O uso off label de medicamentos e a busca por evidências orientadoras de conduta: uma abordagem necessária Karina Alves Ramos Farmacêutica industrial graduada pela UFMG, Discente do curso de pós-graduação em Vigilância Sanitária IFAR/PUC-GO. [email protected] Orientadora: Fernanda Junges Mestre em Ciências Farmacêuticas na Área de Gestão de Assistência Farmacêutica pelo Programa de Pós Graduação em Ciências Farmacêuticas da UFRGS. RESUMO A prática da prescrição de medicamentos registrados para uso não incluído na informação do produto (off label) é comum. Exemplos incluem uso para indicação diferente, em faixa de idade ou em dose e via de administração diversas das aprovadas por autoridades reguladoras. Em 2001, estimaram-se 150 milhões de usos off-label de medicamentos prescritos a pacientes ambulatoriais nos Estados Unidos. Com relação a essa prática, observou-se que os profissionais prescritores parecem ter um mínimo conhecimento das conseqüências de suas condutas, com baixo nível de conhecimento sobre os riscos, efeitos colaterais e resultados de eficácia dos medicamentos utilizados na forma off label. Neste artigo, por meio de uma revisão bibliográfica sobre o tema, enfatiza-se a necessidade dos profissionais prescritores usarem seu julgamento profissional para determinar a adequabilidade do uso off label em cada paciente e de utilizarem importantes e confiáveis fontes de informação para auxiliar na tomada de decisão. Na busca por evidências de alta qualidade para embasar a conduta clínica, a avaliação crítica da literatura disponível é imprescindível, sendo a qualidade e a força das evidências provenientes das fontes que as subsidiaram. Contudo, em todos os casos, é importante considerar os aspectos individuais do paciente. Se assim proceder, é provável que o profissional de saúde reduza o uso inapropriado de medicamentos, diminua a exposição do paciente a riscos desnecessários e alcance os melhores resultados possíveis com a terapia. PALAVRAS-CHAVE: ANVISA. Off label. Uso racional de medicamentos. Medicina embasada em evidência. ABSTRACT The practice of prescribing drugs registered for use not included in product information (off label) is common. Examples include different indication for use in old age or dose and route of administration other than those approved by regulatory authorities. In 2001, estimated to be 150 million off-label uses of drugs prescribed to outpatients in the United States. Regarding this practice, observed that prescribers appear to have a minimum knowledge of the consequences of their conduct, with low level of knowledge about risks, side effects and efficacy results of the drugs used off label. This article, through a literature review on the subject, emphasizes the need for prescribers to use their professional trial to determine the suitability of using off label for each patient and to use relevant and reliable sources of information to assist in making decision. In the search for high-quality evidence to base clinical management, critical evaluation of the available literature is essential, and the quality and strength of evidence from the sources that subsidized. However, in all cases, it is important to consider individual aspects of the patient. If he does so, it is possible that the health professional to reduce the inappropriate use of medications, decrease patient exposure to unnecessary risks and achieve the best possible results with the therapy. KEYWORDS: ANVISA. Off label. Rational use of medicine. Evidence-based medicine. INTRODUÇÃO A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) corresponde ao órgão responsável pelo registro, controle e fiscalização dos produtos e serviços de saúde no país. Todo medicamento, para ser introduzido no mercado nacional e reconhecido para determinada finalidade terapêutica, deve, inicialmente, passar pela avaliação desse órgão. As indicações constantes em bula são aquelas reconhecidas e regulamentadas pela ANVISA, e qualquer uso fora dessas condições é considerado como uso off-label. Quando não existe aprovação de uso para determinadas indicações é porque faltam informações sobre sua segurança e eficácia. Entretanto, estudos podem estar sendo ou vir a ser conduzidos, e quando finalizados, se aprovados, passarão a constar na bula do medicamento (ANVISA, 2005). Observa-se que mesmo antes de obter ou não estas indicações adicionais, o medicamento