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Prefácio
“O
professor de matemática em geral é um sádico.” Essa grave
acusação é de um professor de matemática que ficou conhecido em todo o Brasil pelo pseudônimo de Malba Tahan. Seu
livro mais conhecido, publicado na década de 1960, salvo engano, era
O Homem que Calculava, e eu o comprei em um sebo na Avenida Rangel
Pestana que “queimava” os livros da coleção a Cr$1. Era uma pechincha,
e quando obtive o livro de Malba Tahan cheguei ao Parque Dom Pedro
II, em pleno centrão de São Paulo, com as páginas iniciais da primeira
história lidas. Nunca mais me esqueci da história dos camelos e de como
um sábio beduíno deu seu camelo para promover uma divisão equânime
entre os pretendentes, e ainda sobraram dois camelos para ele. Esses árabes eram mesmo fabulosos matemáticos e eu já tinha aprendido que até
os algarismos arábicos haviam sido inventados por eles!!!
O fato é que para mim o tal do Malba Tahan deveria ser um beduíno
de tipo físico semelhante às pessoas que mercadejavam na região da Rua
25 de Março, em São Paulo. Foi justamente lá que conheci o sírio, ou turco – como todos eram chamados, inclusive os judeus –, Abdallah Aschar,
um bem-intencionado militante do Partido Comunista Brasileiro. Foi o
turco, ou sírio, que me disse que o genial autor de O Homem que Calculava,
que propunha problemas de aritmética e álgebra, era um criativo professor brasileiro, Julio César de Mello e Souza, carioca que cutucava os seus
pares afirmando que eles gostavam de complicar tudo. A verdade é que
fiquei um pouco decepcionado com o Malba Tahan que havia criado em
minha imaginação de menino de 14 anos; ele não tinha turbante, nem
camelos, nem vivia no deserto, nem fazia as orações dos crentes em Alá.
O homem era brasileiro, mas escrevia como se cada problema de matemática ou álgebra fosse um conto das Mil e Uma Noites, que também
tinham me fascinado.
Além de Malba Tahan, a matemática que aprendi se deveu à criatividade de alguns professores. Em compensação, não aprendi nada com
outros, e cheguei mesmo a desconfiar que um ou outro não sabia o que
ensinava – pretensão passageira de quem tomou várias notas vermelhas
na matéria. Depois, como professor de História, fui assistir às aulas de
matemática do professor do cursinho Objetivo de São Paulo, Olivaldo
Pereira, e me encantei quando ele me mostrou que matemática não era
aquele monte de cálculos e fórmulas que todos decoravam, e sim algo
mais intuitivo e belo.
Escrever fácil é difícil. Falar fácil também. Ensinar com boa didática muito
mais, pois exige que o professor saiba muito e seja capaz de decodificar em
função de seu público-alvo. Uma coisa é falar para os sábios da Academia de
Viena, outra, para alunos do curso fundamental da periferia.
Assim como O Homem que Calculava fez muita gente de diversas gerações ver a matemática com outros olhos, este livro dos professores da
USP, Carlos Eduardo Soares Gonçalves e Mauro Rodrigues, composto por
deliciosas crônicas que aplicam os conceitos da ciência econômica a diversas situações concretas, mostra ao leitor leigo que aprender sobre economia pode também ser algo divertido.
Heródoto Barbeiro
Escritor e jornalista da CBN e da TV Cultura
Bagdad, 19 da lua de Ramadã de 1321
Prólogo
N
osso objetivo ao mergulhar no desafio de escrever este livro foi
trazer ao conhecimento do público geral, sob a forma de uma
leitura leve e acessível, alguns resultados da pesquisa acadêmica
recente na área de Economia. Além disso, o livro tem também a finalidade de ensinar uma série de conceitos básicos da teoria econômica, empregando, para isso, exemplos inusitados do dia a dia.
Tratamos aqui dos mais diversos temas, muitos deles largamente dissociados dos assuntos abordados nos cadernos de economia dos jornais.
Queremos com isso: (i) mostrar a abrangência da lógica econômica e
como ela pode contribuir para o entendimento de diversos fenômenos
sociais, e (ii) transmitir uma variedade de conceitos econômicos de forma
divertida e agradável ao leitor.
