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Curso de Especialização em Saúde Pública - 2010
Transformações históricas e conceituais na questão social e na saúde
– uma abordagem preliminar
Daline Lopes Côrtes
Rio de Janeiro
2011
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FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ - FIOCRUZ
ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA SÉRGIO AROUCA - ENSP
CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM SAÚDE PÚBLICA - 2010
Transformações históricas e conceituais na questão social e na saúde
– uma abordagem preliminar
Daline Lopes Côrtes
Trabalho monográfico apresentado à Escola Nacional de Saúde
Pública Sergio Arouca, como parte dos requisitos necessários para a
obtenção do título de Sanitarista.
Orientadora: Profª. Drª. Virginia Fontes
Rio de Janeiro
2011
1
DEDICATÓRIA
Á minha família amada que sempre me apoia e fornece a estrutura para minha caminhada. Aos muitos
amigos novos e velhos que contribuiram para a construção de conhecimentos. Á todos que passaram
pela minha vida fortalecendo minhas convicções e desconstruindo meus preconceitos.
2
AGRADECIMENTOS
Um trabalho é sempre um processo de construção coletiva, nunca estive sozinha ao
escrever as linhas dessa monografia e por isso agradeço a todos que fizeram parte desse
processo.
Agradeço a minha família que soube respeitar a minha necessidade de estudar e não
cobrou mais do que eu pude oferecer, aceitando a atenção limitada no pouco tempo que
restava entre trabalho e monografia.
Todo processo de construção envolve sofrimento, frustração, decepção, alegria, alivio,
realização, ou seja, um verdadeiro mix de sentimentos conflitantes e que se completam ao
fim. Esse trabalho não foi diferente e eu pude viver esse mix de sentimentos em toda a sua
intensidade e plenitude, além de gestar um feto que pela falta de tempo acabou por nascer
prematuro, mas considero que o transfiro para uma incubadora onde, quem sabe, ele poderá
amadurecer em outros projetos. Agradeço assim a possibilidade de poder desenvolvê-lo nesse
momento.
Agradeço em especial a atenção, carinho e dedicação que recebi da Virginia. Muito
Obrigada por me aceitar como orientanda e tornar esse trabalho possível!
3
Elogio da Dialética
A injustiça passeia pelas ruas com passos seguros.
Os dominadores se estabelecem por dez mil anos.
Só a força os garante.
Tudo ficará como está.
Nenhuma voz se levanta além da voz dos dominadores.
No mercado da exploração se diz em voz alta:
Agora acaba de começar:
E entre os oprimidos muitos dizem:
Não se realizará jamais o que queremos!
O que ainda vive não diga: jamais!
O seguro não é seguro. Como está não ficará.
Quando os dominadores falarem
falarão também os dominados.
Quem se atreve a dizer: jamais?
De quem depende a continuação desse domínio?
De quem depende a sua destruição?
Igualmente de nós.
Os caídos que se levantem!
Os que estão perdidos que lutem!
Quem reconhece a situação como pode calar-se?
Os vencidos de agora serão os vencedores de amanhã.
E o "hoje" nascerá do "jamais".
Bertolt Brecht
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RESUMO
Este trabalho trata do processo de transformações históricas e conceituais na questão
social e na saúde do Estado do Rio de Janeiro, traçando uma análise das questões
determinantes deste que perpassam pela terceirização de serviços e precarização da força de
trabalho.
O texto está organizado em dois capítulos em que buscamos apresentar: a saúde como
setor de interesse da acumulação do capital; a concepção de Estado que utilizamos; as
políticas sociais e a questão social; um histórico da política de saúde brasileira; as fundações
estatais; a dicotomia existente entre público e privado; as legislações aprovadas, a atual
conjuntura política da saúde e as licitações que vem colocando à venda a saúde do Estado do
Rio de Janeiro.
Palavras Chaves: Política social, Questão Social, Saúde e Estado.
5
ABSTRACT
This paper discusses the process of conceptual and historical transformations in the
social and health on the State of Rio de Janeiro, outlining an analysis of the issues that
pervade the determinants of outsourcing services and deterioration of the labor force.
The text is organized into two chapters in which we present: the health sector as the
interest of capital accumulation and the concept of State that we use, social politics and social
issues, a history of Brazilian health policy, state foundations, the dichotomy between public
and private, the approved legislation, the current politic situation of health and the licitations
that sell the health of the State of Rio de Janeiro.
Keywords: Social Policy, Social Issues, Health and State.
6
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...............................................................................................08
1.
POLÍTICA
DE
SAÚDE
NO
BRASIL
-
BREVE
RESGATE
HISTÓRICO............................................................................................................................11
1.1.
Questão Social e Saúde....................................................................................16
1.2.
Do
Estado
do
Bem
Estar
Social
ao
Neoliberalismo.........................................................................................................................23
2.
PRIVATIZAÇÃO E TERCEIRIZAÇÃO DA SAÚDE - O CASO DO
ESTADO DO RIO DE JANEIRO.........................................................................................31
2.1.
Fundações Estatais: privadas ou públicas?...................................................32
2.2.
Fundações Estatais: legislações aprovadas na saúde do Estado do Rio de
Janeiro......................................................................................................................................34
2.3.
Saúde Pública no Estado do Rio de Janeiro..................................................37
2.4.
Licitações: Venda da Saúde do Estado do Rio de Janeiro...........................39
3.
CONCLUSÃO..................................................................................................44
BIBLIOGRAFIA.............................................................................................47
7
INTRODUÇÃO:
Por meio de minha atuação profissional vivencio uma grande desresponsabilização do
Estado com a entrada das organizações sociais na gestão dos recursos humanos da saúde
pública, acompanhada de uma ampla terceirização e mercantilização dessa política com a
existência de empresas privadas dentro do aparato publico como laboratórios, clinicas de
imagens e empresas terceirizadas de limpeza, segurança e administração. Verifica-se com
essas estratégias de gestão apresentadas acima que atualmente o neoliberalismo vem
alcançando grandes avanços na política de saúde do Rio de Janeiro, com uma constante
transferência da responsabilidade do Estado para entidades aparentemente filantrópicas (sem
fins lucrativos), mas que atuam como verdadeiras empresas de gerenciamento de serviços e de
mão de obra. Esse procedimento procura se justificar utilizando-se da categoria de sociedade
civil, mas apenas encobre um processo extensivo de privatizações.
Estudamos o processo histórico da saúde no Estado do Rio de Janeiro, nas suas
dinâmicas política e econômica. Este largo processo não diz respeito somente às múltiplas
formas de precarização do contrato da força de trabalho; refere-se também à transferência de
patrimônio público para empresas privadas, à flexibilização pelo Estado nas prestações de
contas das empresas privadas com acesso ao fundo público, aos processos de facilitação de
licitações para empresas privadas que controlam o aparato estatal e disponibilizam recursos
para campanhas de candidatos à estrutura do Estado nas suas mais diversas instâncias, entre
outras. Todavia, o que mais nos instiga são as múltiplas formas de contratação de
profissionais de saúde utilizadas pelo Estado e as conseqüências desta prática para o desmonte
da política de saúde pública. Os instrumentos privilegiados que utilizamos referem-se à
análise da legislação e dos contratos e convênios realizados pelo Estado do Rio de Janeiro
com as organizações sociais e empresas privadas atuantes no âmbito da saúde pública. Em
suma, objetivamos entender os processos de privatização e terceirização da saúde pública do
Estado do Rio de Janeiro a partir do exame de seus fundamentos legais.
Nossa necessidade de estudar este tema surgiu como uma demanda posta pela
realidade de nosso trabalho em uma Unidade de Pronto Atendimento Estadual que tem em seu
quadro profissional as mais diferenciadas formas de contratação: concursados militares,
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terceirizados, cooperativados e contratados pela via de Organizações Sociais. Ademais,
constatamos que no mesmo ambiente público abrigam-se empresas privadas contratadas pelo
Estado como os laboratórios de exames e o setor de nutrição. Outra questão interessante é que
a própria unidade em si (espaço físico e de equipamentos) é alugada de uma empresa privada
que, ao mesmo tempo, também realiza sua manutenção.
Netto (2001) pontua que o Estado, no capitalismo monopolista, atua como guardião
das condições externas da produção e na organização e dinâmica econômica, ou seja, suas
funções políticas estão intimamente ligadas com suas funções econômicas. Quando o autor
exemplifica as funções econômicas diretas e indiretas podemos observar que o Estado do Rio
de Janeiro vem cumprindo com suas “obrigações” com os grupos monopolistas ao realizar a
privatização e terceirização da saúde.
É interessante perceber que nesse momento do capitalismo o Estado passa a ser
responsável pela reprodução do capital dos grandes monopólios, tendo que financiá-los,
comprar os excedentes (para valorização), subsidiá-los etc. “O que se verifica é a integração
orgânica entre os aparatos privados dos monopólios e as instituições estatais.” (NETTO,
2001:22)
A partir dessa realidade em que público e privado estão tão entrelaçados as fronteiras
entre o público e o privado parecem ficar tão dissolvidas que se torna difícil visualizar
claramente uma separação entre as instâncias privada e estatal; no tocante à gestão da força de
trabalho há um agravamento das tensões, provocadas pelos múltiplos vínculos profissionais
que convivem num mesmo espaço onde trabalhadores com direitos e deveres diferentes
dividem as mesmas funções e fazem ruir a solidariedade e os vínculos do trabalho
conquistados nas décadas passadas quando a máxima - trabalho igual, salário igual – refletia a
luta dos trabalhadores. As dimensões que acabamos de pontuar exigem que entendamos os
mecanismos utilizados pelo Estado para tornar possível essa realidade em vigência em,
praticamente, todas as unidades de saúde sob a responsabilidade do Estado do Rio de Janeiro.
Um constante argumento governamental se baseia na ineficiência do Estado como
administrador e uma valorização da iniciativa privada em termos de eficiência, argumento que
vem fundamentando o convenio com as organizações sociais que se tornaram grandes
contratadoras de profissionais de saúde para atuar nas unidades estaduais e municipais.
Diante dessa realidade adversa para a efetivação de uma saúde pública de qualidade e
um constante desrespeito as conquistas da Reforma Sanitária presentes na Constituição
9
Federal de 1988, torna-se pertinente pensar as condições históricas que estão nos primórdios
dessa terceirização e os conceitos e categorias que nos permitem apreendê-la criticamente.
10
CAPITULO I: Política de Saúde no Brasil - Breve Resgate Histórico
Para pensar a política de saúde no Estado do Rio de Janeiro, necessitamos observá-la,
brevemente, em sua conformação mais totalizadora, no Brasil, pelo resgate de sua história.
Deve-se partir da compreensão de que a política de saúde brasileira sofreu as influências das
conjunturas políticas nas diferentes épocas e que, em nenhum momento, houve um modelo de
política social ideal e puro, havendo articulação de suas características em função dos
interesses daqueles que estavam no poder.
Segundo Bravo (2008), a intervenção estatal brasileira mais efetiva inicia-se no século
XX (década de 30). Reportando-nos ao século XVIII, vemos que a assistência médica era
pautada na filantropia e em práticas liberais. Já no século XIX, com as transformações
econômicas e políticas, algumas iniciativas surgiram no campo da saúde pública (vigilância
do exercício profissional e campanhas limitadas). Nos últimos anos daquele século, a saúde já
aparece como reivindicação do movimento operário.