é prescrito em situações não aprovadas. Nesses casos, a decisão de utilização de um medicamento na forma off-label deve ser tomada em comum acordo com o paciente, ou um responsável por este, sendo importante que o uso do medicamento no caso em questão seja baseado em evidências confiáveis. Assim, a busca de evidências orientadoras de conduta deve permear a escolha pelo uso off label de um medicamento, para garantir o seu uso consciente e ético e minimizar os riscos ao paciente. Na busca pela melhor evidência disponível, deve-se considerar a experiência clínica e a evidência externa proveniente de pesquisa de bom nível, uma vez que esta última, apesar do seu peso, possui limitações, devendo o profissional prescritor valorizar os estudos bem conduzidos, sem ignorar a necessária adaptabilidade à prática clínica. O que implica, por parte do mesmo, um processo sistemático e contínuo de auto-aprendizagem e auto-avaliação. O presente estudo objetiva revisar como a literatura aborda a questão sobre o uso off label de medicamentos, apresentar recomendações sobre como evidenciar se tal uso é apropriado em cada caso e quais evidências devem ser buscadas para embasar a conduta clínica. Para tanto, foram coletados e selecionados artigos na Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), a qual proporciona busca simultânea em várias bases de dados, entre as quais, a Literatura Internacional em Ciências da Saúde (Medical Literature Analysis and Retrieval System Online, MEDLINE) e Scientific Electronic Library Online (SCIELO). Além disso, foram buscadas informações sobre o tema no site da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e em teses acadêmicas. RESULTADOS E DISCUSSÃO 1 VIGILÂNCIA SANITÁRIA E O REGISTRO DE MEDICAMENTO O registro de medicamento, que é a autorização concedida por um órgão governamental específico, para que um medicamento possa ser produzido e comercializado em um país, surgiu como resultado de uma série de acontecimentos que causaram danos à saúde e mortes de muitas pessoas em diferentes locais do mundo (KAIRUZ et al., 2007; SAID, 2004). Nos EUA, em 1937, o medicamento elixir de sulfanilamida causou a morte de centenas de pessoas em poucos dias, por ter em sua formulação uma substância tóxica, o dietilenoglicol. Outro evento ocorrido, e que merece destaque, foi a ocorrência, na década de 60, de milhares de recém-nascidos com focomelia, como resultado do uso por mulheres grávidas de um medicamento indicado na época para acalmar náuseas e vômitos na gravidez (SAID, 2004). Após esses eventos, entre outros, a autorização para o consumo de um determinado medicamento passou a ser feita após a definição de parâmetros de eficácia e segurança e da análise da relação risco-benefício referente ao uso do medicamento em uma situação clínica específica. Desde então, tal análise passou a ser realizada por meio de estudos em animais e de experimentação e provas clínicas em humanos (SAID, 2004). Dada a importância de tais estudos e provas clínicas para a obtenção do registro sanitário de um medicamento e a correlação desses com as indicações aprovadas para o uso de cada medicamento, cabe aqui descrevê-los. A fase de estudos em animais compreende a fase pré-clínica, que se baseia na aplicação da nova substância a ser estudada em animais, depois de identificada em experimentação in vitro como tendo potencial terapêutico. Nessa fase, são verificadas as informações preliminares sobre a atividade farmacológica específica e o perfil de toxicidade aceitável. Concluída a etapa do estudo pré-clínico e da formulação inicial, o produto ingressa nos denominados estudos clínicos. Tais estudos são definidos como: Qualquer investigação em seres humanos, objetivando descobrir ou verificar os efeitos farmacodinâmicos, farmacológicos, clínicos e/ou outros efeitos de produto(s) e/ou identificar reações adversas ao produto(s) em investigação, com o objetivo de averiguar sua segurança e eficácia (ANVISA, 2004). Os estudos clínicos são divididos em três fases, denominadas fase I, fase II e fase III. -Fase I: Essa fase dos estudos se propõe a estabelecer uma evolução preliminar da segurança e do perfil farmacocinético, e quando possível, um perfil farmacodinâmico, por meio da avaliação inicial da substância em um pequeno grupo de pessoas voluntárias, em geral sadias. -Fase II (Estudo Terapêutico Piloto): constituída por ensaios, que