PEDAGOGIA FILOSOFIA E EDUCAÇÃO Universidade Estadual de Santa Cruz Reitor Prof. Antonio Joaquim da Silva Bastos Vice-reitora Profª. Adélia Maria C. M. Pinheiro Pró-reitora de Graduação Profª. Flávia Azevedo de Mattos Moura Costa Diretora do Departamento de Ciências da Educação Profª. Maria Olívia Lisboa Ministério da Educação Ficha Catalográfica E24 Educação, história e sociedade : módulo 1 : Filosofia e Educação, volume 2 / Elaboração de conteúdo: Carla Milani Damião. – [Ilhéus, BA] : UAB/UESC, [2009]. 1 v. (várias paginações). Módulo: PEDAGOGIA/EAD-UESC. Inclui bibliografias. ISBN: 978-85-7455-176-0 1. Educação – Filosofia. 2. Filosofia da Educação. I. Damião, Carla Milani. CDD 370.1 Coordenadora Adjunta UAB – UESC Profª. Flaviana dos Santos Silva Coordenadora do Curso de Licenciatura em Pedagogia (EAD) Profª. Maria Elizabete Souza Couto Elaboração de Conteúdo Profª. Carla Milani Damião Instrucional Designers Profª. Marileide dos Santos de Olivera Profª. Gessilene Silveira Kanthack Revisão Profª. Sylvia Maria Campos Teixeira Profª. Maria Luiza Nora Diagramação Jamile A. de Mattos Chagouri Ocké João Luiz Cardeal Craveiro Ilustração e Capa Sheylla Tomás Silva EAD - UESC Profª. Maridalva de Souza Penteado PEDAGOGIA Coordenadora UAB – UESC Sumário UNIDADE I O Surgimento da Filosofia e as Cosmologias das Escolas Pré-socráticas.............................. 9 1. INTRODUÇÃO.................................................................................................................11 2. O NASCIMENTO DA FILOSOFIA.........................................................................................12 3. AS ESCOLAS PRÉ-SOCRÁTICAS. .......................................................................................16 3.1. A escola jônica.........................................................................................................17 3.2. A escola pitagórica ou itálica......................................................................................19 13.2.1. Ensinamentos, contribuições e decadência do pitagorismo...........................................19 3.3. Heráclito de Éfeso (cerca de 540-470 a.C.)..................................................................22 3.4. A escola eleata.........................................................................................................23 3.5. A escola da pluralidade...................................................................................................24 REFERÊNCIAS......................................................................................................................27 UNIDADE II Porque Sócrates é Filósofo e porque a Filosofia não é um saber........................................ 29 1. INTRODUÇÃO................................................................................................................31 2. TIPOS DE SÁBIOS NA ANTIGUIDADE GREGA......................................................................32 3. SÓCRATES: “SÓ SEI QUE NADA SEI”.................................................................................35 4. PLATÃO E A BUSCA DO SABER..........................................................................................39 REFERÊNCIAS......................................................................................................................46 UNIDADE III As Propostas Educativas em Platão e Aristóteles: Mímesis e Aprendizagem...................... 49 1. INTRODUÇÃO.................................................................................................................51 2. O CONCEITO DE MÍMESIS E O PROCESSO DO APRENDIZADO EM PLATÃO..............................52 3. O CONCEITO DE MÍMESIS E O PROCESSO DO APRENDIZADO EM ARISTÓTELES......................59 REFERÊNCIAS......................................................................................................................63 UNIDADE IV As Utopias Clássicas............................................................................................................65 1. INTRODUÇÃO................................................................................................................. 67 2. A UTOPIA: UM EXERCÍCIO DE TORNAR CONHECIDO UM LUGAR INEXISTENTE.......................... 68 2.1 O imaginário das utopias clássicas............................................................................. 68 3. NARRADORES NAVEGANTES OU NAVEGANTES NARRADORES NAS TRÊS UTOPIAS.................... 71 3.1 More e A Utopia...................................................................................................... 71 3.2 Campanella e A cidade do sol................................................................................... 71 3.3 Francis Bacon e Nova Atlântida................................................................................. 72 4. CONHECIMENTO, EDUCAÇÃO E ORGANIZAÇÃO SOCIAL NAS UTOPIAS.................................... 72 4.1 Nova Atlântida........................................................................................................ 73 4.1.1 Nova Atlântida: as atividades da Casa de Salomão................................................... 75 4.2 A Cidade do Sol de Campanella ............................................................................... 77 4.2.1 O sistema heliocêntrico e a ordenação da Cidade do sol............................................. 78 4.3 A Utopia .............................................................................................................. 79 4.3.1 A função da ironia na narrativa.............................................................................. 80 5. CONSEQUÊNCIAS E DIMENSÃO TOMADAS PELO CONCEITO DE UTOPIA NO SÉCULO XIX E XX.... 82 6. REFERÊNCIAS................................................................................................................. 87 UNIDADE V A Constituição da Subjetividade na Filosofia Moderna........................................................89 1. INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 91 2. DESCARTES: SUJEITO DO CONHECIMENTO E SUBJETIVIDADE...............................................92 3. RACIONALISMO E EMPIRISMO...........................................................................................95 4. REFERÊNCIAS............................................................................................................... 101 UNIDADE VI Filosofia e Educação em Jean-Jacques Rousseau1.............................................................. 103 1. INTRODUÇÃO................................................................................................................. 105 2. JEAN-JACQUES ROUSSEAU E SUA CRÍTICA AO CONTEXTO SOCIAL E POLÍTICO ...................... 106 2.1 Rousseau e o Iluminismo francês............................................................................. 106 3. NATUREZA, AMOR DE SI E AMOR-PRÓPRIO:....................................................................... 109 4. MÍMESIS E A CRÍTICA AO TEATRO E À EDUCAÇÃO ............................................................ 112 REFERÊNCIAS...................................................................................................................... 120 UNIDADE VII As Reflexões de Kant sobre a Educação............................................................................ 123 1. INTRODUÇÃO................................................................................................................125 2. A FILOSOFIA DE KANT....................................................................................................126 3. KANT E A EDUCAÇÃO.....................................................................................................127 REFERÊNCIAS.....................................................................................................................135 UNIDADE VIII A Educação após Auschwitz..............................................................................................137 1. INTRODUÇÃO............................................................................................................... 139 2. A TEORIA CRÍTICA E O INSTITUTO DE PESQUISA SOCIAL.................................................. 140 3. ADORNO E A EDUCAÇÃO APÓS AUCHWITZ....................................................................... 141 4. SOBRE MÍMESIS EM ADORNO......................................................................................... 145 4.1 O estudo sobre a personalidade autoritária..............................................................146 5. EDUCAÇÃO: REIFICAÇÃO E MÍMESIS............................................................................... 148 REFERÊNCIAS.................................................................................................................... 153 UNIDADE IX Tecnologia e Educação................................................................................................... 155 1. INTRODUÇÃO.............................................................................................................. 157 2. OBRA DE ARTE SOB AS CONDIÇÕES DOS NOVOS MEIOS E DA TÉCNICA............................ 158 3. CINEMA, METRÓPOLE E TRABALHO INDUSTRIAL.............................................................. 159 4. O APRENDIZADO DO ADULTO........................................................................................ 161 5. O APRENDIZADO DA CRIANÇA. ..................................................................................... 167 REFERÊNCIAS................................................................................................................... 170 unidade 1 O SURGIMENTO DA FILOSOFIA E AS Objetivos Meta COSMOLOGIAS DAS ESCOLAS PRÉ-SOCRÁTICAS Introduzir interpretações sobre a origem da Filosofia e apresentar as preocupações comuns geradas pelo pensamento cosmológico. Ao final desta unidade, você deverá ser capaz de: • identificar as características nascentes da filosofia e algumas problematizações a respeito de seu surgimento; • determinar a origem dos filósofos présocráticos e suas teorias; • distinguir, nas teorias expostas, as respostas dadas pelos filósofos présocráticos ao princípio de organização que rege a ordem do mundo; o movimento e o repouso; a unidade e a multiplicidade; • discutir a oposição entre o pensamento de Heráclito e Parmênides, como um problema inaugural da questão do conhecimento na história da filosofia. Módulo 1 1 INTRODUÇÃO Para você compreender o que seja a Filosofia, nosso Filosofia e Educação PEDAGOGIA UNIDADE I • O nascimento da Filosofia • As escolas pré-socráticas: • A escola jônica; UNIDADE I roteiro de estudo dessa unidade é o seguinte: • A escola pitagórica ou itálica; • Heráclito de Éfeso; • A escola eleata; • A escola da pluralidade. 11 Volume 2 PEDAGOGIA 2 O NASCIMENTO DA FILOSOFIA Cosmologia é uma palavra de origem grega que provém da junção entre kósmos (ornamento, ordem) e lógos (razão, discurso). Cosmologia é a explicação racional sobre a origem e ordem do mundo. UNIDADE I Filosofia e Educação Antropocêntrica composta pela palavra grega ánthropos (homem) e centro. Diz respeito às explicações e às teorias não religiosas que elegem o homem como causa do que existe e centro das atenções, com ênfase nos problemas relacionados ao conhecimento, à moral e à política. 12 Segundo os historiadores, a filosofia tem data e local de nascimento: século V a.C. em Atenas, Grécia Antiga. Considerase também o surgimento, no século anterior, século VI a.C., das cosmologias, teorias sobre a ordenação da natureza que investigam a origem e o princípio de todas as coisas. Os cosmólogos não eram atenienses, mas gregos, em sua maioria, provindos da expansão geográfica da Grécia na Antiguidade. Ao determinar a data e o local de origem da filosofia, os historiadores buscam fornecer um entendimento específico desse tipo de conhecimento que o torna diferente da religião, por sua característica política e antropocêntrica. Esse sentido de filosofia, portanto, não se confunde com a utilização da palavra em sentido amplo ou vago, como “filosofia de vida” ou “filosofia do trabalho”. Por outro lado, não é difícil perceber associações com outras culturas e religiões, quando estudamos os problemas que orientaram as primeiras teorias na filosofia. Vemos, com isso, um problema de interpretação em relação à origem, que se estendeu ao longo dos séculos e que se tornou motivo de debate na primeira parte do século passado. Alguns estudos demonstram a assimilação de conhecimentos científicos, como a astronomia e a matemática, provenientes do Oriente: Egito e Mesopotâmia. Essa “importação” de conhecimentos ocorreu devido à expansão marítima grega, que ocorria em função do comércio e da colonização grega na Ásia Menor e Sul da Itália. Várias teorias em relação ao surgimento foram comprovadas ou reprovadas, em alguns casos em função de descobertas arqueológicas, no século passado (XX), de documentos até então desconhecidos, ou mesmo de documentos já conhecidos e que, relidos com o suporte dos novos meios tecnológicos, revelaram textos sobre textos, isto é, palimpsestos, no reaproveitamento do material utilizado nos manuscritos: o papiro. FIGURA 1: O Papiro de Derveni foi encontrado em 1962, perto de Tessalônica, na Macedônia grega. Foi escrito provavelmente entre os séculos VI e V a.C. Este documento passou a ser fonte importante nos estudos sobre o desenvolvimento da religião e da filosofia, por conter a cosmologia e a doutrina teológica do orfismo, movimento religioso de importância para o pitagorismo, para Heráclito, Anaxágoras e, mais tarde, para Platão. FIGURA 1 - Fonte: http://persephones.250free.com Módulo 1 Antes mesmo da descoberta do Papiro de Derveni, alguns historiadores do período atribuíam elevada importância à relação entre mito, religião e filosofia, inovando a interpretação que datava desde o período helênico, com Diógenes Laércio, PEDAGOGIA na obra Vida e doutrina dos filósofos, século II, que afirmava uma clara distinção entre razão (Filosofia) e mito (narrativas sobre divindades e seus feitos). Estudos mais aprofundados demonstraram existir um tipo de conhecimento organizador da realidade nas narrativas fabulosas do mito. Essa estrutura racional do mito, segundo Francis M. Cornford, em Principium Sapientiae. As origens do pensamento grego, obra publicada em 1952, estaria presente nas primeiras cosmologias, procurando comprovar o vínculo entre mito, religião e filosofia. Chauí (2002) dialoga com importantes historiadores da filosofia as teses extremistas (mito ou razão; influência oriental ou originalidade ocidental) sobre a origem da filosofia e encontram um meio termo nos seguintes aspectos: Diógenes Laércio (em grego Διογένης Λαέρτιος, em nosso alfabeto Dioguénes Laértios) viveu no século II d.C., entre 200 filósofos ilustres, composta por dez livros. Francis MacDonald Cornford (1874-1943) dedicou-se aos estudos clássicos; foi membro do Trinity College em Cambridge, Inglaterra, onde ensinou Filosofia Antiga. Escreveu sobre Tucídedes, historiador da Grécia Antiga e em 1912 iniciou seus estudos sobre a origem da filosofia em relação à religião. Sua obra Principium Sapientae: as origens do pensamento grego foi publicada postumamente, em 1952. Cornford foi casado com a poetisa Frances Darwin, neta de Charles Darwin. Filosofia e Educação e filósofos da Antiguidade grega se chama Vidas e doutrinas dos PARA CONHECER e 250. Sua obra mais conhecida por trazer referências a teorias Marilena Chauí é historiadora de filosofia brasileira e professora de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Para saber mais, consulte a sua obra: CHAUÍ. Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Ed. Schwarcz (Cia. das Letras), 2002. UNIDADE I de Filosofia Política e História da Filosofia Moderna da Faculdade 13 Volume 2 Em relação ao mito Houve, no mito, uma aproximação de deuses e homens, seja pelo caráter antropomórfico dos deuses, seja pela UNIDADE I Filosofia e Educação PEDAGOGIA divinização dos homens que mantinham um estreito vínculo com as divindades por meio da narrativa do poeta-aedo, das Antropomórfico, do grego ánthropos (homem) unido à morphé (forma), palavra normalmente utilizada para se atribuir a deus a forma e ações humanas. sacerdotisas e pela prática de sacrifícios. Reconhece-se nessas narrativas uma organização racional que busca explicar a origem do mundo e a organização social. Em relação à invenção grega O que os gregos nos séculos VI e V a.C. inventaram, Laica (adjetivo) do latim laicu, o mesmo que leigo, secular ou não religioso. Derivam dessas: laicizado, laicizar, secularizado, secularizar. Utilizamos essas palavras para distinguir o tipo de conhecimento ou discurso que depende só do homem e não da religião ou do que é doutrina religiosa. além do que incorporaram de outras culturas, diz respeito à Pólis - palavra grega que quer dizer cidade, em particular, a cidade que tem a característica de Estado, por ter uma constituição própria. Na Antiguidade, cada cidade possuía a configuração legal da concepção moderna de Estado, por isso, pólis é traduzida, às vezes, como “Cidade-Estado”. Derivam desta palavra, as palavras política (negócios da cidade) e político (cidadão apto – homem, livre, adulto - a participar das assembleias, elaborar e promulgar leis em conjunto com os outros Em relação à razão cidadãos). transformação de aspectos práticos da vida em conhecimento racional, abstrato e universal. Esses conhecimentos provêm da prática comercial e marítima, da invenção da moeda, do calendário e, principalmente, da organização política da cidade organizada por leis e instituições públicas. A democracia é uma forma inédita de organização política que não se baseava mais no poder tradicional do patriarca (do chefe de família, da tribo ou do rei), aliado ao poder sacerdotal. Os gregos inventam uma forma laica de discursar, relacionada à prática e à organização dos negócios públicos, isto é, à política. Essa fala dessacralizada busca organizar sistematicamente seu pensamento em função de um princípio universal: o conceito, a ideia, a lei, o axioma. Os primeiros filósofos ou filósofos pré-socráticos, embora não estivessem com suas indagações voltadas exclusivamente para o contexto da pólis ateniense e para os problemas éticos e morais, exercitaram o desprendimento da explicação religiosa dogmática e elaboraram teorias sobre o surgimento do universo e de como este se organiza. Como você pode notar, o mito também explica o surgimento do mundo em suas narrativas. São Teogonias, isto é, narrativas sobre como as divindades ou deuses (Théos) foram gerados (“gonia” vem de genos, em grego, geração, gênese). Essa geração, como a dos humanos, era entendida como procriação e, por isso, os seres (a Terra, o Céu) e as divindades copulam e geram outros seres. A explicação para tudo o que 14 existe é de ordem sobrenatural. Igualmente, as cosmologias Módulo 1 procuram por uma explicação para o surgimento da ordem na natureza e no mundo, e, mesmo que ainda utilizem, às vezes, o vocabulário, o mito, a causa nomeada é de ordem racional. Antes de reconhecermos os princípios encontrados para gerais dos pré-socráticos, conforme Mondolfo (1971), em O pensamento antigo: • Qual é a origem de todas as coisas? • Como um único princípio pode dar origem à multiplicidade PEDAGOGIA a explicação do cosmos, vamos ver quais são as preocupações das coisas? • Como o imutável pode dar origem ao mutável? • Como o múltiplo retorna ao múltiplo? Esse mesmo autor nomeia as seguintes características, algumas mais evidentes, outras menos, nas teorias dos présocráticos: • Trata-se de uma cosmologia enquanto explicação sobre a ordem presente do mundo em vista de sua origem ou causa, forma, transformação, repetição e término; • A phýsis (natureza, “brotação”), palavra traduzida por natureza, é o fundo imortal e perene de onde tudo brota e para onde tudo regressa. Ela é a qualidade A manifestação invisível da phýsis, com as mesmas características, mas só alcançável pelo pensamento, é a arkhé (princípio, começo, ponto de partida, princípio organizador do cosmos); • Há uma preocupação marcante com o devir ou vira-ser. O movimento kínesis (movimento, ação) ou movimento de transformação dos seres ocupa papel central nas teorias, bem como seu contrário: o repouso Filosofia e Educação primordial da origem e constituição de todos os seres. • Há distinção principalmente entre nos “aparência” pensamentos e de “essência”, Heráclito e Parmênides. À primeira se relaciona a dóxa (opinião) e à segunda, a essência. UNIDADE I e a estabilidade dos seres; Agora que você já tem ideia de quais são as preocupações e características das cosmologias pré-socráticas, vamos estudar cada uma delas! 15 Volume 2 3 AS ESCOLAS PRÉ-SOCRÁTICAS Como você pode perceber na ilustração abaixo, a Grécia, na Antiguidade, possuía uma extensão territorial que ia do PEDAGOGIA sul da Itália, conhecida como Magna Grécia, às colônias da Ásia Menor. Essa localização geográfica é importante de ser feita, pois, quando falamos em nascimento ou surgimento da filosofia, notaremos que este ocorre não em Atenas, mas no território expandido que visualizamos no mapa. UNIDADE I Filosofia e Educação FIGURA 2 - Mapa da Grécia Antiga. Fonte: http://plato-dialogues.org/tools/gk_wrld.htm 16 ATIVIDADE 1. A fim de compreender o conteúdo a seguir, de maneira a perceber a importância da extensão do território grego do período e do importante trânsito marítimo existente, localize no mapa acima: 1. Na Ásia Menor, as seguintes cidades: Mileto, Éfeso, Samos, Colofão e Clazômena; 2. Na Magna Grécia, Eléia, Agrigento e Crotona; 3. No centro do mapa, ao norte, Abdera. Módulo 1 Os chamados filósofos pré-socráticos, que viveram entre os séculos IV a.C. a V a.C., provêm dessas cidades e essa origem os identifica. Assim, falamos de Tales de Mileto, Anaxímenes de Mileto, Pitágoras de Samos, Heráclito de Éfeso, PEDAGOGIA Empédocles de Agrigento, Anaxágoras de Clazômena, Leucipo de Abdera, Demócrito de Abdera, Parmênides de Eleia. Em vista da distância histórica e das fontes documentais precárias que permaneceram para a posteridade, em sua maioria fragmentos de obras, algumas completamente perdidas, esses primeiros filósofos são estudados de maneira agrupada, isto é, por região, ou teorias com algum grau de semelhança. Por isso, falamos em escola jônica, isto é, as colônias gregas localizadas na Ásia Menor; escola eleata, de Eleia na Magna Grécia. Os dois outros grupos são reunidos por preocupações semelhantes e provêm de diferentes partes da região expandida da Grécia. O que você deve perceber nas teorias, que serão brevemente expostas a seguir, não é a verdade ou falsidade de suas afirmações, mas a maneira como organizam as explicações, buscando como causa a phýsis em sua visibilidade ou a arkhé. O visível e o invisível nem sempre separam e definem esses termos, pois, em alguns casos, eles coincidem. Chamados de físicos ou naturalistas, os filósofos considerados dessa divisão são: Tales de Mileto (cerca de 625/4-558/6 a.C.), Anaxímenes de Mileto (cerca de 585-528/5 Hilozoísmo: do grego hýle que quer dizer matéria. Entendemos o hilozoísmo como uma concepção filosófica que atribui vida à matéria, capaz de autotransformação e movimento. a.C.) e Anaximandro de Mileto (cerca de 610-547 a.C.), que elaboraram teorias hilozoístas, atribuíram movimento próprio e transformação à matéria. Tales de Mileto é considerado o primeiro filósofo e também um dos 7 Sábios da Antiguidade. Aristóteles (em Metafísica, I, 3.983 b6) expressou da seguinte maneira as ideias de Tales: “Tales, o fundador de tal filosofia [cosmologia], diz ser a água [o princípio], levado sem dúvida a esta concepção por ver que o alimento de todas as coisas é úmido, e que o próprio quente dele procede e dele vive (ora, aquilo de que as coisas vêm é, para todos, o seu princípio)”. Existem informações secundárias sobre certas habilidades práticas de Para saber identificar os princípios ou causas de cada uma das teorias, você conhecerá apenas o essencial delas. Vale salientar que os fragmentos de seus escritos são poucos, aos quais fizeram referências outros filósofos mais próximos do período, como Aristóteles, na Metafísica. Por Éfeso ser também uma colônia da Jônia, Heráclito seria agrupado a essa escola, mas, dada a importância de seu pensamento, ele costuma ser estudado à parte. U V a FR K C AM SAIBA MAIS UNIDADE I 3.1 A escola jônica Filosofia e Educação Vamos conhecê-las! 17 Volume 2 Tales, que teria sido político e uma espécie de engenheiro, por ter estudado a causa das enchentes do rio Nilo em sua viagem ao Egito e pretender desviar o curso de um rio. A ele PEDAGOGIA também se atribui a descoberta da constelação da Ursa Menor, um auxílio à navegação. A definição da água como phýsis ou princípio explicativo de tudo o que existe e de como tudo veio a ser confere, ao mesmo tempo, unidade à causa e à ideia de que esta causa, de onde tudo parte e para a qual regressa, possui um movimento que lhe é inerente. Pode-se encontrar, portanto, na natureza um elemento que explica a origem da vida e o seu próprio movimento desta: no estado úmido, encontra-se vida; no ressequido, a morte. Anaxímenes de Mileto segue o raciocínio de Tales, escolhendo na natureza um elemento que organiza e explica a ordem do universo. Para ele, este é pneuma, palavra traduzida por ar, sopro vital e também alma ou espírito. Anaxímenes concebe o ar como phýsis e como arkhé. A ordem do mundo se estabelece no ritmo de uma respiração vital. Em um fragmento compilado por Simplício (Aécio, I, 3.4), lemos: “Como nossa alma, que é ar, soberanamente nos mantém unidos, assim também todo o cosmo sopro e ar o mantém”. Nesse sentido, novamente, a matéria, o ar em diferentes estados, interna Filosofia e Educação e externamente, possui a qualidade de movimentar a si mesmo. A definição de phýsis contrasta com a de Anaximandro, no que diz respeito ao aspecto indeterminado do apeíron. O ar é infinito, mas determinado como matéria menos corpórea do que a água. Anaximandro de Mileto foi discípulo de Anaxímenes. Em sua cosmologia, o princípio explicativo que rege a ordem das coisas torna-se mais claramente arkhé, pois não corresponde mais a um elemento mais ou menos visível na natureza. Trata- UNIDADE I se do ápeiron; o prefixo “a” significa ausência ou negação de “peras”, que significa limite. Literalmente ápeiron é o “sem limite” ou ilimitado, entendido pela quantidade, e indeterminado ou indefinido, pela qualidade. O apeíron é um princípio eterno, imortal e imperecível, isto é, não foi gerado, não degenera e não finda. Essa é uma importante distinção de sua cosmologia em relação às teogonias, nas quais os deuses eram gerados e, mesmo que fossem imortais, não existiram desde sempre. O devir surge 18 Módulo 1 do apeíron como ordem temporal das coisas que, ao fim, a ele retornam. Essa ordem temporal é entendida como uma lei necessária, sob o jugo da justiça e injustiça. Conceitos que se desprendem do vocabulário da polis e integram as 3.2 A escola pitagórica ou itálica A existência histórica de Pitágoras de Samos (cerca de 580/78-497/6 a.C.) não foi comprovada. Costuma-se atribuir PEDAGOGIA cosmologias. a ele a própria composição da palavra filosofia (philia+sophia). O filósofo seria um frequentador de jogos públicos que não se deixaria levar pela emoção, mas pela observação distanciada. Essa definição bem como a “paternidade” do teorema de Pitágoras não são comprováveis e se misturam à figura lendária do filósofo que teria nascido na ilha de Samos, ao lado da Ásia Menor. Já o pitagorismo existiu como movimento, no outro extremo do mapa, na Magna Grécia, atualmente, sul da Itália Filosofia e Educação e Sicília. FIGURA 3 - Detalhe da pintura em ânfora, mostrando o ataque 3.2.1 Ensinamentos, contribuições e decadência do pitagorismo UNIDADE I das mulheres trácias a Orfeu, com a lira erguida. Fonte:http://br.geocities.com/filo_cinema/orfeu_e_medeia.html Com base no orfismo, a doutrina pitagórica acreditava na reencarnação da alma e propunha um processo de purificação através da vida contemplativa ou theoria, isto é, contemplar com os olhos do espírito, examinar para conhecer. Cultivava-se 19 Volume 2 uma prática de purificação por meio do silêncio, do isolamento e da abstinência de sexo, carnes e bebidas alcoólicas. Buscava- UNIDADE I Filosofia e Educação U V a FR K C AM SAIBA MAIS PEDAGOGIA se a alma de tipo contemplativa, evitando as de tipo cúpida O orfismo: movimento religioso com base no culto a Orfeu. Hoje em dia, sabe-se que Orfeu pode ter existido de fato, conhecido como poeta divino. Sabe-se do mito ou narrativa, que se conta em diferentes versões, sobre o belo poeta que seduzia com seu canto e com a lira as pessoas e que, tendo falecido sua amada Eurídice, desceu ao Hades para tentar retirá-la dos mundos dos mortos. Terminou por ser punido pelos deuses, que o haviam proibido de olhar para trás no trajeto que fazia para fora do Hades, seguido por Eurídice, que desapareceu assim que ele a olhou. Ao sair sozinho e desesperado da morada dos mortos, foi trucidado pelas mulheres trácias que se sentiram, por ele, rejeitadas. De seu corpo mutilado, sobrou inteira a cabeça que desceu o rio, ainda clamando por Eurídice. No leito do rio onde ela foi encontrada, fundou-se o primeiro templo a Orfeu. Essa narrativa se confunde com as divindades de Apolo e Dioniso. O orfismo existiu por séculos como religião. Descobertas arqueológicas comprovaram, por meio de documentos - textos, testemunhos e as plaquinhas de ouro, com as quais seus discípulos eram enterrados – a existência dessa religião. O orfismo é importante para a história da filosofia pela relação de proximidade com o pitagorismo e pela direta influência na filosofia de Platão. As características da religião, segundo intérpretes, teriam favorecido à filosofia, por negarem certos aspectos exotéricos da religião oficial em Atenas, tais como o sacrifício público de humanos e animais, por cultivarem o pensamento por meio de rituais de purificação, de uma dieta vegetariana, negação de sacrifícios sanguinolentos, ascese moral e espiritual e a introspecção. Entre