(...) a Saúde emerge como “questão social” no Brasil no inicio do século XX, no
bojo da economia capitalista exportadora cafeeira, refletindo o avanço da divisão do
trabalho, ou seja, a emergência do trabalho assalariado. (BRAVO, 2008:90)
A primeira tentativa de extensão dos serviços de saúde por todo país data de 1923,
com a reforma Carlos Chagas. Tal reforma, consoante Bravo (2008), foi uma estratégia da
União de ampliação do poder nacional no interior da crise política em curso a partir de 1922,
desencadeada pelos tenentes.
No mesmo período (1923), encontramos a Lei Eloi Chaves, uma legislação precursora
de um sistema público de proteção social, que cria as Caixas de Aposentadorias e Pensões
(CAPs). As CAPs eram financiadas pelos empregados, pelos empregadores e pela União, mas
somente as grandes empresas tinham condição de mantê-las.
Segundo Yasbek (2010), na década de 1930 a questão social se inscreve no
pensamento dominante como legítima, por força da grande pressão da classe operária e do
seu ingresso no cenário político exigindo direitos. Naquele período de grande industrialização,
observamos uma redefinição do papel do Estado e o surgimento de políticas sociais em
resposta às reivindicações da classe operária.
11
Em 1930, são criados os Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs) seguindo a
lógica do seguro social e, ainda nesta década, vemos a consolidação das Leis do Trabalho, o
salário mínimo, a valorização da saúde do trabalhador e outras medidas de cunho social; todas
de cunho amplamente controlador e paternalista.
Yasbek (2010) pontua que o Estado brasileiro buscou pela via das políticas sociais e
seus benefícios manter a estabilidade, diminuir as desigualdades e garantir os direitos sociais,
mas cabe ressaltar que o Brasil não alcançou jamais a institucionalidade de um Estado de Bem
Estar Social. “Em síntese, o Estado brasileiro buscou administrar a questão social
desenvolvendo políticas e agências de poder estatal nos mais diversos setores da vida
nacional, privilegiando a via do Seguro Social” (YASBEK, 2010:10).
A política de saúde da década de 1930 a 1964 era de caráter nacional e estava
organizada em dois subsetores: saúde pública e medicina previdenciária. A saúde pública
relacionava-se com as condições sanitárias mínimas para as populações urbanas e com
algumas poucas para a zona rural. Foi predominante até a década de 1960. A medicina
previdenciária passou a ser predominante depois de 1966 e diz respeito ao acesso a serviços
de saúde aos trabalhadores assalariados.
Segundo Bravo (2008), as principais alternativas utilizadas na saúde pública no
período de 1930 a 1940 foram: ênfase nas campanhas sanitárias; coordenação dos serviços
estaduais de saúde dos estados de fraco poder político e econômico; interiorização das ações
para as áreas de endemias rurais (1937); criação dos serviços de combates às endemias;
reorganização do Departamento Nacional de Saúde (1941), o qual incorporou serviços de
combate a endemia e assumiu o controle de formação de técnicos em saúde pública.
Com a criação dos IAPs, a medicina previdenciária ampliou sua cobertura a um
número maior de categorias de assalariados urbanos. Isso foi, segundo Bravo (2008), uma
forma de antecipar as reivindicações destas categorias e evitar uma cobertura mais ampla.
Nos anos de 1930 a 1945, no Brasil vivenciamos um modelo de previdência de
orientação contencionista. A professora Bravo informa que nesse período passa-se a
preocupar-se mais com a acumulação de reservas financeiras do que com a ampla prestação
de serviços, chegando a ser definidos limites orçamentários máximos para despesas com
assistência médico-hospitalar e farmacêutica.
A Política Nacional de Saúde que se esboçava desde 1930 foi consolidada no período
de 1945 a 1950. A situação de saúde da população brasileira permanecia caótica nos anos que
12
se seguiram. De 1950 a 1964, não mudou o quadro de doenças infecciosas e parasitárias, as
elevadas taxas de morbidade e mortalidade infantil; a mortalidade geral continuava alta e a
expectativa de vida, baixa.
Bravo (2008) pontua que a partir dos anos 1950 a estrutura de atendimento hospitalar
privada com fins lucrativos estava montada e a corporação médica ligada aos interesses
capitalistas do setor pressionava o financiamento por meio do Estado. Mas essa privatização
não ocorreu antes de 1964, quando o regime que se instalou no Brasil adotou um modelo de
privilegiamento do produtor privado de saúde.
A ditadura significou, para a totalidade da sociedade brasileira, a afirmação de uma
tendência de desenvolvimento econômico-social e político que modelou um país
novo. Os grandes problemas estruturais não foram resolvidos, mas aprofundados,
tornando-se mais complexos e com uma dimensão ampla e dramática. (BRAVO,
2008:93)
Entre os anos de 1964 e 1974, a receita utilizada pelo Estado, em face da questão
social, era o binômio repressão-assistência. Em 1966, houve a junção dos IAPs, numa
unificação da Previdência social, segundo Bravo (2008), com duas características básicas: o
aumento do papel interventivo do Estado e a exclusão do papel dos trabalhadores na gestão da
previdência, mantendo-lhes apenas o papel de financiadores.
A medicalização da vida social foi imposta, tanto na Saúde Pública quanto na
Previdência Social. O setor saúde precisava assumir as características capitalistas,
com a incorporação das modificações tecnológicas ocorridas no exterior. A saúde
pública teve no período um declínio e a medicina previdenciária cresceu,
principalmente após a reestruturação do setor, em 1966. (BRAVO, 2008:93-94)
De acordo com Bravo (2008), o modelo adotado pela ditadura militar que privilegiava
o produtor privado teve as seguintes características: extensão da cobertura previdenciária de
forma a abranger quase toda a população urbana (depois de 1973, os trabalhadores rurais,
empregadas domésticas e trabalhadores autônomos); ênfase na medicina curativa, individual,
assistencialista e especializada; articulação do Estado com os interesses do capital
internacional; criação do complexo médico-industrial – acumulação de capital monopolista –
medicamentos e equipamentos médicos; interferência estatal na previdência – padrão de
organização da pratica médica orientada para o lucro do setor saúde e privilegiando o
produtor privado desses serviços; organização da prática médica com moldes compatíveis
com a expansão do capitalismo no Brasil.
13
A política de saúde da década de 80, período da construção do projeto de Reforma
Sanitária, contou com a participação de novos atores na discussão das condições de vida da
população brasileira e das propostas governamentais apresentadas para o setor. Assistiu-se,
nessa época, a um grande debate que permeou a sociedade civil. Esta, conforme Gramsci, é
composta de aparelhos privados de hegemonia (entidades e associações diversas, que
organizam a vontade social e promovem formas diferenciadas de consciência), e se entrecruza
com o Estado. A sociedade civil abrange, assim, tanto entidades ligadas aos grupos
dominantes, que procuram pautar as políticas segundo seus interesses e valores, quando aos
setores dominados, que reivindicam uma socialização efetiva da política. A Saúde deixou de
ser interesse apenas dos técnicos para assumir uma dimensão política, vinculando-se
estreitamente à democracia.
O fato marcante e fundamental para discussão da questão Saúde no Brasil foi a
preparação e realização da VIII Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986. Essa
conferência discutiu temas como: a saúde como direito inerente à personalidade e à cidadania;
reformulação do Sistema Nacional de Saúde e financiamento setorial.
O processo constituinte, assim como a promulgação da Constituição de 1988
representaram, no plano jurídico, a promessa de afirmação e extensão dos direitos sociais em
nosso país frente à grave crise e às demandas de enfrentamento dos enormes índices de
desigualdade social. A Constituição Federal introduziu avanços que buscaram corrigir as
históricas injustiças sociais acumuladas secularmente, incapazes de universalizarem direitos
tendo em vista a longa tradição das classes dominantes de privatizar a coisa pública.
O texto constitucional inspira-se nas proposições defendidas durante vários anos pelo
movimento sanitário, embora não tenha sido possível atender todas as demandas quando elas
se confrontavam com interesses empresariais ou de setores do próprio governo. As questões
centrais sobre financiamento de novo sistema ficaram pouco definidas, não tendo sido
estabelecido um percentual sobre os orçamentos dos quais se originou. Com relação aos
medicamentos, há apenas uma alusão à competência do sistema de saúde para fiscalizar sua
produção. A saúde do trabalhador não contemplou propostas. Nada se falou sobre o direito do
trabalhador recusar-se a trabalhar em locais comprovadamente insalubres ou do seu direito de
obter informações sobre toxidade dos produtos manipulados.
14
A análise da política de saúde na década de 80 tem como aspectos centrais a
politização da questão saúde, a alteração da norma constitucional e a mudança do arcabouço e
das práticas institucionais.
O processo constituinte teve como resultado a incorporação de grande parte das
reivindicações do movimento sanitário. No entanto, esse movimento perde espaço no interior
dos aparelhos institucionais. O retrocesso político do governo da transição democrática
repercute na saúde, tanto no aspecto econômico quanto no político.
No final da década de 80, já havia dúvidas e incertezas com relação à implementação
do Projeto de Reforma Sanitária, a saber: a fragilidade das medidas reformadoras em curso, a
ineficácia histórica do setor público, as tensões com os profissionais de saúde, a redução do
apoio popular face à ausência de resultados concretos na melhoria da atenção à saúde da
população brasileira e a reorganização dos setores conservadores contrários à reforma que
passam a dar a direção no setor, a partir de 1988. Sobretudo, com a derrota da candidatura do
Partido dos Trabalhadores em 1989, tem início o desmonte da organização dos trabalhadores
no Brasil porque o grande capital, também por aqui, retomava a ofensiva sobre os direitos dos
trabalhadores, sob a fórmula já largamente praticada nos Estados Unidos e no Reino Unido.
A burocratização da reforma sanitária afasta a população da cena política,
despolitizando o processo. A concretização da reforma tem dois elementos em tensão: o
reformador (imprescindível para transformar instituições e processos), e o revolucionário (que
é a questão sanitária, só superada com a mudança efetiva nas práticas e na qualidade de saúde
da população). Considera-se que a construção democrática é a única via para se conseguir a
Reforma Sanitária e a mobilização política, uma de suas estratégias. O desafio foi colocado
para os setores progressistas da Saúde que deveria ser viabilizado na década de 90.
Nos anos 1990, assiste-se ao redirecionamento do papel do Estado, já no contexto do
avanço das práticas neoliberais. A conjuntura hiper-inflacionária foi o caldo que preparou a
adoção das políticas neoliberais no Brasil como, em geral, nos vários países da América
Latina. A estabilização da moeda era apresentada como pré-requisito para atingir o
crescimento econômico. As medidas de ajuste adotadas agravaram a situação precária de
emprego no país cujo declínio no setor industrial foi marcante.
Apesar de o texto constitucional conter avanços, houve um forte ataque por parte do
grande capital, aliado aos grupos políticos e econômicos dirigentes. A Contra-Reforma
Constitucional, notadamente da Previdência Social e das regras que regulamentam as relações
15
de trabalho no Brasil, é um dos exemplos dessa aliança. Estas atingiram o núcleo dos direitos
sociais e políticos, conquistados pelas classes que vivem do trabalho e que, na retórica
neoliberal, teria sido responsável pelas dificuldades do Estado e das classes burguesas para
equacionar a crise econômica. Ao agendar a contra-reforma previdenciária, e não da
seguridade, o governo teve por intencionalidade desmontar a proposta de Seguridade Social
contida na Constituição de 88. Seguridade virou previdência e previdência é considerada
seguro.
