectual. A mente do homem, sintetiza Knowles, “não abstrai essência ou natureza das coisa conhecida porque não é possível demonstrar a existência nem do processo mental de abstração, nem de qualquer natureza a ser abstraída. Tudo que é conhecido é individual e singular, e o processo de conhecimento é puramente intuicional”(1996:293, grifo meu). Seja como for, se os “universais” só existem na mente do homem (o que, de qualquer forma, é bem mais do que o “sopro da voz”), eles serão tomados por Occam como os termos ou elementos essenciais da linguagem. Pensar, para Occam, é ordenar estes signos. Assim, o universal deixa de ser um termo que expressa aquilo que existe por si, para ser um objeto do pensamento, um artefato mental. A palavra que usamos ( rosa, cão) é o sinal que conectamos à nossa intuição, e que a chama de volta . Com Occam, perde portanto significado a idéia do ser, como algo universal e abstrato, bem como toda a ciência do ser, a metafísica. Este seu modo de pensar tem pelo menos duas conseqüências importantes ( cf. Leff,1968:284 e ss). A primeira delas é a de colocar em questão inferências causais, exceto quando empiricamente “corroboradas”. A “essência” torna-se inseparável da existência, uma vez que a matéria não mais é vista como potencialidade e sim como ato de existir. A segunda conseqüência é a de que , sendo o mundo composto de objetos discretos, não há como sustentar a representação aristotélica do universo. Segundo Líbera, as únicas relações admissíveis para Occam são as que se dão entre os objetos naturais, como as de proximidade ou afastamento espaçotemporal, causalidade, semelhança, etc(1998:428). Assim, não seria mais possível dizer se o universo é ou não finito, é ou não governado por um Deus, eterno ou não, e mesmo se haveria um só ou muitos mundos. Estas incertezas, entretanto, não implicavam em ceticismo, pois onde a razão parava, começava a potência divina, esta sim, absoluta. Knowles chama a atenção para o fato de que Occam insistia em uma visão da ciência e da lógica como válidas em sua própria esfera, que não é a esfera das coisas que realmente existem, mas dos termos pelos quais elas se fazem representar em nossas mentes. A argumentação de Occam é difícil de ser acompanhada, dada a forma pela qual ele raciocina. Não obstante, é muito claro e muito interessante o modo pelo qual ele demonstra que o 16 17 universal não é uma substância, mas um significado que a mente humana engendra, podendo este significado ser natural ou convencional(cf. Occam ,cap.15 e 16 da Summa Logicae, apud Schoedinger,1996:604-607). Diz ele: há quem diga que o universal está fora da alma do indivíduo, ainda que dela se distinga apenas formalmente. Assim, em Sócrates a natureza humana estaria “contraída” em uma diferença individual, que não se distingue realmente mas formalmente da natureza. Mas, argumenta, quem afirma a existência desta exterioridade está sustentando que a diferença individual é própria e que o universal é comum. Ora, uma mesma coisa não pode, simultaneamente, ser comum e própria; portanto, o universal não é a mesma coisa que a diferença individual. Conclue então que a diferença individual é não apenas própria (e não comum), como é a própria natureza, posto que esta não é formalmente distinta da diferença individual. Em uma substância particular não há nada substancial, exceto a forma e a matéria particular, ou sua junção. É nessa demonstração que Occam deixará claro que o termo “natureza humana” não deve ser tomado como um atributo dos homens, seres singulares. O individualismo que aqui está exposto é um individualismo radical: a ciência gravita em torno do indivíduo, pois só ele é dotado de existência real, e portanto nosso único objeto de conhecimento. Occam introduz uma maneira de raciocinar que elimina qualquer possibilidade de postulação de existência de sistema de relações ou teias interativas próprias à concepção holística da realidade. Este ponto nos leva a um dos temas centrais deste texto , que é o da conceituação do direito subjetivo. Não parece haver uma conexão imediata entre esta reflexão de cunho propriamente filosófico e o tipo de argumentação desenvolvida por Occam que propicia o surgimento desta idéia de direito subjetivo. No entanto, como também sugere Villey(1964), os dois movimentos guardam entre si enorme afinidade. Occam ocupa uma posição de centralidade em um longo conflito envolvendo a ordem dos Franciscanos, à qual pertencia, e o Papado, acerca da pobreza. Fundada em 1209, a ordem Franciscana estava voltada para a vida em pobreza, o que significava não apenas a renúncia à propriedade e à riqueza como também ao poder, ao dominium. Pois a esta pobreza “exterior” corresponderia uma pobreza interior, expressa na renúncia à vontade própria, entendida esta última como um poder. O maior sacrifício que uma pessoa 17 18 poderia fazer, no entendimento