O Marketing Contemporâneo: Dilemas e Desafios Para Sustentabilidade Hélio Silva1 Jacques Demajorovic2 Resumo O artigo desenvolve uma reflexão teórica sobre as estratégias de marketing abordando os dilemas e desafios para sustentabilidade. Por meio de uma investigação teórica, procuramos demonstrar que o conceito tradicional de 4 Ps – Produto, Preço, Praça e Distribuição, perdeu sua eficácia como estratégia de Marketing das organizações, dando lugar à estratégia de arquitetura de marca. No desenvolvimento do artigo, demonstrou-se ou demonstramos que arquitetura de marca não se trata apenas de dar nome a um bem ou serviço para diferenciá-lo dos demais, trata-se de construir uma identidade permitindo a manipulação dos valores de consumo dos indivíduos. Nesta nova dinâmica mercadológica, a temática ambiental é um universo fértil de apropriação de valores culturais pelos especialistas de marketing no processo de construção das marcas. Para ilustrar o uso da estratégia da arquitetura da marca com apropriação da temática ambiental recorremos à abordagem teórica da semiótica que permitiu contextualizar os mecanismos de construção da identidade da marca, bem como os aspectos positivos e negativos para o proprietário da marca e para problemática ambiental. Concluindo o artigo, apontamos que a prática do marketing contemporâneo focado na arquitetura de marca não contribui necessariamente com a problemática ambiental, ao contrário, no limite pode potencializar o uso de recursos naturais, ao invés de colaborar com o uso de recursos naturais de forma sustentável. Embora o artigo não tenha como objetivo dar respostas aos dilemas e desafios apresentados, a titulo de reflexão foram apontadas algumas possibilidades de mudanças na prática do marketing, de tal forma que se incorpore nas suas estratégias a temática 1 Doutor em Comunicação e Semiótica e Mestre em Administração de Empresas pela PUC/SP, é professor de Comunicação e Marketing nos Cursos de Graduação e Pós-Graduação do Centro Universitário SENAC e da COGEAE PUC/SP. Coordena o Curso de Pós-Graduação em Projetos Sociais: Gestão e Perceptiva pelo Centro Universitário SENAC. Autor do livro “Marketing: uma visão crítica” pela editora SENAC, participou da organização das coletâneas “Desafios da Comunicação”, “Desafios do Trabalho” e “Desafios do Consumo” publicadas pela editora Vozes, além de outros textos sobre Comunicação e Marketing. 2 Atua desde 1990 na área ambiental desenvolvendo programas de formação e elaboração de projetos, incluindo gerenciamento de resíduos sólidos e sistemas de gestão ambiental. Atualmente é coordenador do curso de Administração da linha de Formação Específica e Professor do Mestrado em Sistemas de gestão integrada em Saúde do trabalho e meio ambiente do Centro Universitário SENAC. Seus projetos de pesquisa abordam o tema ecoeficiência em serviços, incluindo instituições financeiras, hotéis, hospitais e instituições de ensino. É autor do livro Sociedade de Risco e Responsabilidade Socioambiental: perspectivas para a educação corporativa (2003) e co-autor do Livro Modelos e ferramentas de gestão ambiental: desafios e perspectivas para as organizações (2006). 1 ambiental com mais eficiência para a sociedade. 2 Introdução Este artigo traz uma reflexão sobre o papel do marketing nos desafios da sustentabilidade socioambiental. A hipótese norteadora é de que a arquitetura das marcas torna-se fator determinante das estratégias de marketing, fragilizando seus principais componentes desenvolvimento do produto, formação de preço, praça e promoção (MIX 4 Ps). Trata-se de um deslocamento da prática do marketing subordinado à produção (era industrial) para a prática do marketing subordinado à esfera cultural (sociedade do consumo). O mecanismo em que se ancora tal transformação mercadológica é a da substituição das estratégias de persuasão e sedução para aquisição de bens e serviços por um sistema que mercantiliza o acesso a “estilos de vidas” por meio da cultura. Este fenômeno é que denominamos como arquitetura das marcas. Neste novo ambiente mercadológico a temática ambiental passa a ser incorporada nas estratégias de arquitetura das marcas. Arquitetura das marcas: conceitos e definições A estratégia de construção de marcas pelos especialistas de marketing não é um tema recente. Philip Kotler, o principal disseminador dos conceitos de marketing, na década de 70 em seu livro “Administração de marketing: análise planejamento, implementação e controle”, já definia a marca como “(...) um nome, designação, sinal, símbolo ou combinação dos dois que tem o propósito de identificar bens e serviços de um vendedor ou grupo de vendedores e de diferenciá-los de concorrentes.”