A Propaganda de Medicamentos no Brasil As principais propagandas de medicamentos no Brasil tiveram início ainda na década de 80 do século XIX. Desde então, o que se constatou foi um crescimento contínuo no número de peças publicitárias inseridas em diversos meios de comunicação, que também aumentaram muito em número e alcance desde aquela época. A propaganda de medicamentos representa um importante recurso de marketing. Ela tem como objetivo principal persuadir e incentivar o consumo do produto em toda a cadeia do medicamento desde o prescritor, passando pelo dispensador, até o usuário, incentivando a compra de um determinado produto, mesmo que para isso tenha que criar uma nova necessidade. O mecanismo no qual está inserida a propaganda mobiliza diversos setores e apresenta uma complexidade de fatores e atores envolvidos. Na propaganda de medicamentos o discurso científico, o discurso leigo, a indústria farmacêutica, a população e o Estado, estão diretamente inter-relacionados e qualquer análise de sua propaganda necessita observá-los. Ainda há uma outra questão envolvida na propaganda de medicamentos: estes não podem ser oferecidos como simples produtos de consumo e, portanto, não devem ser incluídos na lógica do livre mercado, que sempre gera uma demanda superior às reais necessidades. Isso porque o medicamento representa um, e não o único, dos instrumentos de promoção, recuperação e manutenção da saúde. Na perspectiva do uso racional, o medicamento como parte do processo terapêutico não pode substituir medidas preventivas, reeducação alimentar, exercícios, ou mesmo a atenção de outros profissionais. Também não é aceitável, do ponto de vista da lógica clínica, considerar o tratamento farmacológico de forma isolada do tratamento não farmacológico (dieta, exercícios, medidas higiênicas). É necessária ainda uma análise crítica de todo o contexto (sócio-econômico e cultural) no qual está inserida a patologia – ou sintoma – devem ser contemplados e não podem ser, simplesmente, substituídos pelo medicamento. Além disto, todo medicamento possui um risco sanitário intrínseco, e mesmo os de venda sem prescrição médica, devem ser consumidos com consciência e responsabilidade. “Enquanto persistir o predomínio do conceito e da prática acerca do medicamento como produto de consumo, ou mercadoria, em vez de ser considerado um instrumento a serviço da promoção da saúde, estão presentes as condições objetivas para a existência de produtos irracionais, de má qualidade e inadequadas às necessidades sanitárias”. (Barros, 2004) A propaganda de medicamentos pode desviar a real concepção de medicamento ao divulgá-lo como produto de consumo, criar demanda superior às reais necessidades do consumidor - induzindo a um consumo indiscriminado, incentivar a automedicação, agravar patologias ou sintomas, causar dano financeiro pela aquisição de um produto ineficaz ou inadequado e intensificar gastos do Estado frente ao agravamento de patologias ou pela ocorrência de reações adversas. Uma das maiores preocupações frente ao uso indiscriminado é a intoxicação, uma vez que o medicamento é o principal agente de intoxicação humana no país (SINITOX, 2004). Provavelmente esta seja também, como em outros países, uma das causas mais freqüentes de internações hospitalares, de prorrogação da internação e inclusive de morte. Diante disto, é notória a importância que a monitoração e fiscalização da propaganda de medicamentos podem e têm alcançado, seja por sua inserção no âmbito da vigilância sanitária e de setores da sociedade, como Universidades, Ministérios Públicos e Órgão de Defesa do Consumidor; seja pela possibilidade de dar inicio a implementação das disposições da Política Nacional de Medicamentos, preconizadas nas diretrizes para promoção do uso racional. A Monitoração e a Fiscalização da Propaganda No Brasil a monitoração e a fiscalização da propaganda de medicamentos ficaram estabelecidas como competência da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) desde a sua criação, com a publicação da Lei nº. 9782/991. Esta atividade reforça o que já havia sido estabelecido pela Constituição Federal de 1988, que garante à pessoa e à família a proteção, pelo Estado, em relação à propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos a sua saúde e ao meio ambiente, impondo, inclusive, restrições legais à propaganda de medicamentos e apesar de garantir a liberdade de expressão, também estabelece limites à propaganda de produtos sujeitos à vigilância sanitária, pois esses podem ser nocivos à saúde. Antes, porém, a