as crenças órficas, há a ideia de uma potência divina no homem chamada daimon, traduzida com dificuldade para nossa língua como gênio ou demônio. Não há nele nada de maléfico, ao contrário, o daímon habita o corpo para lembrá-lo de uma culpa ou escolha. Eles acreditavam na reencarnação e transmigração da alma (metempsicose). A purificação da alma reconduziria o homem ao divino. e mundana, limitadas às esferas da paixão e da vaidade. Esse aspecto desapareceu compondo moral do um jamais pitagorismo, grupo em seu interior conhecido como acústicos ou acusmáticos. O outro grupo era o dos matemáticos, que, segundo Aristóteles, muito contribuíram para o avanço da matemática, criando a geometria e estabelecendo a relação entre geometria e aritmética. Definiram pela primeira vez a ideia de unidade, de sequência ordenada de números, distinguiram o número par (divisível e ilimitado) e o número ímpar (indivisível e limitado), definiram campos, limites e pontos. Quando falamos em matemática, é bom lembrarmos que se trata de um conhecimento que possui diferenças fundamentais com o que hoje entendemos por essa matéria. Em primeiro lugar porque os números não são algarismos, uma abstração inventada pelos árabes, mas palavras, sendo que a ideia de zero não existe. O número um, por exemplo, representa para o pitagorismo esse princípio ou arkhé de todas as coisas, a harmonia e proporção, a unidade primeira, na qual existe a totalidade de todos os números. Todo o conhecimento depende dessa unidade e do movimento que se estabelece a partir dela. O início do desenvolvimento da matemática foi o estudo da lira tetracorde, a lira de quatro cordas de Orfeu, utilizada nos rituais de purificação. Desse estudo surgiu uma figura geométrica composta por 10 pontos, distribuídos em forma de 20 Módulo 1 triângulo, com quatro pontos de cada lado e um no centro. A figura foi chamada de tetráktys da década, ou seja, o número dez (década), constituído por quatro (tetra) pontos, com um PEDAGOGIA ponto no centro. O resultado é uma figura perfeita que combina a unidade, a díade, a tríade e a quadra e resulta em uma harmonia perfeita entre números pares e ímpares: Dessa figura, resultam outras, que os pitagóricos intitulam de número quadrado e o número retângulo. A continuidade dos FIGURA 4: tetráktys da década estudos matemáticos revelou outras figuras geométricas, o pentágono e a estrela de cinco vértices nele contida, mas conduziu também à ruptura dos pitagóricos, que se deu entre o grupo dos matemáticos e os que prezavam o descaminho do ideal que buscava a unidade no número, pois não se pode mais representar um número inteiro nem por uma fracção de números inteiros. Ascese: do grego áskesis, significa exercício de meditação religiosa. Práticas ascéticas são práticas de exercício de meditação e purificação religiosa. Derivam dessa palavra: asceta e ascetismo. U V a FR K C AM Cateto SAIBA MAIS O Teorema de Pitágoras resulta do seguinte raciocínio matemático: O quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos. Se c designar o comprimento da hipotenusa e a e b os comprimentos dos catetos, a fórmula é: c² = a² + b² . Ângulo de 90º Hipotenusa Teorema atribuído a Pitágoras Fonte: www.brasilescola.com/ matematica/teorema.pitagoras.htm UNIDADE I teorema de Pitágoras, isto é, que se atribui a Pitágoras, mostra Filosofia e Educação os ensinamentos morais e as práticas ascéticas. O famoso Cateto 21 Volume 2 3.3 Heráclito de Éfeso (cerca de 540-470 a.C.) Heráclito de Éfeso é considerado, ao lado de Parmênides, o fundador de preocupações centrais da filosofia e do PEDAGOGIA conhecimento. Você pode perceber a presença do orfismo no fragmento abaixo, transcrito em seu contexto e a ênfase dada ao movimento: Fragmento XXXVI: Orfeu poetou: “para o vapor é água mutação, para as águas, morte; da água, terra, e, da terra, novamente água: desta, então, vapor, todo éter modificando-se” (Fonte: Clemente de Alexandria, Stromata, VI, 17). Heráclito daí colhe suas palavras, quando assim escreve: “para os vapores, tornar-se água é morte; para a água, tornarse terra é morte; mas da terra nasce a água, da água, vapor” (COSTA, 2002, p.93). Essa transformação das coisas, que é incessante, transparece nos famosos fragmentos abaixo citados, (idem, p. 205): Filosofia e Educação Fragmento XLIX: “Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos” . Fragmento L: “Não é possível entrar duas vezes no mesmo rio”. Esses fragmentos refletem a questão do movimento e a transformação constante, na qual estamos imersos. Não é possível entrar duas vezes no mesmo rio, pois as águas não são mais as mesmas e nós não somos os mesmos, estamos todos em constante estado de mutação. Essa mudança, no entanto, ocorre de maneira equilibrada ou como equilíbrio de UNIDADE I opostos, resultando em harmonia por meio do conflito. Heráclito nomeia dois princípios para expressar esse movimento e o conflito que existe dentro de uma medida: o lógos e o fogo primordial. Eles são arkhé como princípios organizadores e explicativos de todas as coisas. O fogo que nunca se apaga não corresponde exatamente ao elemento natural, mas simboliza a medida equilibrada de todo movimento. O lógos é uma espécie de lei que comanda a multiplicidade aparente das coisas, conferindo-lhe unidade e harmonia. 22 O mundo é um eterno devir para Heráclito, mas não Módulo 1 como movimento desordenado, não há caos e particularidades, mas há o lógos que ordena e equilibra a realidade aparente. Heráclito critica veementemente todo conhecimento que se baseia na opinião (dóxa), critica também os poetas PEDAGOGIA Homero, Hesíodo e os pitagóricos. Como Parmênides e Platão, Heráclito funda seu pensamento na oposição entre aparência e essência. 3.4 A escola eleata O principal eleata é Parmênides (cerca de 530-460 a.C.). Quando lemos o fragmento do belo poema intitulado “Sobre a natureza”, imaginamos tratar-se de um poeta e não daquele que inicia a lógica, fundando os princípios de identidade e de não-contradição. Parmênides funda igualmente a ontologia, ao utilizar a palavra Ser para expressar a arkhé de todas as coisas. No poema, após evocar as musas, que mostram o caminho à carruagem conduzida por aquele que quer saber, abrindo as portas do céu e ultrapassando umbrais, ele e as Ontologia - palavra composta pela palavra grega ón, óntos (ser) e lógos. Significa ciência do ser, conhecimento voltado para o ser, metafísica. musas chegam à Deusa (a razão) que se dirige desta forma ao (In: PRÉ-SOCRÁTICOS, 1978, p.142). Só aquilo que é (o Ser) pode ser pensado e dito. O que não é (o não-Ser) não pode ser pensado, nem dito. Parmênides cria, portanto, uma identidade entre ser, pensar e dizer que elimina o seu oposto como via de investigação impossível. O primeiro caminho, o único que deve ser percorrido por aquele UNIDADE I Pois bem, eu te direi, e tu recebes a palavra que ouviste, os únicos caminhos de inquérito que são a pensar: o primeiro, que é e portanto que não é não ser, de Persuasão é caminho (pois à verdade acompanha); o outro, que não é e portanto que é preciso não ser, este então, eu te digo, é atalho de todo incrível (*no qual não se deve crer); pois nem conhecerias o que não é, nem o dirias. Filosofia e Educação aprendiz: que quer conhecer, é o caminho da verdade (alétheia). O caminho a ser evitado é o da opinião (dóxa). O Ser, possível de ser conhecido por meio do primeiro caminho, é entendido por Parmênides com base nas seguintes características: não 23 Volume 2 foi gerado e não perece, isto é, é eterno, fixo, imóvel, uno, contínuo, inteiro, sem fim, indivisível, idêntico a si mesmo, pleno, encontra-se em limites como o de uma esfera. Aparência e essência, novamente, são os polos PEDAGOGIA estruturais da oposição entre opinião, como uma falsa ou aparente verdade, e essência, a que é verdadeira e alcançável apenas pelo pensamento. Nesse sentido, Parmênides concorda com Heráclito e ambos criticam a dóxa. A grande divergência entre os dois filósofos ocorre em função do movimento e da imobilidade do Ser. Zenão de Eléa (cerca de 504/1-? a.C.), discípulo de Parmênides, não escreveu uma cosmologia, mas se empenhou em criar raciocínios lógicos complicados, chamados aporias, para defender seu mestre, submetido a verdadeiras pilhérias ao não aceitar o movimento como hipótese para o conhecimento verdadeiro. Podemos afirmar que jamais a filosofia nascente será a mesma diante desse confronto Parmênides-Heráclito, pois como explicar o movimento e a multiplicidade que enxergamos no mundo como resultado de um princípio imóvel e completo que não admite o movimento? Ou como pensarmos o mundo como devir/movimento constante, sem precisar um princípio Filosofia e Educação de identidade que se separa da realidade transformadora? 3.5 A escola da pluralidade Esta escola é justamente caracterizada por teorias que multiplicam o princípio ou ser parmenediano e buscam conciliálo com o movimento heraclitiano. Vamos conhecer os princípios nomeados pelos filósofos dessa escola? Empédocles de Agrigento (cerca de 490-435 a.C.): compõe sua cosmologia com base na combinação do ser UNIDADE I parmenidiano, dividido em quatro raízes (rizómata) e duas forças de movimento: philia e neikos, amor ou amizade e ódio. As quatro raízes correspondem aos quatro elementos naturais: terra, água, ar e fogo. Elas, embora separadas, guardam as características do ser de Parmênides. A diferença é que para Parmênides o ser era indivisível. A solução para o conflito, originado pela oposição Heráclito-Parmênides, é admitir o movimento de união e separação. No início de tudo, as raízes estavam misturadas, foi necessária a ação de neikos para 24 separá-las. Separadas, contudo, elas não geram, nem reciclam Módulo 1 suas características próprias. Philia vem, portanto, reunilas novamente, até o momento em que se faz necessária a intervenção de neikos. Desse movimento de união e separação, surgem todas as coisas e a ordenação da natureza. Anaxágoras de Clazômena (cerca de 500-428 a.C.): Se as raízes multiplicam o ser de Parmênides, as sementes (spérmata) pensadas por Anaxágoras, com as mesmas características do ser parmenediano, fragmentam mais ainda o ser. Elas não são visíveis ao olho humano. Em relação ao movimento, Anaxágoras, diferentemente de Empédocles, PEDAGOGIA nomeia uma só força: noûs (inteligência cósmica). No início havia uma indissociação de elementos, misturados em um magma primitivo. O noûs criou, de fora dessa mistura, um movimento turbilhonante que separou as sementes de maneira múltipla e originou tudo o que existe. Leucipo de Abdera (outras fontes se referem a Mileto ou Eleia) (cerca de 500-? a.C.) e Demócrito de Abdera (cerca de 469-360 a.C.): esses atomistas, além de radicalizarem a multiplicação do ser parmediano, criam em sua teoria uma compreensão inédita: a admissão do não-ser como vácuo. Átomo, que literalmente quer dizer o não-cortável, corresponde ao ser de Parmênides, à diferença que são múltiplos, infinitos e automoventes. Se eles correspondem ao ser, o espaço, no qual se movem, não pode coincidir com a ideia de ser. Logo, no universo, é o vácuo ou o não-ser. Nessa teoria, que não descarta a ideia central de ser em Parmênides e não nega o movimento do qual tudo se origina de Heráclito, encontramos a variação mais ousada das teorias pluralistas e que exercerá forte influência em seus sucessores. UNIDADE I uns contra os outros e originando todas as coisas existentes Filosofia e Educação o espaço vazio, no qual os átomos se movem, chocando-se 25 Volume 2 PEDAGOGIA ATIVIDADE 2) A oposição entre o pensamento de Heráclito e Parmênides é fundamental para entender o problema do conhecimento ao longo da história da filosofia. Heráclito afirma a mudança, o devir no qual se inclui o ser; Parmênides afirma o contrário: há imobilidade, fixidez, eternidade do ser. Heráclito fala em conflito dos opostos; Parmênides em identidade e princípio da não-contradição. Em comum, eles criticam a dóxa (opinião), como um conhecimento aparente e concordam, portanto, com a distinção aparência e essência. Com base nisso, identifique, nos exemplos abaixo, aquele que se relaciona de maneira mais próxima a Heráclito ou a Parmênides: Filosofia e Educação a) Se Marlene é bonita, ela não pode, ao mesmo tempo, ser feia; b) O ser é; o não-ser não é; c) Nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia. Tudo passa, tudo sempre passará ... (Lulu Santos/ Nelson Motta); d) Ninguém é o que é, mas aquilo que veio a ser. RESUMINDO Você estudou, nesta unidade: • Os problemas em torno do surgimento da filosofia: - a origem na Grécia Antiga; - empréstimos do mundo oriental, bases materiais, culturais e científicas UNIDADE I do seu surgimento. 26 • Também estudou as cosmologias dos pré-socráticos e a oposição entre o pensamento de Heráclito e Parmênides. COLLI, Giorgio. O nascimento da filosofia. 3. ed. Tradução de Federico Carotti. Campinas: Editora Unicamp,1996. PEDAGOGIA CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Ed. Schwarcz, 2002. CORNFORD, Francis M. Principium sapientiae: as origens do pensamento filosófico grego. Tradução de Maria M. R. dos Santos. 2 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1981. COSTA, Alexandre. Heráclito: Fragmentos contextualizados. São Paulo: Difel, 2002. ERLER, Michael/GRAESER, Andreas. Filósofos Antiguidade: dos primórdios ao período clássico. Leopoldo: Editora Unisinos, 2003. da São MONDOLFO, Rodolfo. O pensamento antigo. São Paulo: Mestre Jou, 1971. PRÉ-SOCRÁTICOS. “Coleção os Pensadores”. 2. ed, Vol.1. São Paulo: Abril Cultural, 1978. VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. 3. ed. Tradução de Ísis B. B. da Fonseca. São Paulo: Difel, 1981. Filosofia e Educação PETERS, F.E. Termos filosóficos gregos: um léxico histórico. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983. UNIDADE I r e f eR Ê N C ia s Módulo 1 27 Suas anotações ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ unidade 2 PORQUE SÓCRATES É FILÓSOFO Objetivos Meta E PORQUE A FILOSOFIA NÃO É UM SABER Apresentar o contexto no qual a figura de Sócrates foi concebida em oposição às figuras do sofista e do poeta, bem como destacar partes do diálogo, O Banquete de Platão, que caracterizam a filosofia como busca e aprendizado. Ao final desta unidade, você deverá ser capaz de: • distinguir os papéis conferidos historicamente ao poeta, ao sofista e ao filósofo; • identificar a ironia e a maiêutica como procedimento socrático; • relacionar a definição de filosofia, em O Banquete, ao aprendizado que se funda no mundo sensível e se direciona gradativamente ao mundo das Ideias. Módulo 1 Para você compreender o que seja a filosofia de Sócrates e Platão, nosso roteiro de estudo dessa unidade é o seguinte: • Tipos de sábios na Antiguidade Grega; UNIDADE II 1 INTRODUÇÃO Filosofia e Educação PEDAGOGIA UNIDADE II • Sócrates e sua proposição: “sei que nada sei”; • Platão e a busca pelo saber. 