(KOTLER, 1996, p. 386). No final da década de 90, em função de alguns fatores econômicos e tecnológicos observa-se uma comodificação3 das mercadorias, surgiram novas publicações sobre estratégias de construção de marcas, entre as quais podemos citar (TAVARES, 2008) (ATKIN, 2007) “Culto as marcas”; “ Gestão de marcas - construindo marcas de valor”; (CHEVALIER; MAZZALOVO, 2007) “Pro-logo - marcas como fator de progresso”, entro outras inúmeras publicações nos últimos anos. O novo neste contexto é que as marcas deixam de apenas facilitar para o consumidor a escolha deste ou daquele produto tornando-se uma estratégia de marketing que supera a estratégia de uso do tradicional composto de marketing, os 4 Ps. Kevin Lane Keller e Marcos Machado no livro 3 O termo commodity significa literalmente “mercadoria” em português. Nas relações comerciais internacionais, o termo designa um tipo particular de mercadoria em estado bruto ou um produto primário de importância comercial, como é o caso do café, do chá, da lã, do algodão, da juta, do estanho, do cobre etc. SANDRONI, 2001, p. 113. “Na jornada capitalista, começou a comodificação do espaço e dos materiais, terminando com a comodificação do tempo e da direção humana. Hoje, as perspectivas do marketing ganham ascendências, e a comodificação do relacionamento com o consumidor tornou-se essencial nos negócios, controlando os clientes e controlando o trabalho.” RIFKIN, 2001, pp. 9-102. 3 “Gestão estratégica de marcas”, por exemplo, ao definirem marca, mencionam que esta pode ser racional ou tangível, relacionada com o desempenho do produto da marca ou mais simbólica, emocional ou intangível (KELLER; MACHADO, 2005, p. 31). O próprio Kotler em seu livro “Marketing para o século XXI” redefine seu conceito de marca citando uma experiência de degustação do refrigerante Coca Cola e a Presidents Choice Cola (uma marca própria do supermercado Loblaws, em Toronto) que, com os olhos vendados, os consumidores não distinguiram um produto do outro, o que lhe permitia concluir que os consumidores pagam substancialmente mais pela Coca Cola do que pela concorrente devido ao poder da marca (KOTLER, 2002, p. 75). Os conceitos de construção de marcas nas abordagens de marketing social, marketing verde e marketing ambiental seguem uma trajetória parecida dos apresentados anteriormente. Hamish Pringle e Marjorie Thompson no livro “Marketing social: marketing para causas sociais e a construção das marcas” citam o exemplo da marca líder de papel higiênico na Inglaterra, Andrex, que realizou uma campanha publicitária vinculando sua marca a uma experiência de um cachorro labrador que colabora com as pessoas portadoras de deficiência visual. Segundo os autores, a campanha em parceria com a Associação dos Cães de Guias para Cegos foi um sucesso para a empresa e para a causa social (PRINGLE, THOMPSON, 2000, p. 51). Jacquelyn A. Ottman em seu livro “Marketing verde: desafios e oportunidades para nova era do marketing” sublinha que “Ao desenvolverem imagens relevantes de marca na era do consumerismo ambiental, os administradores de marca comunicam valores específicos que ultrapassam meros benefícios do produto.”(OTTMAN, 1994, p. 68). Neste mesmo sentido, Reinaldo Dias em seu livro “Marketing ambiental” ressalta que “Uma marca consolidada, principalmente quando associada a determinados valores (como qualidade, amiga do meio ambiente, de responsabilidade social etc.), é um elemento importante na tomada de decisão de compra do consumidor e pode tornar-se ativo mais valorizado que o próprio produto da organização (DIAS, 2007, p.172). As abordagem supramencionadas evidenciam o poder da marca como estratégia de marketing. Antes de adentrarmos na compreensão dos mecanismos de construção das marcas, bem como, refletirmos sobre os impactos do uso da temática ambiental neste processo, torna-se importante uma análise da dinâmica de enfraquecimento das estratégias tradicionais do marketing, pois ela apresenta questões relevantes sobre a sustentabilidade do ponto de vista ambiental. Uma