destes frades, era renunciar à própria vontade(cf.Brett,1997:13)13. Occam enfrentava então o desafio de se contrapor à bula do Papa João XXII ( 1320) que sustentava que todo ato humano é justo ou injusto, e que portanto ou bem os franciscanos tinham a propriedade dos bens que usavam ou estariam sendo injustos deles se apropriarem para seu sustento. Tratava-se portanto de estabelecer a propriedade de usar coisas que não lhes pertenciam, aquelas necessárias a sua vida. Para demonstrar a possibilidade do ato que não é justo nem injusto, Occam recorre à noção de virtude (coisas que são boas mas que não são, em si, nem justas nem injustas, como , por exemplo, a castidade) e à noção de que existem atos lícitos, que não são, propriamente falando, justos. Occam desenvolve a idéia de um jus in rebus , o direito às coisas, mais especificamente o simplex usus ( cf. Brett, 1997:16-18).Para formulá-la, Occam irá conferir um sentido original ao jus naturale. O direito de posse ( ius utenti) é natural e positivo. O direito de posse positivo, um direito jurídico, é o que os Franciscanos não tem. “Mas esta juridicidade aplica-se não apenas aos direitos humanos positivos, mas também ao direito natural de usar, que é comum a todos os homens, por natureza e não por qualquer convenção subsequente”(Brett,1997:64). E este direito é irrenunciável, sendo intrínseco à vida de todos os mortais. No entanto, clarifica Brett, este direito não é utilizável sempre, mas apenas em situações extremas. É neste sentido que há uma licença para usar coisas que não pertencem aos franciscanos, licença que não é direito. A tese central de Villey (1964:117) é a de que Occam faz aqui uma revolução na ciência jurídica, transformando o significado do termo direito, que deixa de designar o bem propiciado pela justiça, passando a designar o poder que temos sobre um determinado bem. E este poder está muito bem especificado: não é a licença, a permissão, mas aquilo do qual o homem não pode ser privado sem seu consentimento. 13 A liberdade da vontade já havia sido reconhecida por Aquino como aquilo que o homem mais deseja, pois é por ela que ele domina outras coisas, as aprecia e controla a si mesmo. Esta noção, por sua vez, vinha de Agostinho, influenciado pela compreensão (néo-platônica) da reflexidade dos dois poderes ( espirituais) do intelecto e da vontade. Esta reflexidade é que fundaria a liberdade, que requer o domínio sobre o ato e sobre o objeto da ação. Por contraste, os animais seriam determinados externamente em suas ações. A liberdade, portanto, seria esta possibilidade de arbitrar. 18 19 Se classicamente a lei tinha o sentido de evocar “a ordem do mundo”, Occam (aqui seguindo Duns Scottus) dirá que a lei é um comando voluntário da autoridade. Faz, portanto, uma outra leitura dos textos sagrados, internalizando seus preceitos e sua estruturação, e lhes acrescentando um impulso personalista e libertário. Assim, à diferença de Tomás de Aquino, Occam dirá que existe a lei divina, cujos comandos encontram-se no decálogo, a lei positiva, correspondente à autoridade terrena (“dai a césar o que é de césar”), que também é dada por Deus, e uma terceira lei, inscrita (segundo São Paulo) no coração dos homens ,que é nossa razão. Mesmo obscurecida pelo pecado, esta razão segue podendo nos comandar. De acordo com Villey, esta terceira lei constitui a origem do nosso direito subjetivo, produto da onipotência divina que dá poder aos Reis e domínio aos homens sobre as criaturas inferiores. Esta apreensão individualizada do direito natural, este que está inscrito no coração dos homens, implica em corte radical com a concepção clássica de justiça natural. Enquanto pertinente à consciência humana, o direito deixa de referir-se à noção de justiça enquanto “boa ordem” para ser algo a ser construído artificialmente. Assim, existem leis preceptivas ( ame a Deus e ao próximo), leis interditivas ( não roubarás, não matarás), e leis permissivas : onde não há preceito ou interdição, cabe a liberdade ordenada pela razão. Está aqui o fundamento da idéia de direito subjetivo. A resultante desta transformação seria a de que a lei positiva deriva do poder delegado do legislador, representante da multiplicação ilimitada de direitos subjetivos (Villey,1964:124). O justo, portanto, passa a ser o legal14. Assim, a via moderna entende por justiça a “retidão da vontade” , expressão usada por Occam, tributário aqui de Santo Agostinho (cf. Villey, 1964:121). Posto que Occam não tem qualquer noção de uma ordem supra-individal, e dado que uma ordem social seria algo que não tem realidade, a noção clássica de justiça desaparece. Vale ainda mencionar, por sua relevância para a questão que aqui vai sendo trabalhada, a reflexão de Denis le Chartreux 14 Cabe entender, entretanto, que à diferença do positivismo jurídico contemporâneo, Occam confere ao indivíduo o poder de delegar sua função legislativa em função de um ato divino: foi Deus quem deu ao homem o domínio sobre o mundo. 