Nesse quadro, dois projetos convivem em tensão: o projeto de reforma sanitária,
construído na década de 80 e inscrito na Constituição Brasileira de 1988, e o projeto
de saúde articulada ao mercado ou privatista, hegemônico na segunda metade da
década de 90. (BRAVO, 2008:101)
1.1 - Questão Social e Saúde
A Constituição Brasileira de 1988 confirmou em seu texto a saúde entre os direitos
sociais, como direito de todos os brasileiros e dever do Estado. Em 1990, na sua
regulamentação, através da Lei Orgânica da Saúde (LOS), foi instituído o Sistema Único de
Saúde – SUS, com princípios de universalidade de cobertura (atendimento integral gratuito),
descentralização dos serviços para os estados e municípios, hierarquização, participação
complementar do setor privado, prioridade para as atividades preventivas e o controle social
por meio dos Conselhos de Saúde e das Conferências Nacionais, Estaduais e Municipais de
Saúde.
Após vinte anos o SUS ainda caminha lentamente para sua efetivação e vem sofrendo
fortes golpes da política neoliberal do Estado Brasileiro, sendo a terceirização um desses
golpes. Ao estudar esse processo e suas conseqüências, buscando entender o aparato legal que
viabiliza essa prática que vai contra os avanços conquistados na Constituição Federal de 1988
e na LOS, pretendemos contribuir para o debate de saúde enquanto direito do cidadão e dever
do Estado, além de pensar a precarização da contratação dos profissionais de saúde (com
vínculos cada vez mais flexíveis e as múltiplas formas de contrato que convivem nos mesmos
ambientes de trabalho).
16
O processo de privatização e terceirização vem acompanhado de legislações,
contratos, convênios que desrespeitam os princípios do SUS, o que se coloca como entrave
para sua real implantação como aponta Bravo (2008:09):
(...) é possível a implantação definitiva do SUS de forma sintonizada com os
princípios da Reforma Sanitária no Brasil desde que haja decisão política, controle
social, prática efetiva da democracia participativa e obediência à legislação vigente,
sem a criação de qualquer outro instrumento jurídico.
Com isso, analisar as legislações, contratos, convênios que vem sendo criados pelo
governo estadual apresenta-se como importante forma de investigação para a compreensão
desse processo de privatização e terceirização da saúde pública do Rio de Janeiro.
Tendo clareza da época de crise que nos cerca e da força que a ideologia neoliberal
vem ganhando no decorrer dos anos, torna-se de suma importância conhecer e entender os
caminhos que trouxeram as políticas sociais e a cidadania até a situação atual. Ao buscar
entender os processos de terceirização e privatização da Saúde Publica do Estado do Rio de
Janeiro,pretendemos demonstrar como tais categorias são mutáveis e como estão intimamente
relacionados com os processos históricos pelos quais o mundo passou, evidenciando assim
um processo dialético e permeado pelas lutas de classe.
Pretendemos apresentar o processo atual de privatização da saúde pública do Estado
do Rio de Janeiro, pensando saúde como uma política social. Sendo assim, os processos de
privatização e de terceirização da política social de saúde não podem ser analisados sem antes
refletirmos sobre as políticas sociais e seu lugar na sociedade capitalista. Para isto é
necessário demarcar: a política social é um fenômeno associado à sociedade burguesa,
sobretudo a partir do trânsito à idade dos monopólios como algo fundamental para a
reprodução do modo de produção capitalista.
Segundo Behring (2000:36) a economia não ocorre de maneira livre, os ciclos não são
produtos do desenvolvimento natural, defendendo a idéia de que sempre há uma correlação de
forças nas lutas políticas entre classes sociais com interesses opostos. Sendo as políticas
sociais fortemente influenciadas e dependentes da situação econômica, sofrendo com suas
alterações, tendendo a margem de negociação ser expandida quando a economia está em
expansão e restringida quando a economia está em recessão. Esse fato pode ser contrariado
devido à luta da classe trabalhadora, que através da mobilização e união pode ampliar diretos
17
mesmo na recessão. Com isso, observamos que as políticas sociais dependem não só de
fatores objetivos, mas também de fatores subjetivos como destaca Behring (2000:36):
(...) é possível afirmar, com base na crítica marxista, que a política social não se
fundou, sob o capitalismo, numa verdadeira redistribuição de renda e riqueza. (...)
Percebe-se que a economia política se movimenta historicamente a partir de
condições objetivas e subjetivas e, portanto, o significado da política social não pode
ser apanhado nem exclusivamente pela sua inserção objetiva no mundo do capital
nem apenas pela luta de interesses dos sujeitos que se movem na definição de tal ou
qual política, mas, historicamente, na relação desses processos na totalidade.
Netto (2001) demonstra que o capitalismo monopolista, pelas suas dinâmicas e
contradições, captura o Estado que ao buscar legitimação política pela democracia, acaba
sendo permeado pelas demandas das classes subalternas. Nestas condições as expressões da
questão social passam a ser objeto de intervenção estatal continua e sistemática.
É só a partir da concretização das possibilidades econômico-sociais e políticas
segregadas na ordem monopólica (concretização variável do jogo das forças
políticas) que a questão social se põe como alvo de políticas sociais. (NETTO,
2001:25)
É importante perceber que no capitalismo concorrencial a questão social era objeto de
ação estatal, segundo Netto (2001), na medida em que motivava uma grande mobilização da
classe trabalhadora, ameaçava a ordem burguesa ou colocava em risco o fornecimento de
forca de trabalho. Ainda no capitalismo concorrencial temos uma mudança devido a nova
dinâmica econômica, a consolidação política do movimento operário e a necessidade de
legitimação política do Estado, fazendo com que esse Estado assuma funções externas,
internas, técnicas, econômicas e sociais que possibilitem a manutenção das condições gerais
para a produção capitalista, sem, contudo explicitar sua essência classista.
É a política social do Estado burguês no capitalismo monopolista (e, como se infere
desta argumentação, só é possível pensar-se em política social pública na sociedade
burguesa com a emergência do capitalismo monopolista), configurando a sua
intervenção contínua, sistemática, estratégica sobre as seqüelas da questão social,
que oferece o mais canônico paradigma dessa indissociabilidade de funções
econômicas e políticas que é própria do sistema estatal da sociedade burguesa
madura e consolidada. Através da política social, o Estado burguês no capitalismo
monopolista procura administrar as expressões da questão social de forma a atender
às demandas da ordem monopólica conformando, pela adesão que recebe de
categorias e setores cujas demandas incorpora, sistemas de consenso variáveis, mas
operantes. (NETTO, 2001:26)
18
Netto (2001) ressalta que não se deve considerar que a funcionalidade das políticas
sociais para o capitalismo monopolista equivale a considerá-las como sendo naturais a esse
sistema de produção. As políticas sociais só surgem devido a mobilização da classe
trabalhadora que demonstra seu descontentamento perante a questão social, não sendo as
políticas sociais um caminho para a igualdade e não representando um meio de redistribuição
de renda. Sua existência e ampliação dependem de fatores objetivos e fatores subjetivos só
percebidos através da análise
histórica das relações capital/trabalho assalariado,
Estado/sociedade etc. na totalidade. As políticas sociais são “resultantes extremamente
complexas de um complicado jogo em que protagonistas e demandas estão atravessados por
contradições, confrontos e conflitos.” (NETTO, 2001:29)
Para pensarmos nas políticas sociais é preciso ter presente as determinações postas
pela sociedade capitalista e sua criação e recriação constantes da questão social, definida por
Iamamoto (2006:27) como:
Conjunto das expressões das desigualdades da sociedade capitalista madura, que tem
uma raiz comum: a produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se
mais amplamente social, enquanto a apropriação de seus frutos mantém-se privada,
monopolizada por uma parte da sociedade.
A exigência de uma resposta para a questão social decorre da organização da classe
trabalhadora como classe para si, quando, especialmente, as idéias de socialismo passam a
fazer parte das lutas do operariado. A principal característica dessa época, segundo Netto
(2001), é o crescimento da pauperização na razão direta em que aumentava a capacidade
social de produzir riqueza.
A designação desse pauperismo pela expressão ‘questão social’ relaciona-se
diretamente aos seus desdobramentos sócio-políticos. Mantivessem-se os
pauperizados na condição cordata de vítimas do destino, revelassem eles a
resignação que Comte considerava a grande virtude cívica e a história subseqüente
haveria sido outra. Lamentavelmente para a ordem burguesa que se consolidava, os
pauperizados não se conformaram com a sua situação: da primeira década até a
metade do século XIX, seu protesto tomou as mais diversas formas, da violência real
às instituições sociais existentes. Foi a partir da perspectiva efetiva de uma eversão
da ordem burguesa que o pauperismo designou-se como ‘questão social’ (NETTO,
2001:154).
Ao contrário do que acreditavam Comte e seus seguidores, a classe trabalhadora não
aceitou comodamente a situação de submissão e passou a demonstrar sua capacidade de
19
organização e de luta por igualdade social. A luta de classes nasce da não conformação da
classe trabalhadora à condição de dominada numa época em que a desigualdade na
distribuição da riqueza e da propriedade dos meios de produção acentuava-se com o
desenvolvimento do capitalismo.
Observa-se que a partir da segunda metade do século XIX, a expressão ‘questão
social’ ganha um novo significado impregnado pelo conservadorismo e pela ideologia
dominante que busca naturalizá-la como se ela fosse comum a toda e qualquer ordem social.
Tal ideologia metamorfoseia-se em objeto de ação moralizadora na qual a miserabilidade da
força de trabalho passa a ser combatida em suas expressões mais visíveis sem, contudo, tocar
em seu fundamento mesmo que é a existência da propriedade. Para Netto,
(...) a explosão de 1848 não afetou somente as expressões ideais (culturais, teóricas,
ideológicas) do campo burguês. Ela feriu substantivamente as bases da cultura
política que calçava até então o movimento dos trabalhadores: 1848, trazendo à luz o
caráter antagônico dos interesses sociais das classes fundamentais, acarretou a
dissolução do ideário formulado pelo utopismo. Dessa dissolução resultou a clareza
de que a resolução efetiva do conjunto problemático designado pela expressão
‘questão social’ seria função da eversão completa da ordem burguesa num processo
do qual estaria excluída qualquer colaboração de classes – uma das resultantes de
1848 foi a passagem, em nível histórico-universal, do proletariado da condição de
classe em si a classe para si. As vanguardas trabalhadoras acederam, no seu processo
de luta, à consciência política de que a ‘questão social’ está necessariamente colada
à sociedade burguesa: somente a supressão desta conduz à supressão daquela
(NETTO, 2001:155-156).
Neste período de eclosão de diversos movimentos revolucionários, a questão social
passou a ser entendida como decorrente da ordem burguesa e sua superação está, então,
intimamente ligada à ultrapassagem desta ordem social. Os revolucionários passaram a
enxergar a questão social como sendo um subterfúgio conservador e acabaram por identificála através de um aspecto mistificador.
O movimento dos trabalhadores – sua consciência política – não foi acompanhado
imediatamente de uma densa compreensão teórica das relações sociais que constituem a
sociedade burguesa. Daí a importância das análises de Marx sobre o processo de produção do
capital e a complexa dinâmica da questão social.
A análise marxiana fundada no caráter explorador do regime do capital permite,
muito especialmente, situar como radicalidade histórica a ‘questão social’, isto é,
distinguí-la das expressões sociais derivadas da escassez nas sociedades que
precederam a ordem burguesa. A exploração não é um traço distintivo do regime do
capital (sabe-se, de fato, que formas sociais assentadas na exploração precedem
20
largamente a ordem burguesa); o que é distintivo desse regime, entre outros traços, é
que a exploração se efetiva num marco de contradições e antagonismos que a
tornam, pela primeira vez na história registrada, suprimível sem a supressão das
condições nas quais se cria exponencialmente a riqueza social. Ou seja: a supressão
da exploração do trabalho pelo capital, constituída a ordem burguesa e altamente
desenvolvidas as forças produtivas, não implica – bem ao contrário! – redução da
produção de riquezas (NETTO, 2001:157-158).