nova prática mercadológica: deslocando o foco das estratégias de marketing da produção para sociedade do consumo Com o avanço tecnológico dos sistemas produtivos, a dinâmica mercadológica desloca-se das competências técnicas das mercadorias para as estratégias de marketing focadas na manipulação da cultura dos consumidores. Os gastos de produção de mercadorias (matéria-prima e mão-deobra) representam hoje aproximadamente 25% dos custos; uma significativa parcela dos outros 4 75% é empregada no processo de circulação de elementos culturais, por meio das estratégias de marketing. A Microsoft, por exemplo, dedica algo em torno de 30% do seu lucro à publicidade e ao marketing (GORZ, 2005, p.45). A indústria farmacêutica despende em média 40% dos seus gastos com marketing. Trata-se de uma importância bem superior aos gastos com pesquisa e desenvolvimento. O enfraquecimento do MIX de marketing, os 4 PS, como estratégia de competição das organizações tem como ponto central o modelo mercadológico atual pautado em alianças e fusões das organizações levando a uma comodificação na produção dos bens e serviços, bem como, no processo de formação de preços e canais de distribuição. Dênis de Morais (1998), por exemplo, no seu livro Planeta Mídia, traz dados econômicos que confirmam este cenário econômico que potencializam as alianças e fusões. Morais cita um estudo da consultoria norteamericana McKinsey sobre fusões e alianças que concluiu que a competição mundial nos próximos anos tende a envolver cinco grandes empresas por setor. Concordando com a análise do autor, nota-se que no Brasil empresas como a Gol e TAM dominam o setor aéreo; Carrefour, Wall Mart e Pão de açúcar dominam quase 80% do setor de supermercados, Unilever e Procter Gamble dão as cartas dos produtos de higiene, enfim, de fato vivemos uma dinâmica de monopólios dos diversos setores produtivos. O efeito prático sobre as estratégias de marketing com este cenário econômico é de que os bens e serviços demandam novas estratégias de persuasão e sedução para atingir os consumidores. Como exemplifica Kotler o cigarro Marlboro e a Vodca Absolut são considerados commodities, a diferenciação está na sua marca. (KOTLER, 2002, p.127) Da mesma forma a formação de preços que já teve sua forma de construção baseada em custos das matérias primas mais força trabalho e margem de lucro desloca-se para o quanto o consumidor esta disposto a pagar. O resultado prático pode ser observado no exemplo dado por Kotler sobre formação de preços. O autor comenta que em função do aumento de renda as famílias estão preferindo comprar, por exemplo, pêssegos em caldas no lugar da fruta em natura. (1986, p. 676) Mais uma vez, a reprodução da fetiche se instaura por meio dos símbolos culturais, isto é, ao se transformar em conserva, o pêssego ganha outro status; com os conservantes químicos, a embalagem, o rótulo, como aponta Kotler, o pêssego pode agora ser diferenciado não apenas por critérios funcionais, mas também por apelos psicológicos, ganhando assim as organizações um valor adicional por estes atributos. (SILVA, 2007, 73) No caso da distribuição os sistemas e processos de gestão das organizações também tornam-se cada vez mais homogêneos. Aparentemente a escolha entre o Pão de Açúcar, Carrefour e Wall Mart, por exemplo, não está na sua localização ou forma de disponibilização dos produtos As 5 estratégias de marketing neste caso é a de criar um espaço de convivência comunitária. Instaurase a técnica de delimitação de mundos, é um sistema de construção de tempo, espaço e lugar no imaginário dos indivíduos que transcende a lógica racional da disponibilização das mercadorias em termos práticos – a persuasão dos indivíduos pelo canal de distribuição opera, por exemplo, como uma maquina produtora de significados, como um espaço feliz, harmônico, de encontro, entro outros. Com essa ingerência no imaginário das pessoas por meio destes múltiplos significados, forjam-se experiências preestabelecidas pelos produtores, de acordo com valores culturais de consumo dos indivíduos. (SILVA: 2007, p.82) Finalmente no caso da estratégia de promoção o enfraquecimento da sua função como técnica de promoção ou comunicação, como denomina alguns especialistas de marketing, é evidente. Ferramenta de marketing que já teve como principal objetivo de comunicar a existência de um bem ou serviço, informando