19 20 (início do séc. XV)acerca da justiça, que o leva a falar da “dignidade humana”. Denis define a justiça como a virtude da vontade de dar a cada um o que lhe é devido. Mas isto que é devido é também uma dignitas”. Pois o que cada um merece é aquilo que é digno de receber (Cf. Brett,1997:106). Aqui, a noção de direito já está muito próxima da do direito subjetivo , no sentido de que a dignidade já é quase um atributo do sujeito. Mas ainda não está estabelecida, na medida em que de forma alguma a idéia de um poder individual está presente. A Summa de Antoninus, escrita em meados do mesmo século, enfatiza, por sua vez, a conexão entre lei e direito, no sentido de que o direito é mais um poder de agir ( entre pessoas e coisas, entre pessoas entre si),do que uma relação (Brett,1997:110).Mas o desdobramento mais importante desta formulação do conceito de direito subjetivo encontrase na obra de Gerson. Gerson sustentava a idéia de que, originalmente, Deus dominava tudo; criado o homem, Deus lhe deu sua “graça” para que pudesse exercer o domínio sobre o mundo. A partir daí, argumentará que a propriedade é natural, bem como a idéia de que a liberdade é uma faculdade da razão, diferenciando destarte o direito da lei. Gerson toma o direito como “uma faculdade ou poder pertencendo a uma coisa de acordo com os ditames da reta razão “(Brett,1997:81). Esta reta razão está “original e essencialmente” em Deus, mas 15 Esta “participativamente” nas criaturas racionais . participação da razão humana na razão divina é chamada por Gerson de synderesis, à qual associa-se a lei ou direito natural. O direito subjetivo é então a faculdade pela qual a alma discerne o que é certo: Gerson tende a isto, mas não chega inteiramente lá : pois este direito natural não é ainda uma faculdade cognitiva e sim um potencial para ações específicas (Brett, :81 e ss). Ainda assim, ao afirmar que todo ser humano tem esta faculdade ou poder, Gerson está abrindo o campo para a associação entre o direito e a subjetividade individual. Como Tuck (1979:26) assinala com propriedade, Gerson foi o primeiro a associar a liberdade a um direito, coisa inexistente seja na tradição romana do direito civil, seja na Escolástica16. 15 Aqui, segue Aquino. A tradição romana, como já assinalado, identifica o espaço da liberdade individual com o espaço fora da jurisdição pública. 16 20 21 As tradições tomistas e gersoniana serão assimiladas por Almain (início do século XVI). De sua obra, cabe reter a idéia de que o homem tem um direito ou poder natural para se conservar e para se proteger das agressões, assim como a comunidade também tem o de eliminar, até pela morte, os que perturbam sua sociabilidade (Brett: 118). E este direito eqüivale a um domínio. Direito e domínio são, pois, função da lei natural. Posto isto, podemos agora entrar na Segunda Escolástica, propriamente dita, destacando a maneira peculiar como concilia uma perspectiva holista com a liberdade individual, por contraste com a doutrina moderna do direito natural que radicaliza a perspectiva individualista na conceituação da justiça. 21 22 A Segunda Escolástica : a obra de Vitória, Soto, Molina e Suarez No final do seu Espelho de Próspero, Morse retoma o argumento central de seu texto, chamando nossa atenção para a tradição ética referenciada à lei natural que contrasta com a perspectiva individualista presente na noção de direito natural. Frente à proteção deste espaço de soberania que cada indivíduo goza, sobre seu mundo moral , Morse não descarta o valor desta tradição “barroca” que aponta para uma lei “para o mundo, em sua diversidade” (1995:164). Crítico da configuração dominante dos valores que informam o “way of life” do mundo contemporâneo, Morse sugere que a concepção de justiça que marca a formação da íbero-américa deve ser retomada como um veio interessante para a compreensão e resolução dos impasses deste nosso final de século. Morse inicia seu argumento identificando a matriz moral comum das tradições anglo e íbero americanas. ”Dentro dessa matriz, entre os séculos XII e XVII”, sustenta Morse, “foram feitas opções e construídos modelos conceituais que viriam a produzir os diferentes padrões do que chamamos “civilização ocidental“(pag.23).Após comentar o processo de diferenciação efetivado no interior desta tradição, Morse irá conferir um valor especial à Segunda Escolástica, não apenas por encontrar aí as bases do direito internacional, mas por fornecer também uma “metafísica inicial para a moderna filosofia européia ( criando) uma racionalidade e normas para as conquistas de ultramar mais humanas do que aquelas que as sucederam“(pag. 29). Meu interesse por esta escola, que sem dúvida alguma foi despertado pelo texto de Morse é, entretanto, de cunho