Para Netto (2001), os estudos de Marx revelaram que a questão social estava vinculada
e determinada pela relação capital/trabalho e que sua continuidade e aprofundamento dizem
respeito ao modo de produção capitalista e à luta de classes. Lutas de classes por meio das
quais a exploração e a desigualdade passam a não ser aceitas pela classe explorada da
sociedade.
No capitalismo a exploração e o crescimento do pauperismo acontecem como faces de
uma mesma moeda porque os meios de produção foram expropriados dos trabalhadores; estes,
para sobreviverem vendem sua única “propriedade”: sua força física e sua capacidade
intelectual para produzir produtos que serão de propriedade daquele que lhe contratou a força
de trabalho. Todavia, a força de trabalho ao produzir as mercadorias necessárias para sua
reprodução social como trabalhador, produz ao mesmo tempo partes consideráveis de
produtos que serão de inteira propriedade do capitalista e pelas quais o trabalhador não é
remunerado. Nisto reside o segredo da riqueza de uns poucos e do empobrecimento de bilhões
de pessoas em todo o planeta.
A ‘questão social’, nesta perspectiva teórico-analítica, não tem nada a ver com o
desdobramento de problemas sociais que a ordem burguesa herdou ou com traços
invariáveis da sociedade humana; tem a ver, exclusivamente, com a sociabilidade
erguida sob o comando do capital (NETTO, 2001: 158).
Assim, todo e qualquer benefício alcançado pela classe trabalhadora foi fruto de suas
lutas que, muitas vezes, foram metamorfoseadas em instrumentos da burguesia para
manipular e desmobilizar as lutas sociais e não raro apresentadas pela burguesia como
generosos favores por ela oferecidos aos trabalhadores. Entretanto,
(...) a conjunção ‘globalização’ mais ‘neoliberalismo’ veio para demonstrar aos
ingênuos que o capital não tem nenhum ‘compromisso social’ – o seu esforço para
romper com qualquer regulação política, extramercado, tem sido coroado de êxito.
Erodiu-se o fundamento do Welfare State em vários países e a resultante
macroscópica social saltou à vista: o capitalismo ‘globalizado’, ‘transnacional’ e
‘pós-fordista’ desvestiu a pele do cordeiro – e a intelectualidade acadêmica, a
mesma que em boa parcela considera Marx o criador de um ‘paradigma em crise’,
21
descobriu a ‘nova pobreza’, os ‘excluídos’ etc. – em suma, descobriu a ‘nova
questão social’ (NETTO, 2001:160).
Com a última e mais recente ofensiva do capital com todos os seus múltiplos ataques
ao trabalho e às organizações da classe trabalhadora, resta ainda mais claro que a burguesia
não se preocupa com os interesses e com o bem estar da classe trabalhadora e demonstram,
no mínimo, ingenuidade daqueles que acreditaram nas boas intenções dos grandes
empresários e no seu compromisso social. A dinâmica do sistema capitalista impele tais
empresários a lucros crescentes, a tornar rentáveis todas as atividades, inclusive as que se
ligam à questão social e á saúde.
Netto (2001) demonstra que é ignorância acreditar que a realidade mudou ao ponto das
descobertas de Marx não serem mais úteis à compreensão da ordem social capitalista e que
sua dinâmica capitalista teria se transformado ao ponto de fazer surgir uma nova questão
social. Desvendar e perceber que a burguesia utiliza-se de ofensivas político-econômicas e
ideológicas combinadas expõe o lugar destas argumentações que objetivam o encolhimento
dos direitos sociais conquistados pela luta da classe trabalhadora.
Na sociedade contemporânea a questão social tem retornado ao centro das
preocupações do Estado e tem sido amplamente discutida no mundo do trabalho muito em
razão do aumento do desemprego nos países industrializados nos quais também
intensificaram-se as expressões da questão social. Para Netto (2001) a questão social e o
modo de produção capitalista estão intimamente ligados porque:
O desenvolvimento do capitalismo produz, compulsoriamente, a ‘questão social’ –
diferentes estágios capitalistas produzem diferentes manifestações da ‘questão
social’; esta não é uma seqüela adjetiva ou transitória do regime do capital: sua
existência e suas manifestações são indissociáveis da dinâmica específica do capital
tornado potência social dominante. A ‘questão social’ é constitutiva do
desenvolvimento do capitalismo. Não se suprime a primeira conservando o segundo
(NETTO, 2001:157).
Em síntese, a questão social é parte ineliminável do modo de produção capitalista por
ser a ele inerente; sua ultrapassagem implica necessariamente no desaparecimento do
capitalismo. Contudo, ao observarmos as mudanças e as novas complexificações agregadas as
já existentes no modo de produção capitalista também facilmente contatamos o surgimento de
novas facetas e expressões da questão social. Estas expressões determinam rearranjos dos
22
Estados, dos direitos dos trabalhadores e das políticas sociais que exigem novas considerações
para entendermos seus desdobramentos e modificações.
1.2 - Do Estado do Bem Estar Social ao Neoliberalismo
Em 1929, o capitalismo vivenciou uma grande crise econômica com a quebra da bolsa
de Nova Iorque. Em decorrência disso, houve uma maior intervenção do Estado na regulação
econômica e social. Segundo Yazbek (2010), ampliaram-se as políticas sociais, buscando-se
evitar que a fome e a miséria deteriorassem definitivamente a sociedade capitalista. Este seria
o marco histórico inicial da experiência do Estado intervencionista:
(...) que vai efetivar um pacto entre interesses do capital e dos trabalhadores: o
chamado consenso pós- guerra. Nesse sentido as políticas keynesianas buscam gerar
pleno emprego, criar políticas e serviços sociais tendo em vista a criação de
demanda e ampliação do mercado de consumo. Desse ponto de vista, Keynes lança
o papel regulador do Estado que busca a modernização da economia, criando
condições para seu desenvolvimento e pleno emprego. O Estado interventor
propunha-se reduzir a irracionalidade da economia, tendo pois um papel de
administrador positivo do progresso. Neste percurso veio não só suscitar o
investimento na solidariedade, tendo passado mesmo a ser responsável por ela.
(YAZBEK, 2010:8)
No continente europeu, o Estado de Bem Estar Social vai se consolidar após a 2ª
Guerra Mundial. Nesse contexto, o Plano Beveridge (1942) da Inglaterra serviu de base para
vários países europeus.
Já nos anos 1970, a continuidade e viabilidade econômica Estado de Bem Estar
começam a ser postas em xeque pela reestruturação do processo de acumulação do capital
globalizado. Segundo Yazbek (2010:9):
Isso porque a articulação: trabalho, direitos e proteção social que configurou os
padrões de regulação sócio-estatal do Welfare State, passa por mudanças. São
mudanças que se explicam nos marcos de reestruturação do processo de acumulação
do capital globalizado, que altera as relações de trabalho, produz o desemprego e a
eliminação de postos de trabalho. Essas mudanças vem sendo implementadas por
meio de uma reversão política conservadora, assentada no ideário neoliberal que
erodiu as bases dos sistemas de proteção social e redirecionou as intervenções do
Estado no âmbito da produção e distribuição da riqueza social. Na intervenção do
Estado observa-se a prevalência de políticas de inserção focalizadas e seletivas para
23
as populações mais pobres (os invalidados pela conjuntura), em detrimento de
políticas universalizadas para todos os cidadãos.
Segundo Behring e Boschetti (2007), o Estado social foi um mediador ativo na
regulação das relações capitalistas em sua fase monopolista, mas no período pós-1970 o
avanço dos ideais neoliberais ganham terreno com a crise capitalista de 1969-1973. Inicia-se
o desmonte do Estado do Bem Estar Social.
Apesar de todas essas mudanças, não é possível dizer que o Estado de Bem Estar
Social foi extinto em todos os países, mas, com a influencia do neoliberalismo, como informa
Yazbek (2010), observa-se a emergência de uma nova geração de políticas sociais que têm
como objetivo a equidade.
Nas últimas décadas (70, 80, 90 e 2000), o desenvolvimento do capitalismo causou
profundas transformações na sociedade, tais como: a expansão da globalização econômica; a
abertura comercial; a perda de espaço do Welfare State para o neoliberalismo; a revolução
microeletrônica; o enfraquecimento dos movimentos sociais; a flexibilização da produção e
dos mercados etc. Essas transformações atingiram em cheio o mundo do trabalho com o
desemprego de longa duração, a precarização das relações de trabalho, a ampliação de oferta
de empregos intermitentes, instáveis e sem direitos trabalhistas. As tecnologias produtivas são
mais uma vez poupadoras de força de trabalho e expandiram em enormes proporções o
exército de desempregados – obsoletos sob o ponto de vista do capital e desprovidos de
utilidade para o atual mundo do trabalho. Desponta um alargado exército de seres humanos
em constante crescimento e sem perspectivas humanas futuras.
Com tudo isso, podemos observar que a sociedade capitalista contemporânea vem
atravessando, desde a década de 70, uma grande crise global que, segundo Bravo (2008), tem
possibilidade real de chegar ao retrocesso social e à barbárie. Essa crise atingiu em cheio o
Estado de bem-estar social e o chamado socialismo real que, grosso modo, podemos entender
como formas (cada um a sua maneira) de solucionar as contradições próprias à ordem do
capital, pela superação ou por reformas pontuais.
No Brasil, podemos visualizar a implementação de um novo patamar de exigências do
grande capital com a eleição de Fernando Collor, em 1989, para a Presidência da República.
O Presidente eleito propôs uma reformulação profunda da administração por meio de ajustes
neoliberais que implicaram em sérias conseqüências na área social, inclusive para a saúde,
pois houve um declínio no financiamento com a diminuição dos gastos sociais.
24
Os ajustes neoliberais adotados pelo governo de Collor faziam parte do plano de
estabilização para combater a inflação do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco
Mundial, impondo a desregulamentação da economia por meio da diminuição da intervenção
do Estado na regulação de preços e na relação capital/trabalho, retirada do Estado do setor
produtivo (privatizações) e redução do setor público.
Vale dizer que as bases políticas, econômicas e ideológicas estavam sendo preparadas
para a contra reforma do Estado, em um momento histórico de pressões internacionais dos
países desenvolvidos, do capital financeiro e monopolista (FMI, Banco Mundial) e pressões
da elite nacional que imputa – somente no plano ideológico – ao Estado ser o entrave para
multiplicação de suas riquezas, quando é exatamente o contrário o que ocorre na vida
cotidiana e no mundo real.
Com o impeachment de Collor, assume a Presidência seu Vice, Itamar Franco. Os
ajustes neoliberais diminuem de intensidade, para esperar uma gestão mais legítima e
continuar com sua escalada rumo à transferência do fundo público, também sob a forma do
patrimônio público brasileiro, para o grande capital.
Ao governo de Itamar Franco, sucedeu-o o seu ministro de
Estado: Fernando
Henrique Cardoso (1995-2002). Este, ao tornar-se presidente, implementará a contra-reforma
do Estado a partir de 1995, após o envio e aprovação no Congresso Nacional do Plano Diretor
da Reforma do Aparelho do Estado e a Câmara da Reforma do Estado, composta por: Clóvis
Carvalho, Ministro Chefe da Casa Civil; Luiz Carlos Bresser Pereira, Ministro da
Administração Federal e Reforma do Estado (criado e extinto na primeira gestão de FHC);
Paulo Paiva, Ministro do Trabalho; José Serra, Ministro do Planejamento e Orçamento; Pedro
Malan, Ministro da Fazenda e Gen. Benedito Onofre Bezerra, Ministro Chefe do Estado
Maior e das Forças Armadas.