as capacidades técnicas e os valores de uso prático ganha um outro caráter. No desenvolvimento da investigação, veremos que esta ferramenta gerencia a informação, em especial a manipulação da cultura dos consumidores, que, a partir do final do século XX, com o incremento de todo o processo tecnológico comunicacional, da multimídia, da internet, da videoconferência, etc., passou a ser o fator determinante na construção do marketing da arquitetura de marca. Nota-se que cada vez mais que as ferramentas de comunicação, em especial as de propagandas, são fundamentais como estratégias de marketing das organizações. Os dados do Relatório de Desenvolvimento Humano ilustram essa constatação: o gasto mundial com publicidade comercial em 1997 soma cerca de 435 bilhões de dólares – cifra que atinge 1 trilhão quando consideradas todas as formas de marketing (PNUD, 1998, p. 63). Esse montante de gastos viabiliza os anúncios publicitários que permeiam nossa vida cotidiana. Logo de manhã, nos grandes centros urbanos, quando abrimos as cortinas, com os primeiros raios de sol, adentram o nosso espaço as fotografias gigantes dos outdoors, oferecendo as mais variadas mercadorias; do pesado pacote do jornal diário, deslizam panfletos de supermercados; a televisão, além dos curiosamente chamados intervalos, impõe inserções publicitárias na própria programação. Nesse mercado de “mil e uma utilidades” tudo se vende. Neste sentido, as marcas dos produtos e serviços, como define o especialista em comunicação Andréa Semprini, funcionam como um motor “(...) semiótico; seu combustível está integrado por elementos díspares como nomes, cores, sons, conceitos, objetos, sonhos, desejos etc.; seu resultado é um mundo ordenado, estruturado, interpretado e, em certo sentido, atrativo.” (SEMPRINI, 1995, p.47). Diferentemente do período em que o marketing se apoiava apenas em ciências como a 6 matemática, a economia, a sociologia e a psicologia para dar conta do processo de manipulação do consumo, hoje a construção de identidades por meio das marcas passa a ser o elemento que organiza e determina todo o processo. Não se esvaziam os outros recursos de sedução e persuasão do consumidor, mas, com este processo, os discursos são construídos nos textos, nas imagens e nos sons, afetando o receptor. Toda esta análise evidência um esvaziamento dos conceitos tradicionais de marketing. O desenvolvimento do produto, a formação de preço, distribuição e a promoção de venda ganham, como elemento determinante na construção de suas ações, a mercantilização da esfera cultural. Os bens ou serviços são permeados por valores do repertório dos diversos agentes envolvidos no processo de construção do produto. Forja-se um discurso coerente para cada público. A necessidade ou o desejo se deslocam do produto para um discurso sobre um mundo adequado aos mitos e crenças dos indivíduos. Da mesma maneira, o preço e a distribuição têm como foco não mais os bens ou serviços, e sim o mundo ensolarado do consumidor que precisa do protetor solar ou o mundo pós-moderno, complexo, violento, individualista e produtivo do consumidor que vai adquirir as últimas novidades tecnológicas, ou modesto, cooperativo, simples e bucólico daquele que procura uma casa de campo. Portanto, as discussões aqui desenvolvidas apontam que o marketing da arquitetura das marcas cada vez mais se desloca da produção fabril para a dos sentidos afetivos, sociais e culturais. Os impactos dessa mudança atingem todas as esferas – da produção de um televisor a mercantilização de um projeto de conscientização de problemas sócios ambientais. As mesmas técnicas de marketing são aplicadas em todos os setores da sociedade: alimentação, bens industriais, saúde, lazer, educação, finanças etc. Os alimentos do supermercado Pão de Açúcar pertencem ao “lugar de gente feliz”, o automóvel da Fiat Stilo “é para que tem estilo”, a educação do Centro Universitário Ibero-Americano é para “quem tem luz própria e é o astro principal”, o cartão de crédito Bradesco Visa Infinite afirma que “o infinito é um lugar para poucos”, o Bank Boston é para “simplesmente primeira classe”. Enfim, em níveis diferentes, todo o processo de sedução é deslocado da finalidade de uso do produto. Neste sentido a temática ambiental é um universo fértil de apropriação de valores culturais pelos especialistas de marketing no processo de construção das marcas. O interessante é que, no limite, como será demonstrado nesta discussão teórica, no lugar de conscientizar a sociedade para o consumo consciente dos produtos e serviços a estratégia de arquitetura das marcas com foco na temática ambiental pode até mesmo potencializar consumo de bens e serviços indesejáveis para sociedade. 