mais teórico. Ocupando-me da linguagem dos direitos de cidadania, interessa-me expor as bases doutrinárias que conferem sustentação às diversas “Declarações dos Direitos Humanos”. Se a doutrina moderna do direito natural é o suporte central deste discurso, a reflexão efetivada no âmbito da Segunda Escolástica parece ser extremamente importante como momento de transição de uma visão da justiça fundada em uma idéia de lei natural para sua representação na linguagem do direito natural. Acompanhar esta démarche pareceu-me interessante para a elaboração mais sofisticada dos argumentos que, contemporaneamente, são acionados para legitimar o Estado Providencial e para a compreensão mais acurada dos dilemas 22 23 enfrentados pelos que querem conciliar liberdade individual e justiça. Retomar um momento da filosofia política em que a liberdade individual estava garantida numa representação holística da sociedade parece ser pertinente para, pelo menos, entender que os termos não necessariamente se opõem, como quer o néo-liberalismo hoje em voga. A referência clássica para o exame da Segunda Escolástica segue sendo o trabalho de Gierke(1934). As teorias da lei natural que desenvolvem-se entre 1500-165017 tem como característica central, sustenta Gierke, o fato de romperem com uma representação do Estado como totalidade compreendida por uma totalidade mais englobadora, que o define, para representá-lo como instituição auto-explicável. Ao mesmo tempo em que essas teorias perdem seu teor teocrático, muda também o foco analítico. Não se trata mais de tomar a humanidade como objeto da filosofia política, mas de analisar o Estado como unidade formada pela união de indivíduos, em obediência aos ditames da lei natural (Gierke, 1934:40) O que está sendo dito aqui é que, para os novos Escolásticos, o Estado é uma instituição que desenvolve-se naturalmente, dada a tendência associativa própria aos seres humanos, obedecendo sua organização à vontade humana, antes que a um desígnio divino. Lei e direito natural começam efetivamente a diferenciar-se na reflexão efetivada por sacerdotes da igreja Católica que, ocupando o lugar de ideólogos da política ibérica, precisam dar conta da colonização de civilizações radicalmente distintas da sua. Incumbidos de imputar legitimidade às soluções propostas pelo Estado, a Segunda Escolástica ganha este nome por expressar a mesma doutrina da Escolástica, agora modificada pelo Renascimento e influenciada pelo nominalismo18. De Tomás de Aquino, os pensadores da Segunda Escolástica preservam o esquema central de sua teoria das leis. O 17 O corte em 1650 corresponde ao texto hobbesiano que radicaliza estas teorias, ameaçando, no dizer de Gierke, a própria sobrevivência de uma lei pública genuína. 18Maquiavel também foi lido, e sua influência revela-se em textos que pretendem ser o espelho do príncipe, como os de Jeronimo Ozorio e Felipe de la Torre(Skinner,1996:233). Mas os novos escolásticos consideram que a lei de Deus deva sobrepujar a “razão de Estado”, não sendo portanto fundamental este foco na figura do Rei. Sobre a influência de Maquiavel na cultura política ibérica, ver também Morse, (1995:54 e ss.). 23 24 universo será representado como um todo, ordenado pela lei divina (expressa nas Escrituras), pela lei natural, implantada nos homens, e pela lei positiva ( civil e canônica), que especificará, no tempo e no espaço, a lei natural19. O conceito de lei natural aproxima-se aqui do que seria razoável, costumeiro ou normal, sendo sua existência generalizada prova do caráter natural da lei (Hamilton,1963:12). Os primeiros princípios seriam o de fazer o bem, evitar o mal, e não fazer aos outros o que não se quer que a si se faça. Destes princípios seriam derivados outros, de segunda ordem, do tipo não matar, não roubar e ainda os de terceira ordem, como os que especificam em que circunstâncias a guerra, por exemplo, é justa. Havia divergência entre os principais expoentes desta escola quanto ao caráter ético da lei natural, bem como quanto a possibilidade de ser esta lei apreendida pela razão: o bem e o mal eram intrínsecos à natureza das coisas, e enquanto tal, necessários, ou definidos pela vontade divina, que poderia ter feito tudo de outro modo ? Era uma lei divina positiva , chamada de natural apenas porque estava de acordo com a natureza, tal qual ela se apresentava? Para Vitória (1485-1546), natural e necessário é aquilo que surge da própria coisa, como a capacidade de rir e de pensar é natural para o homem. Assim, dirá que “a lei natural é a que é propriamente, e por si mesma, correta”. A lei natural é, portanto, acessível à razão, porque Deus fez tanto a lei natural quanto a razão humana. Soto (1494-1560) dirá que a lei natural é mais facilmente apreendida pelo instinto ( e assim, da lei natural, ninguém pode alegar desconhecimento) sendo sua racionalização propiciada