III- O Professor de Filosofia para Crianças 1. A ideia de professor de filosofia No capítulo II, fez-se referência ao currículo de FpC, mas, não menos importante no projecto educativo é o professor, pois o currículo foi criado a pensar, nas crianças, mas também, no professor de FpC. O material didáctico “inclui o docente como uma peça essencial de sua proposta” (1999d, 456) não é qualquer docente, independentemente do seu grau intelectual, que se encaixa como uma peça de um puzzle, numa Comunidade de Investigação. O professor tem de saber muito bem qual o lugar que ocupa numa Sala de Aula, assim como deve “conhecer as características de desenvolvimento dos seus alunos, captando o que origina o seu crescimento, para superarem o actual desenvolvimento” (Kohlberg, 1989, 86) Os professores não podem cogitar que vem para a sala de aula para ensinar a quem não sabe, vem na verdade ajudar as crianças ou os jovens a procurarem, a descobrirem o que não sabem, ou , o que sabem e pensam não saber. Perante esta temática, surgem duas questões pertinentes: qual o professor “ideal” para a FpC? e qual a formação que deverá ter? Tentaremos dar resposta a estas e outras questões que surgem, sempre pensando na possibilidade que este projecto educacional tem para educar alunos pouco interessados nas aulas tradicionais, assim como 118 alunos com problemas de aprendizagem, e não esquecendo que os professores: “Que se interessam pelo programa de filosofia para crianças é afirmado que, aqueles que os fazem, assumem um grande compromisso: trabalhar com o Programa em sala de aula, pois o programa de filosofia para crianças foi criado para acontecer com as crianças e jovens e não para ser objecto de pura contemplação.” (1999a, 15) Não será qualquer professor que é capaz de ensinar filosofia às crianças, pois requer “professores que estejam dispostos a examinar ideias, a comprometer-se com a investigação dialógica e a respeitar as crianças que estão sendo ensinadas” (1990, 173). Os aconselháveis são os que, possuem plenamente tais disposições, aquando da sua entrada nos cursos via ensino. Em incompatibilidade temos, segundo Lipman, os que: “Muito menos receptivos são os professores que estão pouco inclinados a apreciar discussão intelectual abertas e que, polidamente não toleram as explorações experientes não sofisticadas e desinibidas das crianças”(Ibid). Esses professores insistem em manter uma linguagem que fica muito distante da capacidade cognitiva e das habilidades de raciocínio das crianças, provocando desinteresse nas matérias planeadas para trabalhar nas aulas normais. Consequências disso são também, os 119 manuais criados pelos pedagogos, onde a linguagem não é adequada para trabalhar em Comunidade de Investigação. Apesar de os pedagogos delegarem a tarefa, aos professores, de traduzirem os mesmos numa linguagem acessível aos alunos, o professor “dá o melhor de si: faz o que foi treinado a fazer, ensina como foi ensinado.” (1990, 174) Na crescente profissionalização do professorado, nos dias de hoje, encontra-se muitos docentes que praticam, ainda, uma metodologia inadequada para as exigências da educação de hoje, está ideia encontrase, várias vezes, presente no discurso de Lipman nas obras: O Pensar na Educação, e em A Filosofia vai à Escola. “Actualmente, os professores precisam das habilidades organizacionais que provocarão as habilidades nas outras pessoas” (2001, 307-308). É necessário ter duas questões presentes para que possamos em tender a mensagem do pioneiro de FpC e seus colaboradores: (1ª) é muito difícil educar alunos desinteressados. (2ª) Sem a assistência de certas conjunturas favoráveis é muito difícil educar bem alunos mesmo estando interessados. As conjunturas que referimos são: ensino competente; currículo adequado e a formação de uma Comunidade de Investigação (Cfr. Lipman, 2001), ou seja, tudo o que o projecto educativo de FpC nos oferece. Perfila-se no professor adequado, para pôr em prática a Comunidade de Investigação abordada no primeiro capítulo, três características: alguém que faz a sua reflexão; a autonomia como uma qualidade importante; e capacidade de criar os seus próprios planos de discussão e exercícios filosóficos. Por sua vez, a autonomia apresenta 120 dois aspectos importantes, decidir com o que trabalhar e como caminhar na investigação. Dois pressupostos que “a filosofia e o pensar – ou, talvez, a filosofia e a busca pelo pensar melhor – andam de mãos dadas” diz nos Lipman em A Filosofia vai à Escola (1990, 174). O professor de FpC, na sala de aula, deve ser como um árbitro, isto é, deve conduzir