INFLAMAÇÃO SEROSA DO MIOCÁRDIO 85 INFLAMAÇÃO SEROSA DO MIOCÁRDIO NO HIPERTIREOIDISMO Ulisses Lemos Torres (*) São Paulo A perturbação do aparelho cardiovascular conseqüente à hiperfunção tireoidiana é de há muito conhecida. A cura do hipertireoidismo, fazendo desaparecer as modificações cardiovasculares, nos demonstra existir íntima sujeição dos distúrbios cardíacos à hiperfunção da tiréoide. Muitas dúvidas perduram, no entanto, quanto à interpretação dessa relação. As opiniões controversas podem ser filiadas a duas escolas: - uma, que acredita não ter o hormônio tireoidiano influência direta sôbre o aparelho cardiovascular. Crêem serem as modificações apenas dependentes de um estado de sobrecarga cardíaca, uma atividade metabólica e excitabilidade nervosa exageradas. Outra, defende que a tireotoxicose determina danos diretos sôbre a fibra cardíaca, ocasionando distúrbios que se agravam pela sobrecarga cardíaca. Fahr 1 descreveu um quadro anátomo-patológico cardíaco com modificações do tipo degenerativo no hipertireoidismo: “Pigmentação marrom dada pela lipofucxina. Notável aumento nãouniforme dos interstícios por um edema seroso, com freqüente acúmulo de células redondas (infiltração parvicelular pouco acentuada) e alteração das trabéculas musculares.” A fragmentação e esgarçamento da fibra cardíaca é de tal ordem que Fahr se refere a esmigalhamento das fibras musculares (müskelzebrockelungen.) Além dessas alterações são observadas aqui e ali pequenas zonas de hemorragia e fibrose. A infiltração edematosa imprime à superfície de corte do miocárdio um aspecto luzidio de brilho vítreo. E a grande quantidade de lupofucxina dá-lhe coloração castanha (daí a denominação, dada por Fahr, de “marrom vítreo”.) Essas alterações degenerativas do miocárdio são de tal maneira típicas para Fahr, que êle hesitou em atribuí-las à hiperfunção tireoidiana, verificada histopatològicamente em 3 casos, nos quais o diag(*) Docente de Clínica Médica. Chefe de Clínica Endocrinológica do Hospital Municipal. 86 ARQUIVOS BRASILEIROS DE CARDIOLOGIA nóstico clínico havia sido de endocardite em um e, nos dois outros, de miocardite. Em dois de nossos pacientes de hipertireoidismo, falecidos em plena crise tireotóxica post-operatória, pudemos verificar à mesa de autópsia, juntamente com o Prof. Buengeler, as alterações cardíacas, descritas por Fahr. (Fig. 1 e 2) Fig. 1 O primeiro paciente era portador de bócio nodular tóxico. O quadro histopatológico do coração revelou: - dissociação do mais alto grau das fibras musculares por intenso edema intersticial difuso, mais acentuado em volta dos vasos grandes que ficaram situados dentro de grandes espaços claros, cheios de líquido albuminoso. Nesse edema havia sòmente pequenas infiltrações leucocitárias difusas, e aglomerações linfocíticas focais. As próprias fibras musculares se apresentam com núcleos hipertrofiados e afrouxados, mostrando o protoplasma uma ligeira infiltração gordurosa. Portanto, o quadro da miocardite serosa aguda microgoticular. Fig. 1) No segundo paciente, que o exame histopatológico da peça operatória confirmou tratar-se de um extruma basedowiano típico, o miocárdio ostentava intenso edema com o exsudato transformado parcialmente em tecido esclerosado e alta dissociação das fibras musculares com alterações degenerativas (miocardite serosa subaguda.) (Fig. 2) INFLAMAÇÃO SEROSA DO MIOCÁRDIO 87 Êsses dois casos se apresentavam com quadro anátomo-patológico da inflamação serosa generalizada de Rössle, na sua forma letal, descrita por Henrich 2 . O “primo movens” das alterações parenquimatosas reside na perturbação da permeabilidade dos vasos. Na concepção de Schurmann e Mac-Mahon 3 , o endotélio constitui uma verdadeira barreira entre o sangue e o parênquima, entendendo por parênquima, tudo que o endotélio separa do líquido sangüíneo. Fatos experimentais e clínicos provaram que no sangue existe um fator lesivo ao tecido, e, Fig. 2 no tecido, um agente tóxico para o sangue. Pedaços de órgãos se conservam muito mais tempo no sôro artificial mas logo se necrosam quando imersos no plasma. È justamente na zona marginal, em contato com o sangue, que se iniciam os fenômenos de degeneração e destruição, nos casos de infarto. Em volta do fio de sutura no fígado forma-se necrose em manguito (chamado pelos cirurgiões de fio de sutura secundário.) Conforme o grau da alteração da permeabilidade do endotélio, o líquido estravazado