7 O uso da temática ambiental como estratégia de marketing pelas marcas Como principal eixo de análise do processo de construção das marcas recorremos à abordagem teórica de Fairclough (2001) tratada no livro “Discurso e mudança social” e ao modelo semiótico proposto por Semprini (1995) no livro “El marketing de la marca”. Nessas obras, os autores mostram como se engendra o discurso do marketing. Semprini, por exemplo, concebe a marca como elemento de análise do marketing, sugerindo que ela é o motor semiótico que produz sentidos, possibilitando a circulação de bens e serviços. Vejamos: Figura 1 – A gênese semio-narrativa da identidade de uma marca Fonte: Andrea Semprini, El Marketing de la marca, 1995, p. 81. A figura 1 apresenta sinteticamente o processo de produção de sentidos pelo marketing. No nível axiológico, os elementos culturais (crenças, valores e mitos) fornecem as possibilidades de 8 sentidos para determinado produto ou serviço. No nível narrativo, aparecem as definições do conteúdo informativo, bem como a estruturação dos atores (herói, princesa, bandidos) que participarão da história construída. No nível superficial articulam-se os sentidos à ação propriamente dita: selecionam-se recursos temáticos de espaço, tempo, personagens, relações e paixões para a construção do discurso. Com esta estrutura discursiva forjam-se as estratégias do marketing da marca. Os mecanismos de sedução e persuasão são perpassados pela simulação de experiências cotidianas do público. Os valores, as tramas, os personagens, o local e o tempo são formulados como se fossem uma exibição cinematográfica que sensibiliza os indivíduos por identificação ou rejeição. Rifkin colabora com esta compreensão quando aponta em seu livro “A era do acesso”: “Esse novo mundo não é objetivo, mas contingente, não é formado de verdades, mas de opções e cenários. É um mundo criado pela linguagem e unido pelas metáforas e significados compartilhados e aceitos, todos os quais podem mudar e mudam com o passar do tempo. A realidade, ao que parece, não é algo que herdamos, mas algo que criamos inteiramente e a que conferimos a existência.” (RIFKIN, 2000, p.158) Neste mesmo sentido Fairclough também procura desvendar as técnicas de construção de estilos de vida utilizadas pelos publicitários: “A publicidade é discurso ‘estratégico’ por excelência, em termos da distinção feita por Habermas entre linguagem ‘estratégica’ e ‘comunicativa’ (1984). É uma questão de construir ‘imagens’ noutro sentido – modos de apresentar publicamente as pessoas, as organizações e as mercadorias e a construção de identidades ou personalidades para elas. As condições de mercado contemporâneas requerem que séries de empresas comercializem produtos bem semelhantes; para estabelecer seus produtos como diferentes, sua identidade tem de ser construída. Ao mesmo tempo, as categorias de potenciais compradores freqüentemente não são explicáveis em termos de grupos sociais existentes independentemente do segmento social (classe, grupo regional e étnico, gênero etc.): eles também têm de ser construídos no discurso. E assim também ocorre com os produtores e vendedores do produto, cuja imagem tem de ser feita para harmonizar com imagens do produto e de seus consumidores potenciais. Produtor, produto e consumidor são reunidos como co-participantes de um estilo de vida, uma comunidade de consumo (Leiss, Kline e Jhally) que a publicidade constrói e simula.” (FAIRCLOUGH, 2001: 259) As citações de Rifkin e Fairclough reiteram a força da construção do discurso nas atividades do marketing da marca. A produção de sentidos permeia todas as ações do marketing, tornando-se 9 os bens ou serviços cada vez mais objetos de análise dos tecnólogos da construção do discurso. Administrar a circulação de um bem ou serviço requer mais do que comunicá-lo como produto de consumo: demanda construir de maneira imagética os diversos sentidos que podem seduzir e persuadir os consumidores. Na tentativa de se contextualizar a discussão teórica sobre o processo