Especial de Capa Vigilância Sanitária e Gerenciamento do Risco em Medicamentos Murilo Freitas Dias, Nair Ramos de Souza, Milena Oliveira Bittencourt e Marcia Santos Nogueira racional em todo o mundo (3). Com isso, torna-se atividade de suporte ao ciclo de gerenciamento de risco (4,5). No século XXI ampliou seu campo de atuação, incorporando, além das reações adversas, inefetividade, desvios da qualidade e uso indevido ou abuso dos medicamentos. Documentos internacionais de gerenciamento do risco para indústria e reguladores Introdução Com a oferta de novas classes de medicamentos no mercado, expandese a possibilidade de prevenção, tratamento e cura de doenças. No entanto, convive-se com o risco iminente de reações adversas inesperadas, não previsíveis em estudos clínicos, que podem acarretar graves problemas à saúde pública se não identificadas precocemente. Sendo assim, a farmacovigilância aprimora suas técnicas de monitorização, com a finalidade de promover o uso seguro de medicamentos pela população. 28 Fármacos & Medicamentos Farmacovigilância: ciência de gerenciamento do risco de medicamentos Para a OMS (Organização Mundial da Saúde), a farmaco-vigilância é a ciência e atividades relativas à identificação, avaliação, compreensão e prevenção de efeitos adversos ou quaisquer outros possíveis problemas relacionados a medicamentos (2). A farmacovigilância se envolve, de forma ativa, na identificação precoce de novas reações adversas, imediatamente após a introdução de novo medicamento no mercado, para melhoria da terapêutica Algumas iniciativas impulsionaram a avaliação do risco dos medicamentos no âmbito internacional, utilizando-se das informações provenientes das indústrias farmacêuticas. O CIOMS (Council for International Organizations of Medical Sciences), em seu Grupo I - tema: Reporting of adverse drug reactions -, desenvolve desde 1990 atividades especializadas com foco em farmacovigilância e risco dos medicamentos. O Grupo II, formado em 1992 - tema: PSUR (Periodic Safety Update Report) -, teve como objetivo favorecer a avaliação do benefício/risco por meio da divulgação, às agências regulatórias de medicamentos da Europa, Estados Unidos e Japão, de dados mundiais sobre a experiência das empresas farmacêuticas, relacionada a reações adversas no período posterior ao registro. No Brasil, o PSUR está em fase de implementação para produtos novos. Essa prática fortalecerá o processo de notificação voluntária e impulsionará a identificação precoce de risco com medicamentos comercializados (4,6). Outra proposta, ainda em discussão, na fase de finalização do processo de harmonização, é o estabelecimento de planejamento em farmacovigilância (E2E), que poderá ser muito útil em se tratando de produtos inovadores, produtos biotecnológicos, vacinas e de produtos já estabelecidos, que apresentem nova forma de dosagem, nova via de administração ou novo processo de fabricação. Sua aplicação pode ser útil também quando se administrar novo medicamento à nova população, houver novas indicações e surgirem novas informações relacionadas à segurança desses medicamentos (7). Riscos dos medicamentos e vigilância sanitária Além de reações adversas, são problemas relacionados a medicamentos: abuso, mau uso, intoxicação, falha terapêutica e erros de medicação. Há limitação e grande dificuldade de acesso a informações sobre reações adversas nos países em desenvolvimento e países em transição. Esse problema pode ser agravado pela falta de legislação e regulação apropriadas, pela existência de grande número de medicamentos com desvios de qualidade e produtos falsificados, pela falta de informações independentes e pelo uso irracional de medicamentos (8). A Vigilância Sanitária é uma das áreas mais antigas da saúde pública. No Brasil, é definida pelo art. 6º da Lei n.