visam demonstrar a atividade farmacológica e estabelecer a segurança em curto prazo do princípio ativo, em número reduzido de pacientes afetados por uma determinada enfermidade ou condição patológica. Essa fase do estudo tem por objetivo verificar a eficácia, confirmar a segurança e definir a biodisponibilidade e bioquivalência de diferentes formulações. -Fase III (Estudo Terapêutico Ampliado): são estudos de larga escala, em múltiplos centros, com diferentes populações de pacientes, para demonstrar eficácia e segurança em uma população ampliada. Busca definir o conhecimento do produto nas doenças, demonstração de vantagem terapêutica e estabelecimento do perfil terapêutico, quais sejam: indicações, dose e via de administração, contra-indicações, efeitos colaterais e medidas de precaução. Se nas três fases dos testes clínicos o produto demonstrar segurança suficiente e efeito terapêutico significante, estará apto a ser submetido ao processo de registro junto ao órgão sanitário (SAID, 2004). Nos EUA, a regulação e controle dos medicamentos são feitos pela agência de Administração de Medicamentos e Alimentos (FDA - Food and Drug Administration), enquanto que na Europa, a Agência Européia para Avaliação de Produtos Medicinais (EMEA - European Medicines Agency) é o órgão regulatório. No Brasil, o registro de medicamentos é ato privativo do órgão competente do Ministério da Saúde, a ANVISA. Esses órgãos são responsáveis pela elaboração de normas técnicas e pela avaliação das novas solicitações de indicações de uso para um determinado medicamento, bem como pela fiscalização e acompanhamento do uso dos medicamentos dentro de suas indicações. Dentre as competências da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, conforme se depreende da Lei nº 9.782 de 26 de janeiro de 1999 (Lei de criação da ANVISA), está a de “regulamentar, controlar e fiscalizar os produtos e serviços que envolvam risco à saúde pública, entre os quais, medicamentos de uso humano, suas substâncias ativas e demais insumos, processos e tecnologias”. Cada medicamento registrado no país recebe a aprovação da ANVISA para uma ou mais indicações, as quais precisam ser comprovadas por meio da apresentação de estudos clínicos robustos e confiáveis. A partir de sua aprovação pelo órgão sanitário, a indicação do medicamento passa a constar em sua bula, sendo aquela respaldada pela Agência. 2 O USO OFF LABEL DE MEDICAMENTOS Segundo a Resolução RDC nº 47 de setembro de 2009, “a bula é o documento legal sanitário que contém informações técnico-científicas orientadoras sobre os medicamentos para o seu uso racional” (BRASIL, 2009). Assim, todo uso de um medicamento em situações divergentes das que constam na bula do medicamento registrado junto à ANVISA é considerado off label, não sendo respaldada pelo órgão sanitário. Nesse caso, a prescrição do medicamento passa a ser de inteira responsabilidade do médico assistente, em comum acordo com o paciente, ou um representante desse. Segundo Gazarian et al. (2006), prescrições off label se referem àquelas prescrições de medicamentos para um uso que não está incluído nas informações do produto (em bula). Exemplos incluem a prescrição do uso de um medicamento para uma indicação, faixa etária, dose, ou ainda, via de administração não recomendadas em bula. O uso off label de medicamentos é reportado como sendo uma prática comum, com taxas de até 40% em adultos e até 60% em pacientes pediátricos na Austrália (GAZARIAN et al., 2006). No Brasil, são poucos os estudos sobre o tema e grande parte realizados somente em hospitais (SILVA PAULA, 2010). Estudos publicados em países europeus e em outros países desenvolvidos, realizados em sua maioria com crianças hospitalizadas, demonstraram que entre 36-92% das crianças hospitalizadas recebiam pelo menos um medicamento nessa condição. As maiores taxas foram observadas nos grupos mais jovens como os neonatos (80-97%) e nos grupos mais enfermos (70-92% na UTI pediátrica) (GAZARIAN, 2007). Uma explicação para o maior uso off label de medicamentos na população pediátrica pode derivar do fato de que os estudos clínicos não são rotineiramente realizados com crianças, pela maior dificuldade de realização dos mesmos, os quais exigem autorização dos responsáveis pela criança, o que muitas vezes dificulta a realização dos ensaios. É importante diferenciar o uso off label de medicamentos, do uso de