de construção das marcas com foco na temática ambiental recorremos a uma peça publicitária de uma campanha do banco Real em um outdoor veiculada na cidade de São Paulo no ano de 2006. Vale destacar que não se pretende com esta análise responder como funciona a estratégia de marca desta instituição financeira, até porque se trata apenas de uma peça publicitária num conjunto muito mais amplo de estratégias de marketing da instituição. O objetivo será de demonstrar como os conceitos apresentados podem se constituir na prática. Por fim, a escolha desta peça deu-se também por se tratar de um conteúdo de análise de um projeto de pesquisa de Hélio Silva e Jacques Demajarovic que tem como objetivo a sistematização das práticas de responsabilidade ambiental em duas instituições financeiras e do desenvolvimento de suas estratégias de marketing. Um outro aspecto relevante a ser apontado é de que a análise realizada é parte de uma abordagem teórica de conjunto de matrizes semióticas que Semprini (1995) propõe. Recorremos apenas à figura 1 (A gênese semiotica-narrativa da identidade de uma marca), que permitirá refletir sobre o uso da temática ambiental na construção das marcas. Embora as demais matrizes que Semprini propõe oferecesse mais elementos para verificação deste processo, em função do limites desta apresentação, nos limitaremos a este recorte. 10 Fonte: Foto realizada pelo autor em um autdoor na rua da Consolação – São Paulo – SP, em março de 2006 Em primeiro lugar, é importante lembrar que a publicidade tem como objetivo comunicar aos consumidores a existência de um produto ou serviços, gerando, em conseqüência, resultados de vendas para os produtores ou fornecedores. Assim, nossa análise tem como foco investigar o impacto deste tipo de estratégia de marketing para os indivíduos e, em especial, no que se refere às questões ambientais. Nota-se que a foto não comunica quaisquer serviços fornecidos pela instituição financeira. Isto é, no lugar do nome do banco caberia qualquer outra empresa, bem como, qualquer setor de atuação sem prejuízo no processo de comunicação. Com relação ao vínculo da questão ambiental a este processo de comunicação a análise segue o lógica semelhante. A frase “Preservar o meio ambiente. Isto não é Sonho, isto Real” não colabora na conscientização da sociedade sobre as problemáticas ambientais, pois não traz nenhuma informação dos problemas e propostas para a questão. Não informa a sociedade de que forma a organização Banco Real está comprometida com a questão de sustentabilidade social e ambiental. É interessante observar que o que está em destaque na peça publicitária é a frase “Isto não é sonho. Isto é Real” e a foto da mulher que representa uma sensação de felicidade e harmonia. Este exemplo permite analisar o processo de construção da marca conforme figura 1 - A gênese semiotica-narrativa da identidade de uma marca. No nível axiológico temos os valores de consumo, ou seja, o que está sendo mercantilizado neste caso é são valores como, o sonho, a felicidade e a harmonia no lugar de serviços bancários ou conscientização sobre as questões ambientais. No nível narrativo, a construção das frases, “Preservar o meio ambiente. Isto não é sonho. Isto é real.” fica demonstrado o mecanismo da construção do discurso que dá vida à idéia de sonho e realidade. Por fim, no nível superficial temos uma mulher com características que representam a beleza ocidental em um cenário de paz e harmonia ilustrado pelo seu olhar, bem como, por os campos belos ilustrados pela vegetação. O que se observa neste tipo de estratégia de marketing é o uso de construção de identidades, isto é, o mundo do sonho, da felicidade e da harmonia do banco Real, ao invés de um sistema de comunicação que informe os atributos dos serviços prestados pela instituição financeira. Dois principais fatores parecem determinar este tipo de estratégia de marketing. Os serviços financeiros das instituições bancárias têm cada vez menos diferenciação. Isto é, os sistemas de uso dos serviços e os produtos oferecidos são praticamente os mesmos. Como definição o 11 marketing diz que seu papel é de identificar as necessidades e desejos dos consumidores. Ora, os consumidores têm seus limites de necessidade e desejo de serviços bancários, porém, quando se trata de sonho, felicidade e harmonia o limite é inesgotável. O modelo de marketing