º 8.080, de 19 de setembro de 1990 (9), como “um conjunto de ações capaz de eliminar, diminuir ou prevenir riscos à saúde e de intervir nos problemas sanitários decorrentes do meio ambiente, da produção e circulação de bens e da prestação de serviços de interesse da saúde abran- gendo: I – o controle de bens de consumo que, direta ou indiretamente, se relacionem com a saúde, compreendidas todas as etapas e processos, da produção ao consumo; e II – o controle da prestação de serviços que se relacionam direta ou indiretamente com a saúde. Essa definição inseriu o conceito de risco e harmoniza o papel do estado com sua função reguladora da produção econômica, do mercado e do consumo, ambos em benefício da saúde humana. O termo risco deriva da palavra italiana riscare, cujo significado era navegar entre rochedos perigosos. Foi incorporada ao vocabulário francês por volta de 1660 (10). Sendo o risco inerente à vida, intensificou-se com o processo de constituição das sociedades contemporâneas a partir do final do Renascimento e início das revoluções científicas, quando ocorreram intensas transformações sociais e culturais associadas ao forte impulso nas ciências e nas tecnologias. As ações da vigilância sanitária se inserem no âmbito das relações de produção e consumo, de que se origina a maior parte dos problemas de saúde que requerem intervenção. Por seu caráter interdisciplinar, as ações de vigilância sanitária convivem com diferentes abordagens de risco. Entre elas, pode-se mencionar o conceito de risco epidemiológico e o da própria experiência cotidiana (11). Segundo Tenner, as novas tecnologias fazem com que os problemas das iatrogenias se tornem cada vez mais diversificados e complicados, e o progresso tecnológico impõe vigilância maior para a mesma dose de risco. Em geral, o uso de tecnologias mais avançadas pode produzir resultados melhores, mas exige estritos controles e critérios. Os médicos e outros profissionais da saúde devem ter qualificação muito mais profunda, o que nem sempre ocorre, e os produtos, ins- trumentos e aparelhos devem ter sua qualidade devidamente monitorada, o que é ainda mais difícil, em especial nos países menos desenvolvidos. Contudo, este texto tratará apenas do risco associado ao uso de medicamentos. A limitação de informações durante a fase pré-registro - em que se realizam exames clínicos, caracterizados pelo número restrito de pacientes, sendo excluídas, dos testes, crianças, idosos e mulheres grávidas tende a minimizar os riscos passíveis de ocorrerem na prática clínica pósregistro. Existe a possibilidade de que eventos adversos raros, porém graves (como os que ocorrem com uma freqüência de, digamos, uma em cinco mil), não sejam identificados no desenvolvimento do medicamento anterior ao registro. Por exemplo, a discrasia sangüínea fatal, que ocorre em um de cada cinco mil pacientes tratados com medicamento novo, é provável que seja identificada somente após quinze mil pacientes terem sido tratados e observados, contanto que a incidência prévia de tal reação seja zero ou que haja associação causal clara com o medicamento. Logo, a importância de sistema eficiente para tratar os riscos e crises relacionadas à segurança de medicamentos torna-se cada vez mais evidente. No que diz respeito ao uso de medicamentos, a análise de risco em farmacovigilância não difere essencialmente do que ocorre em outras áreas que incorporam novas tecnologias. O primeiro passo da análise do risco consiste na sua identificação, o segundo na quantificação, e o terceiro na avaliação de sua aceitabilidade social. A identificação do risco é a identificação de problema de segurança desconhecido antes da comercialização do medicamento, ou ao menos quando haja suspeita de sua existência. São diversas as fontes de informação que ajudam a identificar novos riscos. Em geral, qualquer estu- 29 Fármacos & Medicamentos Especial de Capa do ser relevante, mas o procedimento mais habitual é a de identificação de casos clínicos individuais ou de séries de casos em que haja suspeita de que a doença esteja associada ao uso do medicamento. Identificado novo risco, segue-se a estimativa, que consiste em quantificar a força da associação entre a reação adversa e o fármaco e sua incidência. Posteriormente, faz-se avaliação do risco, ou seja, analisa-se o risco identificado e quantificado, a fim de avaliar se é aceito pela sociedade e em que condições. Todo o processo de identificação, análise, quantificação e comunicação denomina-se gestão do risco. Nesse contexto, a Farmacovigilância exerce três ações relevantes: a) adota medidas administrativas de redução do risco; b) comunica aos profissionais de saúde e aos pacientes a existência do risco, as medidas adotadas e as recomendações; c) estabelece estratégias específicas de