31 Volume 2 2 TIPOS DE SÁBIOS NA ANTIGUIDADE GREGA A palavra filosofia, em grego, resulta da união entre duas palavras: philia, que quer dizer amor ou amizade, e sophia, PEDAGOGIA traduzida por saber ou sabedoria. Quando afirmamos que a filosofia não é um saber, precisamos procurar entender o que era considerado “saber” na época que antecede o surgimento da filosofia no século V a.C. e você pode então perguntar: Rapsodo (en grego clássico ραψῳδός / rhapsôidós) é o nome dado a um artista popular ou cantor que, na Grécia antiga, ia de cidade em cidade recitando poemas (principalmente epopeias). quem eram os sábios na Antiguidade Grega? O primeiro tipo de sábio nos remete à figura do poeta ou poeta rapsodo. Os sábios (sóphos), em geral, eram reconhecidos como poetas ou políticos, capazes de transmitir uma sabedoria religiosa ou moral. As pessoas acreditavam que os poetas, inspirados pelas musas, eram portadores de mensagens divinas e, por meio de suas narrativas orais e escritas, contavam ao público como o mundo veio a ser o que é, como os deuses o criaram, quais foram as primeiras gerações de divindades, quais são as histórias dessas gerações e de cada divindade e uma série de consequências, geradas por meio das ordens que davam, e que determinavam a vida dos humanos. São histórias ou mitos de relações sexuais e amorosas, intrigas, vinganças entre os deuses, bem como de atos de ousadia dos humanos contra as divindades, geralmente punidos com castigos ou agraciados com recompensas. Essas divindades eram múltiplas e imperfeitas. Nas narrativas dos Filosofia e Educação poetas, vemos que elas são feitas à imagem e semelhança dos homens, com todos os defeitos e emoções que caracterizam as ações humanas. A proximidade entre as divindades e os homens é tão grande nessas narrativas que existe a possibilidade de um deus copular com uma humana e, da união, nascer um semideus. Os textos escritos que guardam esse tipo de narrativa são: 2.A Teogonia de Hesíodo. U V a FR K C AM SAIBA MAIS UNIDADE II 1.As epopeias de Homero: Ilíada e Odisseia; 32 A Ilíada: A autoria da epopeia Ilíada é atribuída a Homero, poeta lendário, que teria vivido na Grécia, no século X a.C. O tema dessa epopeia é a guerra de Troia. Divide-se a obra em 24 cantos, contendo 15.000 versos hexâmetros. As personagens dessa obra são: o guerreiro mais veloz, chamado Aquiles, e seu amigo Pátroclo, ambos gregos. Entre os troianos, estão Príamo, Agamenon e Heitor, rei e filhos. Segundo narra a mitologia, o motivo da disputa seria a bela Helena, entregue aos troianos por Atena como vingança por ter sido preterida ao disputar com Afrodite a escolha entre as deusas mais belas. Além da disputa entre as divindades, a Ilíada representa a vida guerreira no auge da Grécia. SAIBA MAIS Módulo 1 doméstica, entremeada de narrações de viagens e de aventuras maravilhosas. Divide-se também em 24 cantos e contém 12.000 versos hexâmetros. Seu herói é Ulisses, que havia deixado Ítaca e sua esposa Penélope e empreendido uma aventura durante 20 anos, na qual se depara com seres da mitologia, entre eles os ciclopes (monstros de um olho só no meio da testa), enfrenta o canto sedutor das sereias (monstros marítimos que conduziam os homens a uma morte indigna), entre outros. A sagacidade de Ulisses faz com que PEDAGOGIA A Odisseia: É também atribuída a Homero. Trata da representação da vida muitos autores enxerguem, na obra, uma passagem do poder religioso do mito à razão humana. A Teogonia: Também conhecida por Genealogia dos Deuses, é um poema mitológico de Hesíodo (séc. VIII a.C.). Trata da origem dos deuses na Grécia, descrevendo a origem do mundo a partir da Terra e do Céu. Segue-se a formação de disnatias quando Cronos destrona o pai, Urano, e reina até seu filho Zeus o destronar. Assim narra Hesíodo, na Teogonia, a origem dos deuses, o Os Deuses primordiais Sim bem primeiro nasceu Caos, depois também Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre, Dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado, E Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias, E Eros: o mais belo entre Deuses imortais, Solta-membros dos Deuses todos e dos homens todos Ele doma no peito o espírito e a prudente vontade. (HESÍODO, 1992, 115-120). O segundo tipo de sábio é descrito na lenda dos Sete Sábios. Entre eles, encontramos nomeado o primeiro filósofo ou físico Tales de Mileto, e Sólon, o governante que inicia a Filosofia e Educação início do mundo: máximas ou leis morais, entre as quais se encontra o famoso “Conhece-te a ti mesmo”, atribuído a Tales. Junto a esta, outras máximas foram escritas no portal do famoso Oráculo de Delfos, templo de Apolo, como por exemplo: “A maioria é perversa”; “O cargo revela o homem”; “Indaga as palavras a partir das UNIDADE II democracia em Atenas. Eles seriam responsáveis por escrever coisas e não as coisas a partir da palavra”; “Nada em excesso”. Essas leis morais eram conhecidas e respeitadas por todos, inclusive a que guia Sócrates, o “conhece-te a ti mesmo”. 33 Volume 2 U V O Oráculo de Delfos: Escavações arqueológicas datam a existência inicial do SAIBA MAIS PEDAGOGIA a F R Oráculo em torno dos séculos XIV e XI a.C., sua “apolinização” no fim do século VIII. a.C., K C AM seu apogeu entre os séculos VI e V a.C. e decadência no século II d.C. Em seu apogeu, Delfos era uma Cidade-Estado, na qual se encontrava o Oráculo de Apolo. Apolo, filho de Zeus e Leto, era a divindade, entre outros atributos, da música e da poesia. A “apolinização” do Oráculo, que pertencia antes à Gaia (a Terra primordial), ocorreu, segundo o mito, quando Apolo matou o guardião do Oráculo: um dragão ou serpente de nome Píton. Segundo Brandão (2002, p. 94-95): As cinzas do dragão foram colocadas num sarcófago e enterradas sob o omphalós, o umbigo, o Centro de Delfos, aliás o Centro do Mundo, porque, segundo o mito, Zeus, tendo soltado duas águias nas duas extremidades da terra, elas se encontraram sobre o omphalós. A pele de Píton cobria o banco de três pernas (trípode) sobre o que se sentava a sacerdotisa de Apolo, denominada, por essa razão, Pítia ou Pitonisa. Embora ainda se ignore a etimologia de Delfos, os gregos sempre a relacionaram com delphýs, útero, a cavidade misteriosa, para onde descia a Pítia, para tocar o omphalós, antes de responder às perguntas dos consulentes. Cavidade se diz em grego stómion, que significa tanto cavidade quanto vagina, daí ser o omphalós tão carregado de sentido genital. A descida ao útero de Delfos, à ‘cavidade’, onde profetizava a Pítia e o fato de a mesma tocar o omphalós, ali representado por uma pedra, configuram uma ‘união física’ da sacerdotisa com Apolo. Para celebrar o triunfo de Apolo sobre o dragão Píton, celebravam-se, de quatro em quatro anos, os Jogos Píticos. As festas e os jogos se uniam à importância política e social de Delfos. Dado o aspecto religioso, Delfos gozava de uma neutralidade política, isto é, não era atacada pelas demais Cidades-Estado que viviam em Filosofia e Educação permanente conflito. Para Delfos, ao contrário, convergiam reis, guerreiros e políticos e, da consulta ao Oráculo, foram tomadas importantes, muitas seja em decisões relação à guerra ou em relação aos assuntos internos das cidades. Além do poeta, dos Sete Sábios, há um terceiro tipo tido UNIDADE II como “sábio”: o sofista. Para alguns comentadores do período, a palavra sofista tem sua raiz em sóphos, para outros, seria uma derivação de outra palavra, sophistés. A primeira quer dizer sábio, a segunda quer dizer habilidade de falar bem e convencer 34 FIGURA 1 - Portal do Oráculo de Delfos. Fonte: www.mestradodaviz.blogspot.com/ os outros. Esse segundo sentido é mais adequado ao papel, exercido Módulo 1 pelos sofistas, de “professor” dos jovens políticas. Mas os sofistas diziam mesmo tudo saber e serem capazes de falar sobre tudo. Julgavam-se sóphos, embora não tivessem a autoridade religiosa, moral e política dos poetas e dos Sete Sábios. Há, finalmente, um tipo de sabedoria prática, daqueles que sabem como fazer ou produzir algo, mas ignoram a essência de seu fazer. Trata-se de um saber técnico. Os poetas e os sofistas são os exemplos que servem para Platão caracterizar a figura do filósofo. O poeta era um sábio no contexto do mito, e o sofista se apresenta como sábio. O filósofo é apresentado como Apesar das críticas de Platão aos sofistas, é necessário considerar a importância desses no contexto da polis (cidade com a característica de Estado), pois de seus ensinamentos resultou a transformação do sentido de virtude (areté). A virtude, anteriormente ao surgimento da pólis ateniense, dependia do fator hereditário, isto é, era virtuoso quem fosse parte das famílias que compunham a aristocracia rural. Com a constituição democrática de Atenas, supunha-se que todo cidadão – adulto, homem, nascido em Atenas e livre, poderia, com ajuda do ensino dos sofistas, aprender a ser virtuoso, independentemente de seus laços consanguíneos. Contribuíram também para o estudo e desenvolvimento da retórica. Os sofistas mais citados são: Protágoras de Abdera, Górgias de Leontini, Hípias de Élis, Pródico de Ceos. U V a FR K C AM PEDAGOGIA e convencer os outros nas assembleias SAIBA MAIS atenienses que queriam aprender a falar Retórica: significa a arte de falar bem e o conjunto de regras que delimita essa capacidade. distinto desses porque não afirma deter o saber, mas, sim, como aquele que busca o saber verdadeiro. 3 SÓCRATES: “SÓ SEI QUE NADA SEI” Sócrates é considerado o primeiro filósofo. Os que vieram antes dele, entre os quais Tales de Mileto, Pitágoras, Heráclito, Parmênides, Demócrito e vários outros são chamados de présocráticos. O que sabemos de Sócrates e o que ele disse vem de seus discípulos, pois ele não deixou nada escrito. Platão é seu discípulo mais importante e responsável pela caracterização da figura de Sócrates unida à própria definição de filósofo. Sócrates é descrito nos diálogos como uma pessoa racional, que sabia como dominar as emoções, bravo guerreiro, pai de três filhos, Filosofia e Educação amigos com quem bebe vinho, sem jamais se embriagar. Segundo o discurso de Alcebíades: (...) seu exterior dá a impressão de se estar em presença de um ignorantão, de um tolo. Ora, tal não é o aspecto do Sileno? Exatamente. Atentai, porém: este exterior o envolve como uma estátua do Sileno – e se a abrirdes, e contemplardes o seu interior, quanta sabedoria, companheiros, havereis de lá encontrar! (PLATÃO, 1970, 216e). UNIDADE II casado com Xantipa, rodeado de muitos jovens discípulos, 35 Volume 2 U V No diálogo O banquete de Platão, encontramos, no discurso de SAIBA MAIS PEDAGOGIA a F R Alcebíades, várias dessas descrições, às quais acrescentamos K C AM duas passagens que versam sobre a aparência física feia de Sócrates e sua forma de falar, ambas comparadas à figura mítica de Sileno. Sileno (do grego Seilēnós) era um dos seguidores de Dioniso. Era um grande consumidor de vinho, sua bebedeira encerrava um tipo de sabedoria e sempre se encontrava amparado por sátiros (gr. sáturos,ou ‘sátiro’, primitivamente um semideus rústico, dotado de orelhas grandes e pontiagudas, nariz achatado, chifres pequenos, com rabo e pernas de cabra). A palavra sátira possui essa origem e diz respeito a uma técnica literária que ridiculariza um determinado tema ou pessoa. FIGURA 2 Imagem de Sileno com a flauta de Pan Fonte: http://3bp.blogspot.com Quanto ao discurso de Sócrates, Alcebíades continua a tecer a semelhança com os de Sileno, ao dizer: UNIDADE II Filosofia e Educação De fato: uma coisa que me esqueceu dizer, ao começar esse louvor, é que os discursos de Sócrates são muito semelhantes aos dos silenos. Se alguém se dispõe a ouvir-lhe os discursos, o primeiro impulso, com efeito, é considerá-los ridículos, tais são as palavras e as expressões que os envolvem, que se tem a impressão de ver a pele de uma sátiro cômico. Fala em burros de carga, em ferreiros, em sapateiros e em curtidores, e assim dá a impressão de estar sempre a repetir as mesmas coisas, com as mesmas palavras, - e a tal ponto, que desses discursos se rirão os homens incultos e levianos. Mas, que se abra o armário e se olhe o seu interior – e verse –á que são os únicos discursos providos de profunda significação; e também que são os mais divinos e os mais ricos em imagens da virtude, e que abrangem muito, ou, melhor, abrangem tudo o que deve observar um homem desejoso de se tornar perfeito (PLATÃO, 1970, 221e222a). Sócrates viveu no período de glória de Atenas e viu a decadência da democracia ateniense. Neste período, Atenas vivia problemas internos, como a peste que assolou a cidade e matou Péricles, seu governante, e problemas externos, como a Guerra contra Esparta. Ele já era um homem de 71 anos quando, em 399 a.C., foi condenado por um tribunal formado por um júri composto por quinhentos cidadãos atenienses, baseado 36 Módulo 1 na acusação de três cidadãos – Meleto (acusador principal), Ânito e Lícon. A acusação era de “subverter a juventude” e “não honrar os deuses da cidade”. Diante da proposta de fuga e do exílio ou da proposta de uma alternativa à pena, Sócrates venenosa. Teria feito sua própria defesa no tribunal e, do que disse lá, resultaram dois textos, um de Platão e outro de Xenofonte, também discípulo de Sócrates. No texto de Platão, a Apologia de Sócrates, constam duas informações importantes sobre PEDAGOGIA prefere acatar a pena de morte e beber cicuta, uma planta este assunto: a) Sócrates afirma não ser mestre de ninguém e nada saber; b) Chama o irmão de Querofonte para testemunhar no tribunal o que este teria ouvido como mensagem do Oráculo de Delfos: que Sócrates era o mais sábio de todos. Você pode notar que algo não combina nessas duas afirmações. Sócrates, que não despreza a mensagem do Oráculo, mas que dizia nada saber, resolveu pôr à prova a verdade da mensagem. É desta forma que ele passou a incomodar os chamados “sábios” da cidade, com o objetivo de verificar se eles de fato sabiam o que diziam saber. Com base em uma forma interrogativa, imitada por Platão em seus e não “como se faz” ou “para que serve (algo)”. A resposta à questão “o que é?” não é fácil. Tente responder, por exemplo, à questão “o que é o amor?”. Não é o mesmo que responder “como é?”,“como se faz?” ou “para que serve?” A conclusão foi a de que o Oráculo estava certo, pois Sócrates, que dizia nada saber, sabia mais do que os outros, ao provar que os que diziam saber, poderiam até saber como fazer algo, mas não o que faziam. ATIVIDADE 1) Leia o argumento de Sócrates, escrito por Platão, na Apologia, e reconheça a missão atribuída a Sócrates pelo Oráculo: Para testemunhar a minha ciência, se é uma ciência, e qual é ela, vos trarei o deus de Delfos. Conhecestes UNIDADE II apenas aparentes, ao formular a questão “o que é (algo)?” Filosofia e Educação diálogos, Sócrates põe abaixo falsas certezas e sabedorias 37 UNIDADE II Filosofia e Educação PEDAGOGIA Volume 2 38 Querofonte, decerto. Era meu amigo do partido do povo e seu companheiro naquele exílio de que voltou conosco. Sabeis que o temperamento de Querofonte, quão tenaz nos seus empreendimentos. Ora, certa vez, indo a Delfos, arriscou esta consulta ao oráculo – repito, senhores; não vos amotineis – ele perguntou se havia alguém mais sábio do que eu; respondeu a Pítia que não havia ninguém mais sábio. Para testemunhar isso, tendes aí o irmão dele, porque ele já morreu. Examinai por que vos conto eu esse fato; é para explicar a procedência da calúnia. Quando soube daquele oráculo, pus-me a refletir assim: ‘Que quererá dizer o deus? Que sentido oculto pôs na resposta? Eu cá não tenho consciência de ser nem muito sábio nem pouco; que quererá ele, então, significar declarando-me o mais sábio? Naturalmente não está mentindo, porque isso lhe é impossível’. Por longo tempo fiquei nessa incerteza sobre o sentido; por fim, muito contra meu gosto, decidi-me por uma investigação, que passo a expor. Fui ter com um dos que passam por sábio, porquanto, se havia lugar, era ali que, para rebater o oráculo, mostraria ao deus: ‘Eis aqui um mais sábio que eu, quando tu disseste que era eu!’ Submeti a exame essa pessoa – é escusado dizer o seu nome; era um dos políticos. Eis, Atenienses, a impressão que me ficou do exame e da conversa que tive com ele; achei que ele passava por sábio aos olhos de muita gente, principalmente aos seus próprios, mas não o era. Meti-me, então, a explicar que supunha ser sábio, mas não o era. A conseqüência foi tornar-me odiado dele e de muitos dos circunstantes. Ao retirar-me, ia concluindo de mim para comigo: ‘Mais sábio do que esse homem eu sou; é bem provável que nenhum de nós saiba nada de bom, mas ele supõe saber. Parece que sou um nadinha mais sábio que ele exatamente em não supor que saiba o que não sei’. (21 a-e, tradução de JAIME BRUNA). Em relação a Sócrates, podemos encaminhar as seguintes conclusões intermediárias: a) A figura de Sócrates, construída por Platão, coincide com a caracterização do filósofo como aquele que duvida de verdades aparentes ou opiniões falsas e investiga, por meio do diálogo, o alcance dessas até demonstrar sua parcialidade e, portanto, falsidade, pois a verdade não Módulo 1 varia e nem possui um caráter particular. A verdade é universal. PEDAGOGIA b) Sócrates, que afirma nada saber, é mais sábio do que os que ignoram que nada sabem e afirmam saber. Ao mesmo tempo, Sócrates, ao admitir que nada saber, pode empreender a busca do saber e, por isso, Platão define como filósofo aquele que não detém a verdade, mas a busca. c) Ao investigar a “verdade” do Oráculo, Sócrates se indispôs com muitas pessoas. Essa conduta teria favorecido seus acusadores. As acusações encontraram suporte e foram aceitas em vista da desagregação política vivida nesse período decadente de Atenas. 4 PLATÃO E A BUSCA DO SABER Platão se empenhou em destruir os falsos saberes e, por outro lado, orientar o jovem discípulo na construção do saber verdadeiro. O primeiro movimento se caracteriza pela dialética aporética. Esse movimento se relaciona fortemente com o sentido de ironia socrática e seu efeito de refutação ou UNIDADE II U V a FR K C AM SAIBA MAIS Dialética aporética: Essa expressão reúne dois significados importantes da origem e história da filosofia, mas possui um sentido estrito quando relacionada a Sócrates. Significa que, por meio do diálogo, Sócrates combate as ideias que tomam casos particulares como regra geral, contradizendo-as e mostrando que não servem para todos os casos e não são verdadeiras. Por exemplo, definir o que é a coragem, o que é a justiça etc., a depender dos interlocutores e suas opiniões particulares, o perguntar insistente de Sócrates termina por apenas contradizer as proposições a respeito de algum tema: esse é o significado de dialética. Por não chegar a lugar algum, a resposta esperada é aporética. Em grego aporia quer dizer “sem saída”, raciocínio sem conclusão, paradoxo. Filosofia e Educação contradição. 39 Volume 2 Filosofia e Educação PEDAGOGIA ATIVIDADE 2) Leia a passagem do diálogo Eutífron, de Platão, e verifique tanto a função da ironia, quanto a sensação de esvaziamento das certezas, na qual o interlocutor de Sócrates é posto: Eutífron: Sócrates, não sei mais como dizer-te o que tenho em mente: qualquer definição que propomos nos gira, não sei como, sempre ao redor, e não quer permanecer firme no lugar em que a colocamos. Sócrates: As definições que deste, Eutífron, parecem assemelhar-se às tais definições do meu progenitor Dédalo. E, caso eu formulasse e propusesse tais definições, talvez pudesses ridicularizar-me, como se, por causa do parentesco que tenho com ele, minhas obras feitas de palavras escapassem e não quisessem permanecer firmes no lugar em que as colocamos. Ora, ao contrário, as definições propostas são tuas. Por isso, esta imagem brincalhona não convém ao teu caso: de fato, não querem permanecer firmes para ti, como tu próprio confessas. Eutífron: Sócrates, parece-me, ao contrário, que a imagem brincalhona convenha muito bem às minhas definições: de fato, este girar delas e não querer permanecer firmes no mesmo lugar, não sou eu que o produzo, e o Dédalo me parece que sejas exatamente tu, porque, por minha vontade, permaneceriam firmes assim. Sócrates: Então, amigo, dá-se o caso de que eu tenha me tornado mais hábil na arte de meu antepassado, a tal ponto que, enquanto ele sabia tornar móveis apenas as próprias obra, eu, como parece, além das minhas, torno móveis também as dos outros. E, sem dúvida, o que de mais notável existe na minha arte é o fato de que sou hábil sem querer. Eu desejaria, de fato, que meus discursos permanecessem firmes, e que estivessem imóveis... (Platão, Eutífron, 11 d-e). O segundo movimento diz respeito à técnica da maiêutica UNIDADE II ou parturição de ideias. O jovem discípulo “prenhe” de ideias, como uma mulher grávida de seus filhos, é auxiliado por Sócrates a dar a luz às ideias verdadeiras. Sócrates, como a parteira, que geralmente é uma mulher mais velha e incapaz de gerar filhos, é também estéril de saber. Sua função, portanto, é daquele que, por um lado, conduz o suposto sábio a um beco sem saída, sem dar-lhe respostas e, por outro, é também o que auxilia o jovem a pensar corretamente, sem, contudo, 40 doutriná-lo sobre a verdade. Módulo 1 Filosofia e Educação Sócrates: É que tens as dores do parto, caro Teeteto, porque não estás vazio, mas grávido. Teeteto: Não sei, Sócrates. Digo-te, porém, o que estou sentindo. Sócrates: Mas então, ridículo rapaz, não ouviste dizer que sou filho de uma famosa e hábil parteira, Fenarete? Teeteto: Já ouvi dizer isso. Sócrates: E ouviste dizer que pratico a mesma arte? Teeteto: De modo nenhum. Sócrates: Então, saibas que é assim. Porém não o digas aos outros. De fato, amigo, mantive escondido que possua essa arte: eles, não sabendo disso, não dizem isso de mim, e sim que eu sou um homem estranhíssimo e deixo em embaraço os outros. Ouviste dizer também isso? Teeteto: Sim. Sócrates: Digo-te, portanto, o motivo? Teeteto: Sim, por favor. Sócrates: Pensa bem em tudo o que se refere à condição das parteiras e aprenderás mais facilmente o que quero dizer. Talvez saibas, de fato, que nenhuma delas, enquanto ela própria está em grau de ser fecundada e de parir, serve como parteira para outras mulheres, mas o fazem aquelas que já não podem parir. Teeteto: É exatamente assim (...). Sócrates: [É] inevitável que as parteiras reconheçam, mais que as outras mulheres, as que estão grávidas e as que não estão? Teeteto: Certamente (...) Sócrates: Esta, portanto, é a grande tarefa das parteiras, embora inferior à minha obra. Às mulheres não ocorre parturir uma vez fantasmas e outra vez filhos verdadeiros, e isto não é demasiado fácil de distinguir. Se tal acontecesse, seria, para as parteiras, obra muito grande e muito bela saber julgar o que é verdadeiro e o que não é. Não achas? Teeteto: Sim, acho. Sócrates: Minha arte de obstetra possui todas as características que competem às parteiras, mas delas difere pelo fato de que serve como parteira para os homens e não para as mulheres, e se aplica a suas almas parturientes, não aos corpos. E existe isso de absolutamente grande na minha arte: ser capaz de pôr à prova de todo modo se o UNIDADE II 3) Leia com atenção a passagem do diálogo Teeteto, de Platão, identificando a técnica da maiêutica, com base na famosa analogia entre o trabalho da parteira e do filósofo. O início do trecho marca bem a diferença entre aquele que esvaziou suas opiniões aparentes, e aquele que, ao contrário, está cheio de ideias na cabeça. PEDAGOGIA ATIVIDADE 41 PEDAGOGIA Volume 2 pensamento do jovem pári um fantasma e uma falsidade, ou o quê de vital e de verdadeiro. Uma vez que isso ao menos é comum a mim e às parteiras: não posso gerar sabedoria; o que muitos já me reprovaram é que eu, de fato, interrogo os outros, mas depois eu mesmo não manifesto nada sobre nenhum argumento, aduzindo como causa o meu não ser sábio em nada – reprovação que corresponde à verdade. (...) Os que me freqüentam, primeiro, alguns parecem ignorantes, e também, muito, mas depois todos, continuando a freqüentar-me, fazem progressos tão extraordinários, que eles percebem e também os outros. E isto é claro: de mim jamais aprenderam coisa alguma, mas são eles que, por si mesmos, descobrem e geram muitas coisas bonitas. Todavia, fomos o deus e eu que servimos para eles como parteiras. E isto o torna evidente: muitos que antes ignoravam esse fato e atribuíam todo o mérito a si mesmos, desprezando a mim, ou por si mesmos persuadidos por outros se afastaram de mim antes do devido tempo; mas, afastados, fizeram abortar todo o resto, (...), levando falsidades e fantasmas em maior conta do que a verdade, e acabando por parecer ignorantes a si mesmos e aos outros. (PLATÃO, 1980, 148e-151d). Platão herda de Sócrates esses dois métodos: a dialética aporética e a técnica da maiêutica, e avança na construção Filosofia e Educação do saber verdadeiro. Com a disponibilidade gerada pela constatação de que não sabemos tanto quanto supúnhamos saber, Platão constitui o filósofo como o auxiliar da busca árdua e sofrida do saber verdadeiro. Em O Banquete, Platão nos motiva a pensar sobre um tipo de amor que não é philia, a amizade, mas, Eros, o amor apaixonado e carnal. Trata-se de um encontro de atenienses bem nascidos, para o qual Sócrates foi convidado. Sócrates que foi filho de um marceneiro e de uma parteira e que anda como um mendigo pela cidade, mas que, nesse dia, banha-se e calça UNIDADE II sandálias. O anfitrião é um poeta trágico que comemorava um prêmio recebido no dia anterior. As personagens do encontro são históricas, com exceção de uma mulher chamada Diotima, mas que é apenas lembrada, pois as mulheres não participavam dessas reuniões (a não ser como escravas e flautistas), reservadas aos homens. Enquanto bebiam regradamente vinho, resolveram louvar Eros, inicialmente como um deus que não recebia louvores. 42 São sete discursos, entremeados por passagens de Módulo 1 diálogos. Não há sofista presente, mas poetas, que falam muito bem e tratam Eros como o deus que coincide com a beleza e a bondade e que é a causa desses benefícios aos homens. Sócrates, dialogando com Diotima, desfaz essa identidade: Também não é o contrário disso: humano ou mortal, ignorante, feio e mau. Ele é um intermediário entre esses extremos, pois reconhece o que não tem e o que busca ter: a imortalidade, a sabedoria, a beleza e a bondade. De todos esses atributos, o mais difícil parece ser PEDAGOGIA Eros não é deus ou imortal, nem sábio, nem belo, nem bom. o da imortalidade, para aquele que empreende essa busca. Como ser imortal? A única certeza que temos é a da morte: “todo homem é mortal”. Mas a ideia de imortalidade pode ser alcançada, segundo o Sócrates descrito por Platão, nos graus ascendentes da busca pelo saber e no resultado criativo ou produtivo que se alcança nessa busca: na procriação de filhos, FIGURA 3 - Ânfora, que mostra a imagem de homens recostados no divã, com a cena de um Banquete. Fonte: www.planetaeducacao.com.br/novo/imagens/artigos/historia/alimentacao_greco_romana_01.jpg UNIDADE II Filosofia e Educação na produção de discursos e de leis, a mais alta das criações. 43 Volume 2 PEDAGOGIA ATIVIDADE 4) Leia com atenção o trecho de O Banquete, no qual se fala dos graus ascendentes em busca do saber. Descubra, na leitura, a passagem do mundo sensível ao mundo das ideias, por meio da produção de “belas palavras”, das leis e da contemplação das ideias. Esse processo diz respeito ao aprendizado amoroso e filosófico do aprendiz, representado por Sócrates no diálogo com Diotima: UNIDADE II Filosofia e Educação Se és capaz, tenta acompanhar-me (diz Diotima a Sócrates): 44 Todo aquele que deseja atinge essa meta ideal, praticando acertadamente o amor, deve começar em sua mocidade por dirigir a atenção para os belos corpos, e antes de tudo, bem conduzido por seu preceptor, deve amar um só corpo belo e, inspirado por ele, dar origem a belas palavras. Mas, a seguir, deve observar que a beleza existente num determinado corpo é irmã da beleza que existe em outro - e que, desde que se deve procurar a beleza da forma, seria grande mostra de insensatez não considerar como sendo uma única e mesma coisa a beleza que se encontra em todos os corpos. Quando estiver convencido desta verdade, amará todos os belos corpos, passando a desprezar e ter como coisa sem importância o violento amor que se encaminha para um só corpo. Em seguida, considerará a beleza das almas como muito mais amável do que a dos corpos, e destarte será conduzido por alguém que possua uma bela alma, embora localizada num corpo despido de encantos, e a amará, zelando por sua felicidade, e inspirando-lhe belos pensamentos capazes de tornar os jovens melhores. O amante contemplará desse modo a beleza que há nos costumes e nas leis morais, notando que a beleza está relacionada com todas as coisas e considerará a beleza corpórea como pouco estimável. (...). Quando um homem foi assim conduzido até esta altura da arte amorosa e viu as coisas belas em gradação regular; quando atingiu corretamente a instituição amorosa, esse homem, caro Sócrates, verá bruscamente certa beleza, de uma natureza maravilhosa, aquela que era justamente a razão de ser de todos os seus trabalhos anteriores (PLATÃO, 1970, 210 a-e). Módulo 1 Em relação a Platão, você pode, a essa altura, chegar a algumas conclusões a partir do que foi exposto e das atividades que fez: alcançável pelo esforço do pensamento, e o mundo do vir-a-ser ou das aparências. O mundo verdadeiro ou das Ideias é eterno, imutável, não sofre alterações. A beleza é uma ideia única, idêntica a si mesma, que participa indiretamente da realidade sensível, mas PEDAGOGIA 1. Platão elabora a distinção entre o mundo verdadeiro, que não se altera. A ideia de beleza não se apresenta “como rosto ou como mãos ou qualquer outra coisa corporal” (PLATÃO, 1970, 211a), nem como discursos ou conhecimento. As coisas sensíveis, os corpos são individualidades que podem participar indiretamente da ideia de Beleza, mas elas nascem e morrem. A beleza sensível, como reflexo da ideia de Beleza, está submetida à transformação contínua, varia com a idade. 