engendrado pela arquitetura da marcas não é de fato novo. O novo talvez seja o refinamento das estratégias de marketing com o avanço tecnológico comunicacional. Entre outros fatores que estimulam este tipo de estratégia podemos citar a saturação progressiva dos mercados na comercialização de bens e serviços em função da comoditficação das mercadorias levando com que as empresas diminuam cada vez mais o ciclo de vida dos produtos. Rifkin traz um dado que exemplifica bem esta situação: A Sony, em 1995, introduziu aproximadamente cinco mil novos produtos no mercado; a Chrysler, que levava 54 meses para desenvolver seu carro K no final da década de 1970 e no início da de 1980, leva hoje menos de 24 meses para entregar um carro novo (RIFKIN, 2000, p. 17). Produtos que eram projetados para durar décadas têm seu ciclo de vida diminuído de forma exponencial. Do ponto de visita da sustentabilidade ambiental as estratégias de marketing da arquitetura das marcas induzem ao consumo, sem que haja uma preocupação com os impactos do sistema produtivo sobre o ambiente. No Brasil, por exemplo, a Philips adotou como estratégia não fazer reparos em seus produtos seminovos, oferecendo ao cliente outro novo, equivalente, por um preço aproximadamente 40% mais baixo que o praticado no mercado varejista. Segundo o discurso empregado para seduzir o consumidor, isso configura “tratamento diferenciado para o cliente”. Ora, o resultado dessa “promoção” é o crescimento do consumo de matérias-primas e do trabalho na cadeia produtiva, o que favorece o esgotamento dos recursos naturais do planeta, a redução dos recursos financeiros do indivíduo (que poderia utilizar esse dinheiro para satisfazer outra necessidade) e, por fim, o aumento dos lucros da própria Philips, que vende mais um equipamento e, dessa vez, sem gastar com distribuição4. O fator legitimador dessa estratégia de marketing é que a “promoção” atende ao desejo do consumidor. Movido por um discurso propagandístico segundo o qual levará vantagem em trocar seu aparelho eletrônico seminovo por outro mais “avançado”, o indivíduo é seduzido pela ilusão de pertencer ao mundo dos inovadores, pois, afinal, está adquirindo um equipamento de “última geração”. O consumidor, na verdade, não tem escolha – e, o mais grave, esse é o comportamento mercadológico da grande maioria das corporações. No lugar da cultura do descartável, o momento exige um comportamento de responsabilidade com os recursos naturais e respeito aos consumidores. Manzini e Vezzoli, (2002) por exemplo, trazem uma sistematização de uma cadeia de produção e consumo sustentável, que vai do 4 Um caso que confirma essa estratégia de marketing da Philips foi relatado pelo Idec. A consumidora M. L. P. afirma que a Philips lhe ofereceu um novo DVD por 250 reais para substituir o seu, que foi encaminhado para conserto. A outra opção seria pagar aproximadamente 330 reais pelo reparo do seu equipamento. Revista do Idec, São Paulo, dezembro de 2004, p. 6. 12 desenvolvimento do projeto fabril até o descarte dos produtos. Vê-se, primeiro, a estrutura de montagem de uma fábrica; em seguida, o desenvolvimento do produto, realizado com insumos reutilizáveis; depois, um sistema de distribuição que otimiza os impactos ambientais do transporte; então, um processo de comunicação “limpo”, fornecendo aos indivíduos informações sobre como se produziu o produto e a maneira adequada de uso; por fim, um investimento nas técnicas de manutenção e reutilização, de forma a aumentar o ciclo de vida dos produtos. Os desdobramentos da proposta dos autores podem e devem ser objeto de reflexão aprofundada. Interessantes experiências – infelizmente, ainda poucas – vêm sendo realizadas. Os próprios autores citam alguns exemplos: o sistema hidráulico projetado por Huib van Glabeek que integra o lavatório, a válvula de descarga e a privada, reutilizando, assim, toda a água do lavatório; as cadeiras Ikea Air, constituídas de câmeras de ar infláveis que reduzem as quantidades de material empregado a 15% do que normalmente se utiliza em poltronas e divãs convencionais. O centro da questão é o deslocamento do foco das estratégias de marketing, freqüentemente voltado à maximização do lucro das corporações, para o lucro coletivo da sociedade. Considerações finais Neste artigo, apresentamos as mudanças da prática das estratégias de marketing que levando