medicamentos não registrados, que são aqueles não aprovados para comercialização no país pelo órgão regulador (GAZARIAN, 2007). Esses últimos, portanto, não apresentam qualquer forma de indicação de uso regulamentada no país e não estão comercialmente disponíveis no mercado farmacêutico nacional. O acesso a medicamentos não registrados pode ocorrer somente após a obtenção de autorização especial de importação de medicamentos junto à ANVISA e sob condições de uso restritas, o que dificulta sobremaneira a sua utilização. Do contrario, a utilização de um medicamento já registrado para uma indicação não regulamentada é uma prática bastante difundida. Em 2001, estimaram-se 150 milhões de usos off-label de medicamentos prescritos a pacientes ambulatoriais nos Estados Unidos. Dentre eles, gabapentina (83%) e amitriptilina (81%) apresentaram as maiores proporções de prescrição off-label. A maioria das indicações (73%) apresentava pouco ou nenhum suporte científico (WANNMACHER, 2007). Há, inclusive, registros de tentativa de indústrias farmacêuticas incentivarem o uso off label de medicamentos, o que no Brasil e em alguns países como EUA é proibido. Por exemplo, em janeiro de 2009 a Eli Lilly, indústria farmacêutica, foi multada em US$ 515 milhões por promoção não aprovada do antipsicótico Zyprexa® (olanzapina). O fato é que entre 1999 a 2003 a empresa treinou sua equipe de vendas para desconsiderar a legislação e promover o medicamento para usos não previstos em bula. A empresa declarou-se culpada admitindo que sua estratégia de marketing foi ilegal (SILVA PAULA, 2010). Tendo em vista que os estudos clínicos demandam uma grande mobilização de recursos financeiros e que têm, na maioria das vezes, tempo de duração prolongado, o incentivo do uso off label de medicamentos por parte das indústrias farmacêuticas representa uma manobra mercadológica para ampliar o uso de seus produtos. Para tanto, utilizam-se de resultados de pesquisas (marketing disfarçado de pesquisa) que ficam aquém do padrão necessário para aprovação dos órgãos regulatórios, informando aos médicos esses resultados, o que estimula a prescrição (SILVA PAULA, 2010). A promoção de medicamentos para uso off label no Brasil é proibida, conforme a Resolução RDC nº 96 de 17 de dezembro de 2008, segundo a qual, todas as alegações presentes na peça publicitária referentes à ação do medicamento, indicações, posologia, modo de usar, reações adversas, eficácia, segurança, qualidade e demais características do medicamento devem ser compatíveis com as informações registradas na ANVISA (BRASIL, 2008). É importante salientar que, embora esse tipo de propaganda seja proibido, o uso off label de medicamentos não é ilegal, e muitas vezes pode ser clinicamente apropriado, por exemplo, no caso de um paciente com uma doença séria, para a qual não existem alternativas e no caso em que os potenciais benefícios superam os riscos. Todavia, tal uso traz consigo uma série de questões clínicas, de segurança e éticas, as quais devem ser atentamente observadas pelos profissionais prescritores, que devem realizá-lo do modo mais seguro possível, com fundamento em evidências científicas confiáveis. Implica, portanto, grande responsabilidade do profissional para avaliar os riscos e benefícios individualmente para cada paciente (GAZARIAN et al., 2006). Vale lembrar que o uso de um medicamento com pouca ou nenhuma evidência de eficácia e segurança e em dose não apropriada, pode expor o paciente a terapias não efetivas e a riscos desconhecidos de eventos adversos (GAZARIAN, 2007). Com relação aos pacientes pediátricos, por exemplo, há um acúmulo de evidências sobre o aumento da incidência e severidade de reações adversas a drogas associada com o uso off label de medicamentos. Até usos off label bem estabelecidos têm se mostrado não serem efetivos ou serem nocivos, como mortes associadas com o uso de propofol para sedação em crianças sob cuidados intensivos (GAZARIAN et al., 2006). Segundo Gazarian (2007), a maioria dos clínicos que prescrevem medicamentos para uso off label consideram suas prescrições apropriadas e que os benefícios superam os riscos. Contudo, o conhecimento das conseqüências de suas condutas parece ser mínimo, com baixo nível de conhecimento sobre os riscos, efeitos colaterais e resultados de eficácia não avaliados. Resultados do estudo com 150 milhões de prescrições off label nos EUA demonstraram