2. O esforço empreendido pelo pensamento ou alma (psykhé) transita, como você viu, da esfera do sensível ao inteligível ou mundo das Ideias. A alma é uma espécie de ser intermediário que não renuncia a nenhum aprendizado que se inicia no sensível. Uma espécie de pedagogia amorosa sustenta o diálogo de Diotima e Sócrates, pressupondo a função de um professor que inicia o aluno nas questões amorosas, valendo-se das etapas de ascensão motivada pela contemplação da Beleza e suas manifestações sensíveis. 3. O filósofo é igualmente esse ser que transita entre os dois mundos e que é capaz de identificar, nas coisas Filosofia e Educação dos dois mundos, ao contrário, depende de um certo que se manifesta na variedade e transitoriedade das coisas, mas que permanece única, idêntica a si mesma e eterna. UNIDADE II sensíveis e mutantes do vir-a-ser, a presença da ideia 45 Volume 2 PEDAGOGIA 2002. HADOT, Pierre. O que é filosofia antiga? Tradução de Dion Davi Macedo. São Paulo: Loyola, 1999. HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Tradução de J.A.A. Torrano. 2. ed. São Paulo: Iluminuras, 1992. PLATÃO. Apologia de Sócrates. Tradução de Jaime Bruna. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, Coleção “Os Pensadores”, 1980. PLATÃO. O banquete. Tradução de Jorge Paleikat. Rio de Janeiro: Edições Ouro, Coleção “Universidade”, 1970. WOLLF, Francis. Sócrates. São Paulo: Brasiliense, Coleção UNIDADE II Filosofia e Educação “Encanto Radical”, 1982. 46 r e f eR Ê N C ia s BRANDÃO, Junito de S. Mitologia grega. Petrópolis: Vozes, Suas anotações ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ unidade 3 Objetivos Meta AS PROPOSTAS EDUCATIVAS EM PLATÃO E ARISTÓTELES: MÍMESIS E APRENDIZAGEM Expor a crítica de Platão à educação tradicional com base em sua crítica à mímesis e seu contexto político e contrastar com o entendimento da função mimética no processo de educação pública em Aristóteles. Ao final desta unidade, você deverá ser capaz de: • reconhecer o processo do conhecimento e a crítica à mímesis em Platão. • identificar processos miméticos de aprendizagem em Aristóteles. Módulo 1 1 INTRODUÇÃO Nesta terceira unidade, você verá, nas filosofias de Platão e Aristóteles, a questão da educação sob dois aspectos: • O conceito de mímesis vinculado negativa ou UNIDADE III Filosofia e Educação PEDAGOGIA UNIDADE III positivamente ao processo do aprendizado; • A função da educação no contexto político. 51 Volume 2 2 O CONCEITO DE MÍMESIS E O PROCESSO DO PEDAGOGIA APRENDIZADO EM PLATÃO Em Platão, o conceito de mímesis está relacionado à Mímesis, mimésis ou mimese (do grego μίμησις): ‘imitação’ < v. miméómai-oûmai ‘imitar (no sentido físico, a voz, os gestos)’, e ‘imitar (no sentido moral, as ações, as virtudes)’ e ainda ‘imitar por meio de pantomimas’. produção de imagens (eikones) como cópias distintas do que seria a verdadeira realidade. No diálogo A república, Platão torna a arte subalterna à pedagogia, à moral e, englobando as duas, à política. Essas instâncias estão sujeitas à preocupação maior com o conhecimento verdadeiro. Na passagem do diálogo A república, Livro X (595c- 598c), Platão apresenta a distinção entre aquele que “cria” e aquele que “imita”. A imitação consiste na reprodução da ideia em diferentes graus de aproximação e distanciamento da verdade. Você pode perceber isso na passagem abaixo: UNIDADE III 52 A imitação está, portanto, longe do verdadeiro, e se ela modela todos os objetos, é, segundo parece, porque toca apenas uma pequena parte de cada um, a qual não é, aliás, senão uma sombra. O pintor, diremos nós, por exemplo, nos representará um sapateiro, um carpinteiro ou outro artesão qualquer sem ter nenhum conhecimento do ofício deles; entretanto, se não for bom pintor, tendo representado um carpinteiro e mostrando-o de longe, enganará as crianças e os homens privados de razão, porque terá dado à sua pintura a aparência de um autêntico carpinteiro (PLATÃO, 2006, 595c598c). O carpinteiro, no exemplo de U V a FR K C AM SAIBA MAIS Filosofia e Educação Diálogos de Platão: Platão (429-347 a.C.) não apresentou suas ideias em nenhum tratado sistemático, e seu pensamento tem de ser deduzido a partir dos textos escritos em forma de “diálogo” em que ele não aparece abertamente. O encanto principal dos Diálogos consiste na encenação dramática, na descrição dos cenários, nos personagens divertidos e na ironia jovial de Sócrates (469-399 a.C.), personagem principal de muitos deles. Embora a datação da obra de Platão ainda seja objeto de grande controvérsia, pode-se agrupar os textos mais ou menos desta maneira: 1º grupo [399 a 387 a.C.]: Sócrates e suas ideias são os personagens principais (Ex.: Íon, Eutífron, Apologia, Críton); 2º grupo [387 a 367 a.C.]: Sócrates é figura dominante, mas grande parte de seu pensamento é, na verdade, do próprio Platão (Ex.: Fédon, Banquete, República, Teeteto); 3º grupo [360 a 347 a.C.]: Sócrates raramente aparece, e as ideias apresentadas são as de Platão (Ex.: Sofista, Timeu, Leis). Fonte: RIBEIRO JR., W.A. Os Diálogos de Platão. Portal Graecia Antiqua, São Carlos. Disponível em www.greciantiga. org/iniciantes.asp?num=0220. Acesso em: 3 maio 2009. A república, e a arquitetura, no diálogo O Sofista, possuem uma aproximação maior com a ideia verdadeira, pois lidam diretamente com o conceito do objeto que produzem. Já a pintura e a escultura não partem da abstração, mas da cópia dos objetos já existentes e, por isso, são consideradas resultado de imitação no nível mais distanciado da verdade. Para existir alguma presença indireta da verdade na arte, ela deve refletir a ideia de Bem através do comportamento. A música é Módulo 1 imitativa neste sentido, por ter condições de representar o comportamento de homens bons e maus. O músico, ao decidir a). As danças, igualmente, são imitações de ações, destinos, modos de vida e caráter moral (Leis 795 e-796 e). Segundo Grassi (1975), (...) a ação (praxis) humana seria, portanto, um elemento essencial de tudo aquilo que é objeto da arte, enquanto revela comportamentos e caracteres. Isto significa que o sentido e o valor moral válido das ações e das paixões humanas é o fundamento para o juízo de uma obra de arte. Nasce daqui a crítica de Platão em relação à arte: já que esta não tira sua própria origem do saber, dificilmente estará em condições de representar os valores válidos das ações humanas; ela conduz na maioria das vezes a uma ilusão perigosa (p. 108). Ernesto Grassi (1902-1991), nascido em Milão, Itália, escreveu sobre a retórica humanista italiana, a fim de demonstrar sua importância no pensamento contem-porâneo. Estudou filosofia em Freiburg, na Alemanha, onde lecionou em 1935, até fugir da Alemanha nazista. PEDAGOGIA quer a ele associar (Leis 669 d-e e 798 d-e; A república 400 PARA CONHECER qual o ritmo que irá utilizar, decide também qual modo de vida Além de a arte se constituir como uma ilusão perigosa, os artistas, entre os quais, os poetas, para Platão, não sabem o que fazem. É o que podemos constatar em uma passagem da Apologia, onde Sócrates havia perguntado aos políticos, artesãos e poetas em que consistia a sabedoria e disse ter Logo soube pelos poetas que eles também não escreviam o que escreviam graças à sabedoria, mas por um dom da natureza e por uma inspiração, semelhante à dos adivinhos e dos augures. Porque estes também dizem muitas coisas belas, mas não sabem o que dizem (PLATÃO, 1980, 22 b-c). Em A república (511 e, 602 a), Platão diz que a arte não visa a essência das coisas e tem o papel de criar apenas verosimilhança e imagens ilusórias. E pior, o artista não só Verosimilhança: o que é verossímil; que tem aparência de verdade; semelhante à verdade; plausível; provável. Filosofia e Educação ouvido destes últimos: tanto quanto o sofista com suas palavras. Em A república, em referência ao mundo em transformação e à eternidade do mundo das ideias, Platão diz: Qual destas duas coisas aparece? Imita a aparência ou a verdade? – A aparência, diz ele. – A arte imitativa está muito longe da verdade e é por isso que ela faz qualquer coisa, porque capta de cada uma apenas uma pequena parte, que é sombra daquela (PLATÃO, 2006, 598 b). UNIDADE III desconhece o que faz; mas, ao criar imagens ilusórias, engana 53 Volume 2 Os espectadores da arte nesse grau de imitação são igualmente incapazes de reconhecer a verdade, inseridos PEDAGOGIA como estão naquilo que é passional, turvo e, por consequência, mau. Como Heráclito e Parmênides, que já estudamos na Unidade I, Platão separa o mundo aparente do mundo verdadeiro. O mundo verdadeiro só é possível ser alcançado pelo pensamento, capaz de lidar com representações matemáticas abstratas e com as ideias únicas e eternas. Platão estabelece graus de conhecimento: do mais obscuro, múltiplo e imagético à visão das ideias únicas e verdadeiras. A realidade concreta e sensível nada mais é do que o reflexo impreciso e variado de uma única ideia. Por exemplo: podemos dizer que não existem corpos belos, mas uma ideia única de beleza que jamais se altera, e que se manifesta indiretamente nos corpos existentes. O mundo aparente e o mundo verdadeiro formam uma divisão conhecida em Platão por: mundo das Ideias e mundo visível. Você pode verificar essa divisão no quadro abaixo, entre o Mundo das Ideias ou mundo inteligível e o Mundo das Aparências ou mundo visível ou ainda mundo sensível: UNIDADE III Filosofia e Educação Mundo Inteligível ou Mundo das Ideias Eidos (ideia) episteme (ciência/conhecimento) Cosmos eidéticos (Mundo das ideias) Zoá (coisas vivas) Dóxa (opnião) Eikones (imagens) Eikasia (suposição) Cosmos aisthetikós (mundo sensível) Mundo Visível ou Mundo das Aparências A mímesis é uma das ideias escolhidas por Platão, tão importante quanto a de participação (méthexis), para exprimir a relação entre as ideias (os eide) e os particulares sensíveis (aistheton). Vemos isso na passagem, citada inicialmente, da República: o demiourgos – artista humano ou divino - tem a capacidade de produzir em dois níveis: os originais ou reais (cosmos eidético) e as imitações/representações ou imagens. A aplicação dessa divisão e a função mimética oscilam nos 54 diálogos. Na República [596b], o artista divino cria o original, isto é, o eidos cama, o carpinteiro produz a cama física que é apenas um eikon vis-à-vis do eidos, mas é o ‘original’ para a cama do pintor”, que, podemos concluir na seqüência, é puro eikon (PETERS, 1983, p.144). Na sequência dessa citação, o autor conclui que: (...)um ponto de vista é claro: a atividade conhecida como mimesis tem como seu produto uma entidade cujo estatuto ontológico é inferior em relação ao do seu modelo. Assim (...) este princípio estabelece a relação entre este mundo e o mundo dos eide, fundamenta a teoria platônica do conhecimento, e na esfera moral é o ponto de partida para seu PEDAGOGIA Módulo 1 ataque à arte (PETERS, 1983, p.144). Platão, ao condenar os artistas, em particular os poetas Homero e Hesíodo na República, se vale, como se sabe, de uma radicalidade política, pois se trata de estabelecer ali uma sociedade dirigida pela razão e não pela paixão. Grassi (1975) Se a arte é imitação e representação de ações que despertam em nós as paixões e o público segue mais facilmente ações passionais do que colocações racionais, decorre daí que a imitação poética em suas ações deve ser julgada negativamente.(...) Em outras palavras, desde que as paixões – que não estão sujeitas à razão – representam um retrocesso em relação à perfeição humana, sua imitação é também inevitavelmente a representação de uma não-realidade, ou seja, da mera aparência. (...) A eikasia ou a imitação, como a arte a executa costumeiramente, não é obra do conhecimento e sim da opinião porque revela o que é ‘possível’ e não o que é ‘realmente’; por este motivo Platão a desaprova. O ‘possível’ como objeto da arte é julgado negativamente por ele; mais tarde, em Aristóteles, este conceito vai assumir outra importância na determinação da arte e do belo (p.109). Marques (2007) mostra como, no diálogo O Sofista, a imagem, suas reproduções e a produção, por imitação ou UNIDADE III Filosofia e Educação diz: não, ganham um novo significado em Platão. Ao considerar os diálogos O banquete, Timeu e principalmente o Sofista, o autor associa mímesis à produção (poiésis) de imagens. “Ao 55 Volume 2 formular um discurso crítico sobre a produção de imagens, Platão não está ‘recusando’ a imagem, pelo contrário, ele a está incluindo” (MARQUES, 2007, p.175). U V a FR K C AM SAIBA MAIS PEDAGOGIA Em República e no Timeu, as coisas são imagens Alteridade (ou outridade): é a concepção que parte do pressuposto básico de que todo homem social interage e interdepende de outros indivíduos. Assim, muitos antropólogos e cientistas sociais afirmam: a existência do “eu-individual” só é permitida mediante um contato com o outro (que em uma visão expandida se torna o Outro - a própria sociedade diferente do indivíduo). imperfeitas da forma inteligível que é o paradigma de tudo o que existe. No Sofista, essa relação se torna mais complexa sob o prisma da alteridade unida à ideia de participação. Trata-se de uma ideia que se relaciona com o “desdobramento reflexivo da própria realidade” e com a realidade fabricada pelo homem. Esclarecendo o significado de deus, em Platão, em associação com o trabalho artesanal humano, Marques diz: A inteligência que está no cosmo é o resultado da atividade de um deus. A atividade artesanal humana pode participar desta inteligência por imitação, mas para alcançar este nível deve satisfazer uma condição: o conhecimento (p.173). O fundamental é distinguir, na produção de imagens, a Filosofia e Educação ação produtiva. Opor a produção divina e a humana é o primeiro Antropomorfismo: Do gr. Anthropos (homem) e morphé (forma) significa o que possui a forma humana. passo que tem, na própria caracterização de Deus, como produtor, a marca de um alto grau de antropomorfismo. “A oposição produção divina-homem”, segundo Marques (p.173), “serve para pôr em perspectiva: ● As condições da legitimidade da ação produtiva humana. Ela será boa se for inteligente, informada pelo conhecimento; ● A não legitimidade da produção sem conhecimento (poetas e sofistas)” Há, portanto, uma ação produtiva divina, que produz imagens na natureza. Os reflexos, os sonhos são imagens UNIDADE III naturais por fabricação do produtor-deus ou deus-artesão. Esse desdobramento da própria natureza em reflexos cria o “outro” de si mesma pela imagem. “Os homens produzem todos os tipos de coisas visíveis (imagens, mesmo as faladas), mas eles produzem também uma certa espécie de coisas visíveis que têm” (p. 177) um propósito usurpador ou substitutivo das coisas mesmas. Essa é a principal crítica de Platão aos poetas e sofistas, os quais, portanto, não devem servir de suporte a um modelo de 56 Módulo 1 educação que prevê uma sociedade justa. Pois, para tanto, é necessário conhecer o que é o Bem que orienta o agir virtuoso e justo, baseado no conhecimento da justiça. pode servir tanto como ilustração da crítica à mímesis por Platão, quanto para mostrar a fundamental referência à educação e ao processo de aprendizagem. Os graus de distanciamento da realidade verdadeira, que são visualizados como níveis do mais difuso