Diferentemente de outros trabalhos com objetivo similar, estruturamos nosso livro em forma de textos curtos e autocontidos, que podem ser
saboreados pelo leitor em qualquer ordem.
Sumário
As maiores bilheterias do cinema . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .1
A herança maldita da escravidão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .7
Harry Potter e o preço da passagem de avião . . . . . . . . . . . . . . .13
Dos mosquitos ao desenvolvimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .16
Nosso amigo, o especulador . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .22
Adam Smith e os benefícios da globalização . . . . . . . . . . . . . . . .26
A hecatombe financeira de 2008 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .31
Rins à venda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .37
Diplomatas e índios peruanos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .43
Mais comércio, menos países . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .50
1688 e 1904: o impacto sobre as taxas de juros . . . . . . . . . . . . . .53
O ovo e a galinha na economia do crime . . . . . . . . . . . . . . . . . .59
O contrabando a serviço da sociedade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .64
Incentivos ao futebol arte? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .72
Deuses da chuva e da guerra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .77
A feia fumaça que sobe apagando as estrelas . . . . . . . . . . . . . . .82
Racionalidade individual e irracionalidade coletiva. . . . . . . . . . .90
A privatização dos rinocerontes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .93
O outro lado das epidemias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .98
Malleus Maleficarum . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .102
Max Weber versus Martinho Lutero . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .107
Beleza importa? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .113
Vermes e armas: benefícios e custos sociais . . . . . . . . . . . . . . . .117
Celebridades . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .120
O custo do tempo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .125
Impactos escondidos do 11/9 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .129
A vida e a morte do dragão inflacionário . . . . . . . . . . . . . . . . .131
Dr. Fantástico e a crise financeira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .138
Felizes para sempre? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .142
Ligações perigosas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .147
Grandes salários – I . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .152
Grandes salários – II . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .155
A proliferação dos cursos de MBA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .159
Frentistas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .164
Sobre filas e cambistas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .168
O fim dos CDs? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .174
Vinhos, pipocas e passagens aéreas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .179
O DNA destruidor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .182
Remédios para quem? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .187
QWERTY . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .193
Nas bordas da racionalidade econômica . . . . . . . . . . . . . . . . . .199
A maldição do vencedor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .207
Parece, mas não é . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .213
Corrupção . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .218
Terroristas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .224
Marcas de cerveja e número de candidatos . . . . . . . . . . . . . . . .230
Rins à venda
N
a teoria econômica, lugar proeminente é atribuído à importância
das trocas. As trocas permitem que as pessoas se especializem na
produção de alguns poucos bens e serviços, vendam-nos no mercado e, com o dinheiro recebido, comprem uma miríade de outros bens
que elas mesmas não produzem. Além disso, a possibilidade de trocar
faz com que os bens na economia terminem nas mãos das pessoas que
lhes atribuem maior valor. Se Carlos Eduardo, que não liga muito para
futebol, acha um ingresso para um jogo do Corinthians na calçada, ele
vende-o para Mauro por um preço menor que o cobrado no guichê. Ambos saem ganhando e, não menos importante, o ingresso termina na mão
de quem o valoriza mais, o fanático Mauro.
Trocas não impostas por força ou coerção são ditas eficientes porque necessariamente beneficiam ambos os lados da barganha: quem vende e quem
compra. Esse resultado é quase óbvio, apesar de muitas vezes não ser bem
recebido entre os não economistas. Veja que se dada troca não fosse mutuamente benéfica, ela deixaria de ocorrer, já que ao menos uma das partes não
toparia a transação. O problema é que algumas trocas são tão assimétricas
que ferem nosso senso de justiça. Ficamos revoltados, por exemplo, quando
um trabalhador em uma vila pobre da Índia vende 14 horas diárias de sua
força de trabalho em troca de um salário pífio de poucos dólares. Mas, apesar
disso, a verdade é que essa troca o beneficiou, pois, apesar de muito ruim, era
provavelmente a melhor opção disponível no momento.1
1
O ideal para mudar esse quadro lamentável é ampliar as possibilidades de escolha dos
pobres, o que pode ser alcançado, por exemplo, ao melhorar sua qualificação profissional.