Lei nº. 6.360/76 (BRASIL, 1976), já tratava da prática da publicidade de medicamentos e estabelecia a previsão de um regulamento específico para este tema, que surgiu apenas com a publicação da RDC nº. 102, em 30 de novembro de 2000 (BRASIL, 2000). Após um breve período de monitoração e fiscalização centralizada em Brasília, a Anvisa buscou ampliar o alcance de sua captação para as propagandas de medicamentos veiculadas em todas as regiões do país, para tanto, desenvolveu parcerias com 14 universidades brasileiras, envolvendo os cursos de Farmácia, Direito, Medicina e Comunicação. Da mesma forma, buscou ainda capilarizar a discussão do tema na comunidade acadêmica e, conseqüentemente, sensibilizar futuros profissionais, cumprindo seu papel educacional dentro da regulação. 1 A Portaria nº. 593/00 estabelecia esta atribuição à Gerencia Geral de Inspeção e Controle de Medicamentos e Produtos (GGIMP), mais especificamente à Gerencia de Fiscalização e Controle de Medicamentos e Produtos (GFIMP). Como reconhecimento à importância alcançada pela fiscalização da propaganda, a Anvisa criou a Gerência de Fiscalização e Monitoramento de Propaganda, de Publicidade, de Promoção e Informação de Produtos Sujeitos à Vigilância Sanitária (GPROP), pela Portaria n.º 123, de 9 de fevereiro de 2004, a qual está afeta o controle da propaganda e publicidade de produtos sujeitos à vigilância sanitária. Teve início o Projeto de Monitoração de Propaganda e Publicidade de Medicamentos, em sua primeira etapa com a duração de doze meses. Este projeto representou um intenso trabalho de cooperação entre a Anvisa e estas universidades. Por meio deste trabalho, foi possível verificar os diferentes perfis da propaganda de medicamentos veiculadas no Brasil, bem como adotar as medidas corretivas pertinentes, verificando o cumprimento da Legislação Sanitária. Resultados da Primeira Etapa do Projeto de Monitoração de Propaganda de Medicamentos Nesse contexto, o Projeto realizado no Brasil pela Anvisa em parceria com as Universidades se mostra como uma das iniciativas mais profícuas, já que ampliou o alcance da monitoração para todas as regiões do país, possibilitando a construção do primeiro perfil da propaganda de medicamentos feita no Brasil. Este projeto teve sua primeira fase encerrada em março de 2004, a partir da consolidação dos dados parciais de monitoração das 14 universidades conveniadas, já foram obtidos indicadores importantes sobre a qualidade das peças publicitárias captadas em todo o país. Os problemas mais freqüentes encontrados tanto nos grupos de medicamentos sob prescrição, como de venda isenta de prescrição foram: • não informam a Denominzação Comum Brasileira/Denominação Comum Internacional (DCB/DCI), o nome do medicamento ou o número do registro junto a Anvisa; • anunciam produtos sem registro; • utilizam símbolos ou desenhos que possibilitam interpretação falsa; • não apresentam advertência obrigatória; • referem-se a medicamentos sob controle especial anunciado em publicações sem caráter técnico-científico; • são propagandas de medicamentos de venda sob prescrição médica anunciados para o público leigo. • incluem mensagens como “aprovado” ou “recomendado”; • não incluem a contra-indicação principal; • sugerem a ausência de efeitos colaterais; • sugerem diminuição de risco, ou seja, minimizam as advertências contidas nas bulas; e • realizam comparações sem a comprovação de estudos clínicos. Diante dos primeiros resultados obtidos, já é possível vislumbrar a necessidade de retornar à população um trabalho de informação e, principalmente, de educação sobre a prática publicitária irregular de medicamentos e seus perigos para a saúde. A Segunda Etapa: monitoração e educação Devido aos frutos da primeira etapa do projeto e a criação da Gerência de Fiscalização e Monitoramento de Propaganda, de Publicidade, de Promoção e Informação de Produtos Sujeitos à Vigilância Sanitária (GPROP), que incorporou às suas tarefas a monitoração de propaganda de outros produtos, deu-se continuidade ao projeto, que agora, em sua segunda etapa, passa a ser denominado Projeto de Monitoração de Propaganda de Produtos Sujeitos à Vigilância Sanitária e atualmente participam 19 instituições de ensino de farmácia, comunicação social, direito, medicina, biologia ou nutrição, odontologia ou enfermagem. Nesta etapa, diferentes veículos de comunicação serão monitorados, de modo a verificar o teor da informação transmitida e sua conformidade com a Legislação Sanitária brasileira que continuará a subsidiar a Anvisa para aprimorar