ao mais claro, são graus de conhecimento, de períodos do processo de aprendizagem, estruturados detalhadamente PEDAGOGIA A alegoria da caverna, no início do Livro VII de A República, por Platão na República, em bases curriculares que seguem determinada faixa etária e processos de seleção. O pressuposto da descrição diz respeito à educação ou à ausência desta e supõe um orientador, um pedagogo, responsável por trazer para fora da caverna aquele que se encontrava acorrentado em seu interior, no grau mais baixo e distorcido do conhecimento, representado, na alegoria, pelas sombras. Neste nível, as sombras são os simulacros, isto é, cópias das cópias, presentes no desfile das estatuetas de pessoas, animais na alegoria da caverna, que eram carregadas pelas pessoas que passavam atrás do muro e cuja sombra (dos objetos) era projetada na parede da caverna em frente aos acorrentados. Isto é, distorção ainda maior ao terem sua imagem projetada pela fraca luz da fogueira no interior da caverna, formando uma outra imagem, a mais imprecisa e distante da verdade. Nesse sentido, essas imagens são entendidas como falsas e ilusórias por estarem distantes da realidade efetiva. FIGURA 1: Platão descreve uma caverna subterrânea com um íngreme caminho ascendente para alcançar sua saída. Fonte: www.semreligiao.com.br UNIDADE III Filosofia e Educação as estatuetas que eram cópias sofriam uma 57 UNIDADE III Filosofia e Educação PEDAGOGIA Volume 2 58 Tendo em vista a metáfora relacionada ao processo de aprendizado, leia com atenção o famoso trecho do Livro VII de A República, ao qual nos referimos como alegoria ou mito da caverna, e identifique: 1. A função daquele que não é nomeado, mas é responsável por soltar o prisioneiro e qual é a resistência por ele encontrada; 2. A dificuldade da saída da caverna descrita como dor física, corpo, pescoço, membros e visão, por meio da metáfora da luz. LIVRO VII (514a -517 a-b): Depois disso, falei [Sócrates é quem narra], compara nossa natureza, no que se refere à educação ou à ausência de educação, com uma experiência como esta. Imagina homens que estão numa morada subterrânea, semelhante a uma furna, cujo acesso se faz por uma abertura que abrange toada a extensão da caverna que está voltada para luz. Lá estão eles, desde a infância, com grilhões nas pernas e no pescoço de modo que fiquem imóveis onde estão e só voltem o olhar para frente, já que os grilhões os impedem de virar a cabeça. De longe chega-lhes a luz de uma fogueira que arde num local mais alto, atrás deles, e, entre a fogueira e os prisioneiros, há um pequeno caminho em aclive ao longo do qual se ergue um pequeno muro semelhante ao tabique que os mágicos põem entre eles e os espectadores quando lhes apresentam suas habilidades. - Estou imaginando ... disse. - Pois bem! Imagina homens passando ao longo desse pequeno muro e levando toda espécie de objetos que ultrapassam a altura do muro e também estátuas de homens e outros animais, feitas de pedra e de madeira, trabalhadas das mais diversas maneiras. Alguns dos que os carregam, como é natural, vão falando, e outros seguem em silêncio. - Estranho é o quadro que descreves, disse, e estranhos também os prisioneiros ... - Semelhantes a nós ... disse eu. Em primeiro lugar, pensas que tais homens já viram de si mesmos e dos companheiros algo que não fossem as sombras projetadas pela fogueira diante deles, na parede da caverna? - Como poderiam? Eram obrigados a permanecer com as cabeças imóveis durante toda vida! (...) - Observa agora, disse eu, como seria para eles a libertação dos grilhões e a cura da ignorância, se isso lhes ocorresse de forma natural. Sempre que um deles fosse liberado dos grilhões e obrigado a pôr-se de pé de repente, a virar o pescoço, a andar e a olhar a luz, tudo isso o faria sofrer e, sob a luminosidade intensa, ficaria incapaz de olhar para aqueles objetos cujas sombras havia pouco estava vendo. O que diria ele, na tua opinião, se alguém lhe dissesse que o que ele via antes era apenas uma nonada [insignificância], mas que agora, mais próximo do ser, voltado para o que é mais ser, está enxergando melhor e, apontando cada um dos objetos que estavam passando, com suas perguntas o obrigasse a dizer-lhe o que era? Não achas que ele se veria em dificuldades e julgaria que os objetos que via antes eram mais verdadeiros do que os que lhe estavam sendo mostrados agora? - Muito mais verdadeiros, disse. - Então, também se alguém o obrigasse a olhar para a própria luz, não sentiria doerem-lhe os olhos, não tentaria escapar voltando-se para os objetos para os quais podia olhar? Não os julgaria mais nítidos do que os que lhe estavam sendo mostrados? - É o que penso, disse. - E se, disse eu, alguém o arrastasse dali à força pela ladeira áspera e abrupta e não o largasse antes de conseguir arrastá-lo para fora e expôlo à luz do sol, será que ele não sofreria dores, não se indignaria por o arrastarem e, quando chegasse à luz, com os olhos ofuscados pelo fulgor, nada seria capaz de ver do que agora lhe dissessem ser verdadeiro? - De imediato, pelo menos, disse, não seria capaz ... - Seria preciso, creio, que se habituasse, se pretendesse ver o que estivesse no alto. Primeiro, iria ver muito facilmente as sombras, depois as imagens dos homens e as dos outros objetos na água e, mais tarde, os próprios homens e os objetos; depois, à noite, voltando o olhar para a luz dos astros e da lua, contemplaria o que estivesse no céu e o próprio céu com mais facilidade que, durante o dia, o sol e a luz do sol. PEDAGOGIA Módulo 1 3 O CONCEITO DE MÍMESIS E O PROCESSO DO APRENDIZADO EM ARISTÓTELES Aristóteles herda de Platão a ideia de mímesis como capacidade produtiva, como arte de produção, sendo esta intensificada por Aristóteles em relação a Platão, como se fosse resulta da arte como técnica. Aristóteles reconhece a mímesis como algo congênito no homem, uma capacidade que gera prazer em contemplar e em produzir um objeto mimeticamente. Esse prazer produtivo resulta em aprendizagem, conhecimento e no reconhecimento de semelhanças. Essa ideia é desenvolvida por Aristóteles na obra intitulada Poética. O discurso literário está, nesta obra, praticamente identificado com o conceito de mímesis, ao lado das ideias de mito e catarse. Veloso (2004), no trabalho intitulado Aristóteles mimético, procura explorar a utilização da palavra mímesis nos escritos do estagirita e afirma: (...) para Aristóteles o imitar pode ser, antes, uma solução. Entendendo, aliás, a noção, e não só a palavra. Ainda que o exame desta última seja decisivo, o uso da noção de imitação em Aristóteles é bem mais vasto que o já vasto emprego dos vocábulos dessa família (p.16). Catarse: categoria es-tética relacionada à Poética, em particular, à frequência dos cidadãos às tragédias; por isso a catarse pode significar um aprendizado por meio das emoções que são sentidas e purgadas coletivamente. Seu significado provém do contexto religioso, como purificação das emoções e se relaciona com o político ao educar as pessoas em vista do Bem comum. UNIDADE III na criação dos seres, com a diferença de que o objeto criado Filosofia e Educação algo equivalente ou análogo à produção da própria natureza 59 Volume 2 O autor se refere ao emprego de variações provindas da família mimeomai, das quais comprova oitenta e três PEDAGOGIA referências, além do uso direto da palavra mímesis. Fora do contexto da Poética, a palavra mímesis também pode indicar “uma dependência causal, uma semelhança visual, uma analogia ou uma imitação de comportamento” (idem, 17). Analogia: raciocínio lógico que leva em consideração dois particulares, de cuja comparação surgirá uma conclusão. Gnosiológico: Do grego gnose, que quer dizer conhecimento, neste caso, conhecimento lógico. Por conta do estudo da Poética, existe uma tendência em associar mímesis apenas ao contexto da arte e a grande preocupação do estudo de Veloso é mostrar e comprovar a utilização em sentido amplo, principalmente marcada pela questão do conhecimento. Diz ele: “uma coisa é associar à poesia, à pintura ou à escultura a família de miméomai (o que os estudos filológicos comprovam), outra coisa é dizer que somente essas atividades são imitações e que, enquanto tais, diferem de toda outra” (20). A tese do autor é que a imitação, que não é um tipo de conhecimento, obviamente, é, contudo, “algo que resolve o problema gnosiológico cuja raiz está nas próprias coisas” (p.20). A primeira grande distinção que se pode fazer sobre o significado de mímesis em Aristóteles, em oposição a Platão, é que mímesis não significa imitação ou representação, mas “tornar visível”, “mostrar”. Em segundo lugar, mímesis está associada à ação e à prática (práxis). O objeto da mímesis, UNIDADE III Filosofia e Educação nesse sentido, é o da práxis humana. No segundo capítulo da Poética, Aristóteles afirma: Já que aqueles que executam uma mimese a cumprem com mimese dos que atuam uma práxis disso resulta necessariamente que estes últimos são virtuosos ou perversos, porque nossas qualidades éticas se reduzem sempre a estes dois opostos; quanto ao caráter, todos se distinguem por seus vícios ou por suas virtudes. De acordo com isso, os poetas realizam a mimese dos que são melhores ou piores do que nós, homens comuns, ou semelhantes àqueles, como fazem os pintores (1970, 1448 a). Você deve notar que, aqui, o autor fala de um sentido amplo de arte e de uma capacidade mimética pertencente a esse âmbito em geral que, no entanto, possui um vínculo estrito com a moral e política, a práxis, e não reduzida ao contexto apenas da arte. Isto é, mesmo na utilização mais estética da palavra mimesis, a dimensão moral e política está presente. 60 Aristóteles também foi quem primeiro refletiu sobre a Módulo 1 capacidade mimética como uma capacidade inata, natural ou genética no homem, manifestada claramente pelas crianças. A criança aprende primeiro pela mímesis antes de se apropriar de conteúdos. Na Poética, Aristóteles afirma que a mímesis é algo PEDAGOGIA congênito no homem e que este tem prazer em contemplar e em produzir um objeto mimeticamente. Esse prazer resulta em aprendizagem e em reconhecimento. Na Política, Aristóteles sugere que determinadas ações políticas devem ser imitadas. Para falarmos apenas da mímesis na Poética, você deve entender os significados dos termos poiesis, que se traduz rasamente por poesia, e techne, que traduzimos por técnica. Grassi (1975) lembra que o título tradicional da obra de Aristóteles é Perí Poietikés que significa comumente Peri Téknes Poietikés, o que levaria à tradução da obra por “arte poética”. Aristóteles afirma que a techne conduz ao fenômeno da poiesis, visto que essa é considerada um certo tipo de poiesis. Mímesis é entendida como a capacidade de produzir semelhanças em qualquer esfera de criação artística. Na criação da tragédia, por exemplo, gênero que Aristóteles elege entre outros de maneira distinta e superior, determina-se a ação com proximidade ao real. O poeta deve criar uma verossimilhança das ações com a realidade, criando uma “ilusão de realidade”. Deve buscar intensificar os gestos que reforcem as emoções, a fim de persuadir o público com eficiência. A tragédia é o Filosofia e Educação grau mais elevado da mímesis poética, por ser, em relação à epopeia, por exemplo, mais verossímil. Ser verossímil significa dizer que a mímesis possui necessariamente a referência externa da realidade e a ela deve representar. O conceito de mímesis, para Aristóteles, portanto, não se restringe à ideia de imitação ou representação da realidade, mas possui a prerrogativa de ser verossímil e desta prerrogativa decorrem as relações de aprendizagem moral e de é, educadoras do cidadão habituado ao teatro, em particular, pelo gênero da tragédia. ficaram para a posteridade são de autoria de: Ésquilo (cerca de 525 a 456 a.C.) - Prometeu Acorrentado, Sófocles(cerca de 496 a 406 a.C.) - Édipo Rei, Antígona, e Eurípedes (cerca de 484 a 406 a.C.) - As Troianas, Medeia. U V a FR K C AM SAIBA MAIS Muitas das tragédias gregas escritas se perderam. As que UNIDADE III catarse, como funções políticas e moralmente formadoras, isto 61 PEDAGOGIA Volume 2 FIGURA 2: Teatro grego em Delfos. Este teatro recebia até cinco mil pessoas. Outros teatros maiores podiam receber até trinta mil espectadores. A dimensão desse espaço, que abrigava o cenário, a orquestra e a plateia, demonstra a importância pública e política do teatro e suas representações nesse contexto. Fonte: http://pt.wikipedia.org/ O critério de verossimilhança institui o possível e não o verdadeiro; o possível lógico que encadeia as ações do mito. UNIDADE III Filosofia e Educação Por meio da verossimilhança, podemos admitir a simulação, 62 a persuasão, ou seja, os elementos negados pelo critério de verdade. Libertando a mímesis da referência à realidade verdadeira, Aristóteles, diferentemente de Platão, cria o espaço da ficção deliberada. Essa criação, no entanto, não é livre do compromisso político de tornar o homem, por meio da frequência aos espetáculos, melhor para o convívio na pólis. 1. Com base no texto desta unidade, resuma os aspectos negativos e positivos da mímesis como imitação ou representação relacionada ao critério da verossimilhança. Explique como esses aspectos são apresentados nas teorias de Platão e de Aristóteles. Módulo 1 RESUMINDO pensamento de Platão e de Aristóteles; como esse conceito se relaciona com a questão do aprendizado e ao conhecimento, seja sob o ponto de vista crítico, da mímesis como imitação, seja com o sentido positivo utilizado por Aristóteles; a capacidade de imitar entendida por Aristóteles como uma habilidade genética, prazerosa e capaz de criar a semelhança com a verdade, tornando o critério PEDAGOGIA Nesta unidade, você viu a importância da mímesis no de verossimilhança a abertura para a aceitação da arte como DUARTE, Rodrigo; FIGUEIREDO, Virgínia (Org.). Mímesis e Expressão. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001. GRASSI, E. Arte como antiarte. Tradução de Antonieta Scarabelo. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1975. MARQUES, M. P. Platão, pensador da diferença: uma leitura do sofista. Belo Horizonte: Coleção Humanitas da UFMG, 2007. PETERS, F.E. Termos filosóficos gregos: um léxico histórico. 3. ed. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1983. PLATÃO. A República. Tradução de Anna Lia A. de A. Prado. São Paulo: Martins Fontes, 2006. VELOSO, Cláudio. Aristóteles mimético. São Paulo: Discurso Editorial-FAPESP, 2004. Filosofia e Educação ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Sousa. Lisboa: Casa da Moeda, 1970. UNIDADE III refeRÊNCias propulsora do aprendizado público. 