Rins à venda
37
O teorema sobre a eficiência das trocas não se restringe a transações
de natureza puramente econômica – por exemplo, a troca de um carro
por dinheiro. Ele se aplica também a outros mercados, como o polêmico
mercado de órgãos humanos.
Cerca de 30 mil brasileiros fazem parte de listas de espera por transplantes de rins. Entretanto, o número de transplantes efetivamente realizados é bem menor: apenas 3.397 no ano de 2007, por exemplo.2 A fila
é longa: espera-se, em média, 5,5 anos por um rim – período no qual um
paciente com insuficiência renal crônica deve se sujeitar a um penoso
tratamento de hemodiálise.
Filas quase sempre refletem um descompasso entre demanda e oferta.
Nesse caso, não há rins suficientes para atender a todos que precisam
de um transplante. A escassez de oferta de órgãos não é exclusividade
tupiniquim: no Reino Unido, uma pessoa espera em média 2 anos por
um rim; nos Estados Unidos, entre 3 e 5 anos,3 ou seja, mesmo em países
desenvolvidos, conseguir um rim em bom estado não é nada fácil. Em
face disso, pergunta-se: Por que então não existe um mercado de rins
funcionando eficientemente?
Veja o leitor que transplantes de rins possuem uma particularidade interessante que os diferencia de outros tipos de transplantes: o órgão pode
ser doado por pessoas ainda vivas. Isso porque o doador pode levar uma
vida praticamente normal com apenas um rim (o maior risco da doação é
o da operação). Essa peculiaridade deveria facilitar a vida de pessoas que
precisam de transplantes, mas a realidade é, como vimos anteriormente,
bem menos alentadora.
Um dos problemas é que encontrar uma pessoa saudável e disposta a
doar um rim (normalmente um grande amigo ou membro da família do
doente) não garante que o transplante possa ser efetivamente concluído. Em particular, para reduzir ao máximo a probabilidade de rejeição
do órgão transplantado, paciente e doador devem ter tipos sanguíneos e
tecidos compatíveis.
2
Dados da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos: <http://www.abto.org.br>.
Ver Marinho, A.; Cardoso, S.S. e Almeida, V.V. (2007). “Os Transplantes de Órgãos
nos Estados Brasileiros”. IPEA, Texto para discussão n. 1317, Tabela 1. Os dados para
Brasil dizem respeito ao ano de 2003, para transplantes realizados dentro do Sistema
Único de Saúde (SUS). Os dados para os Estados Unidos referem-se aos anos de 2001
e 2002. Para o Reino Unido, consideram-se apenas adultos, no período 1999-2002.
3
38
S O B A L UP A DO ECONOMIST A
Assim, o número de transplantes é baixo por dois motivos: (i) o grupo de pessoas próximas ao doente, dentre as quais poderia aparecer um
doador, é reduzido, e (ii) há uma chance nada desprezível de que o bom
samaritano desse pequeno círculo possua tipo sanguíneo ou tecidos incompatíveis com os do doente.
Dado que existe uma enorme demanda por rins não atendida, e que
as pessoas podem levar a vida com apenas um rim, há, no mínimo, um
grande potencial para o surgimento de um mercado formal e impessoal
no qual esses órgãos seriam transacionados entre pessoas que sequer se
conhecem. Como ninguém seria obrigado a vender seu rim, nesse mercado só ofertariam órgãos aqueles cujo benefício da venda – o dinheiro
recebido – fosse maior do que o custo de passar por uma operação e ter
que viver com um só rim. Uma pessoa de baixa renda, por exemplo, poderia se beneficiar da venda de seu rim, usando o dinheiro para outras
finalidades de grande emergência.4
No entanto, esse mercado, ou melhor, um mercado legal de rins, não
existe. A legislação brasileira, assim como a da maioria dos países do mundo, proíbe a comercialização de órgãos humanos em troca de montantes
monetários. Dessa forma, na ausência de um doador compatível pertencente a seu círculo de amigos e familiares próximos, restará ao paciente
entrar na fila e esperar por um doador falecido ou tentar sua sorte no
mercado negro de órgãos.
Como essa situação mudaria se nossos rins pudessem ser negociados
como bananas, em um mercado legal?