Para entender as implicações diretas na saúde e nas políticas sociais dessa contrareforma do Estado, iniciada pelo governo FHC, faz-se necessário compreender a ideologia
que Bresser Pereira, um dos mentores desta contra- reforma, popularizou enquanto esteve no
comando do Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE).
Segundo Bresser Pereira (1997), a crise dos anos 30 foi gerada devido ao mau
funcionamento do mercado e também uma crise do Estado liberal. Esse quadro engendrou o
Estado Social Burocrático, reformado para garantir direitos sociais e emprego por meio da
contratação direta de burocratas pelo Estado.
25
Já nos anos 70, com a crise fiscal e com a acumulação do capital nos países
desenvolvidos, Bresser Pereira (1997) afirma que o Estado intervencionista entrou em crise,
tornando-se o principal responsável pelo aumento da taxa de desemprego, da taxa de inflação
e pela redução da taxa de crescimento econômico. Sendo assim, verificou-se a urgência de
uma reformulação do estado.
A crise do Estado está associada, de um lado, ao caráter cíclico da intervenção
estatal, e de outro, ao processo de globalização, que reduziu as políticas econômicas
e sociais dos estados nacionais. (PEREIRA, 1997:14)
Ao justificar a necessidade de reformular o Estado e culpá-lo de todas as mazelas da
crise, Bresser Pereira (1997) indica quatro componentes básicos da contra reforma do Estado:
a delimitação do tamanho do Estado, reduzindo suas funções por meio da privatização,
terceirização e publicização, que envolve a criação das organizações sociais; a redefinição do
papel regulador do Estado por meio da desregulamentação; o aumento da governança, ou seja,
a recuperação da capacidade financeira e administrativa de implementar decisões políticas
tomadas pelo governo por meio do ajuste fiscal; o aumento da governabilidade ou capacidade
política do governo de intermediar interesses, garantir legitimidade e governar.
Bresser Pereira (1997) traz o discurso que delimita o tamanho do Estado com a
privatização, publicização e terceirização, para que assim se torne mais eficiente, barato, para
que realize apenas suas tarefas e alivie o seu custo sobre as empresas nacionais que concorrem
internacionalmente.
Com um discurso novo em sua superfície, mas velho em seus fundamentos, Bresser
apresenta a centro-esquerda social-liberal com uma proposta de reconstrução de Estado, o que
o autor chama de Estado Social-Liberal. Essa reconstrução baseia-se na recuperação da
poupança pública e na superação da crise fiscal; redefinição das formas de intervenção no
econômico e no social por meio da contratação de organizações não-estatais para execução
dos serviços de educação, saúde e cultura; reforma da administração pública com a
implantação de uma administração pública gerencial, invocando o princípio da eficiência e
das normas da iniciativa privada e da chamada reengenharia.
O Estado Social-Liberal, segundo Bresser Pereira (1997), teria esse nome porque
continuaria a garantir direitos sociais e promover desenvolvimento econômico. Seria liberal
porque teria menos controle administrativo, pois usaria as organizações públicas não-estatais
26
competitivas para tornar os mercados de trabalho mais flexíveis, capacitados, inovados e
competitivos.
Podemos observar os fundamentos para a privatização da saúde, já que, nesse viés
ideológico de Estado, os direitos sociais tornam-se mercantilizados. Observamos também uma
retração do Estado em suas obrigações sociais, ou seja, o social fica subjugado ao econômico
e assistimos ao retrocesso da cidadania e dos direitos.
Com a contra reforma do Estado, temos as funções estabelecidas da seguinte forma:
Núcleo Estratégico (Poderes Executivos, Judiciário, Legislativo e Ministério Público);
Atividades Exclusivas (regulamentar, fiscalizar e fomentar); Atividades não-exclusivas
(produção de bens e serviços – educação, saúde etc.); Produção de bens e serviços para o
mercado (setor produtivo e financeiro).
A saúde entra, assim, nos serviços não exclusivos do Estado, estando dentro da contra
reforma como um dos setores a serem transferidos para as organizações sociais, para se ter a
autonomia e flexibilidade na prestação do serviço.
Vale destacar que mesmo com todos os avanços garantidos no setor saúde na Carta
Magna de 1988, o setor privado perdurava, embora com um caráter complementar.
Segundo a Constituição Federativa do Brasil de 1988, artigo 199, a “Assistência à
saúde é livre à iniciativa privada” e poderão participar do sistema único de saúde de forma
complementar “mediante contrato de direito publico”. A partir dessa participação do setor
privado, será realizado o confronto dos princípios do SUS na década de 90.
Bravo e Matos (2002) apontam que projeto de reforma sanitária construído na década
de 80, inscrito na Constituição em 1988 é confrontado com o projeto de saúde articulado ao
mercado ou privatista, que é hegemônico na década de 90, principalmente na segunda metade,
ressaltando o projeto de contra-reforma do Estado na saúde.
Para Bravo e Matos (2002:197):
O Projeto de saúde articulado ao mercado ou de articulação do modelo médico
assistencial privatista está pautado na política de ajuste neoliberal que tem como
principais tendências: a contenção dos gastos com racionalização da oferta, a
descentralização com isenção de responsabilidade do poder central e a focalização.
Os autores acima consideram que esse projeto consiste numa política de saúde
focalizada no atendimento de populações vulneráveis por meio do pacote básico para a saúde.
Assim, setores da população que podem pagar migram para o setor privado.
27
A contra-reforma do Estado atinge o setor saúde, como já assinalamos anteriormente.
Em um dos Cadernos MARE, número 13, apresentam-se propostas para a assistência
ambulatorial e hospitalar que seriam as mais caras e fundamentais do SUS: descentralização
rápida e decisiva, com definição das atribuições das três esferas de governo; criação de dois
subsistemas dentro do sistema integrado, hierarquizado e regionalizado - segundo Bravo
(2008), esta seria uma forma de criar um SUS para os pobres e outro para os consumidores -;
transferência da gestão para as organizações públicas não-estatais.
Segundo Bravo (2008), uma das questões centrais para a política de saúde relaciona-se
ao processo de terceirização dos trabalhadores de saúde nos anos 90, processo esse que
continua ocorrendo no Estado do Rio de Janeiro.
(...) a política de saúde vem sofrendo os impactos da política macroeconômica. As
questões centrais não estão sendo enfrentadas, tais como: a universalização das
ações; o financiamento efetivo; a Política de Gestão do Trabalho e Educação na
Saúde e a Política Nacional de Medicamentos. (BRAVO, 2008:19)
Ainda segundo Bravo (2008), a questão mais preocupante no que tange à saúde
pública diz respeito à criação das Fundações Estatais que pretendem atingir todas as áreas não
privativas do Estado. Nesse processo, a Saúde vem sendo a primeira e mais atingida área.
(...) as fundações serão regidas pelo direito privado; tem seu marco na “contrareforma” do Estado de Bresser Pereira/FHC; a contratação de pessoal é por CLT,
acabando com o RJU; não enfatiza o controle social, pois não prevê os Conselhos
Gestores de Unidades e sim Conselhos Curadores; não leva em consideração a luta
por Plano de Cargo, Carreira e Salário dos Trabalhadores de Saúde; não obedece às
proposições da 3ª Conferência Nacional de Gestão do Trabalho e Educação na
Saúde, realizada em 2006; fragiliza os trabalhadores através da criação de Planos de
Cargo, Carreira e Salário por Fundações. (BRAVO, 2008:20)
Outro instrumento de contra-reforma do Estado preocupante são as Organizações
Sociais (OSs), que, de acordo com Rezende (2008), foram criadas como instrumentos de
implementação e viabilização de políticas públicas, baseadas na ideologia do Plano Diretor da
Reforma do Aparelho do Estado de 1995. Em 1997, tivemos a medida provisória número
1.591 que estabeleceu a definição das entidades (as OSs) que poderiam ser parceiras do
Estado na condução das políticas públicas. Em 1998, foi aprovada a chamada lei das OSs com
o objetivo de:
28
“qualificar como organizações sociais pessoas jurídicas de direito privado,sem fins
lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao
desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura
e à saúde” (art. 1º). Para dar conseqüência, institui o contrato de gestão (Art. 5º ao
10º), “observados os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade, economicidade” (art. 7º), como instrumento a ser firmado entre o Poder
Público e a entidade qualificada como organização social, com vistas à formação de
parceria entre as partes para fomento e execução de atividades relativas às OSs. E
ainda (possivelmente o objetivo mais importante para o projeto político de governo
da época), assegurar a absorção de atividades desenvolvidas por entidades ou órgãos
públicos da União (Art. 20), que atuem nas atividades previstas na Lei, por meio do
Programa Nacional de Publicização (PNP), criado mediante decreto do Poder
Executivo. (REZENDE, 2008:27)
Sendo assim, as OSs seriam uma maneira de viabilizar o estado mínimo, transferindo
responsabilidades não exclusivas do estado para instituições sem fins lucrativos.
Aproveitando-se desse momento, diversos Estados (entre eles o Rio de Janeiro) e municípios
terceirizaram serviços de saúde:
(...) por meio de contratos de gestão ou termos de parcerias, transferiu-se serviços
diversos ou unidades de serviços de saúde públicos a entidade civil, entregando-lhe
o próprio estadual ou municipal, bens móveis e imóveis, recursos humanos e
financeiros, dando-lhe autonomia de gerência para contratar, comprar sem licitação,
outorgando-lhe verdadeiro mandato para gerenciamento, execução e prestação de
serviços públicos de saúde, sem se preservara legislação sobre a administração
pública e os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde. (REZENDE,
2008:27)
Cabe ressaltar que esse processo não transcorreu nem vem transcorrendo sem
resistência. Muitos atores demonstram sua insatisfação com esse modelo de gestão, fato esse
que acabou por prejudicar sua implantação em larga escala.
Já em 1999, a Lei Federal número 9.790 instituiu as Organizações da Sociedade Civil
de Interesse Público (OSCIP) com o objetivo de transformar as OSs em OSCIP. Rezende
(2008:29) pontua que as OSCIP teriam uma maior abrangência e alcance “quanto aos seus
objetivos e projeto político de terceirização e privatização de programas, atividades, ações e
serviços públicos”. Em outras palavras, grande parte das ações públicas seria transferida para
o setor privado, seguindo o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado.
Diversos outros instrumentos legislativos foram criados no decorrer dos anos para
legitimar e viabilizar a privatização da saúde pública. Dentre eles, cabe citar: a lei número
9.637 de 1998, que dispensa licitações, autoriza a transferência para a iniciativa privada de
hospitais públicos; projeto de lei complementar 92/2007, o qual define as áreas de atuação de
fundações pelo poder público; etc.
29
Atualmente, vivenciamos no Estado do Rio de Janeiro um amplo avanço do projeto de
saúde articulada ao mercado, com um forte viés da ampliação da privatização e a inserção de
empresas privadas nas unidades de saúde pública.
Acresça-se a constante utilização de
organizações sociais para a contratação de profissionais, compra de materiais e administração
de hospitais e unidades de saúde, numa clara transferência de responsabilidades e
precarização dos vínculos de trabalho dos profissionais da saúde. Diante dessa realidade
adversa para o projeto de saúde da reforma sanitária, torna-se pertinente estudar esse processo
e suas conseqüências.