a discussão assinalando os erros da mesma, que é a investigação, questionamento filosófico. Por outro lado, deve possuir conhecimentos suficientes para detectar os erros, as falácias da discussão. Por outras palavras: “O docente tem que poder levar adiante uma discussão filosófica, o que significa coordenar de maneira razoável as participações, fazer objecções aos erros, perguntar e reperguntar com vista a que o questionamento se aprofunda. (1999d, 456). O professor não deve participar das discussões, salvo o nível da maturação intelectual da Comunidade de Investigação. Os alunos devem salientar, até que ponto é ou não importante que o docente participe no diálogo. A participação deve ser cuidada para que não surja como um imperativo. A postura ideal, segundo Vera Waksman52 é de um “docente comprometido com sua actividade, capaz de suscitar em seus alunos um entusiasmo que ele já possui”. (1999d, 456) Um professor de filosofia que prática a comunidade de questionamento, pode levar a FpC a ocupar o lugar da filosofia, nomeadamente porque conhece os conceitos filosóficos que existem no 52 Coordenadora da Área de Formação Permanente em Filosofia com Crianças, Vera Waksman, da Universidade de Buenos Aires, Argentina. 121 programa, assim como poderá trabalhar muito mais e melhor. Apresenta outra bagagem científica, que não tem um outro professor ou educador já que não é professor de filosofia. O professor de filosofia possui uma autonomia que não se encontra em outro professor com uma formação diferente. Não está preso ao material didáctico criado pelos pedagogos. Criando o seu próprio material didáctico em função dos alunos, sentindose mais seguro de si, transmitindo de certa forma essa segurança às crianças e capaz de “tentar ler o rosto de seus alunos, procurar ver suas expectativas e dificuldades, pondo-se no lugar deles.” (Polya, G., Cfr. 1999d, 351). 1.1. A Aula de Filosofia Mais do que nunca, diz-nos Lipman que a filosofia é fundamental na educação dos jovens, pois é evidente, que o pensamento está a tornar-se o verdadeiro fundamento do processo educacional e a educação construída sobre qualquer outra fundamentação, que não a base filosófica, será superficial e estéril. (Cfr. 1990. 52). Só a filosofia é que possui estruturas para preparar as crianças e os jovens para o pensar; para vivenciarem e compreender as suas experiências. De acordo com Dewey, “a filosofia origina-se no que é incerto no assunto que é objecto de experiência, que visa a situar a índole da perplexidade e formular hipóteses para esclarecê-la, a serem provadas na acção”. (Cfr. 1999a, 137) 122 Numa aula de filosofia os alunos são activos; investigam os conteúdos procurando inferir as questões no contexto mais amplo possível em que possam situar-se explicitando, aí, todas as relações envolvidas. Os alunos cultivam a curiosidade, a coragem, a persistência e a abertura intelectual à criatividade, a crítica aos valores, ideias e crenças dominantes. O diálogo e a deliberação como modo de fazer face aos problemas. A filosofia também assinala uma mudança da cultura. Ao criar modelos, os quais espelharão no futuro a acção e o pensamento, tendo um papel aditivo e transformador na história da civilização. (Cfr.,1999a, 138). A admiração, o perguntar e o elaborar são processos compartilhados de produção de conhecimento da aula de filosofia. É através do diálogo que a filosofia pretende exercitar a reflexão filosófica, desenvolver os conhecimentos de cada um. Os professores, vão descobrindo que a filosofia é o veículo para o cultivo da competência do raciocínio, já que a filosofia pode ser ensinada a pessoas com várias idades, isto é, desde o jardim-de-infância passando pela universidade e até aos Lares da Terceira Idade. Na aula de filosofia pode-se discutir temas de outras disciplinas, pois está aberta à interdisciplinaridade, a dinâmica de participação e discussão que se proporciona a partir dos Programas Curriculares53, a 53 No nosso país, actualmente, o programa de filosofia, com carácter obrigatório no ensino secundário, considera como objectivos próprios desta disciplina: “fornecer instrumentos intelectuais de análise e reflexão; facilitar a passagem do estádio das operações concretas ao das operações formais; ultrapassar decididamente i nível da abordagem do lugar comum; desenvolver a competência comunicativa/argumentativa, tanto oral como escrita, proporcionar a convergência da formação e da informação, num horizonte de aperfeiçoamento pessoal e cultural; harmonizar o desenvolvimento lógico dos conteúdos filosóficos com o desenvolvimento