pela lei humana positiva (Hamilton,1963:14/15).Estes dominicanos, ao desenvolverem este tipo de raciocínio, estão também respondendo à Reforma, insistindo que, no homem, preserva-se uma “graça interior”, e que portanto ele mesmo é capaz de buscar a justiça; pode atuar politicamente de uma forma em que exerça sua liberdade, obedecendo ao mesmo tempo à lei divina. Suarez (1548-1617)também concordará com esta postura porque, se não fosse assim os não-cristãos estariam excluídos da 19 As leis positivas devem ser obedecidas, na medida em que sejam compatíveis com a lei natural, pois fazem valer no mundo “uma lei superior que todo homem já conhece em sua consciência”(Skinner,1996:426). A Segunda Escolástica compreendia, também seguindo Tomás de Aquino, o direito de resistência da pessoa, da família e da localidade. 24 25 participação na ordem eterna, já que desconhecem, por definição, as escrituras. Mas discorda do caráter intrínseco do bem e do mal, na ordem das coisas, porque desta ordem não é possível derivar a obrigação de fazer o bem. A lei natural não é o que é sujeito à regularidade causal, no sentido de que a natureza é governada pela lei; a lei natural opera apenas sobre os agentes morais, na forma do julgamento que precede e guia a vontade (Haakonse,1966:19). Assim, conclue ele que a lei natural contempla uma necessidade e uma ordenação divina (Hamilton,1963:26)20. Por sua vez, Molina(1536-1617)dirá que, se a lei natural comanda ou proíbe por si mesma, as paixões humanas, o caráter intrincado daquilo que se quer conhecer e, finalmente , a preguiça, a incultura, em suma, defeitos do sujeito do conhecimento são as fontes possíveis de erro em sua apreensão(Hamilton,1963:18/19)21. Com este tipo de reflexão, os novos escolásticos acabam por re-elaborar a concepção tomista de justiça, ao atribuir um significado bem mais decisivo à razão, em sua concepção de lei natural . Para eles, a mente humana seria capaz de apreender a realidade, sendo tal conhecimento passível de corroboração pela experiência( cf. Hamilton, passim). O universo social, por sua vez, segue sendo visto como inscrito num contexto natural de obrigações mútuas, não havendo, portanto, espaço para a idéia de qualquer contrato(Hamilton,1963:29).Se estes tomistas consideravam que todos os homens eram livres, iguais e independentes (Skinner,1996:433), não eram, entretanto, seres naturalmente solitários. A conceituação dos homens como zoon politikon continua sendo a conceituação dominante, seguindo Aquino e Aristóteles. Conforme Vitória, “é de fato essencial ao homem jamais viver sozinho” (Skinner,1996:434). A comunidade política, portanto , é apreendida organicamente, não havendo lugar para a idéia de subordinação dos indivíduos ao Estado, e sim de todos à lei natural. Por esta razão, o enfoque da Segunda Escolástica incidirá menos sobre a liberdade e mais sobre o bem-estar das pessoas. Mas expressa também a influência republicana, no 20 “...(A) lei natural vale apenas para o ser humano(e não para todo ser vivo), posto que a lei implica numa relação moral com o que deva ser feito e só a inteligência é capaz deste governo...só os que tem o uso da razão podem ser governados pela lei”( De Legibus, cf.Hamilton,1963:21) 21 Este ponto é importante, porque pecar e errar eram considerados, praticamente a mesma coisa. 25 26 sentido de que a soberania do povo está garantida vis-à-vis a postulação de um governo acima da lei. Vejamos agora como a idéia do direito subjetivo desenvolvese dentro desta perspectiva. Para Vitória, o direito natural é aquilo que é necessário, frente ao qual temos que nos sujeitar, posto ser o que a natureza ensina a todos os animais ... e que pode ser reconhecido pela luz natural. É a atividade específica a cada ser, e aqui Vitória segue Cícero, mais que a Aquino (Brett,1997:126). O tema do direito associa-se ao do domínio, e dentre os significados atribuídos por Vitória para esta relação cabe aqui destacar os seguintes. O domínio poder ser apreendido como significando uma certa eminência ou superioridade; neste caso, não é o mesmo que o direito, dado que a mulher tem direito sobre o marido mas não tem domínio. Mas domínio e direito também podem ser entendidos como termos equivalentes, em cujo caso entra o poder da vontade: é direito o que o dominus decide. O que está sendo enfatizado é que o homem é racional e livre, por contraste com a natureza que é determinada. Note-se ainda que Vitória toma a conservação da vida humana como um direito, que provem da lei natural. E é a partir daí que Vitória irá desenvolver sua teoria política, onde o poder do governante é poder consentido pelo povo. Está aqui a representação radicalmente democrática de governo, com base individualista , mas estruturada no contexto de uma concepção holística da vida política. Vejamos mais detidamente como Vitória tratou o direito subjetivo. Vitória relaciona ao direito a noção de obrigação: o direito subjetivo, natural, indica a necessidade( necessidade aqui entendida no sentido aristotélico daquilo que dirige-se a seu próprio fim) que os indivíduos têm de viver em sociedade, sendo a “civitas” imprescindível para remediar as deficiências humanas22. 