A OBRA LITERÁRIA NA CONSTRUÇÃO DE UMA ATIVIDADE NO ENSINO DE GEOGRAFIA: PERSPECTIVAS E POSSIBILIDADES Fábio Pereira Nunes, Ingrid Zacarelli Brito e profª Drª Maria Rosa R. M. de Camargo. Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Rio Claro. O presente trabalho refere-se ao desenvolvimento de uma atividade com uma obra literária no ensino de geografia. A atividade foi desenvolvida numa sala de educandos adultos, vinculada ao Projeto UNESP de Educação de Jovens e Adultos (PEJA). Em outubro de 2000, por iniciativa da Pró-Reitoria de Extensão Universitária -PROEX, um grupo de docentes foi constituído com representantes dos campi de Araraquara, Assis, Bauru, Marília, Presidente Prudente, Rio Claro e São José do Rio Preto, com o propósito de elaborar o Projeto UNESP de Educação de Jovens e Adultos -PEJA1. O Projeto é destinado à comunidade interna da UNESP e externa a essa, e tem como um dos objetivos é garantir os direitos mínimos de democracia e cidadania àqueles que não tiveram a oportunidade de aprender a ler e escrever nos períodos regularmente determinados. Em fevereiro de 2001 tiveram inicio as atividades. Em Rio Claro, atualmente, são beneficiários do Projeto educandos da comunidade interna e externa a UNESP, com níveis de escolarização desde a alfabetização até o Ensino Médio, compondo cinco turmas. O presente trabalho foi desenvolvido na turma a “Comunidade na UNESP”. O trabalho nessa turma é permeado por uma prática educativa fundamentada no diálogo (FREIRE, 1982), e na interlocução (BAKHTIN, 2002), entre educadores e educandos no/sobre processo de ensino aprendizagem. Essa turma era constituída por cinco educandos entre funcionários da UNESP e pessoas da comunidade, com nível de escolaridade de ensino fundamental. Uma das principais características da turma era os diferentes interesses dos educandos pelo estudo – certificação e a vontade de aprender. Isso se reflete não só no trabalho da sala de aula, mas também na participação sobre o processo de ensino. Os encontros ocorrem diariamente num total de 10 horas semanais. As atividades desenvolvidas abrangem os conteúdos do ensino fundamental organizados, coletivamente, a partir do interesse e curiosidade dos educandos. No segundo semestre de 2002 desenvolvemos nessa turma um trabalho na área de geografia tendo como temática “A industrialização no estado de São Paulo”. Duas idéias principais nortearam a escolha desse tema: sua freqüência em exames supletivos realizados pela Secretaria de Estado da Educação e sua relação com a história de vida dos educandos, 1 No campus de Rio Claro atualmente o PEJA é coordenado pela profª drª Maria Rosa Rodrigues Martins de Camargo, desde 2001 e pelo prof. dr. Álvaro Tenca, durante o ano de 2002. vinculada ao processo urbano-industrial. Os educandos que compõem essa turma nasceram, em sua maioria, na cidade de Rio Claro ou mesmo em outras cidades, tendo suas atividades cotidianas (trabalho, moradia e outros) ligadas à vida urbana. Na abordagem do tema uma primeira idéia nos pareceu essencial: a compreensão da industrialização do estado de São Paulo passava necessariamente pela complexa questão envolvendo o café – acúmulo de capital, política econômica do período, entre outros. Assim, um primeiro ponto a discutir com a turma seria a relação entre o período cafeeiro e o processo de industrialização. Como metodologia de ensino, optamos pela problematização do tema junto aos educandos, no sentido de desafiá-los, buscando uma compreensão crítica do tema. (Freire, 1982). Visando a problematização foram realizadas diversas atividades utilizando vários recursos materiais – imagens de linha de produção de indústrias; mapas da expansão cafeeira e ferroviária do Estado de São Paulo; tabelas; atlas; texto literário – que possibilitaram o levantamento de questões, olhares e leituras diversificadas sobre o problema. Neste trabalho apresentamos a atividade desenvolvida com o primeiro conto do livro Cidades Mortas, que recebe o mesmo titulo da obra. Essa obra vem contribuir para a discussão do período cafeeiro no estado de São Paulo. O texto discorre sobre o cotidiano das cidades do norte do Vale do Paraíba, cuja decadência econômica impunha-se desde as últimas décadas do século XIX, com a derrocada da produção do café resultante do esgotamento de suas terras e do deslocamento desse para a região do Oeste Paulista. Esse texto foi escolhido visto que vinha ao encontro da discussão que estava sendo feita naquele momento sobre a decadência do Vale do Paraíba. Em uma linguagem literária e rebuscada o texto permitia visualizar a riqueza e a pobreza produzida pelo café na região. Na apresentação da obra aos educandos não houve a necessidade de contextualizá-los sobre a vida de Monteiro Lobato, pois eles se manifestaram comentando fatos e uma de suas obras mais famosas, O Sítio do Pica-pau Amarelo; além disso, comentaram sobre seu local de nascimento, a cidade de Taubaté no Vale do Paraíba. Ao iniciar o trabalho com a leitura do conto, uma primeira questão levantada pelos educandos foi à presença de palavras cujo significado desconheciam, tais como tolhidas, caquexia, rastilho e outras. A complexidade de algumas palavras já havia sido observada por nós que, após ponderações, não