psico-pedagógico; possibilitar a aprendizagem dos conteúdos de uma forma estruturada e integrada; possibilitar uma 123 ampliação da formação específica para o ensino de filosofia, as actividades sistemáticas de ampliação e renovação que se oferecem ao professor tem alterado as aulas tradicionais. O mesmo não se pode dizer de outras disciplinas como salienta Lipman numa conversa com Walter Kohan: “As outras disciplinas sentem-se intimidadas ante noções tais como verdade ou justiça, com as quais a filosofia lida, elas temem essas noções, acham que não lhes dizem respeito, que são irrelevantes” (1999a, 167). É na aula de filosofia que os alunos têm as ferramentas mais importantes: os conceitos, o diálogo e o questionar reflexivo, na medida em que é proceder como se aquilo que já pensado não o tivesse sido ainda e estivesse a pensa-lo pela primeira vez, na grande maioria, exemplo disso é a Comunidade de Investigação. Salientando mais uma vez Lipman: “o que a filosofia faz é fazer as crianças terem acesso a fontes de ideias desde o início da sua aprendizagem escolar, no jardim de infância.” (2001, 358) Mas se o professor e a aula de filosofia são os mais adequados para praticarem a FpC, o que falta para a porem em prática? Como é feita a formação do professor que trabalha em Comunidade de Investigação? A estas questões tentar-se-á responder nos pontos seguintes. atitude de abrangência e articulação de saberes parcelares, numa síntese pessoal, aberta e construtiva; fundamentar a estruturação de uma reflexão pessoal, crítica e valorativa; promover uma efectiva mudança de atitudes, mediante um distanciamento crítico que permita a análise fundamentada do vivido.” (Do programa de Introdução à Filosofia do Ensino Secundário - Reforma Educativa, DGBS.). 124 2. A Formação em Filosofia para Crianças 2.1. A Formação do Monitor O programa de formação, criado por Lipman, tem duas grandes fases, estas por sua vez apresentam vários passos. A primeira fase corresponde à formação, ou preparação de monitores54 que, segundo Lipman “são candidatos os que têm um sólido conhecimento filosófico” (1990, 176) sendo estes, os professores de filosofia da universidade55 ou os professores de filosofia do secundário. Isto porque, “é mais fácil procurar por filósofos, e prepará-los para serem monitores, do que procurar outros educadores e prepara-los nos modos da filosofia”. (1990., 177). O primeiro passo para a formação dos monitores consiste em frequentarem uma oficina, durante dez dias para tomarem conhecimento do currículo, estes podem “conduzir sessões individuais e discutir assuntos relevantes detalhadamente” (Ibid) para melhor compreensão e domínio do programa. Neste tempo o professor vai desenvolver três aspectos importantes, o conhecimento, tomar contacto e analisar o currículo detalhadamente; conduzir sessões individuais sobre os programas; e discutir assuntos relevantes, detalhadamente. Os assuntos a discutir podem ser de três: A relação da FpC e a Filosofia Tradicional; a 54 O termo Monitor é o atribuído por Lipman aos professores que são preparados para dar cursos de formação aos educadores que praticarem a FpC. Neste trabalho substituiremos o termo Monitor, por formador, pois depois de algumas leituras parece ser o mais adequado no nosso país. 55 Lipman aponta estas duas classes de professores, tendo como base a estrutura de ensino dos EUS, assim como a formação profissional de cada um, que é a Filosofia. 125 Educação Moral, cívica ou estética; e ainda, o ensino do raciocínio e os seus procedimentos. Após os dez dias, “o futuro monitor passa a ser um «filósofo em residência» numa sala de aula, por quatro a seis semanas, para adquirir experiência no trabalho com crianças,” (Ibid). O facto dos formadores colocarem em prática durante quatro a seis semanas, em Comunidade de Investigação o currículo, é pré-requisito para obterem credibilidade junto dos futuros educadores ou professores56 de FpC. O formador (monitor) passa a estar preparado para dar formação em FpC. 2.2. A preparação do educador ou professor A formação dos educadores ou professores de FpC, passa por três fases. A primeira designa-se por o estágio de exploração do currículo, a segunda por estágio modelador e a terceira o estágio de observação. O estágio de exploração do currículo consiste numa oficina57, constituída por quinze ou vinte educadores ou professores e um formador; no caso de serem mais de quinze formandos então o ideal será dois formadores. Leva-se a cabo seminários de investigação de currículo, que podem ter a duração de três a catorze dias. Se os seminários forem planeados para serem menos de quinze dias então os formandos, diz Lipman, só terão contacto com um 56 A estes professores ou educadores como lhe chamamos, são designados por facilitadores de FpC pela Vera Waksman. 