30
CAPÍTULO II: Privatização e Terceirização da Saúde - o caso do Estado do Rio
de Janeiro
Após buscarmos entender a saúde inserida no contexto do capital e resgatarmos alguns
dos marcos históricos da saúde como política social no Brasil, cabe nos debruçar na
especificidade do objeto dessa monografia, os casos da privatização e terceirização da saúde
no Estado do Rio de Janeiro.
Esse processo de privatização da esfera pública, não exclusivo da saúde, tem como
conseqüência o prevalecimento da lógica do lucro e da capitalização nos
investimentos do setor. Em decorrência, constata-se hoje uma distribuição
fortemente desigual dos equipamentos de saúde no país quando se consideram as
dimensões regional, urbano-rural, e da rede urbana (...) A outra face da lógica da
capitalização e da lucratividade que rege as políticas de saúde, sobretudo nessas
últimas décadas, manifesta-se num modelo de assistência médica de alta densidade
tecnológica, particularmente nos procedimentos diagnósticos e terapêuticos.
(COHN, 2010: 18)
Retomando a ideologia que fundamentou a contra-reforma do Estado, Rezende (2008)
demonstra que as funções estatais, projeto que tem sido mais amplamente utilizado no âmbito
estadual do Rio de Janeiro, teriam a função de coordenar e financiar as políticas públicas de
saúde, com um discurso de divisão de responsabilidade com a iniciativa privada pelas
políticas sociais, as quais teriam o objetivo de amenizar os reflexos maléficos do mercado. O
Estado passaria de produtor e executor para financiador, coordenador e estimulador. Vemos,
assim, a privatização das políticas públicas travestidas com uma roupagem de nova forma de
gestão ou subsistema de gestão.
Compete-nos abrir um parêntese sobre a Lei de Responsabilidade Fiscal, Lei
Complementar 101/2000, que representa duro golpe para a gestão do SUS e para sua
implementação. Como já pontuamos, no trabalho em saúde, a força de trabalho aparece com
elemento principal do processo. Desse modo, não se faz saúde sem energia humana
capacitada. Isso equivale dizer que apenas os meios de produção e a matéria prima não
realizam o trabalho sozinhos. Quando limitamos o gasto público com pessoal, atingimos o
setor saúde no seu coração, pois impossibilitamos a contratação de profissionais para
empenhar sua força de trabalho no processo de fazer saúde.
31
A Política de Administração Pública é um instrumento fundamental para a Gestão
do SUS. Dependendo de como o Governo pretende administrar esta política, os
equipamentos e os trabalhadores públicos, haverá sempre repercussões pró ou contra
a universalização e a integralidade das Políticas Públicas de um modo geral,
principalmente para a Saúde, porque o SUS foi instituído, não apenas como um
novo modelo de atenção à saúde, mas enquanto um modelo de gestão do Estado,
federalizado, descentralizado, com comando único em cada esfera de governo e com
pactuação da política entre as mesmas, com financiamento tripartite, com
participação da comunidade e com controle social, dentre outros. (REZENDE,
2008:27)
Nesse capítulo vamos aprofundar o debate acerca das fundações estatais e procurar
demonstrar como está acontecendo o processo de privatização no Estado do Rio de Janeiro
que, em comparação com outros estados como Minas Gerais e São Paulo apresentaria, na
visão dos governos, um certo atraso, mas nem por isso deixa de apresentar-se como complexo
e precarizador, na medida em que se utiliza de diversos recursos de terceirização e
privatização. Tem-se, pois, um verdadeiro “mix” entre público e privado, empreendido pela
Secretaria Estadual de Saúde que incorporou o Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Rio
de Janeiro e lhe atribuiu responsabilidades de gerência da saúde pública.
2.1 - Fundações Estatais: privadas ou públicas?
Em estudo publicado em 2008, Granemann demonstra que o projeto de fundações
estatais teve seu precedente aberto pela emenda Constitucional nº19 e que “a necessidade de
regulamentação deste artigo oportunizou ao governo e seus aliados a ‘brecha’ para a
realização das contra-reformas do Estado de interesse do capital, sob a forma de fundações
estatais” (GRANEMANN, 2008:37)
Esse debate, que ganha corpo com a contra-reforma do Estado empreendida pelo
governo FHC, é aprofundado no governo Lula como o Projeto de Lei Complementar 92/2007.
Tal projeto propõe a definição das áreas de atuação das fundações estatais (GRANEMANN,
2008) e autoriza a criação de fundações sem fins lucrativos para a administração pública
indireta com personalidade jurídica de direito privado para o provimento de todas as
atividades não exclusivas do Estado – incluindo a saúde.
32
Na Exposição de Motivos informa que a criação de fundação estatal dar-se-á por lei
específica, que estabelecerá a sua personalidade jurídica, se de direito público ou
privado. Destaca que a proposta apenas autoriza o Poder Público a criar a fundação
estatal e que, no caso de fundação estatal de direito privado, o Projeto prevê que
somente poderá ser instituída para desempenho de atividades que não sejam
exclusivas do Estado (Bresser Pereira, 1995), de forma a vedar a criação de entidade
de direito privado para exercício de atividades em áreas em que seja necessário o
uso do poder de polícia. (GRANEMANN, 2008:33)
Granemann (2008) nos demonstra que a contra-reforma do Estado atinge a saúde e o
SUS em seus princípios, sendo o Plano Diretor da Reforma do Estado um dos aparatos legais
que permitem a privatização da saúde pública. As diretrizes que afetam a saúde são
principalmente a:
(...) contenção de gastos públicos e a flexibilização dos procedimentos de compras e
contratações, especialmente da força o trabalho; a focalização em detrimento das
políticas universais (custo e efetividade); a reorientação dos recursos públicos para o
Setor Privado; o controle do “corporativismo”; a “Descentralização”: Estado !
Terceirização ! Privatização e o incentivo a mecanismos de competição.
(GRANEMANN, 2008:33)
Antes de dar continuidade ao debate do objeto especifico desta monografia, é
importante nos apropriar de algumas das conclusões de Granemann (2008), acerca da
afirmação de alguns no que concerne ocorrer ou não uma privatização por meio das fundações
estatais. Primeiramente, Granemann enfatiza que o projeto de fundações estatais faz parte da
contra-reforma do Estado e atinge as políticas sociais; conseqüentemente, atinge a classe
trabalhadora. Outro ponto seria que as fundações estatais atingem também as políticas de
cultura e conhecimento, atingindo, assim, as bases da soberania das nações. Por último,
Granemann aponta que esse projeto soma-se aos demais projetos privatizantes desenvolvidos
no Brasil desde 1990 e que o objetivo principal da criação de novo ente jurídico está na
necessidade de responder as demandas de acumulação do capital.
O fetiche da iniciativa privada aplicado ao Estado tem o ‘mérito’ de ocultar a
essência dos processos que o Estado do capital deseja legitimar: ao tentar prendernos à forma desviamo-nos do fundamental, do essencial.A forma é a fundação
estatal, o conteúdo é a privatização dos serviços sociais,das políticas sociais, dos
direitos dos trabalhadores. As fundações estatais são formas atualizadas das
parcerias público privadas, das Organizações da Sociedade Civil de Interesse
Público (OSCIP), das Organizações Sociais (OS), das Fundações de Apoio e de
numerosas outras tentativas que sempre tentam repetir o mesmo - privatizar - sob
emblema diverso para que a resistência dos trabalhadores seja vencida.O essencial é
que as reduções do Estado para o trabalho em nome da eficácia e da eficiência do
serviço ao público,pela mesma medida, significam o aumento do Estado para o
33
capital e é por isto que as denominamos privatização. (GRANEMANN, 2008:3738)
Granemann (2008) demonstra como é contraditório esse processo de “nova” gestão
das políticas públicas do Estado na medida em que, ao buscar se apropriar dos instrumentos
de gestão do privado em que a lógica é o próprio sentido do público se alterar. A proteção
social em uma lógica exclusivamente empresarial de lucro fica destorcida e beneficia,
predominantemente, e de modo diferenciado mais a uma classe do que a outra. Vale citar um
trecho relevante do texto de Granemann (2008:39), que demonstra bem o complexo processo
que envolve a gestão do público pelo privado: “O fetiche da gestão, da técnica autônoma dos
processos sociais e das lutas sociais é a forma que embala e envolve a fundação estatal; forma
ilusória para criar a relação com o mercado e de mercado nas políticas sociais”.
2.2 - Fundações Estatais: legislações aprovadas na saúde do Estado do Rio de
Janeiro
Em 29 de novembro de 2007, foi aprovado no Estado do Rio de Janeiro a Lei
Complementar nº118, que definiu a saúde como área de atuação estadual, mas “sujeita a
desempenho por fundações públicas, nos termos do inciso XIX do Art. 37 da Constituição
Federal”, assinada pelo governador Sergio Cabral.
Essa Lei Complementar nº118 define a saúde como área de atuação passível de
exercício por fundação pública de direito privado, sendo estas instituídas pelo Poder
Executivo “mediante autorização legislativa específica, fundações públicas sem fins
lucrativos com personalidade jurídica de direito privado, patrimônio e receitas próprias e
autonomia gerencial orçamentária e financeira para o desempenho da atividade” de saúde no
Estado do Rio de Janeiro.
Já em 17 de dezembro de 2007, foi aprovada a Lei nº5164, que numa riqueza de
detalhes impressionante, autoriza o poder executivo a instituir a fundação estatal dos hospitais
gerais, a fundação estatal dos hospitais de urgência e a fundação estatal dos institutos de saúde
e a da central estadual de transplante.
34
A lei nº 5164 determina que as fundações farão parte da administração pública
indireta, com patrimônio e receitas próprios, gozando de autonomia gerencial, orçamentária e
financeira. Além de fazer parte do Sistema Único de Saúde e estarem vinculadas à Secretaria
de Estado de Saúde e Defesa Civil.
A Fundação Estatal dos Hospitais Gerais agrupará os seguintes hospitais: Hospital
Regional de Barra de São João (Barra de São João); Hospital Estadual Pref. João Baptista
Cáffaro (Itaboraí); Hospital Regional de Araruama; Hospital Estadual Vereador Melchiades
Calazans (Nilópolis).
A Fundação Estatal dos Hospitais de Urgência será responsável por manter os
hospitais: Hospital Estadual Getúlio Vargas; Hospital Estadual Carlos Chagas; Hospital
Estadual Rocha Faria; Hospital Estadual Pedro II; Hospital Estadual Albert Schweitzer;
Hospital Estadual Adão Pereira Nunes; Hospital Estadual Azevedo Lima; Hospital Estadual
Alberto Torres; Centro Psiquiátrico do Rio de Janeiro.
Já a Fundação Estatal dos Institutos terá em sua estrutura as seguintes unidades:
Instituto Estadual de Hematologia Arthur Siqueira Cavalcanti; Instituto Estadual de
Cardiologia Aloysio de Castro; Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia Luiz
Capriglione; Laboratório Central de Saúde Pública Noel Nutels; Central Estadual de
Transplantes; Hospital Estadual Tavares de Macedo; Hospital Estadual de Dermatologia
Sanitária; Instituto Estadual de Infectologia São Sebastião; Instituto Estadual de Doenças Ary
Parreiras (Niterói); Hospital Estadual Santa Maria; Hospital Estadual Anchieta.
A lei Nº 5164 determina que a transferência das unidades hospitalares para as
fundações estatais de direito privado dar-se-á de forma gradativa, por meio de ato do
governador. É vetado às fundações: transferir recursos a outras entidades ou para o
desenvolvimento de atividades não relacionadas com a saúde; participar de movimentos
políticos partidários; prestar serviços de assistência à saúde à iniciativa privada; cobrar do
usuário qualquer valor pelos serviços prestados.