22 Aqui fica claro um dos principais legados do humanismo renascentista para a Segunda Escolástica ,nesta ênfase concedida à capacidade da legislação remediar os “males” da vida em sociedade. Os renascentistas, apoiando-se no De Inventione, de Cícero, ao distinguir “vida civilizada” da barbárie, caracterizavam como principal diferença entre o ius gentile e o ius civile o fato de que, no âmbito do primeiro, o governo da sociedade dependia do julgamento arbitrário de “reis primitivos”, enquanto que no segundo dependia de leis .A passagem de uma para a outra far-se-ia 26 27 Assim, Vitória teria usado o termo “direito subjetivo” para referir-se ao direito de pertencer a uma comunidade política. Cabe adicionar aqui, que, para Vitória, a civitas implica na existência de comandos e leis que o indivíduo tem a obrigação de obedecer. Mas Vitória conferiu ao termo um segundo significado, ao conectar o direito subjetivo ao domínio; a ênfase recai aqui na liberdade própria à pessoa independente, capaz de exercer seu poder sobre coisas e pessoas. Vitória teria reservado, portanto, um espaço, por assim dizer, dentro da “civitas”, da cidade, para o exercício deste direito. Na medida em que esta liberdade é percebida como um direito, cria-se tensão entre os dois tipos de “direitos”: viver em uma comunidade política, cumprir seus ordenamentos, e viver livremente. No âmbito da (primeira) Escolástica não havia conflito, pois se a noção de liberdade ocupava um lugar de centralidade, por ser uma noção imprescindível à idéia de ação meritória, de salvação, o espaço da liberdade era entendido como um espaço distinto daquele ocupado pela sociedade organizada. Para melhor compreender esta tensão, vale a pena desviar o foco da linguagem dos direitos e orientá-lo para a linguagem que identifica o portador dos direitos, o “ sujeito da lei”. O texto de Gierke é esclarecedor: um direito envolve um sujeito, e o sujeito de um direito é uma pessoa, alguém que tenha personalidade. No momento aqui analisado, supunha-se que o povo tinha personalidade, qualificada como uma “personalidade corporativa”. O significado desta idéia só pode ser captado levando-se em consideração a distinção que então se fazia entre “universitas” e “societas”. A “personalidade corporativa” associava-se à idéia de com base na eloquência, a capacidade de bem raciocinar. Em De Inventione, Cícero sustentava que houve um tempo em que os homens viviam como animais, andando pelos campos, confiando sobretudo em sua força física; não haviam obrigações, sistema social, casamento... Até que apareceu um grande homem, que compreendeu o valor da reflexão, da lei e da instrução. De acordo com um plano, este homem reuniu a todos, lhes assignou ocupações úteis e honradas e, por sua eloquência se fez escutar, transformado-os em uma gente boa e dócil”(Tuck:1979 :33,37). Assim, a diferença entre “gentios” e “civilizados” era da ordem da qualidade do pensamento humano acerca do que seria conveniente para a sociedade. 27 28 “universitas”, por contraste com o conceito de “personalidade coletiva”, que referia-se à associação de membros distintos. A tensão instaura-se portanto quando a liberdade de agir passa a ser ordenada pela esfera jurídica, que deverá conciliar direitos individuais e corporativos. De acordo com Brett, a obra de Soto, principal discípulo de Vitória23, pode ser compreendida como voltada para a resolução desta tensão. Soto teria reconciliado os dois sentidos conferidos, por Vitória, ao direito objetivo, como parte de um projeto mais amplo de harmonizar as demandas de uma sociedade política orgânica com a liberdade individual ( Brett, 1997:8). Gierke é mais cauteloso, ao sustentar que a Segunda Escolástica mantém, com um “jeu d’ésprit engenhoso”, a premissa individualista numa idéia de “universitas” que existe por direito próprio. Mas, de qualquer forma, o “träeger” dos direitos é o povo, uma unidade em si. Soto parte do suposto de que, para conhecer a justiça, é preciso investigar as regras de sua operação24. As leis serão as mesmas de Aquino: a de Deus, eterna, razão de tudo que existe; a natural, compatível com a razão humana, e a lei positiva. A lei natural não vale para todos os animais, que tem um instinto natural que os leva a realizar seus próprios fins; mas o homem tem ainda esta outra lei que o leva a mover-se a si mesmo para seus fins, que é a sua liberdade: “... e isto é a lei natural, estes princípios que, sem raciocínio discursivo, são aparentes per se, por iluminação natural “(Brett,1997:142). E é isto que torna o homem livre, diferentemente das demais criaturas25. Além desse conhecimento inato do fim a ser buscado por suas ações, ele tem uma inclinação para realizar o seu próprio bem ( a virtude) que o conforma com a lei eterna. Assim, “... tanto de acordo com seu conhecimento, quanto de sua propensão para o bem - ambos necessários para o movimento livre - as ações humana estão sujeitas à lei eterna”( Brett, 1997:143). 