entendemos como uma limitação para a discussão do texto. No entanto, segundo os educandos, ficava difícil discuti-lo sem saber o que diziam essas palavras. Assim surgiu a proposta de selecionarmos as palavras de difícil entendimento e procurarmos no dicionário o seu significado. Cada um se dispôs a procurar as palavras que entendessem serem mais difíceis. Nesta busca destacamos as trocas entre os educandos sobre o significado de algumas palavras conhecidas por um, mas desconhecidas por outros, as quais não houve necessidade de consulta ao dicionário. Após identificarmos possíveis significados de cada palavra de acordo com o contexto da frase em que ela estava inserida, partimos para uma discussão, tendo em vista o que já vínhamos discutindo sobre a cafeicultura no estado de São Paulo. Por opção dos educandos a discussão foi feita à medida que o texto era lido. Na busca por compreendê-lo, surge à necessidade de ler e reler alguns trechos. Nesse movimento de leitura e releitura, diferentes abordagens sobre um mesmo trecho vão sendo colocadas pelos educandos no entendimento do seu conteúdo, como exemplo, citamos a discussão ocorrida em torno de um trecho onde o autor diz que o progresso radica-se mal. Os educandos divergiam entre si, pois alguns educandos defendiam que o trecho se referia ao progresso do café no Vale do Paraíba e outros diziam que ele se referia ao progresso do país. No exercício de entendimento do texto destacamos o crescente interesse dos educandos pelo conto. Toda essa atividade vinha sendo registrada pelos educandos em cadernos individuais. A idéia de utilizar esses cadernos partiu de uma preocupação com a atividade de escrita e se transformou em um material de reflexão e pesquisa sobre a prática docente, visto que trazia, enquanto temática, o processo de ensino aprendizagem. A proposta é que, ao final de cada aula, os educandos produzam um texto sobre suas dificuldades, dúvidas, interesses, do que gostaram ou não da atividade entre outras coisas. Neste trabalho tomamos o caderno de registro buscando entender a obra literária no ensino de geografia tendo como interlocutor o educando. Como ele vê o trabalho com a obra literária? Quais são as suas dificuldades? Em um estudo exploratório dos registros dessa atividade identificamos dois modos diferentes de produção textual: um, destinado a interlocutores que não fazem parte do contexto da sala de aula os quais não são identificados pelos educandos, sendo marcado por relatos sobre a atividade realizada; o outro tem como interlocutor os educadores e apresenta como principal característica comentários pessoais sobre a aula. Sobre o conteúdo dos textos produzidos nos cadernos de registros destaca-se, nos relatos sobre a atividade, o trabalho realizado com o dicionário na busca pelo significado das palavras não compreendidas. Interessante notificar que alguns educandos associaram essa atividade à disciplina de Língua Portuguesa, registrando a aula daquele dia como de Português em vez de Geografia como foi registrado nos demais cadernos. Essa associação com conteúdos de outras disciplinas repetiu-se em outras aulas, as quais foram registradas como sendo de história. Além disso, há relatos sobre a complexidade do conto e sínteses dos conteúdos escolares discutido na aula. Já nos textos caracterizados por comentários pessoais encontram-se registros a respeito das informações históricas contidas no conto como importantes para a vida, a valorização da obra enquanto material de estudo e um registro de um dos educandos sobre a sua realização pessoal em encontrar palavras no dicionário, atividade na qual tinha dificuldades. Por fim, observamos que nos dois tipos de textos há registros ressaltando que eles gostaram da aula. Entendemos que o emprego da obra literária no ensino de geografia abre possibilidades para uma interação com conteúdos de outras áreas do conhecimento, como exemplo a Língua Portuguesa e a História, tal como foi registrada pelos educandos. Em relação à geografia, apontamos como possibilidade o estudo do conceito de uso/apropriação do território, desenvolvimento urbano e regional, recursos naturais, entre outros. Acreditamos que o emprego do conto, enquanto um recurso, nem sempre tão óbvio, possibilitou uma ampliação da compreensão do tema. Nesse caso, a compreensão se construiu no trabalho coletivo, nas trocas que ocorrem no decorrer do trabalho, em que cada sujeito apresenta e contribui com o que sabe e, o que sabe, traz de sua experiência cotidiana. Entendemos também, que a atividade com o conto incluiu o educando numa leitura literária pouco experimentada, mas não menos valorizada, sendo o material bem recebido e trabalhado com interesse por todos. A linguagem rebuscada não foi vista como um empecilho, mas como oportunidade de aprendizagem. Bibliografia: BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1986 FAZENDA, I. A Construção de Fundamentos a partir de uma prática docente interdisciplinar. IN: Interdisciplinaridade: História, teoria e pesquisa. Campinas: Papirus, 1994. FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 19.ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996. FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 11ª edição, 1982.