Consideremos um exemplo hipotético. Um indivíduo X, cujo sangue
é do tipo A, necessita de um transplante. Seu irmão, o indivíduo Y, está
disposto a lhe doar um rim, porém possui sangue do tipo B, o que os torna incompatíveis e impossibilita a operação. A presença de um mercado
impessoal bem organizado alteraria completamente esse quadro, mesmo
não tendo a família dinheiro em caixa para comprar um rim. Isso porque
Y poderia vender seu rim no mercado para outro doente com tipo sanguíneo compatível – no caso, tipo B ou O5 – e, com os fundos levantados
4
Proibir alguém de vender seu rim sob o argumento de que o vendedor não sabe o que está
fazendo é menosprezar a compreensão das pessoas sobre os custos e benefícios de tal
ação.
5 Com um amplo mercado de rins operando legalmente, não seria nada difícil encontrar tal comprador.
Rins à venda
39
nessa transação, a família teria condições de comprar o rim de uma terceira pessoa, compatível com as características do indivíduo X (ou seja,
alguém que possua sangue do tipo A ou AB).
Esse exemplo simples ilustra a perda de bem-estar associada à proibição do comércio de rins, principalmente para os pacientes que necessitam
de transplantes. No caso esboçado, dois transplantes deixariam de ser realizados por conta da ilegalidade da operação. Ressalte-se que as alternativas para o paciente, quando essa troca é proibida, não são muito alentadoras: sofrer com a longa e dolorosa espera por um doador póstumo
ou recorrer ao arriscado mercado negro. Em particular, a alternativa do
mercado negro é bastante complicada por dois motivos. Primeiro porque
bons médicos raramente se dispõem a arriscar suas reputações realizando
cirurgias ilegais. Segundo porque o paciente terá enormes dificuldades
para recorrer à Justiça caso o rim comprado seja de má qualidade ou
ocorra erro ou negligência médica na operação, uma vez que tudo se
passa na ilegalidade.
Apesar dos argumentos levantados, a maioria das pessoas – e nós não
somos exceções – vê a possibilidade de comprar ou vender órgãos em
transações monetárias como algo repugnante e até mesmo antiético. Rins
não são bens como carros ou bananas, convenhamos. Cremos que essa
aversão ao comércio monetário de órgãos não deve ser desconsiderada
em nome da eficiência associada à existência de tal mercado. Se acreditarmos que as leis de um país refletem de alguma forma as opiniões de
seus cidadãos, a proibição ao comércio de rins indica que a sociedade
prefere pagar o custo do sofrimento de pacientes que necessitam de transplantes, a ter que conviver com o horror de colocar preços monetários em
órgãos humanos.6
Não é possível, portanto, passar julgamento de valor a respeito da proibição, e a nós, economistas, cabe apenas indicar que a proibição tem também custos importantes.
Entretanto, as trocas, principal fator gerador de ganhos de bem-estar
socioeconômico, nem sempre precisam ser realizadas via pagamentos
6
Outros bens e serviços – por exemplo, drogas, serviços sexuais e jogos de azar – sofrem proibições semelhantes à sua comercialização. Para uma discussão sobre o impacto da repugnância sobre o funcionamento dos mercados, ver Roth, A.E. (2007).
“Repugnance as a Constraint on Markets”. Journal of Economic Perspectives 21: 37-58.
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S O B A L UP A DO ECONOMIST A
monetários diretos. De fato, no caso dos transplantes, há uma alternativa
interessante que recentemente vem ganhando popularidade, pois permite que se troquem rins sem que para isso sejam necessários desembolsos
monetários. A ideia consiste em impulsionar os transplantes por meio de
um mecanismo de trocas diretas de rins, intermediadas por uma instituição central em que são cadastrados pacientes e potenciais doadores. A
lógica é que, para participar, uma pessoa com doença renal crônica não
precisa trazer dinheiro, mas sim alguém disposto a doar um rim.7
Para facilitar a exposição do funcionamento desse mercado não monetário, voltemos ao nosso exemplo com o paciente X (com sangue do tipo
A) e o potencial doador, seu familiar ou amigo Y (de tipo sanguíneo B).