que 73% dessas tinham pouco ou nenhum suporte científico, concluindo que somente uma pequena proporção das prescrições off-label são justificadas por evidência científica. Isto aumenta as discussões em torno da validade da análise dos riscos e benefícios quando os clínicos tomam a decisão sobre a prescrição off label. Inclusive, visando reduzir a prescrição off label em crianças, foram tomadas iniciativas por parte dos órgãos regulatórios dos EUA e da União Européia para estimular as indústrias farmacêuticas a desenvolverem mais medicamentos para essa faixa etária (GAZARIAN, 2007). Até o momento, espera-se que os clínicos usem seu julgamento profissional para determinar a adequabilidade do uso off label em cada paciente e que utilizem importantes e confiáveis fontes de informação para auxiliar na tomada de decisão, conforme descrito a seguir. Entretanto, a decisão pela utilização, ou não, de um medicamento nessa condição, deve ser realizada em comum acordo com o paciente, ou um responsável por este, o qual deve ser adequadamente esclarecido sobre os potenciais riscos e benefícios envolvidos. 3 O PROCESSO DE AVALIAÇÃO DO USO OFF LABEL DE MEDICAMENTOS De acordo com Gazarian et al. (2006) quando existem evidências de alta qualidade apoiando o uso off label de um medicamento, um processo documentado de obtenção de consentimento para o tratamento, junto ao paciente, é recomendável. Isso inclui obter informações adicionais sobre as incertezas e discutir com o paciente, ou responsável por este, a razão para a utilização do medicamento, terapias alternativas e possíveis reações adversas. Quando não existe nenhuma evidência de qualidade apoiando o uso off label de um determinado medicamento, ainda pode ser um caso para o seu uso em um paciente em particular, no entanto, pode existir um nível mais elevado de risco. Em tais casos, uma avaliação sobre os possíveis benefícios e riscos deve ser empreendida. Alternativamente, o uso pode ocorrer no contexto de uma proposta formal de investigação que tenha sido avaliada e aprovada por uma comissão institucional de ética em pesquisa. Em ambos os casos, um consentimento informado é necessário (GAZARIAN et al., 2006). Esses mesmos autores destacam que para proporcionar um processo sistemático de avaliação e adequação de qualquer proposta de uso off label, um algoritmo deve ser seguido (Figura 1). Nesse algoritmo, algumas perguntas devem ser respondidas de acordo com cada caso. Figura 1 - Avaliando se o uso off label de um medicamento é apropriado Fonte: GAZARIAN, 2007 O medicamento está registrado para a indicação, dose e via de administração prescrita? Não (uso off label) Sim (uso conforme indicado) Existe evidência de alta qualidade para o seu uso? (Avaliar pesquisas publicadas contendo evidências sobre segurança e eficácia) Sim (uso rotineiro off label justificável) Seguir os consensos terapêuticos. Discutir questões adicionais sobre o uso do medicamento no caso concreto. Pode ser apropriado obter junto ao paciente um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) Não Uso off label não justificado, mas pode ser apropriado para: Uso em pesquisa (desde que aprovado por comitê de ética e com TCLE) Uso excepcional se: Doença grave; Há evidência para potencial efeito benéfico; Potenciais benefícios superam os riscos; Terapia padrão tem sido ineficiente ou não é apropriada; Uso aprovado pela comissão de farmacoterapêutica; TCLE. A princípio, deve ser observado se o medicamento será utilizado conforme indicação, idade, dose e via de administração registrados. Em caso afirmativo, o produto será utilizado de acordo com o recomendado. Em caso contrário, a pergunta a ser realizada é se existem evidências de alta qualidade que apoiem sua utilização. Nesse caso, se a resposta for “sim”, então o uso rotineiro do medicamento na forma off label é justificado. Salienta-se, entretanto, que é recomendado, mesmo assim, que o profissional siga o processo normal de consentimento para o tratamento, que inclui discutir com o paciente, ou com o seu responsável, a razão para usar o medicamento, possíveis alternativas terapêuticas e efeitos colaterais. Uma vez que o medicamento será usado na forma off label, informações adicionais sobre eventuais incertezas associados com esse uso devem ser repassadas. Caso não existam evidências de alta qualidade que suportem o uso off label, então tal uso, em geral, não se justifica, mas pode ser apropriado quando utilizado dentro de uma pesquisa formal, aprovado por um Comitê de Ética em Pesquisa, com consentimento informado por escrito, ou usado, excepcionalmente, em um paciente se existe uma grave patologia ou condição onde existem algumas evidências que suportem um potencial efeito benéfico, ou quando a terapia padrão não tenha sido adequada. Nessa hipótese, o medicamento usado na forma “off label” deve sempre ser utilizado mediante obtenção de consentimento informado por escrito (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE). 