Até onde vai a força do real | 29.05.2008 É melhor se acostumar — com gastos públicos e juros em alta, nenhum fundo soberano será capaz de reverter a valorização da moeda brasileira Por André Lahóz EXAME O investidor americano Warren Buffett não é exatamente o tipo de gente que costuma rasgar dinheiro. Foi fazendo precisamente o contrário — acumulando e multiplicando bilhões — que ele ganhou aura de semideus das finanças e chegou ao topo da lista dos homens mais ricos do mundo. No último ranking das maiores fortunas da revista Forbes, Buffett está à frente de Bill Gates e do mexicano Carlos Slim. A liderança em 2007 foi conquistada graças à sua bem-sucedida investida no mercado de câmbio. A surpresa ficou por conta da única moeda escolhida para compor seu portfólio: o real. “Até bem pouco tempo atrás, trocar dólares por reais era impensável. Cinco versões da moeda brasileira viraram confete no século passado. Mas, de 2002 para cá, o real subiu e o dólar caiu todos os anos”, disse Buffett a uma agradecida platéia de investidores de sua empresa, a Berkshire Hathaway. Estima-se que a opção pelo real tenha lhe valido 2,3 bilhões de dólares. Não deixa de ser um sinal dos novos tempos — antes do Plano Real, só um louco apostaria numa moeda que disputava com o peso argentino, o kwanza angolano e o dólar zimbabuense o título de mais débil do mundo. Hoje o real mostra força num ambiente de câmbio livre, em que a cotação flutua ao sabor da oferta e da demanda dos investidores. Mas, ao mesmo tempo que faz a alegria de alguns — como Buffett —, a valorização da moeda tem incomodado um grupo crescente de brasileiros, a começar pelo ministro da Fazenda, Guido Mantega. A apreensão subiu de patamar com a divulgação, no fim de maio, de um novo saldo negativo nas contas externas do país. O resultado das transações correntes atingiu um déficit de 15 bilhões de dólares e deve fechar o ano em 20 bilhões. Em 2007, o Brasil tinha um superávit de 1,5 bilhão. Mais do que o dado negativo, o que tem impressionado é a velocidade da reversão das contas externas. Em outros tempos, o acúmulo de déficits externos seria capaz de gerar um caos no ambiente de negócios do país. Não mais. Como o Brasil tem recebido muitos investimentos estrangeiros — foram 35 bilhões de dólares no ano passado —, não há paralelo com o passado. Naquela época, o que estava em jogo era a capacidade do Brasil de honrar seus compromissos lá fora. Agora, a dívida externa, eterno calcanharde-aquiles da economia brasileira, foi praticamente zerada. É por isso que o Brasil acaba de receber o grau de investimento da agência de risco Standard & Poor’s e continua atraindo dinheiro dos investidores. A questão, portanto, não é mais de sobrevivência. O que importa agora é saber se a valorização do real pode atrapalhar — e em que medida — o bom momento da economia brasileira. No curto prazo, o saldo ainda é positivo. O real forte traz alguns benefícios evidentes. Numa época de aceleração da inflação em todo o mundo — estima-se que dois terços da humanidade vivam em países com inflação de dois dígitos —, o Brasil tem se destacado pela relativa estabilidade, pelo menos até aqui. O real forte é parte desse roteiro de sucesso. “A valorização também reforça o ímpeto de empresas que buscam aproveitar o bom momento da economia para investir”, diz o economista Celso Toledo, da LCA Consultores. As importações de máquinas cresceram quase 80% no primeiro trimestre do ano. O problema é que notícias não tão boas podem vir mais à frente. Há certo consenso entre os economistas — tanto quanto é possível para eles entrarem em acordo sobre o que seja — que a capacidade dos países de crescer no longo prazo é comprometida por uma moeda exageradamente forte. Ninguém sabe exatamente até onde essa valorização pode ir. Mas a maioria dos analistas aposta que ela já esteja próxima de seu limite máximo. No plano internacional, começou uma pressão contrária: uma desvalorização do dólar promovida para melhorar a competitividade das exportações americanas. Aqui, os economistas dizem que o próprio déficit nas contas externas do Brasil e o aumento da importação tendem a gerar certa desvalorização da moeda nacional. O cenário mais provável, portanto, é de relativa estabilidade, talvez com uma ligeira perda de valor mais à frente. O francês Alain Keruzoré, presidente da francesa Valeo, fornecedora de autopeças que vende 95% da produção no país, trabalha com a estimativa de que a cotação do real frente ao dólar se mantenha entre 1,60 e 1,90 até o final de 2009. “Estou no Brasil há tempo suficiente para saber que é melhor não fazer previsões além de dois anos”, diz. No cenário de real forte, sofre mais quem já vinha passando por dificuldades. É o caso da indústria têxtil. No dia 13 de maio, um dia após o anúncio da nova política industrial, o ministro Miguel Jorge, do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, recebeu cerca de 50 representantes do setor para discutir saídas para a crise. Segundo a associação de produtores, três anos atrás a balança comercial do setor era superavitária em 550 milhões de dólares, valor semelhante ao déficit registrado apenas nos primeiros quatro meses deste ano. Por ser um dos setores que mais empregam — são 1,6 milhão de trabalhadores diretos —, está no topo das preocupações do governo. Mesmo as empresas mais parrudas estão desistindo do mercado externo. No ano passado, pela primeira vez em 32 anos, a Karsten, de Blumenau, fabricante de produtos de cama, mesa e banho, desistiu de freqüentar a principal feira internacional do setor, que ocorre anualmente em Frankfurt, na Alemanha. “Não dá para montar um estande só para servir caipirinha e bater papo”, diz Luciano Reis, presidente da empresa. Até recentemente, a Karsten era, junto com a mineira Coteminas, uma das