a um modelo de ação mercadológica que denominamos como arquitetura das marcas. Foi verificado também, que a arquitetura das marcas quando se apropria da temática ambiental exerce um papel enviesado no chamado marketing, social, verde ou ambiental. Com isto pode-se verificar uma insustentabilidade deste modelo de marketing do ponto de vista social e ambiental. Isto é, o marketing da arquitetura das marcas, como já foi dito, no limite pode excluir o acesso dos bens e serviços da maior parte da população, bem como, potencializar o uso de recursos naturais, ao invés, de promover um consumo consciente. Embora não se o foco desse artigo, propomos, a titulo de reflexão, algumas possibilidades de intervenção nessa lógica mercadológica. Vejamos: Do acesso aos bens e serviços ao sistema de produção, as ferramentas de marketing possuem uma interferência em todo o processo. Isto deixa clara a necessidade de construirmos conceitos de administração mercadológica que integrem de forma horizontal as problemáticas ambientais. A administração mercadológica sustentável nas dimensões econômica, social, ambiental e cultural apresenta novos paradigmas. A dinâmica mercadológica centrada na potencialização do consumo com o discurso de que o 13 mercado tem a capacidade de regular o processo cada vez mais perde fôlego quando observados os resultados na qualidade de vida para a grande maioria da sociedade. Neste sentido, as ferramentas de marketing mais do que promover a circulação de bens e serviços devem também focar-se em organizar os mercados para atender as reais demandas da sociedade de forma sustentável nas diversas dimensões já apontadas. Trata-se de reorganizarmos a administração mercadológica de uma estrutura de arquitetura de marcas que mercantiliza cultura com intuito de potencializar consumo para: 1.) pesquisas das necessidades dos indivíduos levando em conta os impactos de sustentabilidade nas suas diversas dimensões; 2.) desenvolvimento de produtos e serviços com uma visão integrada da cadeia produtiva; 3.) formação de preços baseado em custos reais mais lucro; 4.) sistema de acesso incluindo as diversas camadas da sociedade; 5) sistema de comunicação que de fato oriente o consumidor para sua escolha; 5.) modelo de reutilização dos produtos com descarte responsável. O sistema produtivo capitalista contemporâneo trouxe uma capacidade produtiva que permite cada vez mais ampliar o acesso de produtos e serviços para o conjunto da sociedade. O desafio concentra-se em ampliarmos o acesso para o conjunto da sociedade respeitando os limites dos recursos naturais. Neste sentido, o desenvolvimento tecnológico comunicacional torna-se um fator importante, pois usado de forma inteligente pode, por meio do acesso a informação, colaborar de maneira significativa para formação de um consumidor consciente. As transformações das estratégias de marketing com os avanços tecnológicos, desde ao desenvolvimento de produtos até o processo de comunicação também foram significativas e importantes do ponto de vista das possibilidades de melhoria da relação de quem produz e quem consome. É importante assinalar para necessidade de uma mudança de paradigma nas práticas do marketing, ou seja, trata-se de avançarmos de um marketing ancorado na manipulação dos valores de consumo para um marketing informativo. A breve análise da peça publicitária do banco Real ilumina bem esta questão, isto é, ao invés de construirmos estratégias de marketing que apenas seduza o consumidor a consumir o momento exige uma relação de colaboração entre os diversos atores, produtor, consumidor e sociedade. Neste sentido, o fortalecimento de organizações sociais, como por exemplo, o Instituo AKATU e o IDEC – Instituto de Defesa do Consumidor é importante para se construir instituições que de fato representem os desejos e necessidades dos consumidores numa perspectiva mais coletiva e menos individualista. As problemáticas sociais e ambientais são dinâmicas coletivas que exigem formas de gestão coletiva. Bibliografia ATKIN, D. Culto as marcas: quando os clientes se tornam verdadeiros adeptos. São Paulo: 14 Cultrix, 2007. . CHEVALIER, M. MAZZALOVO, G. Pro-logo – marcas como fator de progresso. São Paulo: Panda Books, 2007. DIAS, Reinaldo. Marketing Ambiental. Atlas, 2008. FAIRCLOUGH, N.. Discurso e mudança social. 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