Vale perceber que as fundações podem contratar empresas terceirizadas, ou seja,
transferir recursos a outras entidades como o poder público já vem fazendo na saúde Estadual
do Rio de Janeiro, desde que essas tenham finalidades relacionadas com a saúde (empresa de
ambulâncias, laboratório de análise, clinicas de imagens etc.).
35
As fundações receberão pagamentos pelos serviços prestados ao Estado, não sendo
possível que esta cobre duas vezes ao receber dos usuários e/ou prestar serviços a iniciativa
privada.
Acerca do patrimônio das fundações, a única menção da lei nº5164 diz respeito à
origem que deve ser destinada pelo poder público, particulares ou adquiridos com recursos do
contrato de gestão firmado com o Estado ou outras fontes. Temos aqui um precedente para o
investimento em saúde vir da iniciativa privada e uma omissão no que se refere ao patrimônio
das fundações ser público ou privado.
Sobre os recursos das fundações, a lei apresenta-se mais nebulosa no que tange à
iniciativa privada, já que determina que os recursos serão provenientes de pagamento pela
prestação de serviço ao Estado; rendas de seu patrimônio; doações, legados e subvenções;
derivados de contratos, convênios e outros instrumentos congêneres por ela celebrados com o
Poder Público e com a iniciativa privada. Vemos aqui que as fundações receberão pelos
serviços que prestarem ao Estado, numa clara demonstração de que elas não fazem parte dele
e sim do privado.
Sobre a contratação de pessoal, a lei determina que seja por meio de concurso público
e o regime jurídico será o da Consolidação das Leis de Trabalho (CLT). Granemann (2008)
demonstra que para os trabalhadores de saúde as fundações são prejudiciais porque, uma vez
perdida a estabilidade, a remuneração dependerá do contrato de gestão que cada fundação
estabelecer com o Estado. Assim, cada fundação terá seu próprio quadro de pessoal, com seu
plano de carreira, emprego e salário.
Acerca do contrato de gestão, a lei nº 5164 enfatiza que cada fundação deverá celebrar
um contrato com o poder público, como o objetivo de contratação de serviços e a fixação de
metas de desempenho. Metas essas, que serão quantitativas e nos fazem retomar a discussão
concernente à confusão entre a gerência do público e do privado. Nesse contexto, podemo-nos
questionar como estabelecer metas em saúde, quando pensamos também em qualitativos e não
apenas em quantitativos.
A lei nº 5164 ainda declara as fundações estatais como sendo instituições de utilidade
pública estadual e as reconhece legalmente como entidades beneficentes de assistência social.
Assim, as fundações ficam submetidas a regras de empresa estatal até que seja criado
regulamento próprio (estatuto de cada fundação).
36
2.3 - Saúde Pública no Estado do Rio de Janeiro
As fundações estatais ainda não estão totalmente implementadas, mas as leis
aprovadas são um importante e imprescindível primeiro passo. O que observamos são as
cooperativas, consideradas por alguns como “coopergatos”, já que fogem totalmente a lógica
de cooperativas que conhecemos e se configuram com formas de contratação de mão de obra
precarizada para saúde.
Ao procurar uma definição de cooperativa encontramos:
(...) é uma associação de pessoas com interesses comuns, organizada
economicamente e de forma democrática, com a participação livre de todos os que
têm idênticas necessidades e interesses, com igualdade de deveres e direitos para a
execução de quaisquer atividades, operações ou serviços Não é assistencial e nem
filantrópica.(COCAMAR, 2010)
Uma cooperativa deve ter princípios que fundamentam e estruturam seu
funcionamento, normatizando sua prática e geralmente baseados na adesão livre e voluntaria;
no controle democrático pelos cooperativados; participação econômica dos cooperativados de
maneira justa, organizada de forma que não haja ganha superior de uns em detrimentos de
outros (distribuição proporcional aos serviços executados); autonomia e independência
(garantidos na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, item XVIII); educação,
informação,
conhecimento
e
cooperação
entre
os
cooperados;
interesse
pela
comunidade.(COCAMAR, 2010)
Em uma cooperativa os cooperados teriam participação nos lucros e nos prejuízos,
mas nas cooperativas que atuam na saúde estadual os profissionais recebem salários mensais,
sem, contudo terem direitos trabalhistas. Seria então uma forma de burlar as leis trabalhistas,
tendo funcionários assalariados sem gasto social e previdencial.
Recentemente tivemos um concurso para contratação temporária realizado pela
Fundação Centro Estadual de Estatísticas, Pesquisas e Formação de Servidores Públicos do
Rio de Janeiro (CEPERJ), sendo os profissionais contratados em conformidade com a Lei nº
4.599/05 com as alterações da lei 5.490/09., em que os aprovados mantêm um vinculo
precário, frágil e com a SESDEC, recebendo uma remuneração baixa em comparação com os
37
demais profissionais lotados nas unidades. Esses profissionais foram distribuídos por todas as
unidades de saúde estaduais do Rio de Janeiro. E temos mais um concurso do mesmo tipo,
aberto em 2010.
A lei nº 4599 de 27 de setembro de 2005 dispõe sobre a contratação temporária de
profissionais para o estado do Rio de Janeiro para as seguintes áreas: Educação Pública;
Saúde Pública; Sistema Penitenciário; Assistência à Infância e à Adolescência. Vemos mais
uma vez a saúde inserida dentro da agenda de precarização do Estado, posta como um dos
setores passiveis de serem compostos por profissionais com vínculos frágeis e precários.
Estes processos seletivos públicos para as contratações temporárias têm prazo de
contratação por três anos e a Lei nº 5490/09 acrescenta a prorrogação do contrato por mais
dois anos, com um prazo total não superior a cinco anos. Os direitos dos contratados seriam:
licença maternidade; licença paternidade; férias; verba indenizatória por rescisão unilateral
imotivada por parte da Administração.
Também existem os funcionários contratados pela FIOTEC, em sua maioria médicos,
com carteira de trabalho assinada e salários bem superiores aos demais profissionais. Nesse
caso são garantidos os direitos da Consolidação das Leis de Trabalho e a seleção é feita com a
entrega de currículo. A resolução da Secretaria Estadual de Saúde e Devesa Civil (SESDEC)
N° 1226 de 11 de junho de 2010 em seu artigo nono estabelece que a SESDEC “contratará os
profissionais médicos, por tempo determinado (Junho a Dezembro de 2010), podendo ser
prorrogado, através do convênio com a FIOTEC”, tendo sido a única resolução acerca de
contratação por meio da FIOTEC para uma UPA de Niterói disponível no site da SESDEC,
mesmo que a contratação por meio dessa fundação seja uma realidade visível em todas as
UPAS e em alguns hospitais estaduais.
As empresas terceirizadas encontram-se tão inseridas dentro do âmbito público, que já
se naturaliza o processo de imbricação do público com o privado. Vivenciamos a terceirização
de laboratórios de analise clinicas, de imagens, de serviços gerais, administrativos e do
próprio espaço físico de muitas unidades.
38
2.4 – Licitações: Venda da Saúde do Estado do Rio de Janeiro
Outro instrumento de análise que merece ser observado no processo de privatização da
saúde diz respeito aos projetos e editais de licitação disponíveis no site da SESDEC1, em que
são postos “à venda” a gestão e a gerência de diversas unidades de saúde do Rio de Janeiro
em uma grande fragmentação e utilizando de uma argumentação no mínimo interessante para
entendermos a lógica do Estado capturado pelo capital.
Em agosto de 2010, foi aberto um edital (nº 168-10) de licitação para contratar pessoa
jurídica de direito privado para gestão e gerenciamento das UPA’s, executar as atividades e
serviços de saúde e administrar a infra-estrutura e a manutenção da unidade.
No Projeto Básico Nº168-10 de Gestão e Administração de Unidade de Pronto
Atendimento no Estado do Rio de Janeiro, são apresentadas as justificativas para a
contratação de pessoas jurídicas de direito privado para gerenciar as unidades, sendo que
todas elas giram em torno da ineficiência do Estado na Gestão da Saúde e na valorização do
privado como administrador.
São apresentadas dificuldades em contratar profissionais qualificados, altos gastos sem
eficácia, longo tempo para compra de insumos e manutenção de equipamentos etc. Sugerem
que torna-se “imprescindível” pagar para o setor privado administrar as unidades, executar as
funções do Estado e lucrar, pois só por meios de um novo modelo de gestão da saúde é
possível “atingir novos patamares de prestação dos serviços para proporcionar otimização do
uso dos recursos públicos e economia nos processos de trabalho associados à elevada
satisfação ao cliente”(SESDEC, 2010).
O cidadão transforma-se assim em cliente, numa clara adoção da lógica gerencial da
iniciativa privada sem, contudo, levar em conta que na política de Saúde essa lógica é
absurda, já que deveríamos trabalhar com o direito próprio de todo cidadão e não com um
serviço que deve gerar lucro atendendo a consumidores.
A gestão das unidades seria a mais fragmentada possível, com diversas empresas
responsáveis por lotes de UPA, que foram divididos pela SESDEC em 7 (sete) lotes com 3
(três) ou 4 (quatro) unidades cada: 2 (dois) lotes de UPAs na Capital, 2 (dois) lotes de UPAs
1
<http://www.saude.rj.gov.br/licitacao-pregoes-eletronicos-novos/ licitacao-pregoes-eletronicos-novos>
39
na Região Metropolitana I, 2 (dois) lotes de UPAs na Região Metropolitana II e 1 (um) lote de
UPAs no Interior do Estado do Rio de Janeiro.
A justificativa para essa fragmentação relaciona-se com a possibilidade da empresa
gestora falir ou ter um mau desempenho financeiro e, nesse caso, prejudicaria apenas parte da
população, os atendidos pelas UPAs do Lote da empresa com problemas.
A SESDEC (2010) destaca como vantagem da transferência da gestão das UPAs para
o setor privado:
(...) a integralidade do funcionamento do serviço, sem interrupções motivadas por
falta de manutenção, falta de insumos ou reposição de peças e ausência de pessoal
médico e técnico especializado, pois a empresa contratada ficará integralmente
responsável pelas manutenções preventivas e corretivas e pela contratação de
pessoal devidamente qualificado.
A secretaria não seria mais responsável pela contratação de profissionais e compra de
materiais, podendo economizar recursos financeiros. Entretanto, não explica como seria essa
economia, na medida que ainda seriam executados os mesmos serviços e com o acréscimo do
pagamento de uma empresa para administrá-lo e gerenciá-lo. Além de afirmar que essa
transferência possibilitaria uma maior agilidade e eficiência no atendimento à população, de
novo sem explicitar como seria atingido esse avanços, já que o número de profissionais não
mudaria, o vinculo continuaria precário e não haveriam outras medidas de impacto em outras
unidades de saúde do Rio de Janeiro (alta e baixa complexidade – que interferem diretamente
na demanda das UPAs).
Para fundamentar ainda mais a necessidade da privatização das UPAs, são
apresentados alguns números (que mereciam ser melhor estudados, pois o próprio modo
como são construídas as estatísticas é um ponto interessante de análise para entender as metas
e resultados propagados por esse governo na mídia) da privatização dos exames laboratoriais
e de imagens empreendida a partir de 2008.
