A REPRESENTAÇÃO DO PODER NO ALTO IMPÉRIO ROMANO

Propaganda
A REPRESENTAÇÃO DO PODER NO ALTO IMPÉRIO ROMANO. A
ANÁLISE DA PROPAGANDA NO ESTUDO DAS BIOGRAFIAS DE
IMPERADORES COM BASE NA RELEITURA DA DOCUMENTAÇÃO PAGÃ
DO IV SÉCULO d.C., A HISTÓRIA AUGUSTA.
Wanessa Batista Freire - (Universidade Federal de Goiás – UFG)
A Guerra Civil compreendida no período de 193 a 197 d.C. caracteriza o contexto
ao qual desenvolvemos nosso estudo da análise da propaganda empreendida pelos
Imperadores no Alto Império Romano e evidencia uma nova organização que se
estabeleceu com a modificação do ideal de Imperadores adotivos pela ascensão de
Imperadores soldados. Neste âmbito, deflagrou-se o confronto dos Imperadores
Septímio Severo, Dídio Juliano, Pescênio Nigro e Clódio Albino pelo governo único de
Roma. O confronto das organizações militares junto ao embate de imagens integradas e
concorrentes destes Imperadores.
A documentação textual da História Augusta, que traz um conjunto de biografias
de diversos imperadores romanos, escrita após os acontecimentos por seis autores
pagãos, nos apresenta ao longo de sua escrita, as variadas formas de representação de
imagens e símbolos eleitos e utilizados pelos Imperadores que se articulam no embate
pelo governo de Roma.
Nossa releitura da documentação da História Augusta visa apresentar uma nova
abordagem que contradiz o que a maioria da historiografia defende que, no período da
Guerra Civil, o governo dos Imperadores baseou-se somente no apoio do exército. Para
nós, a propaganda de uma imagem idealizada do Imperador era um fator que agia em
conjunto ao apoio remunerado do exército.
A palavra propaganda advém do latim propagare, e significa propagar,
multiplicar. Este termo, apropriado pela Igreja Católica no século XVII pelo Papa
Gregório XV, designava uma Comissão para Propagação da Fé. O conceito de
propaganda a que nos referimos neste estudo trata-se da forma como os Imperadores
buscavam adesão e legitimação do poder por meio da veiculação e propagação de uma
imagem idealizada para os grupos sociais imperiais.
Esta nova abordagem que trazemos sobre o estudo do efeito da propaganda nos
governos dos Imperadores inova a forma de visualizarmos o poder destes, pois,
podemos perceber a correlação da aceitação de um Imperador pelo exército à imagem
construída do Imperador que possuísse as virtudes de um grande general apto ao
governo de Roma e capaz de comandar um grande exército.
Com o estudo da propaganda política, propusemos a reflexão do efeito desta sobre
os elementos que estruturam o relacionamento que se estabelece entre os grupos sociais.
No caso específico do período Severiano, identificamos que esta propaganda buscava
atingir diversos segmentos sociais, tais como, os senadores, a plebe, a aristocracia
provincial, os soldados, entre outros. Desta forma, já percebemos que se tratou de uma
propaganda que, para poder se espalhar por tantos meios, utilizou diversos suportes de
mensagens, entre estes, os documentos escritos, como é o caso da nossa fonte, a
História Augusta.
Uma vez que a História Augusta traz o relato da vida dos Imperadores Romanos,
temos em seu conteúdo, a exposição da vida dos mesmos, tanto no âmbito público
quanto no privado. Assim, nos propomos a discutir esta exposição feita na História
Augusta, relatando, ao menos, alguns pontos imprescindíveis à análise pretendida.
Desta forma, traremos ao conhecimento, a vida dos quatro Imperadores, Dídio Juliano,
Septímio Severo, Pescênio Nigro e Clódio Albino.
A vida do Imperador Dídio Juliano foi biografada por Aelius Spartianus. Ele traz,
a princípio, que foi Dídio quem subiu ao poder em Roma, aclamado pelos pretorianos,
após a morte de Helvius Pertinax. Filho de Clara Emília e Petrônio Dídio Severo, e
tendo como irmãos Dídio Próculo e Nummio Albino, Dídio Juliano foi educado na casa
de Domitia Luccilla, mãe do Impeador Marco Aurélio. Foi designado questor um ano
antes da idade legal, além de ser nomeado edil e, logo em seguida pretor com o apoio de
Marco Aurélio. Depois de pretor, subiu ao mando da vigésima primeira legião, a
Primigenia, aquartelada na Germânia (HA, Vida de Dídio Juliano, I).
Dídio viu-se em uma situação complicada ao ser acusado por um tal de Severo
Claríssimo de participar da conjuração que estabeleceu-se contra Cômodo. Entretanto,
Cômodo o declarou livre e ordenou à morte o acusador. Por ter sido cônsul com
Pertinax, sucedê-lo no proconsulado da África e, ter desposado sua filha, foi sempre
tido como seu colega e sucessor. HA, Vida de Juliano, II).