4 A CONDUTA FUNDAMENTADA EM EVIDÊNCIA Como pode ser verificado, o processo de tomada de decisão quanto à utilização, ou não, de um medicamento na forma off label não é algo simples, requer etapas e busca exaustiva na literatura, para melhor esclarecimento sobre os potenciais benefícios e riscos envolvidos, o que aponta para a necessidade de grande cautela por parte do profissional prescritor ao optar por essa forma de tratamento, devendo estar fundamentado nas melhores evidências científicas disponíveis. Nesse sentido, torna-se oportuno fazer uma breve descrição de um novo modo de pensar na prática médica, que surgiu na década de 1990 e que vem ganhando força na atualidade. Esse novo modelo de pensamento, que é baseado na busca de evidências orientadoras de condutas, reforça a experiência clínica por meio da melhor informação científica disponível, valorizando o paciente quanto a suas peculiaridades e expectativas, e objetivando um atendimento mais correto, ético e cientificamente embasado. Nesse modelo, pesquisa e prática clínica não mais estão dissociadas e fazem parte de um processo sistemático e contínuo de auto-aprendizado e auto-avaliação, sem o que as condutas tornam-se rapidamente desatualizadas e não-racionais. Em contraste com o paradigma tradicional da prática médica, reconhece-se que a intuição, a experiência clínica não sistemática e o raciocínio fisiopatológico não são razões suficientes para a tomada de decisão clínica; por outro lado, isoladamente, as evidências nunca são suficientes para tomar uma decisão clínica (HOEFLER & SALGUES, 2010; WANNMACHER, 2000). Ressalta-se que a experiência clínica continua sendo fundamental nesse novo paradigma, pois engloba a proficiência e o julgamento provenientes da prática clínica, em que, a partir de um eficiente diagnóstico, identificam-se situações, direitos e preferências dos pacientes, influenciando as tomadas de decisão sobre as condutas que lhes serão oferecidas. Contudo, a evidência externa, que provém da pesquisa clínica sistemática e relevante, define a acurácia dos testes diagnósticos, o poder dos marcadores prognósticos e a eficácia e segurança de medidas preventivas, terapêuticas e reabilitadoras. Assim, é necessário o uso equilibrado de ambas, pois nenhuma sozinha é suficiente (WANNMACHER, 2000). A experiência pessoal não é, pois, rejeitada no novo modo de pensar a prática médica. Observações clínicas criteriosas (relatos de casos, séries de casos) constituem uma primeira fonte de hipóteses sobre a eficácia dos tratamentos. Porém, é essencial que se lhes reconheçam as limitações. Como não são situações controladas, é impossível saber se o sucesso terapêutico é decorrente de efeito placebo, regressão à média, remissão espontânea ou variabilidade individual de sinais e sintomas. Já a falha da terapia pode estar relacionada a erro de diagnóstico, falta de adesão do paciente, variações individuais ou fatores outros determinantes da manutenção da doença. Dessa forma, a prática clínica sem a fundamentação da evidência externa corre o risco de tornar-se desatualizada e nãoracional, em detrimento dos pacientes (WANNMACHER, 2000). A evidência externa provém de pesquisa cuja validade interna às vezes conflita com a externa1. Isto porque, os estudos clínicos são realizados em populações homogêneas que 1 Hoefler e Salgues (2010) definiram Validade interna e Validade externa do seguinte modo: - Validade interna é o grau em que os resultados de um estudo estão corretos para a amostra de pacientes sob análise. É “interna” porque se aplica às condições clínicas do grupo específico de pacientes sendo observados freqüentemente excluem idosos, mulheres e comorbidade. Seus resultados não podem ser generalizados aos demais segmentos de uma sociedade. Na pesquisa, prefere-se a intervenção medicamentosa