Basicamente, o que a central de cadastro faz é buscar, dentro de seu
vasto banco de dados, outro par “paciente-doador” compatível com o primeiro, permitindo assim a ocorrência de dois transplantes de órgãos: uma
verdadeira troca de rim por rim. Por exemplo, encontra-se um paciente
W, com tipo sanguíneo B, cujo doador, seu primo Z, possui tipo sanguíneo A. Apesar de cada par – X e Y; W e Z – ser composto por indivíduos
incompatíveis entre si, o sistema garante que haja compatibilidade entre
pares, possibilitando a realização de dois transplantes: Z doará seu rim
para o desconhecido X, enquanto Y doará seu rim para o desconhecido
W.8 Quanto maior o número de participantes no banco de dados, melhores as chances desse arranjo funcionar.9
O esquema ainda requer que ambos os transplantes sejam realizados
ao mesmo tempo para minimizar o risco de que o primeiro a receber o
rim não cumpra sua parte na troca. Por exemplo, se o paciente X recebesse o transplante primeiro, o indivíduo Y poderia posteriormente se
7
Note que o par é, necessariamente, de pessoas incompatíveis. Caso contrário, elas
fariam o transplante entre si e não precisariam, assim, participar desse esquema.
8
Os indivíduos devem ser compatíveis com relação a tipo sanguíneo e tecidos. Para
simplificar o argumento, estamos supondo que apenas a compatibilidade no tipo sanguíneo é relevante para determinar a possibilidade de um transplante de rim.
9
Nos Estados Unidos, diversas associações se desenvolveram nos últimos anos
para organizar esquemas do tipo. Para mais detalhes, veja <http://www.paireddonation.org> e <http://www.paireddonationnetwork.org>. O trabalho conjunto de
médicos e economistas foi instrumental para o estabelecimento do grupo da região norte-americana de New England. Ver <http://www.nepke.org>. Para a literatura na área de Economia, veja <http://kuznets.fas.harvard.edu/~aroth/alroth.
html#KidneyExchange>.
Rins à venda
41
recusar a doar seu rim para o paciente W. Dessa forma, o par X-Y sairia
ganhando, pois X conseguiria um rim saudável sem que Y precisasse se
sujeitar a uma cirurgia. Essa possibilidade de trapaça pode afetar adversamente os incentivos das pessoas a participarem do esquema, colocando-o
em risco. A simultaneidade das cirurgias impede que isso ocorra.
Note que, nesse novo modelo, há troca de órgãos entre pessoas que
não possuem necessariamente uma relação familiar ou afetiva, da mesma
forma que ocorreria no caso do mercado monetário de rins.10 A diferença
fundamental é que não há contrapartida de dinheiro, o que torna a transação socialmente aceitável. Colhem-se os ganhos das trocas de mercado
sem se ferir a ética.
No momento em que este texto foi finalizado, esse arranjo ainda não
havia chegado ao Brasil. O que estamos esperando?
10
A vantagem das trocas impessoais é que elas permitem uma expansão da escala do
mercado – afinal de contas, há muito mais pessoas no mundo do que nosso círculo
de amizades.
42
S O B A L UP A DO ECONOMIST A
Racionalidade individual e
irracionalidade coletiva
O
exemplo vem do Prêmio Nobel Thomas Schelling, mas a cena
é conhecida: o trânsito começa a parar e as pessoas a pôr as cabeças para fora da janela. Alguns metros à frente, um acidente
bloqueia a pista da mão contrária, mas o engarrafamento na pista “livre”
é tão grande quanto o da pista bloqueada. Isso porque quase todo mundo
diminui a velocidade para olhar de perto o carro capotado a poucos metros. O interessante é que cada curioso bisbilhota a visão do automóvel
acidentado por meros 5 segundos, mas por conta dessa atitude, cada um
na fila se atrasa cerca de 30 minutos.
Trinta minutos perdidos no trânsito é tempo demais, mesmo para os
muito curiosos. Assim, seria claramente melhor para todos se menos gente parasse para olhar. Mas ponha-se no lugar de quem está exatamente
ao lado do carro capotado e já esperou na fila por mais de 29 minutos.