Com a morte de Helvius Pertinax o povo passou a odiar Juliano, uma vez que
consideravam que o assassinato foi articulado por ele. Este pensamento foi ganhando
forma, à medida que nenhuma providência foi tomada a respeito das injustiças
cometidas no governo de Cômodo. Além disso, Juliano não se posicionava frente ao
avanço do exército hostil de Severo, promovendo uma maior revolta por parte dos
romanos (HA, Vida de Dídio Juliano, III; IV).
Aelius Spartianus também foi o responsável pela biografia de Septímio Severo.
Dando continuidade ao acontecimento do assassinato de Dídio Juliano, Aelius já imbui
a história da vida de Septímio Severo, como aquele governante oriundo da África, que
obteve o poder do Império. Nascido na cidade de Lepeda, Severo, filho de Geta e Fulvia
Pia, tinha como antecessores em sua família, cavaleiros romanos antes da cidadania
romana ser outorgada a todos os habitantes livres do Império. Desde sua chegada a
Roma, Severo se valeu de diversos presságios que julgava ser um sinal de sua ascensão
ao poder (HA, Vida de Severo, I). Isto nos leva a pensar nas representações que Severo
fazia par si como um homem digno de atingir o governo de Roma.
Um fato curioso atenta-se para o passado de Septímio. Foi acusado de adultério e
absolvido por Dídio Juliano, a quem sucedeu no proconsulado e no Império Romano
(HA, Vida de Severo, II). Por ordem de Marco Aurélio, foi nomeado tribuno da plebe,
e, segundo a História Augusta, baseada na referência à autobiografia de Severo, escrita
após a morte de Albino, legado que não chegou à posteridade, Septímio silenciou a
história de sua vida privada ao casar-se com Márcia (HA, Vida de Severo, III). Vale
uma ressalva referente à menção desta autobiografia, uma vez que, ela foi,
possivelmente, consultada pelos escritores da História Augusta como documentação
para a elaboração da biografia de Septímio contida na obra.
É evidente no decorrer da leitura da documentação da História Augusta, que
Septímio Severo, foi um homem rígido e repugnante. Variados são os exemplos de sua
arrogância e prepotência perante seus soldados. Contudo, podemos observar que estas
atitudes são relevadas pelo fato de Severo remunerar muito bem seu exército, uma vez
que, como vimos, este período é caracterizado pela ordem dos Imperadores soldados,
aqueles que obtêm apoio pela força das armas e é eleito pela imagem representativa e
idealizada que transmite no poder como um grande general.
Ao episódio que se configurou na sua chegada em Roma no governo de Dídio
Juliano, a obra nos traz o relato de que entrou na cidade de Roma com todas as suas
armas e subiu ao Capitólio escoltado por homens armados (HA, Vida de Severo, VII).
Este relato nos permite um parêntese no que diz respeito à representação de um grande
homem, um eficaz general e, sobretudo, de uma apresentação perante o público que
garanta a confirmação e aceitação da imagem a ser construída.
Numa sagaz estratégia, Severo aliou-se a Clódio Albino para então debelar o
confronto com Pescênio Nigro que avançava para a África. Após derrotar Nigro em
Cícico , a cabeça deste foi vista passear no alto de uma lança (HA, Vida de Severo, IX) .
Este ato demonstra todo o triunfo de Severo, uma vez que, levaria a cabeça até Roma
para todos presenciarem o resultado de mais uma guerra civil vencida por Septímio.
Mas este não se contentava com isso, pois os familiares de Nigro foram perseguidos e
condenados à morte.
Entretanto, uma nova guerra civil se noticia com a sublevação de Clódio Albino
na Gália, ao perceber que foi enganado por Septímio, perante a estratégia anunciada.
Frente a isso, Severo decide declarar Albino como seu inimigo público. O começo dos
embates entre os dois generais favoreceu á vitória do exército de Albino. Diante desta
situação inusitada Septímio consultou os presságios da Panônia que lhe comunicou que
venceria a batalha e que o poder não lhe seria tomado. Sendo assim, vários amigos de
Clódio Albino desertaram e passaram a compor as tropas de Severo (HA, Vida de
Severo, X; XI). Muitos homens de Albino que não se propuseram a mudar de lado
foram executados mais adiante em outras ocasiões.
Septímio, também foi bastante inteligente ao propor que o assassino de Cômodo
fosse jogado aos leões, ganhando, desta forma, prestígio perante o público que clamava
pela justiça de Cômodo. Foi também ele quem conduziu a mortandade de vários
homens. Chegou-se a cogitar que Severo pretendia guerras pela ânsia de glória, sem ter
necessidade da mesma acontecer.