única, avaliada no início do tratamento, enquanto na prática clínica os pacientes fazem uso de múltiplas drogas, já tomadas por tempo variável. A maioria das investigações avalia reduzido número de pacientes, por período relativamente curto, o que impede a detecção de alguns dos potenciais riscos de uma medicação (WANNMACHER, 2000). Assim, devem ser valorizados os estudos com validade interna, mas sem ignorar a necessidade de adaptação à realidade clínica, com suas dificuldades inerentes (validade externa) (HOEFLER & SALGUES, 2010). Em meio a esse novo paradigma, observa-se que se torna incalculável, por sua constante produção, a quantidade de literatura disponível sobre as novas tecnologias, novos produtos e novas informações a respeito de fármacos antigos (neste caso incluem-se novos usos para medicamentos já conhecidos, muitos na forma off label). Assim, todos os profissionais da saúde são confrontados com o constante desafio de novas informações, que lhe requerem uma triagem e assimilação para melhorar suas práticas. A maior validade da informação requerida para avaliar eficácia medicamentosa provém de ensaios clínicos randomizados, duplo-cegos, controlados, bem delineados, em que vieses sistemáticos e erros aleatorizados sejam adequadamente controlados. Enquanto que, uma série ou relatos de casos provém da observação assistemática da evolução dos pacientes submetidos a tratamento, por isso, é apenas exercício gerador de hipótese. A interpretação de série de casos depende de seu tamanho e sua documentação. Pequenas e não, necessariamente, aos outros. A validade interna de uma pesquisa é determinada pela forma como o delineamento, a coleta de dados e a analise são conduzidos e é ameaçada por todos os vieses e variações aleatórias. Para que uma observação clínica seja útil, a validade interna é uma condição necessária, mas insuficiente. -Validade externa é o grau de veracidade dos resultados de uma observação em outros cenários. Para um clínico é a resposta à questão: “Presumindo que os resultados de um estudo sejam verdadeiros, eles podem ser aplicados aos meus pacientes também?” A capacidade de generalização expressa a validade de se presumir que os pacientes em um estudo são semelhantes a outros pacientes. Cada estudo é generalizável a pacientes muito parecidos com aqueles do Estudo. Entretanto, um estudo incontestável pode ser totalmente enganoso se os resultados forem generalizados aos pacientes errados. séries de casos e relatos de casos não permitem julgamentos reais (HOEFLER & SALGUES, 2010). As evidências científicas têm diferentes graus de certeza, condicionadas por fontes de onde provêm, delineamento dos estudos que lhes dão origem, intensidade dos efeitos observados e possibilidade de ocorrência de erros aleatórios. Maior credibilidade têm os estudos originais, que enfocam aspectos cientificamente importantes, desenhados para eficazmente testar a hipótese dos autores, com amostras amplas, adequadamente controlados, submetidos à análise estatística apropriada e geradores de conclusões que não extrapolem os resultados obtidos. No quadro 1 são apresentados os diferentes níveis de evidências, de acordo com uma hierarquia proveniente do peso relativo de diferentes estudos primários geradores de recomendações de graus diversificados. Os extremos superior e inferior dos graus de evidência são constituídos, respectivamente, por ensaio clínico randomizado e série de caso. Quadro 1 – Qualificação dos estudos que fundamentam os graus de recomendação Nível do Estudo I Caracterização Ensaio clínico randomizado com desfecho e magnitude de efeito clinicamente relevantes, correspondentes à hipótese principal em teste, com adequado poder e mínima possibilidade de erro alfa (falso positivo). Meta-análises de ensaios clínicos de nível II, comparáveis e com validade interna, com adequado poder e mínima possibilidade de erro alfa. II Ensaio clínico randomizado que não preenche critérios de nível I. Análise de hipóteses secundárias de nível I. III Estudo quase-experimental com controles contemporâneos selecionados por método sistemático independente de julgamento clínico. Análise de subgrupos de ensaios clínicos randomizados. IV Estudo quase-experimental com controles históricos. Estudos de coorte. V Estudos de casos e controles. VI Séries e relatos de casos. Fonte: WANNMACHER (2000) No quadro 2 são mostrados os diferentes graus de