a fiscalização conciliando o conhecimento técnico cientifico aos princípios da bioética para efetivo controle social. Este projeto conta ainda com o envolvimento e a participação das Visas estaduais e municipais, sendo esta parceria de extrema importância para consolidar esta atividade de vigilância sanitária em todas as esferas de Governo – nacional, estadual/distrital e municipal. Com este projeto, pretende-se não apenas reduzir a exposição da população à propaganda abusiva e enganosa, como também abordar questões relevantes à saúde coletiva – como a automedicação, as intoxicações e o uso inadequado de medicamentos – para minimizar os riscos à saúde, subsidiar o aprimoramento da legislação e propiciar que, futuramente, sejam elaboradas políticas de educação para a população sobre os perigos da utilização inadequada de medicamentos. Perspectiva internacional O acesso a medicamentos de qualidade e seu uso racional são preocupações antigas da Organização Mundial da Saúde desde a sua criação. “O objetivo da OMS na área de medicamentos é contribuir para salvar vidas e promover a saúde, assegurando a qualidade, segurança e o uso racional dos medicamentos, incluindo medicamentos tradicionais e promovendo o acesso eqüitativo e sustentável a medicamentos essenciais, principalmente àqueles para os pobres e necessitados” (WHO, 2004, p. 4). Um marco importante nessa área foi a Conferência de Especialistas sobre Uso Racional de Medicamentos, realizada em Nairobi em novembro de 1985, que considerou que “há Uso Racional de Medicamentos quando os pacientes recebem medicamentos apropriados às suas necessidades clínicas, em doses adequadas e individualizadas, pelo período de tempo necessário e a um custo razoável para eles e sua comunidade” (CONFERENCIA, 1986). Essa Conferência subsidiou a elaboração de uma estratégia para a promoção de medicamentos adotada pela 39ª Assembléia Mundial da Saúde, que resultou na publicação da atualização dos Critérios éticos para a promoção de medicamentos, estabelecidos em 1968, cujo objetivo é apoiar e fomentar a melhoria da atenção à saúde mediante o uso racional de medicamentos, de forma a contribuir para a adoção de práticas publicitárias compatíveis com normas éticas aceitáveis. Este documento é constituído por princípios gerais que podem ser adotados pelos governos de acordo com sua situação, sua legislação e seu contexto (WHO, 1988). Um terço da população mundial não tem acesso regular a medicamentos, por outro lado, há também o problema da falta de racionalidade na utilização dos medicamentos. Grande parte dos medicamentos são prescritos, dispensados ou vendidos inadequadamente e uma parcela significativa dos pacientes não utilizam corretamente seus medicamentos. Alguns exemplos são: • O uso de muitos medicamentos por paciente (polimedicação); • O uso inadequado de antimicrobianos, frequentemente em posologias inadequadas ou para infecções não bacterianas; • Uso excessivo de formas farmacêuticas injetáveis, quando formulações orais poderiam ser mais adequadas; • Não prescrição de acordo com diretrizes clínicas; • Auto-medicação inadequada, frequentemente medicamentos de uso sob prescrição (WHO, 2002, p. 1). com Na estratégia da OMS para 2004-2007, o uso inadequado de medicamentos é um dos principais desafios. Promover o uso racional de medicamentos é um dos objetivos-chave. Nesta área, destacamos as seguintes metas: “definição, difusão e promoção de informações sobre medicamentos independentes e confiáveis” e o “fomento da publicidade ética e responsável de medicamentos dirigida para profissionais de saúde e consumidores” (OMS, 2004, p.10). Muitas vezes, a promoção dos medicamentos, quando não regulada adequadamente, pode criar falsas necessidades, efeitos não comprovados cientificamente, ou até mesmo trazer promessas ilusórias de cura ou de bemestar. Em 2001, na Europa, debateu-se a regulamentação da propaganda. Um dos principais problemas apontados foi a ausência de preocupação dos profissionais de saúde e do público em relação às estratégias de promoção e à pressão da indústria farmacêutica, bem como dos meios políticos. Entre as recomendações consta a necessidade de uma maior colaboração com os meios informativos em benefício da saúde pública, visando aumentar a percepção do problema pelo público em geral e pelos profissionais de saúde. Destacou-se ainda a importância de que os governos vigiem a relação entre os profissionais e a indústria farmacêutica e a possibilidade de que essa relação influencie o uso racional de medicamentos (BOLETIM, 2002, P. 5).