prevenção. Seguindo essa linha de pensamento, pode-se afirmar que as ações de vigilância sanitária tornam-se evidentes e constituem tanto ação de saúde quanto instrumento da organização econômica da sociedade, pois sua função protetora engloba cidadãos, consumidores e produtores. Considerações finais Ao tratar das reações adversas e outros problemas relacionados a medicamentos comercializados, a farmacovigilância protege a população de danos que possam ser causados pelo uso de produtos dessa natureza. Portanto recomenda-se, especialmente às vigilâncias sanitárias e indústrias farmacêuticas, que tenham como diretriz de trabalho o gerenciamento do risco, e que este se inicie imediatamente após o lançamento de novo medicamento no mercado, visando a minimização do dano e redução do risco. Murilo Freitas Dias é chefe da Unidade de Farmacovigilância da GGMED/ANVISA-MS (Gerência Geral de Medicamentos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, do Ministério da Saúde). Formado em farmácia pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), possui especialização em farmacologia clínica pela OFIL (Organização Ibero-Latino-Americana de Farmacêuticos) e mestrado em farmacologia pela UNICAMP (Universidade de Campinas). Nair Ramos de Souza é consultora técnica da UFARM/GGMED/ANVISA (Unidade de Farmacovigilância da Gerência Geral de Medicamentos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Formada em farmáciabioquímica pela Universidade Federal do Ceará, com especialização em sistema integral de medicamentos pela Escola de Saúde Pública do Estado do Ceará e mestrado em saúde pública pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará. Referências Bibliográficas (1) SYKES RB. New medicines, the practice of medicine and public policy. London: The Stationery Office, 2000. 202 p. ISBN 0-11-702676-X (2) WORLD HEALTH ORGANIZATION. the UPPSALA MONITORING CENTRE. The importance of pharmacovigilance. Safety monitoring of medicinal products. Uppsala: the UMC, 2002, 48 p. ISBN 92-4159-015-7 (3) LINDQUIST, Marie. Seeing and observing in international pharmacovigilance. Achievements and prospects in Worldwide drug safety. Uppsala: the Uppsala Monitoring Centre, 2003. p. 14. (4) PANOS TSINTIS AND EDITH LA MACHE. CIOMS and ICH Initiatives in Pharmacovigilance and Risk Management. Overview and Implications. Drug Safety 2004; 27 (8): 509-517. (5) BRIAN EDWARDS. Managing the Interface with Marketing to Improve Delivery of Pharmacovigilance Within the Pharmaceutical Industry. Drug Safety 2004; 27 (8): 609-617. (6) JANE N.S. MOSELEY. Risk Management. . European Regulatory Perspective.. Drug Safety 2004; 27 (8): 499-508. (7) ICH. Pharmacovigilance Planning (E2E). International Conference on Harmonisation of Technical Requirements for Registration of Pharmaceuticals for Human Use. 18 November 2004. 16 p. Via internet em 16 de fevereiro de 2005. (8) Segurança dos Medicamentos. Um guia para detectar e notificar reações adversas a medicamentos. Por que os profissionais de saúde precisam entrar em ação. ANVISA, OPAS, OMS. 2005. 20 p. (9) BRASIL. Lei nº 8080, de 19 de setembro de 1990. (10) ROSA, E.A., RENN, O., JAEGER, C. et al., 1995. Risk as Challenge to CrossCultural Dialogue.32th Congress, “Dialogue Between Cultures and Changes in Europe and the World”, Trieste (Italy), Internationational Institute of Sociology, 03-07 July, 1995. (11) COSTA, E. A.; ROZENFELD, S. Construção da Vigilância Sanitária no Brasil. In: ROZENFELD, S. (org). Fundamentos da Vigilância Sanitária. Ed. FIOCRUZ, RJ, p. 304, 2000. 30 Fármacos & Medicamentos Milena Oliveira Bittencourt é consultora técnica e especialista em regulação e vigilância sanitária da UFARM/GGMED/ANVISA (Unidade de Farmacovigilância da Gerência Geral de Medicamentos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Formada em farmácia, com especialização em farmácia hospitalar, pela Universidade Federal Fluminense e especialização em vigilância sanitária de medicamentos pela Escola Nacional de Saúde Pública/FIOCRUZ. Marcia Santos Nogueira é consultora técnica da UFARM/GGMED/ANVISA (Unidade de Farmacovigilância da Gerência Geral de Medicamentos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Licenciada em Letras e especialista em saúde pública e vigilância sanitária pela Universidade de Brasília.