recomendação de conduta terapêutica. Na ausência de, pelo menos, recomendação de especialistas reconhecidos, a indicação do tratamento deve ser rotulada como incorreta. Quadro 2 – Graus de recomendação terapêuticas Graus de Caracterização Comentários recomendação A Pelo menos um estudo de Seguimento obrigatório, na ausência de contra- nível I indicação do paciente (boa evidência para sustentar o uso) B C Pelo menos um estudo de Pode ser útil, mas tem menor magnitude de nível II benefício Pelo menos um estudo de Fundamentam minimamente condutas nível III ou dois de níveis IV ou V D Somente estudos de nível Fundamentam minimamente condutas VI ou recomendações de especialistas. Fonte: WANNMACHER (2000) Observa-se, portanto, que na busca pela melhor evidência científica deve-se utilizar, preferencialmente, dados de ensaios clínicos randomizados, revisões sistemáticas e meta-análises, com adequado desenho metodológico e poder estatístico, com avaliação de desfechos primordiais, com relevância clínica e aplicabilidade às condições reais. Assim, diante da necessidade de se optar pelo uso de um medicamento na forma off label, torna-se necessária a aplicação de condutas embasadas em evidências científicas. Para tanto, conforme exposto por Wannmacher (2000), é preciso converter as necessidades de informação clínica em questões respondíveis e capturar, com a máxima eficiência, a melhor evidência que responda a essas perguntas. Contudo, é preciso ainda avaliar criticamente a evidência quanto a sua validade (aproximação da verdade) e a sua aplicabilidade clínica. Portanto, a busca de respostas adequadas às questões presentes na atividade clínica deve ser sistemática e reprodutível, mas embora cientificamente orientada, deve considerar, em primeiro lugar, os aspectos individuais do paciente. CONCLUSÃO O uso off label de medicamentos, embora consista em uma abordagem terapêutica não respaldada pelo órgão de vigilância sanitária, não é ilegal, podendo, inclusive, corresponder a uma alternativa terapêutica para aqueles pacientes que apresentem uma doença para a qual não existe tratamento, ou no caso em que os potenciais benefícios superam os riscos. Entretanto, tal uso se associa a aspectos clínicos, de segurança e éticos a serem considerados. Na busca de justificativa embasada em alta qualidade para uma prescrição off label, o profissional de saúde deve buscar conciliar a experiência clínica proveniente de observações clínicas criteriosas e a evidência externa, gerada por pesquisa de bom nível. É essencial, para tanto, distinguir fontes de pesquisa fidedignas, éticas e isentas de conflitos de interesses, o que exclui qualquer informação proveniente do produtor de medicamentos que tem interesses comerciais no produto, que muitas vezes suplanta o dever de informar corretamente e cientificamente. Portanto, a avaliação crítica da literatura disponível é imprescindível, embora, em todos os casos, seja preciso ainda considerar os aspectos individuais do paciente, com suas preferências e limitações ao tratamento. Se assim proceder, é provável que o profissional de saúde reduza o uso inapropriado de medicamentos, diminua a exposição do paciente a riscos desnecessários e alcance os melhores resultados possíveis com a terapia. REFERÊNCIAS ANVISA- AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA. Medicamentos. Considerações e definições para pesquisa clínica - 2004 http://portal.anvisa.gov.br/wps/portal/anvisa/home/medicamentos. Disponível Acessado em: em: 20/10/2010. ANVISA- AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA. Medicamentos. Como a ANVISA vê o uso off label de medicamentos – 2005. Disponível em: http://www.anvisa.gov.br/medicamentos/registro/registro_offlabel.htm.Acessado 20/10/2010. em: BRASIL. Resolução RDC nº 96 de 17 de dezembro de 2008. Dispõe sobre a propaganda, publicidade, informação e outras práticas cujo objetivo seja a divulgação ou promoção comercial de medicamentos. Diário Oficial [da] Republica Federativa do Brasil, Brasília, DF, 18 dez. 2008. Disponível <http://portal2.saude.gov.br/saudelegis/leg_norma_pesq_consulta.cfm>. em: Acesso em: 23/11/2010. BRASIL. Resolução RDC nº 47 de 08 de setembro de 2009. Estabelece regras para elaboração, harmonização, atualização, publicação e disponibilização de bulas de medicamentos para pacientes e para profissionais de saúde. 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