mais bem-sucedidas no mercado externo. Assim como ela, outras exportadoras de têxteis estão se voltando com força para o mercado doméstico. “Com esse câmbio, não dá para ganhar um tostão na exportação”, diz o consultor Stephano Brideli, da Bain & Company, que trabalha para a Coteminas. Líder do setor e orientada nos últimos anos para o mercado de exportação, a empresa mineira teve prejuízo de 258 milhões em 2007. “Agora está se reorganizando para conquistar um espaço maior dentro do país”, diz Brideli. Há também empresas que mantêm as exportações apenas porque não podem quebrar compromissos. A fabricante de pneus Bridgestone Firestone, que obtém 25% de seu faturamento de 1 bilhão de dólares por ano no Brasil com exportações para outras subsidiárias do grupo no continente americano, é exemplo disso. Mesmo com a perda da rentabilidade na exportação, a empresa não reduziu seus embarques. “Essa é a determinação estratégica de nossa matriz japonesa”, diz Raul Viana, diretor de assuntos corporativos da Bridgestone Firestone. Para empresas voltadas para o mercado doméstico, o efeito negativo do real forte às vezes é um aumento da concorrência com importados. “Os clientes podem comparar mais facilmente nossos preços com os dos concorrentes asiáticos, que hoje são muito baixos”, diz Keruzoré, da Valeo. O que explica a crescente força do real? Segundo os especialistas, ela decorre da conjunção de dois fenômenos, um internacional, outro doméstico. O primeiro diz respeito a uma mudança estrutural na economia global, que terminou por impulsionar as exportações brasileiras. Historicamente, nações ricas em commodities sempre enfrentaram problemas com os preços de seus produtos. Mas a entrada no jogo da globalização de China e Índia mudou essa sina. Os preços das commodities atingem hoje recordes históricos. Frente a tal situação, é natural — e saudável — que o real tenha se valorizado nos últimos anos. Mas o novo panorama global conta apenas parte da história. A cotação da moeda brasileira acaba subindo também por uma distorção típica da economia do país — a manutenção de uma taxa de juro muito acima da internacional. Atualmente, o Brasil só perde para a Turquia no ranking de taxas mais altas de juro. “Essa situação tem conseqüência direta sobre o real. Juros altos fazem o câmbio se valorizar”, diz o economista José Alexandre Scheinkman, da Universidade Princeton. É aí o cerne do problema. Se, no futuro, o país conseguir migrar para uma situação mais normal em termos de política monetária, o real naturalmente cederá. Em tal cenário, a moeda brasileira manteria força apenas em decorrência da cotação mais alta de seus produtos, não em razão da atratividade de curto prazo da taxa de juro. É mais fácil falar, porém, do que fazer. O Brasil discute há anos alternativas para reduzir as taxas de juro. Até recentemente, os economistas dividiam-se em dois grupos no trato à questão. Uma leitura mais ideológica — e rasteira — da economia brasileira via o Banco Central como o vilão. Segundo essa visão, falta ousadia e sobra perversão a Henrique Meirelles e sua turma. Ante a aceleração da inflação nos últimos meses, esse grupo se retraiu — ficou claro que, sem o aperto monetário, os preços tendem a sair de controle. Com isso, tem prevalecido a visão do segundo grupo, que vê os juros altos como sintoma de um problema econômico mais profundo. “A verdadeira questão é que o Brasil consome demais e poupa de menos”, diz o economista Sérgio Werlang, diretor executivo do banco Itaú e ex-membro do Banco Central. Os juros altos refletem exatamente essa impaciência da sociedade brasileira. Um país que consome uma enorme fatia do que produz — o governo à frente — tem poucos recursos para investir. Com poucos recursos, o preço do dinheiro sobe. A valorização excessiva do real é apenas o elo final dessa cadeia. É por isso que a saída encontrada pelo Ministério da Fazenda para frear a alta do real recebeu tantas críticas. Segundo a proposta apresentada pelo ministro Mantega, o Brasil em breve deverá ter um fundo soberano, instrumento usado normalmente por países produtores de petróleo para aplicar as reservas internacionais em melhores condições que os títulos do Tesouro americano. Uma das motivações da Fazenda é retirar parte dos dólares do mercado, favorecendo certa desvalorização do real. O problema, dizem nove entre dez economistas, é que o Brasil carece de poupança doméstica para encher o “cofrinho”, na expressão do próprio ministro. Faria mais sentido o governo fazer a sua parte para elevar a poupança doméstica, reduzindo os gastos públicos. Mas o que se vê é o contrário. Os gastos do governo continuam subindo num ritmo próximo a 10% ao ano. Ante esse quadro, poucos economistas apostam numa mudança brusca na cotação do real. A maioria acredita que a moeda pode até perder um pouco de força, mas nada dramático. “Não tem jeito: enquanto a nossa política econômica combinar juro alto com gasto público forte, não tem mágica”, diz Werlang. “O resto é conseqüência”. .” Questões para serem respondidas após a leitura da reportagem “Até onde vai a força do Real.” 01 Qual a importância do conhecimento dos impactos do câmbio nos negócios das empresas? Como esse impacto pode afetar positiva ou negativamente os seus resultados? 02 Em pouquissímo tempo, ou seja, em menos de quatro meses, nós presenciamos uma reviravolta no cenário econômico da reportagem, através da crise econômica que teve origem nos EUA e espalhou-se pelo mundo. Quais os impactos dessa crise na economia brasileira e goiana? Quais as vantagens e desvantagens que ela apresenta? 03 Analise a variação cambial recente da economia brasileira e discorra sobre seus impactos no comércio exterior brasileiro, traçando um paralelo com os efeitos de uma recessão nas principais economias mundiais.