23À diferença de seu mestre, Soto escreve muito, tendo 27 edições de seu livro sobre a justiça, antes de findar o século XVI. 24 Soto sustenta que o ius, objeto da justiça, não deve ser entendido como uma noção subjetiva (cf. Skinner,1996:452). 25 Seguindo a tradição aristotélica, o ser humano, para de Soto, será representado como um ser organizado em três camadas : a camada natural, como ser vivente, que o inclina para sua conservação, nutrição e crescimento; como ser animal, que tem sua orientação pelos sentidos, e como ser racional, inclinado para o que é bom, governado pela razão. 28 29 Soto distingue o campo do direito do campo do domínio, ao sustentar que o direito refere-se à idéia de liberdade, enquanto que a relação de dominação implica na obrigação do senhor de cuidar do bem de seu escravo, ou de seu filho, ou de seu “rebanho”. Assim, a faculdade humana de agir, ditada pela lei natural, é o direito, e a primeira lei natural é a da auto-conservação: todos têm como primeiro direito natural este direito a auto-conservação26. Usando criticamente a metáfora do corpo, onde o soberano seria a cabeça, Soto insiste que, à diferença de um membro do corpo humano, que de fato não existe por si, fora do corpo, as pessoas existem fora da comunidade e que portanto são passíveis de serem prejudicadas pela ação do soberano. Além disso, o soberano não tem direitos sobre a propriedade das pessoas, à diferença da mente que, supostamente, é dona de seu corpo. Se, enquanto membro da sociedade, o indivíduo deve atuar de acordo com o direito público, enquanto indivíduo ele tem que exercer seu próprio controle: deve ser “sui iuris, ter domínio sobre si e sua liberdade”( cf. Brett,1996:159). E isto vai até o ponto em que a comunidade política não pode obrigar um indivíduo a “cortar sua perna, para se salvar”: só o indivíduo é responsável pela maneira como preserva sua própria vida. Mas Soto insiste também que o homem não tem garras e chifres que o defenda e que precisa mesmo da sociabilidade. Segue-se daí o raciocínio de que ( sempre seguindo Aristóteles) uma 26 Este tema vem associado à questão da escravidão: poderia o homem trocar sua liberdade pela vida? o homem é dono de seu destino? Gerson sustentava que a liberdade era uma propriedade, que poderia ser trocada pelo homem quando lhe conviesse, pois o homem era livre mesmo. Sepúlveda argumentava que os indivíduos eram escravos por natureza, mas seu texto Democrate Alter será banido em 1558, quando Felipe II promulga o primeiro Index Expurgatorius espanhol(cf.Hamilton,:9 e 10). Mas para Vitória, que encarava o problema concreto da escravidão, e não a questão teórica, a proposição era a de que o homem não podia escravizar-se, porque não era dono de seu destino: só em casos extremos - iminência de perda da vida - isto era aceitável. de Soto entrementes argumentará que é tal a vontade de todos os animais de preservar a vida que até escravizar-se é garantido pela lei divina, por esta razão. Molina dirá que o homem tem o direito de se escravizar, mesmo por comida. Suarez segue Molina neste ponto. 29 30 comunidade precisa de governo, pois sua unidade deriva de uma sujeição a uma mesma regra27. Este governo deverá ter sua base no poder popular, mediatizado pelo monarca ou pelos representantes populares. Lendo a passagem onde Soto indica como a comunidade política se constitui, fica muito claro que a reunião de todos sob um mesmo governo responde a uma sociabilidade natural, a uma impossibilidade de sobreviver isoladamente; não há aqui a fria (calculista) lógica do pacto. Mas é com Molina e Suarez, jesuítas que rivalizavam com Vitória e Soto, que o conceito de direito subjetivo é formulado de forma plena. Molina tinha uma visão da vontade livre que lhe levava a definir o direito como uma faculdade de se portar livremente; e este direito pertenceria a todos; assim os “etíopes” tinham o direito de se escravizar, se isto fosse compatível com suas leis. Este argumento será formalizado por Suarez, que já afirma ser o direito uma faculdade, na linha de Gerson, e o domínio algo existente também no estado de natureza : “a liberdade é um assunto do direito natural ... posto que a natureza confere ao homem o verdadeiro domínio de sua liberdade “(cf. Tuck,1979:56). Assim, Suarez dirá que justiça e lei são distintas, já que a justiça não se refere apenas ao que é certo mas indica também “uma certa capacidade moral que todos possuem” e que portanto a justiça diz respeito a