Para ele, reduzir a velocidade agora custa apenas 5 segundos de atraso
– os minutos perdidos não podem ser recuperados. Por que então não
saciar a curiosidade mórbida, dado que o custo dessa ação reflete-se em
quem está atrás na fila, um desconhecido qualquer?
Sob o ponto de vista individual, parar para bisbilhotar é a decisão racional e egoísta de quem já chegou à cena do acidente. Todavia, com
todos pensando assim, o resultado final é um atraso de 30 minutos para
cada um. Ou seja, a consequência da racionalidade individual é algo que
podemos chamar de irracionalidade coletiva. Todos perdem e, ainda assim, é impossível evitar o resultado indesejado. Nesse caso, o “livre mer90
S O B A L UP A DO ECONOMIST A
cado” (pessoas escolhendo o que é melhor para elas) não é suficiente para
equacionar a questão.
Uma maneira fácil de resolver o imbróglio é estabelecer uma multa
para os curiosos de plantão: por exemplo, reduziu a velocidade e atrapalhou a vida dos outros, R$50 de infração. Com esse arranjo, a sociedade
estaria melhor porque, agora, atrasar a vida de quem vem depois tem
custos bem concretos.
Veja que é possível que, ainda assim, algumas pessoas continuassem
parando para tirar uma foto do acidente, pagando, para isso, R$50 de
multa. Mas isso não seria algo ruim ou uma falha da solução via multa.
Por que não? Porque reduzir a velocidade para ver o acidente vale mais
que R$50 para um dado cidadão, então é de fato eficiente que esse curioso insaciável atrase um pouquinho o trânsito dos que vêm atrás. Afinal
de contas, o bem-estar do curioso também deve ser levado em conta no
cômputo do bem-estar da sociedade. Além disso, ele está pagando pela
inconveniência gerada.
O fato é que sem a lei que multa quem desacelera, atrapalhar os outros tem custo zero. A custo zero, ser curioso é muito fácil, gerando uma
enormidade de curiosos.
Das ruas para os lares, por que a conta de água nos apartamentos é, em
geral, mais alta que nas casas? Pelo mesmo fenômeno de irracionalidade
coletiva descrito anteriormente. Que incentivos tem um morador de um
prédio, onde a água está incluída no valor do condomínio, a reduzir o
tempo de seu prazeroso banho quente se, assim procedendo, ele não se
apropria plenamente de sua economia?
De fato, ao consumir menos água, o morador do prédio faz um favor
a todos. Contudo, ele mesmo ganha pouco com isso. O motivo é simples:
sua economia, que vem ao custo de algum sacrifício pessoal, é repartida
– em termos de conta de água coletiva menor – entre todos os outros moradores. Claramente, essa partilha de benefícios afeta adversamente seus
incentivos a fazer sacrifícios, coisa que não ocorre nas casas, onde a conta
reflete tão somente seus próprios hábitos.
O pior é que mesmo que todos os outros moradores do prédio estejam
tomando banhos curtos, o melhor sob o ponto de vista individual continua a ser banhar-se à vontade, pois a conta mais gorda não recai sobre
quem a gera exclusivamente; ela é dividida entre todos os condôminos.
Com todos raciocinando assim, o desperdício no chuveiro torna-se praxe
Racionalidade individual e irracionalidade coletiva
91
difundida e uma bela conta de água bate à porta de todos no final do mês.
Os poucos que, por altruísmo ou consciência, se sacrificaram em nome do
bem comum, ficarão provavelmente tão revoltados com a fatura que, no
próximo mês, passarão a escovar os dentes com a torneira aberta.
Há, felizmente, uma solução fácil para o problema do consumo excessivo de água nos prédios: basta individualizar as contas, tornando os
prédios similares às casas nesse quesito.
Já sabe agora o leitor por que a conta do bar nas reuniões dos amigos
da faculdade no fim de ano é sempre tão salgada? Nesses eventos, ninguém tem incentivos a conter suas demandas de uísque e camarão, visto
que os custos são repartidos sempre entre todos. O triste é que essa racionalidade individual leva, no fim da noite, ao desespero coletivo e até mesmo a eventuais celeumas. Melhor então é evitar problemas, agendando o
encontro do próximo ano em um bar com comandas individualizadas.
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S O B A L UP A DO ECONOMIST A
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