estaria, na sua composição, mais próximo do humor tissular ou do plasma sangüíneo. As alterações tissulares não dependem tanto da quantidade do exsudato, mas sim, da sua qualidade. Uma pequena alteração deixaria passar líquido pobre em albuminas, portanto, de pequenas moléculas, igual ou muito parecido com o humor tissular, capaz de ser reabsorvido sem deixar vestígios. Quando 88 ARQUIVOS BRASILEIROS DE CARDIOLOGIA das moléculas, determinando no parênquima lesões degenerativas do tipo que descrevemos, com ulterior transformação em tecido fibroso cicatricial. A maneira pela qual o tecido fibroso se desenvolve parece ligar-se a um fenômeno existente entre os fibroblastos e o sôro. A êsse fenômeno Letterer chamou de “ação de vizinhança” e Spemann, de “indução”. Doljansky e Roulet, por meio de culturas de tecido, mostraram que as fibrilas se formam longe dos fibroblastos, isto é, na substância fundamental que, no caso, é constituída pelo meio de cultura. Em outras experiências verificaram que a formação de fibras colágenas se pode processar até em plasma isento de células, apenas pela ação a distância dessas mesmas células. Eis como, partindo de um edema seroso intersticial, pode o parênquima desaparecer e ser substituído por um tecido fibroso cicatricial. Êsse fato foi bem demonstrado por Rössle 4 no fígado e no coração do hipertireoidiano, onde êle fala de uma miosclerose miocárdica ou miocardite fibroblástica. No segundo caso que apresentamos vemos o comêço da instalação dêsse processo fibrótico. A inflamação serosa não é um fenômeno patognomônico do hipertireoidismo. Ela pode se instalar quer na forma generalizada, ou localizada em diversos estados infecciosos ou tóxicos; pneumonia escarlatina, tifo, intoxicações alimentares, derivados halílicos da histamina e formas graves da moléstia do sôro, queimaduras, beribéri e, pelo que temos visto, cremos que se pode incluir a miocardite chagásica. Sòmente verifica-se nessas diversas causas certa preferência alguns órgãos. Assim, as alterações principais se processam preferentemente no tubo digestivo e fígado, na intoxicação histamínica. No beribéri, no coração e fígado. No “ basedow”, Röessle 5 demonstrou de maneira enequívoca a preferência pelo fígado, e Fahr, Röessle e Henrich, pelo coração. Os casos que apresentamos, de pacientes falecidos em crise tiretóxica, demonstram a possibilidade de o hipertireoidismo lesar o miocárdio e dar origem a um quadro de miocardite fibroblástica. Com referência à miocardite chagásica, ontem aqui ventilada, deixamos para dar a nossa impressão hoje, quando projetamos microfotografias que lembram muito de perto as alterações do miocárdio observadas no Chagas. É fato que traz admiração encontrarmos modificações miocárdicas extensas e difusas enquanto o parasita é difìcilmente ou mesmo não encontrado, o que justifica pensar-se em existir dois fenômenos: um, a perturbação localizada dada pela presença do parasito, e outro, de maior importância, os sinais difusos da alteração do miocárdio. Na moléstia de Chagas se processa fenômeno de sensibilização, tanto que, para diagnosticá-la, existe uma reação de fixação de com- INFLAMAÇÃO SEROSA DO MIOCÁRDIO 89 plemento. Ontem o Prof. Pondé fêz referência a experiências muito interessantes realizadas em Manguinhos, que falam em favor da exisque o endotélio constitui porção do sistema retículo endotelial, segundo Schurmann, e que como tal deve tomar parte nas reações do tipo antigenoanticorpo, e tendo-se presente o que demonstrou Masugi, ser o endotélio o local de ação das substâncias citotóxicas, geradas nas perturbações hiperérgicas, teríamos a chave da explicação da inflamação do miocárdio e do subseqüente desenvolvimento de fibrose. REFERÊNCIAS 1. 2. 3. 4. 5. Fahr, Th.: Die Diagnose des Morbus Basedow auf dem Sektionstisch, Deutsche Medizinische Wochenschrift 68:821 (jan.) 1938. Henrich: Über eine letale Form der serösen Entzündung, Deustche Medizinische Wochenschrift 14-368-372. 1941. Schürmann, P. e Mac Mahom: Die Dysorie bei der malignem Nephrosklerose, Virchow’s Archiv. Band. 29:188-195, 1933. Rössle, R.: Über wenig beachtete Formen der Entzündung von Parenchymen und Beziechung zu Organsklerosen, Verh. deusche path. Geas Rostock, 1943. Gehalten in. Rostock 22:152 (mai) 1934. Rössle, R.: Über die Veranderungen der Leber bei der Basedowchen Klankheit und ihre Bedeuntung für die. Entstehung anderer Organsklerosen, Virchow’s Archiv. 291; 1933.