A proposta desta divisão é evitar que uma única empresa seja a vencedora da
licitação de muitas unidades ficando a SESDEC/RJ, de certa forma, atrelada ao seu
desempenho econômico-financeiro. No caso de falência ou mau desempenho da
empresa gestora, os reflexos seriam sentidos em um elevado número de unidades de
saúde, comprometendo assim a qualidade do atendimento prestado aos usuários
fluminenses. (SESDEC, 2010:3)
40
A SESDEC (2010) afirma que o objeto da licitação nº168-10, que contrataria pessoa
jurídica de direito privado para administrar as UPAs atende:
(...) aos preceitos constitucionais da prestação dos serviços de assistência à saúde,
sobretudo pela previsão do art. 197, ao permitir que a Administração Pública, dentro
da sua obrigação de prestar esses serviços valha-se de terceiros por ela contratados.
Ademais, por prescindir da cobrança de tarifas, a gestão compartilhada respeita a
obrigação de gratuidade da prestação dos serviços de assistência à saúde,
desonerando os usuários de qualquer espécie de pagamento.
Outros pontos interessantes apresentados no Projeto Básico nº 168-10, merecem ser
apresentados:
- A única categoria profissional que teve sua forma de contratação especificada e um
piso salarial determinado foram os médicos, sendo a contratada obrigada a garantir uma
remuneração bruta mínima mensal de R$ 5.000,00 (cinco mil) e os direitos da Consolidação
das Leis do Trabalho. Percebemos assim que o corporativismo e a supremacia da medicina
ainda se mantêm presentes e visíveis em documentos oficiais do Estado;
- No que se refere ao pagamento à contratada, ele será composto pelo o Valor Total do
Contrato por Lote de UPAs e tributos inclusos. Tem diversos incentivos financeiros
relacionados a dados quantitativos e qualitativos, e até a avaliação positiva dos usuários da
unidade implicariam em recursos financeiros.
- Os contratos terão duração de 12 (doze) meses podendo ser prolongados por igual
período.
- Será assinado em conjunto com o Coronel Bombeiro Militar Fernando Suarez,
superintendente de urgência e emergência pré-hospitalar móvel e fixa.
Diversas outras licitações privatizantes e/ou terceirizantes foram realizadas durante
todo o governo Sergio Cabral. Sem a pretensão de nos aprofundarmos no debate (tendo em
vista que cada edital merecia um estudo aprofundado) vale citar alguns desses procedimentos
mais relevantes:
- Licitação Nº. 148-10 – Para a contratação de empresa privada especializada para
realização de exames laboratoriais em caráter de urgência e emergência, para as Unidades de
Pronto Atendimento – UPA do município do Rio de Janeiro e demais municípios do estado,
em atual funcionamento e para todas com previsão de implantação.
- Licitação nº. 146-10 – Com o objetivo de contratar empresa especializada para
assessorar, gerenciar, realizar manutenção preventiva e corretiva dos equipamentos médico41
hospitalares das unidades da SESDEC. A responsabilidade pelos equipamentos médicohospitalares passa para uma empresa privada que receberá do Estado para realizar a
manutenção e a gerencia dos Serviço de Imagem (Aparelho de Tomografia Computadorizada,
Equipamentos de Ultra-sonografia, Aparelhos de Radiodiagnóstico, Arco Cirúrgicos e
processadoras de Filmes Radiológicos), equipamentos de Oftalmologia, equipamentos de
Odontologia, CTI (Respiradores, Oxímetros e Monitores), Laboratório (Capelas de fluxo
laminar e Microscópios); Centro Cirúrgico (Bisturis Elétricos, Focos Cirúrgicos e Carros de
Anestesia); infra-estrutura hospitalar para os equipamentos (aterramento, refrigeração,
iluminação e proteção radiológica) etc.
- Licitação nº. 127-10 – A motivação desse edital é a contratação de empresa privada
especializada para a gestão do Centro de Diagnóstico por Imagem do Programa Rio Imagem,
assumindo as funções de realizar os exames, agendar e contribuir para o ensino e a pesquisa.
- Licitação nº. 125-10 – O governo estadual comprou unidades móveis de tomografia
computadorizadas, que representaram um grande investimento financeiro, sendo este edital
para a contratação de empresa privadas para a gestão dessas unidades móveis compradas com
dinheiro público para operar nos municípios do estado do Rio de Janeiro. A contratada irá
operar o equipamento, realizar a manutenção, agendamento, realização de exames e entrega
dos laudos etc.
- Licitação nº. 109-10 – Com o objetivo de contratar empresas privadas para gestão
das unidades móveis de ressonância magnética, adquiridas pelo governo Estadual. A
contratada irá descolar as unidades móveis, operar o equipamento, realizar a manutenção,
agendamento, realização de exames e entrega dos laudos etc.
- Licitação nº. 265-09 – Teve como ganhadora a FIOTEC que hoje apresenta-se como
grande empregadora de médicos nas unidades de saúde estaduais. O objeto desse edital foi a
contratação de serviços de planejamento e execução da gestão do atendimento médico nas
unidades de emergência dos hospitais e nas unidades de emergência pré-hospitalares fixas da
SESDEC/RJ, a saber: 11 unidades hospitalares da rede própria, 17 Unidades de Pronto
Atendimento (UPAs) já existentes e 12 UPAs a serem inauguradas.
- Licitação nº. 176-09 – Nesse edital de 2009 vemos a contratação de empresa privada
para a gestão e serviços médicos no Hospital Estadual Rocha Faria, com a implantação,
operação e manutenção do serviço de obstetrícia, com a realização de partos e de exame de
ultrassonografia e cardiotografia. Inclusive estipula o mínimo de parto e de exames que
42
podem ser realizados, são 350 partos, 350 procedimentos cirúrgicos obstétrico-ginecológicos,
375 ultrassonografia e 200 cardiotocografias.
- Licitação nº. 174-09 – Também de 2009, esse edital tem por objeto a contratação de
pessoa jurídica para a gestão de infra-estrutura, incluindo a operação, manutenção e a logística
das 19 (dezenove) unidades do programa Estadual de Farmácia Popular.
43
CONCLUSÃO
Tendo em mente nosso objeto de analise, a politica pública de saúde do Estado do Rio
de Janeiro e nossa hipótese de que as precarizações, terceirizações e mudanças na gestão são
formas de privatização, desenvolvemos esse trabalho buscando resgatar a história da política
de saúde e apresentar a legislação que vem possibilitando esse processo de desconstrução da
mesma enquanto dever do Estado.
O Estado do Rio de Janeiro com todas as suas particularidades, apresenta a questão da
política de saúde como um grande problema estrutural de má gestão, em que houve um
grande investimento em alta complexidade em detrimento da baixa complexidade. O nosso
velho conhecido modelo “hospitalocêntrico” que já se mostrou ineficiente e caro em todas as
suas experiências. Mesmo sendo uma das capitais com maior número de leitos per-capita não
é suficiente para atender a população, que sem acesso à prevenção e promoção da saúde está
cada vez mais doente e necessitando das grandes emergências superlotadas. Em resposta a
esta “bola de neve” criada pela má gestão do Estado, mais preocupado com o lucro das
grandes empresas de saúde (medicamentos, aparelhos, hospitais etc.) observamos um
processo de privatização, em que esse Estado afirma-se incapaz de administrar e manter
funcionando as unidades de saúde e transfere essa responsabilidade para o setor privado,
possibilitando assim que mais uma vez seja possível obter lucro por meio da saúde pública.
Diversos são os atores que participam desse processo de privatização da saúde pública
que tem uma historicidade repleta de avanços e retrocessos para o capital, graças à luta de
classes.
Nesse trabalho contextualizamos a saúde enquanto setor lucrativo e que vem
recebendo constante interesse por parte do capital e tem tornado-se instrumento
imprescindível para acumulação capitalista na fase atual.
Um dos argumentos chaves em todas as licitações e documentos oficiais baseia-se na
incompetência do Estado enquanto administrador dos fundos públicos e das políticas sociais,
enquanto as empresas privadas são supervalorizadas no que tangem a sua eficiência, eficácia e
qualidade de serviços. Para justificar a privatização utilizam-se de instrumentos ideológicos e
44
buscam apropriar-se de modelos gerenciais do sistema privado para o sistema público,
desconsiderando que as lógicas são ou deveriam ser totalmente inversas (privado garantir
lucro/ público garantir direito).
A Constituição Federal de 1988 inscreveu a saúde como direito social de todo
brasileiro e dever do Estado, mas logo na década de 1990 o neoliberalismo atingiu o Brasil
com toda a sua força e começamos a assistir a diversas políticas de contra-reforma do Estado
que acabaram por intensificar a possibilidade de privatizarmos a saúde e desconstruirmos e/ou
deturparmos as conquistas da reforma sanitária. A entrada do Partido dos Trabalhadores no
governo federal, a incorporação de diversas personalidades da reforma sanitária, e sua forte
influência em governos estaduais (em especial no Rio de Janeiro) não alteraram o cenário,
mas o aprofundaram ainda mais.
Um grande desafio é concluir esse trabalho, tendo em vista que o processo de
privatização da saúde pública do Estado do Rio de Janeiro está em andamento e a cada dia
novos dados aparecem. O governo do Estado parece estar experimentando o “melhor modelo”
(para o capital), adotando práticas “novas” (fundações estatais) e resgatando as antigas
(pregões).
Estudar as formas de terceirização e precarização da força de trabalho em saúde e
visualizar como este processo contribui para a privatização se faz cada vez mais necessário
nesse contexto de caos nos sistemas de contratação, não há como os profissionais se
organizarem, pois não há como estabelecer relações dentro de unidades em que o vinculo
empregatício acontece de cinco maneiras diferentes e a rotatividade é gigantesca.
Os profissionais têm o foco da luta direcionado para as suas condições de trabalho,
vínculo etc. Os usuários, muitas vezes sem acesso a informação, lutam pelo serviço pontual e
vemos a judicialização da saúde cada vez mais freqüente.
Como vimos, a legislação das fundações estatais do Estado do Rio de Janeiro
encontra-se aprovada desde 2007, tendo vindo para libertar o Estado tão sobrecarregado da
sua responsabilidade exaustiva de executar e produzir as políticas de saúde, podendo assim se
ocupar do que realmente importa (o que será?) e apenas ser o financiador, coordenador e
estimulador.
As fundações ainda não saíram do papel, mas para “não continuar cansado” demais o
Governo providenciou outros instrumentos de transferência de responsabilidade com a
execução e produção das políticas de saúde, que são as licitações via pregão para a
45
administração e gestão de diversas unidades e setores de hospitais, além contratar empresa
para contratar profissionais para as unidades estaduais etc.
Percebemos que atualmente temos duas frentes de privatização, as fundações estatais e
os contratos com pessoas jurídicas de direito privado para executarem diretamente a política
de saúde no Estado.
O processo de privatização possibilita que mais pessoas sejam empregadas por meio
de favores políticos, sem a necessidade de aprovação em concurso público. Profissionais mais
vulneráveis e submissos a vontade dos governantes, devido a falta de estabilidade. Ampliação
do número de profissionais, diminuição da qualidade e precarização do vinculo.
Quando analisamos a questão do financiamento é visível a possibilidade de uma
distribuição de renda ao contrário na medida em que o dinheiro que financia política de saúde
vem predominantemente dos impostos pagos pela classe trabalhadora e com a privatização a
classe capitalista acaba por receber um grande bolo desse dinheiro.
Uma grande vantagem apresentada pelos governantes acerca da privatização se
relacionam com a ampliação do número de atendimentos, redução do tempo de espera,
ampliação da oferta de exames e procedimentos de alta complexidade. Com sabemos na saúde
é a oferta que determina a demanda, sendo assim assistimos um aumento do gasto estatal e do
lucro privado, sem, contudo, existir real resolutividade nos problemas de saúde da população.
46
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