Septímio Severo ficou marcado pelas grandes construções que realizou ao longo
de seu governo e, também, pela restauração de santuários públicos que caiam de tão
velhos. Antes de morrer em seu leito, Severo ordenou que fosse dado como santo, além
de ordenar que a reprodução da estátua da deusa Fortuna fosse colocada em sua alcova
para legar a seus filhos esta sagrada efígie (HA, Vida de Severo, XXIII).
Bem como as biografias de Dídio Juliano e Septímio Severo, Aelius Spartianus
também foi o biógrafo da vida de Pescênio Nigro. Este é apresentado como filho de
Annio Fusco e Lampridia, cuja condição é inexata. Aelius ainda nos relata que Pescênio
teve uma educação literária mediana, além de possuir um caráter feroz e uma grande
cobiça em riquezas (HA, Vida de Pescênio Nigro, II).
Nigro foi aclamado Imperador pelo exército da Síria após a notícia da morte de
Cômodo. Pescênio Nigro e Septímio Severo já tinham sido amigos íntimos no tempo
em que Severo governou a província de Lion. E em uma ocasião Septímio lamenta não
poder imitar a disciplina de Nigro perante os soldados (HA, Vida de Pescênio Nigro,
III). O que mais podemos dizer sobre a figura de Nigro, é que foi um general rígido,
exigente e, sobretudo, uma imagem exemplar para os demais soldados.
Sua morte, num confronto com Severo, resultou na decapitação e o conseguinte
passeio de sua cabeça no alto de uma vara por todo o trajeto até Roma. Seus familiares
foram perseguidos e mortos e seus bens confiscados (HA, Vida de Pescênio Nigro, VI).
Clódio Albino teve sua vida biografada por Julius Capitolinus, que nos relata na
História Augusta, que Albino foi o instigador da morte de Helvius Pertinax, episódio
que resultou na proclamação de quatro Imperadores, quase ao mesmo tempo. Albino
nasceu em uma nobre família em Hadrumeto, África. É descendente das famílias
romanas dos Postumios, dos Albinos, dos Ceyonios (HA, Vida de Clódio Albino, I; IV).
A primeira batalha contra Septímio Severo saiu como vencedor, mas logo depois
foi vencido pelo mesmo. Seu caráter é descrito de diversas maneiras. Varia de acordo
com o personagem que a relata e relacionado a isso, com a representação da imagem
que quer passar deste (HA, Vida de Clódio Albino, IX; X) Vemos aí mais uma
estratégia para denegrir a imagem do próximo.
Entre tantas opiniões que divergem a respeito de Albino, percebemos que o
Senado adorou a figura de Clódio Albino, como a nenhum outro Imperador, mais pelo
ódio que sustentavam a Severo (HA, Vida de Clódio Albino, XII). Albino foi alto de
estatura, tinha cabelos grisalhos e a brancura de sua pele era tão admirável que se deveu
o nome a isto (HA, Vida de Clódio Albino, XIII).
Albino morreu em confronto com Septímio Severo em uma das batalhas que
travaram. Seus homens desertaram mediante um presságio que disse que Severo seria o
vencedor, e assim, se apresentaram para servir no exército de Septímio.
Em face de um desenvolvimento que já aponta vários avanços, observamos que a
análise de boa parte das documentações textuais, bem como das arqueológicas,
epigráficas e numismáticas, tem estabelecido pontos favoráveis no que concerne à
proposta apresentada de se estudar a legitimação do imperador fundamentada pelo
efeito da propaganda de uma imagem idealizada junto ao amparo do exército.
As discussões teóricas sobre a representação têm contribuído para o embasamento
e apreensão do conhecimento proposto. A representação é caracterizada ora pela
substituição da realidade representada, ou seja, na substituição da pessoa do governante,
ora na condição de tornar visível esta realidade pela presença marcante do Imperador.
Um ponto importante que achamos interessante abordar é que, apesar de
trabalharmos mais com os Imperadores, Dídio Juliano, Pescênio Nigro, Clódio Albino
e, em especial, Septímio Severo, o imperador ideal sob o ponto de vista da História
Augusta não são eles. Para a História Augusta, o sublime imperador digno de servir de
exemplo é Severo Alexandre. Enquanto que o estereótipo do imperador repudiado é
Heliogábalo.
Ainda dentro desta perspectiva, vemos que em outras documentações esta eleição
de melhor e pior exemplo de imperador se alterna. É curioso verificar que cada autor
traz para si um tipo, digamos assim, de Imperador que sob sua visão é eleito por certas
características que apresenta. Poderíamos dizer que cada autor tem uma empatia com
determinado Imperador e que isso viabilize esta escolha.
Dentre os Imperadores estudados, todos apresentam vícios e virtudes descritos na
História Augusta. Por isso, torna-se de fundamental importância a realização desta
contraposição de imagens, visto que, somente desta forma poderemos compreender
melhor como se deu a guerra civil que se estendeu de 193 a 197 d.C..
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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