Debate 135 Leio-vos de um capítulo: «Uma nova reflexão se impõe. E, como sempre, quando nos aventuramos numa terra desconhecida, as referências antigas permanecem com a sua pertinência. Quem deixaria a bússola quando atravessa uma zona de bruma? (...) Não é sua função [da Medicina] refazer o mundo. A Medicina sofreu demasiado e durante muito tempo o efeito dos dogmas para amanhã se autorizar a promulgar uns seus. Não é sua função tornar-se auxiliar cego de um Estado que dela exigiria um modelo de humanidade conforme [à sua vontade] (...). Não é sua função responder a todas as solicitações que a fariam executar tarefas diferentes» das que se enquadram no curar e no cuidar. «A sua missão permanece (...); nas imensas mudanças técnicas e científicas, alguma coisa não muda, ou mais exactamente, alguém: o doente» . 24 Saber pensar é, pois, necessário. Urgente. Na linguagem do Gato Fedorento (que, claramente, não se adequa a este fórum; as minhas desculpas!), "saber pensar, parecendo que não, facilita". E no IPO de Lisboa, a partir da inquietação de colegas como Manuel Silvério Marques e Jorge Melo foi possível, com alguns dos presentes, fundar um Gabinete de Filosofia da Medicina. Exactamente para sermos ajudados, na reflexão da nossa prática, a pensar a Medicina. ENSINAR/APRENDER FIOSOFIA O olhar de Évora no Secundário Celestino Froes David Professor do Ensino Secundário As características próprias da disciplina de Filosofia no ensino secundário e as condições actuais em que se desenvolve o ensino da Filosofia nas escolas não só não são favoráveis como se têm degradado acentuadamente, devido a constrangimentos que afectam os professores em geral, como todos reconhecem. Trata-se de problemas que afectam a autoridade do professor na sala de aula, na sua relação com os alunos, na avaliação, no quotidiano da actividade docente que transformam os pro2 4 ID, 233-235. 136 Debate fessores em funcionarios burocratas, mais atentos a problemas administrativos do que às tarefas que constituem a sua verdadeira função de ensinar e desenvolver em si e nos alunos o gosto e o prazer pelo saber filosófico. Sem esta satisfação pelo trabalho desenvolvido não há certamente resultados satisfatórios nem compensadores. Neste contexto o ensino da Filosofia tem sido desqualificado e/ou esquecido por quem tem responsabilidades no Ministério da Educação. É este esquecimento que nos traz aqui, numa altura em que se menospreza a formação filosófica nos curricula dos alunos e se extingue a necessidade de um exame nacional desta disciplina como acesso ao ensino superior. Perante estas preocupações os professores das três escolas secundárias de Évora reuniram-se e sintetizaram as suas reflexões num manifesto que exprime os aspectos considerados essenciais no debate sobre este tema. Que este problema ultrapassa largamente os aspectos institucionais relacionados com o ensino secundário e superior e tem consequências negativas óbvias no desenvolvimento social e cultural do país, eis o que parece notório para todos, excepto talvez para os que têm a função de tomar decisões desta gravidade. Em primeiro lugar devemos acentuar que a manutenção da disciplina de Filosofia, anteriormente designada como Introdução à Filosofia, não está posta em causa nos curricula dos 10.° e 11.° anos de todos os cursos científico-humanísticos e cursos tecnológicos do ensino secundário como disciplina de formação geral, pelo que nada nos leva a supor que a situação se venha a alterar. Acresce que as indicações da União Europeia, como por exemplo o Relatório Delors (1996) e documentos da UNESCO, vão neste mesmo sentido de reconhecer e favorecer a formação filosófica no ensino secundário. A criação de um exame nacional de Filosofia no I I ano que teve a sua primeira época em 2006 e terá ainda continuidade em 2007, foi um episódio lamentável que veio substituir o exame nacional de acesso ao ensino superior até então realizado no 12.° ano. Foi esta substituição, realizada sem qualquer fundamentação sólida, que veio lançar a confusão e dar origem a outros equívocos que os professores de Filosofia do ensino secundário bem conhecem. Refiro-me à introdução de umas chamadas Orientações para a Leccionação dos programas de 10. e 11." anos e a um novo modelo de exame para o 11° ano que foram adoptados pelo Ministério com o beneplácito da Sociedade Portuguesa de Filosofia, Associação de Professores de Filosofia e ainda a equipa responsável pelas reformulações do Programa de Introdução à Filosofia (aprovado em 1991). Apesar das reservas manifestadas pela Associação de Professores 25 o a Delors, J. (dir.) (1996), Educação - um Tesouro a Descobrir, Porto, Asa. Debate 137 de Filosofia os documentos foram aprovados depois de várias reuniões no Ministério. Os argumentos utilizados para justificar as ditas Orientações acentuavam a necessidade de compatibilizar o programa com um novo exame nacional. Também não compreendemos a posição da equipa revisora dos programas em vigor ao aceitar estes documentos que desvirtuam todo o trabalho realizado. Quem quiser ter uma noção mais fiel do que aqui estava em causa deverá consultar estas duas peças de má memória onde se detecta a influência preponderante da Sociedade Portuguesa de Filosofia: as Orientações já referidas e a prova de Exame Nacional de 11.