um direito, no sentido de “ter-se um direito em relação a determinada coisa”(Cf. Suarez, Tratado das leis e de Deus legislador, apud Skinner,1996:452). O direito subjetivo é, portanto, o meio para a realização dos fins determinados pela lei natural. Compreende o poder ou domínio sobre nós mesmos ( a liberdade), sobre os bens do mundo ( a propriedade) e sobre outros, instituídos por quasicontratos. Nos termos de Haakonsen, a liberdade nos é dada, mas podemos renunciar a ela em função de uma determinação da lei natural, como a punição; o mundo nos é dado em comum, mas podemos nos apropriar dele privadamente, de modo a melhor contribuir para o bem comum(1996:23).Assim, Molina e Suarez, mesmo tomando o povo como corporação, tenderão, entretanto, para sua representação como “societas”. O povo vai assim dissolvendo-se em um sistema de direitos e obrigações individuais recíprocas, na medida em que a 27Brett sugere que Soto, como toda a escola de Salamanca, envolvido com a defesa dos índios e o ataque ao luteranismo, tinha que insistir no caráter natural da “civitas”. 30 31 vontade comum vai se decompondo em um acordo de vontades individuais( Gierke,1934:45,245). Finalmente, Grotius irá ajustar o texto aristotélico à sua perspectiva individualista e radical do Direito Natural, abandonando posteriormente a teoria de justiça de Aristóteles ao relacionar a justiça diretamente ao direito, ainda que mantenha um comunitarismo, na forma da “caridade interpretativa”. Selden completa a perspectiva individualista e hedonista da obrigação moral, permitindo a obra central de Hobbes. 31 32 Conclusão Identificado o contexto intelectual que propicia a formulação do conceito de direito subjetivo, creio ter exposto a base que permite a enunciação dos direitos inalienáveis do ser humano, alicerçada, à diferença de nosso saber contemporâneo, em um leitura holística da justiça. Este artigo não pretendeu ser, exclusivamente, um relato do movimento de idéias, ainda que tenha sido praticamente dedicado a isto. Se procurei seguir tão cuidadosamente quanto possível a reflexão sobre justiça que desenbocou na formulação de um direito subjetivo, é porque entendi que o esforço destes nossos ancestrais ainda hoje pode ser válido para uma melhor compreensão dos dilemas com os quais nos defrontamos, ao desenvolver nossas próprias concepções de justiça. Em particular, interessa-me a relação entre direitos individuais e direitos sociais , relação esta que estabelece-se em termos confusos ou mesmo contraditórios. Usualmente, os direitos sociais são formulados em linguagem sociológica, que toma a sociedade como sistema, enquanto que a formulação dos direitos individuais alicerça-se numa perspectiva radicalmente individualista da sociedade. Esta dualidade interpretativa tem implicações práticas, na medida em que os princípios que legitimam a proteção dos direitos individuais não se coadunam com políticas sociais voltadas para a proteção dos direitos sociais(Oliveira,1998:12). Se o que foi exposto acerca da Segunda Escolástica permite vislumbrar uma ordem política onde a compreensão da sociedade a ser por ela regida abriga um espaço considerável de liberdade individual, o que fica em questão não é tanto a associação de direitos individuais e sociais, mas uma representação desta ordem como emanando exclusivamente da vontade soberana dos indivíduos. Creio que há algo mais que se pode retirar desta visita à Segunda Escolástica, que no texto não ganhou o devido destaque, para não comprometer uma certa linearidade na exposição do argumento. O debate contemporâneo sobre direitos sociais encontra, sem dúvida alguma, nas proposição de Ewald(1985), sua formulação mais precisa. O desafio maior que Ewald encontrou, a meu ver, foi o de precisar o “sujeito da lei” que seria o portador dos direitos sociais (cf.Oliveira,1997). Ao analisar a Segunda Escolástica, Gierke trabalha com esta questão, ainda que em outros 32 33 termos. Creio que seu conceito de “personalidade corporativa”, se bem compreendido, pode se prestar plenamente para identificar o “träeger” dos direitos sociais. Se assim for, talvez possamos tomar a passagem dos direitos de primeira para segunda geração como um retorno a uma noção forte de sociedade, contemporânea do saber sociológico, que marca o século em que estes direitos buscam se universalizar, pelo menos como referência obrigatória em toda justificação do poder do Estado. 33 34 Bibliografia Aristóteles (1987)- The Nicomachean Ethics, Oxford Univ.Press,Oxford Brett, Annabel S,(1997)- Liberty, Right and Nature, Cambridge Univ.Press Ewald, F. (1985) - L’État Providence - Grasset, Paris Gierke, Otto (1934) - Natural Law and the Theory of Society - 1500 to 1800 - Cambridge University Press, Cambridge Hamilton, Bernice (1963)-Political Thought in XVI Century, Spain, Oxford. 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