57 Por oficina entende um espaço de trabalho onde se faz a primeira etapa da formação, que pode ser o Centro de Formação para Filosofia para Crianças. 126 programa, enquanto que os mais longos trabalham dois programas em simultâneo. (Cfr. 1990, 177). É objectivo que os educadores que frequentam este estágio, vivenciem a Comunidade de investigação tal como os seus futuros alunos. A fase seguinte, e ainda, no primeiro estágio, é de leitura em torno, e alternadamente, de um episódio retirado de um texto filosófico (novela filosófica), para praticarem a leitura. Mais importante que a leitura é, salienta Lipman a “experiência em ouvir a linguagem do texto assim como em escutar uns aos outros.” (Ibid,). A colaboradora do pioneiro, Ann Margaret Sharp58 diz nos o quanto é importante o saber ouvir. “É crucial desenvolver um ouvido para temas filosóficos e para identificar a direcção em que uma determinada discussão pode encaminhar-se”. (Sharp, A. e Splitter, L.,1999d, 182). Assim, segundo as autoras é possível o desenvolvimento de “consciência de possibilidades filosóficas” (Ibid). Infere-se que é permissível que nem todas as discussões sejam filosóficas, o que requer atenção auditiva e cognitiva, para encaminhar a mesma para um rumo filosófico. É pertinente que a leitura seja “um exercício de reciprocidade moral”, salienta Lipman e que o “efeito colectivo da discussão resultante é uma partilha das significações do texto através de sua apropriação pelo grupo como um todo” (1990, 177) O professor, Lipman, acredita que os educadores em formação têm de passar por uma Comunidade de Investigação, para compreenderem as crianças na mesma. Não obstante 58 Juntamente com Laurance Splitter, Membro do Conselho australiano de pesquisa educacional (ACER, Melbourne, Austrália), editaram uma obra sobre aspectos a ter em conta e a desenvolver na Comunidade de Investigação da sala de aula, sendo um o saber ouvir. 127 só o facto dos educadores ou os facilitadores de FpC como lhe chama a Vera Waksman, experienciarem em estágio o mesmo que os seus futuros alunos em Sala de aula, podendo promover o desenvolvimento individual e elaborarem planos de discussão e exercícios filosóficos sobre os conceitos ou linguagem abordada na leitura. O estágio modelador, pretende que os professores assistam a aulas, dos formadores, isto é, os educadores devem frequentar as aulas dos formadores para observarem como são tratadas as matérias na Sala de Aula com os alunos, como é na prática do dia-a-dia a aplicação de FpC (Cfr. 1990. 180). Isto porque, não fica claro que o trabalho em oficina seja suficiente para a prática da Comunidade de Investigação. As aulas, do estágio modelador, acontecem cerca de seis semanas após o educador ter começado a executar o programa de FpC na Sala de Aula. As aulas assistidas “produzem esse mínimo de habilidades, de atenção pessoal que separa este modo de educação de professores dos cursos tradicionais”, diz Lipman. (Cfr.Ibid). Por fim o estágio de observação, que consiste em seis semanas depois do estágio de modelador, os Formadores ou monitores vão à sala de aula dos educadores ou professores (Facilitadores de FpC) para observarem e avaliarem a execução do material didáctico. A avaliação poderá ser oral, escrita, ou ambas. Por exemplo: “O monitor pode perguntar ao professor questões importantes como «O que você me viu fazer que você não fez?» ou pode registar questões como a falha em perseguir um questionamento ou a 128 deficiência do professor de envolver todos os membros da classes.” (Ibid). Os Formadores possuem critérios de avaliação que os educadores, também, devem conhecer, ou seja devem ter acesso a esses critérios para poderem fazer a sua auto-avaliação. Como podemos verificar o preparo (conceito utilizado por Lipman na formação) tanto dos Formadores como dos educadores ou professores têm um caminho muito idêntico, no entanto existem diferenças “particularmente no facto de que os monitores são profissionalmente familiarizados com a filosofia e os professores tiveram pouco (e às vezes desagradável) contacto” (Ibid) com a disciplina de filosofia. Pela sua experiência Lipman, aponta que é necessário desvendar aos educadores a diferença entre abordagens normativas e descritivas ao ensino do raciocínio. (Cfr. Ibid.). Mas não é nada que não se consiga com o devido esforço e consciência do trabalho que se pretende. 129