° Ano de 2006. As primeiras, como dizia inicialmente a A.P.F., constituem uma substancial e ilegítima alteração do Programa - e dizemos nós, uma subversão do Programa tornando-o doutrinário no sentido da Filosofia Analítica, reduzindo significativamente a pluralidade filosófica, pedagógica e didáctica que o caracterizavam. Os constrangimentos a que as ditas Orientações obrigam vão ao ponto de estipular como devem ser leccionadas certas temáticas e quais os autores e textos de referência obrigatórios. Trata-se evidentemente de condicionar professores e alunos a um modelo de exame que não tem antecedentes no ensino da Filosofia e que chega ao cúmulo de apresentar questões de escolha múltipla! Este fenómeno espúrio aconteceu pela primeira vez no exame nacional de 11.° ano de 2006 e vai repetir-se este ano no último exame nacional previsto. Em boa hora o Ministério da Educação resolveu suspender estas Orientações no início do actual ano lectivo, último ano em que se prevê a realização do exame de 11.° ano. 26 A questão que colocamos é muito simples: vale a pena propor um exame nacional de 11.° ano para o ingresso no ensino superior? Se tivermos em conta os condicionalismos já apontados anteriormente, a resposta é claramente negativa. Reconhecemos a necessidade de exames nacionais e a sua função de proporcionar uma avaliação independente, justa e equitativa. Aliás, o Documento de Revisão Curricular já previa a realização de um exame no final do 11.° ano. Ora as competências que o Programa prevê para os alunos no final do 11.° ano são: saber recolher informação, clarificar o significado e saber utilizar conceitos fundamentais, redigir textos, participar em debates, analisar e compor textos argumentativos, realizar um pequeno trabalho monográfico. Não são estas competências 2 6 Boletim Informativo da APF. III série n.°7, Julho 2005 - "Ao primeiro documento (modelo de exame) respondemos com sérias reservas, mas construtivamente. Tratava-sc de aperfeiçoar apenas um modelo. Porém, quando num curto espaço de tempo tivemos que tomar posição perante um texto de trabalho intitulado Orientações para a Leccionação do Programa, do qual nos dissociámos quase sem reservas, verificámos que não se tratava de melhorar um Programa e a sua leccionação mas de o alterar substancial e ilegitimamente." 138 Debate comparáveis com as assinaladas para o 12.° ano, onde se propõe uma verdadeira preparação para o ensino superior. Percebe-se assim que os primeiros anos de ensino da Filosofia, cujos programas tinham a designação de Introdução à Filosofia, não são necessariamente os mais indicados para serem utilizados no ingresso ao ensino superior, e muito menos num exame com este propósito. O que propomos é a reintrodução do exame nacional de Filosofia no 12.° ano como prova de acesso ao ensino superior. Este Programa, sem as alterações recentes que o tornaram inoperacional para provas de exame, é sem dúvida o melhor instrumento propedêutico para o ensino superior. Centrado na leitura integral e interpretação de três obras filosóficas de três épocas diferentes, este programa proporcionava condições únicas e estimulantes de trabalho hermenêutico e fornecia aos alunos a oportunidade do contacto com as obras de filósofos marcantes na história da filosofia. Os resultados obtidos nos exames de 12.° ano corroboram as virtudes do programa e mostram que o critério dos professores de Filosofia é plenamente justificado e pode apresentar resultados satisfatórios. E a inexistência do exame nacional de 12.° ano que está a provocar a diminuição do número de alunos e de turmas, bem como a desqualificar o ensino da Filosofia, pois como já referimos, era esse programa que sempre tinha servido de acesso ao ensino superior e nunca o do 10° e 11.° anos. Apelamos à ponderação sobre esta proposta que consideramos ser a que melhor defende a qualificação dos alunos e do ensino da Filosofia no ensino secundário, permitindo uma melhor qualidade no trabalho desenvolvido com repercussões positivas no ingresso no ensino superior.