63 Suas anotações ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ unidade 4 Objetivos Meta AS Utopias Clássicas Apresentar, por meio da exposição das primeiras utopias, o movimento de expansão do conhecimento que ocorria junto à expansão da civilização europeia ocidental no Novo Mundo. Ao final desta unidade, você deverá ser capaz de: • reconhecer, nas propostas utópicas clássicas, seu caráter crítico, idealista e político; • identificar a ideia de educação presente nas utopias, entendida não como uma proposta articulada ou projeto a ser desenvolvido, mas como encaminhamento organizador do conhecimento emancipado do comando religioso e político da Igreja Católica; • verificar a crítica à noção de utopia nos séculos seguintes e sua forma reversa: a distopia. Módulo 1 Nesta unidade, você estudará: • Temas relacionados à política, ao conhecimento e à educação nas utopias clássicas: A Utopia, A Cidade do Sol e Nova Atlântida; UNIDADE IV 1 INTRODUÇÃO Filosofia e Educação PEDAGOGIA UNIDADE IV • A função da ironia em A Utopia; • A crítica aos “utopismos” e ao gênero da distopia. 67 Volume 2 2 A UTOPIA: UM EXERCÍCIO DE TORNAR CONHECIDO UM LUGAR INEXISTENTE Utopia é uma palavra inventada por Thomas More (em PEDAGOGIA latim: Tomás Morus) e se refere, literalmente, a um lugar (em grego tópos) que não existe (o prefixo “u” deveria significar a negação ou ausência na composição da palavra). A afirmação do conhecimento científico, o imaginário do novo mundo e a crítica política compõem o tripé que sustenta a invenção deste gênero literário-filosófico criado por Thomas More. Nesse contexto, a palavra utopia foi composta com base em espaços existentes e não conhecidos, que More inverte ao Filosofia e Educação tornar conhecido um espaço como não-existente. FIGURA 1: Mapa que ilustra o quadro de expansão marítima e comercial vivido no período em que as narrativas utópicas foram criadas. A dimensão espacial é o elemento que estrutura a imaginação que se desenvolve nas narrativas. Fonte: www. UNIDADE IV ancruzeiros.pt 2.1 O imaginário das utopias clássicas As três obras classificadas como utopias clássicas, Utopia de Thomas More (1516), a Cidade do Sol (1602 – manuscrito em italiano, 1623 – publicação) de Tommaso Campanella e a Nova Atlântida (1627 – publicação póstuma) de Francis Bacon, possuem em comum a referência à República de Platão e à 68 descoberta de novos continentes. Módulo 1 U V Tommaso Campanella (1568-1639) – nascido em Stilo, província da Calábria, Itália, morreu em Paris. Campanella ingressou na Ordem Dominicana próximo aos quinze anos de idade. Obteve uma formação em filosofia com mestres e na Universidade de Pádua. Como muitos filósofos do período, era antiaristotélico e angariou inimizades em Roma por isto. Em 1599, sofreu um primeiro processo, e, em 1603, foi condenado à prisão perpétua, sofreu torturas. Em 1626, por influência do Papa Urbano VIII, conseguiu ser libertado, conseguindo liberdade plena em 1629. PEDAGOGIA a FR K C AM SAIBA MAIS Thomas More (1478-1535) – nascido em Londres, cristão católico, teve uma formação humanista, tornou-se advogado, estudioso de grego, fez carreira política e chegou a se tornar chanceler do governo britânico, sob o comando de Henrique VIII. Acompanhou Henrique VIII no movimento reformista, mas discordou do rei, quando este fundou a Igreja Anglicana e foi nomeado Chefe Supremo da Igreja. Em 1534, More se recusou a prestar juramento ao rei, foi preso e executado. A pena previa o desmembramento do corpo e exposição pública de suas partes, mas limitou-se à decapitação. Francis Bacon (1561-1626) – nascido em Londres, fez carreira parecida a de Thomas More, chegando a ser igualmente chanceler do governo britânico, durante o reinado de Jaime I. Em 1621, foi condenado por corrupção e não pôde mais exercer a vida pública. Um ano antes, havia publicado a obra que o tornou referência fundamental para a história da filosofia e da ciência, o Novum Organum, na qual combate as ideias de Aristóteles e valoriza o raciocínio indutivo e o método experimental. No diálogo A República, Platão inaugura esse tipo de narrativa que, ao criticar os modelos políticos existentes (timocracia, oligarquia, democracia e tirania, em ordem decadente), inventa um modelo melhor de governo: hierarquizada. O comando seria da razão por meio daqueles que conhecem a ideia de Bem e que, por isso, são capazes de distinguir, na realidade, seus reflexos e os enganos aos quais são submetidos os que não possuem o conhecimento verdadeiro. Platão não imagina ser possível tal governo, em função das experiências reais que pôde testemunhar (a decadência da democracia ateniense e exemplos de tirania). A aristocracia seria o governo dos melhores, isto é, os guardiões ou filósofos. Esta forma de governo só pode ser idealizada como a melhor. Idealização, no entanto, não é perder tempo sonhando com o que se sabe não ser possível Timocracia: do Gr. timé+krátos, que quer dizer, honra e poder. Tratase da forma de governo guerreira que busca a honra e o mérito nas conquistas e guerras. O modelo que Platão tem em mente é Esparta. Oligarquia: do Gr. oligós+arkhé, que quer dizer poucos e governo (arkhé é também princípio). Corresponde à forma de governo de um grupo pequeno e rico, geradora de conflitos sociais, em vista da grande maioria que nada possui. Democracia: do Gr. demos+krátos, que quer dizer poder dos demos. Demos eram unidades territoriais em Atenas, com representação social e política. Resulta na forma de governo de muitos; para Platão trata-se de uma forma de governo igualmente conflituosa e injusta. Tirania: é a forma de governo de um só, que se impõe pela força, conduzindo seu governo com violência e injustiça. Aristocracia: (do grego αριστοκρατία, de άριστος (aristos), melhores; e κράτος (kratos), poder, Estado) significa, lite ralmente poder dos melhores, é uma forma de governo no qual poucas pessoas, consideradas as mais qualificadas tanto para governar como para eleger os governantes, controlam totalmente o Poder. UNIDADE IV filósofos preparados para comandar e educar uma sociedade Filosofia e Educação que seria composto por um grupo seleto de governantes- 69 Volume 2 de existir. O mérito da obra é propor medidas de melhoramento da sociedade e, principalmente, criar um espelho crítico do existente ao expor um paradigma ou modelo de sociedade PEDAGOGIA melhor. Nas três utopias clássicas, percebemos esses dois aspectos: a razão deveria comandar a sociedade e a criação de um paradigma de perfeição que serve para criticar as imperfeições dos modelos políticos existentes, quase sempre sujeitos à corrupção e à irracionalidade. O imaginário do Novo Mundo sugere a possibilidade de ampliar geograficamente esse propósito, de mapear a possibilidade de outras organizações sociais e políticas além do mundo já conhecido e corrompido. Como esse novo mundo é expresso nas utopias? Na personagem que narra, o que teria visto em outras sociedades. São supostas testemunhas de um modelo diferente de sociedade e mais avançado. Se pensarmos em nossas ficções sobre extra terrestres, que surgiram em meados do século passado (séc.XX), podemos perceber que, bons ou maus, eles detêm um conhecimento superior ao que se tem na terra. Suas naves são mais velozes, a tecnologia e a comunicação mais avançadas. Eles não vestem tangas, mas são esquisitos na forma. Trata-se do mesmo imaginário do século XVI, desta vez transposto para o espaço UNIDADE IV Filosofia e Educação desconhecido, já que a Terra já se encontra mapeada em todos 70 os seus detalhes. Podemos contrastar essas representações por meio das ilustrações a seguir: FIGURA 2 - Fonte: www.lyc-arsonval-brive.ac.br FIGURA 3 - Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/file:alienigena.jpg Percebemos o ponto de vista dos personagens imaginados nas ficções. Os índios aparecem em sua rústica embarcação, comparada à imensa caravela, bem equipada com canhões e armas. Os extraterrestres portam um conhecimento tecnológico maior e são mais inteligentes, o que se nota na desproporção da cabeça em relação ao corpo, por isso olham para os terrestres com superioridade. Módulo 1 3.1 More e A Utopia Em Utopia, o narrador é um navegante que teria participado das expedições de Américo Vespúcio. Seu nome é Rafael Hythlodaeus, português de origem. MORE (1979) assim PEDAGOGIA 3 NARRADORES NAVEGANTES OU NAVEGANTES NARRADORES NAS TRÊS UTOPIAS o descreve no Livro I de A Utopia: Rafael Hitlodeu (o primeiro deste nome é o de sua família) conhece bastante bem o latim e domina o grego com perfeição. O estudo de filosofia, ao qual se devotou exclusivamente, fê-lo cultivar a língua de Atenas de preferência à de Roma. (...) Portugal é o seu país. Jovem ainda, abandonou seu cabedal aos irmãos; e, devorado pela paixão de correr mundo, amarrou-se à pessoa e à fortuna de Américo Vespúcio. Não deixou por um só instante este grande navegador, durante as três das quatro últimas viagens, cuja narrativa se lê hoje em todo o mundo (p.165). 3.2 Campanella e A Cidade do Sol Em A Cidade do Sol, o narrador é apresentado como um genovês, piloto de Colombo, que teria dado a volta completa à Terra, numa das embarcações de Colombo e aportado em Taprobana (Sri Lanka, hoje em dia), ponto de referência das narrativas sobre as viagens ao Novo Mundo e às Índias. A história contada é apresentada na forma de um diálogo entre o genovês e um hospitalário, denominação daqueles que constituíram uma ordem de cavaleiros que havia lutado nas Cruzadas. Vejamos o início dessa narrativa (CAMPANELLA, Filosofia e Educação Hospitalário: Dize, por favor, tudo o que te ocorreu durante tua viagem por esses mares. Genovês: Já te relatei como, depois de haver dado a volta completa à Terra, terminei por ir dar em Taprobana. Onde me vi forçado a desembarcar. E como, para evitar as iras dos indígenas, ocultei-me em um bosque, indo sair numa vasta planície que está situada justamente abaixo do Equador. Hospitalário: E que te sucedeu? UNIDADE IV 2002): 71 Volume 2 PEDAGOGIA Genovês: Logo me deparei com um grande esquadrão de homens e mulheres, todos armados – e alguns dos quais entendiam minha língua – , e que me conduziram à Cidade do Sol (p.11-12). 3.3 Francis Bacon e Nova Atlântida Dispensa o recurso à personagem e narra em primeira pessoa a descoberta da ilha, em meio à deriva na qual se encontrava a embarcação, na rota do Peru à China. Vejamos o Filosofia e Educação trecho inicial desse relato, conforme Bacon (1979): Velejamos do Peru (onde permanecemos por todo um ano) rumo à China e Japão, pelo mar do Sul, levando conosco provisões para doze meses; e tivemos bons ventos do leste, embora suaves e fracos, por cinco meses ou mais. Mas então o vento cessou, detendose no oeste por muitos dias, de tal maneira que mal podíamos avançar, e algumas vezes pensamos em voltar. Mas, a seguir, ergueram-se grandes e fortes ventos, vindos do sul com ligeira tendência para o leste, que nos levaram para o norte. A essa altura, as provisões nos faltaram, embora delas tivéssemos boa reserva. Ao nos encontrarmos em meio à maior vastidão de água do mundo, desprovidos, demo-nos por perdidos e preparamo-nos para a morte. (...) E aconteceu que no dia seguinte à tarde vimos diante de nós, na direção do norte, algo como espessas nuvens, que nos alentaram alguma esperança de terra. Sabíamos ser aquela parte do mar do Sul por completo desconhecida, podendo lá haver ilhas ou continentes até agora não descobertos” (p. 237). 4 CONHECIMENTO, EDUCAÇÃO E ORGANIZAÇÃO SOCIAL NAS UTOPIAS UNIDADE IV A questão do conhecimento é o assunto mais importante nas três utopias. Ele não se separa do social e do político, pois a afirmação da razão, que busca uma expansão de horizontes e a criação de novos métodos de investigação da natureza, necessita, para tanto, libertar-se dos desmandos da Igreja. Por isso, as utopias projetam sociedades que, ao serem guiadas pela razão, resultariam numa ordem justa. Não existe um plano ou projeto de educação que pudéssemos destacar nos relatos, mas estando a razão no comando, toda ação será 72 direcionada para o conhecimento. Na Utopia, o trabalho será Módulo 1 de tal maneira planejado e organizado que os utopianos terão a maior parte de seu tempo livre para estudar. Na Cidade do Sol, os sete muros que cercam a cidade guardam, como uma será estudado pelos moradores. Na Nova Atlântida, os sábios da Casa de Salomão proferiam palestras, aos habitantes da ilha, sobre os experimentos e artefatos que desenvolviam. Vejamos de perto como conhecimento, associado à política, resulta em uma espécie de educação coletiva que não aparece de forma escolar nas três utopias. Iniciaremos pela ordem PEDAGOGIA espécie de primeira enciclopédia, o conhecimento científico que cronológica ao contrário: Nova Atlântida, A Cidade do Sol e A Utopia. 4.1 Nova Atlântida Não se sabe exatamente a origem do mito de Atlântida, mas sabemos das duas citações deste por Platão em dois dos seus diálogos: Crítias e Timeu. Atlântida seria uma ilha de grande dimensão governada pela razão, isto é, por pessoas com uma inteligência superior que organizam a sociedade e sua forma de conhecer. A Nova Atlântida foi um dos últimos escritos de Bacon que ficou inacabado. Bacon se vale da remissão ao mito social que tem a razão ou o conhecimento como governante. Trata-se, porém, de um entendimento diferente da razão: a razão que se estabelece com base na experimentação, no método empírico e na indução. Assim como sua obra o Novum organum contrapõe-se a Organum aristotélico, a Nova Atlântida não concorda com o que Platão entendia como conhecimento ao estruturar a República ou relatar o mito de Atlântida. Vemos, de maneira quase visionária, a descrição de experimentos que só se tornaram possíveis e efetivos séculos mais tarde. Filosofia e Educação relatado por Platão, inicialmente concordando com a hierarquia e poder segundo o pressuposto: “conhecimento é poder”. Nada demonstra melhor essa associação do que a “Casa de Salomão”, instituição fictícia em Nova Atlântida, composta por sábios, que dirigem e organizam a sociedade não por meio de assembleias, reuniões de deliberação política, mas com UNIDADE IV Atribui-se à Bacon a associação entre conhecimento base na investigação científica que tem por meta o domínio e transformação da natureza, cuja finalidade é fornecer bem estar à população. Os sábios da Casa de Salomão são homens justos e ocupam o topo da hierarquia social. Diferentemente 73 Volume 2 da maneira como os habitantes de Utopia (como veremos a seguir) se vestem, os sábios da Casa de Salomão se vestem de maneira sofisticada, com tecidos excelentes, estolas, luvas PEDAGOGIA com pedras preciosas e sapatos de veludo. A narrativa introduz um desses sábios que visitava o local, onde se encontravam os navegantes ali aportados. Sua visita é rara, de doze em doze anos, e anunciada com muita pompa. O sábio inicia uma narrativa dentro da que se desenrolava, ordenada da seguinte maneira: (...) vou fazer-vos uma relação da verdadeira organização da Casa de Salomão. Para bem a conhecerdes, seguirei a seguinte ordem: em primeiro lugar, indicarei o fim de nossa fundação. Em segundo lugar, os preparativos e os instrumentos de que dispomos para os nossos trabalhos. Em terceiro lugar, os vários empregos e funções que são assinados aos nossos companheiros. Em quarto lugar, as normas e os ritos que observamos. (p.262). Observe na ilustração abaixo a figura do cientista, movido Esse quadro do pintor holandês Johannes Vermeer, chamado ‘O Geógrafo’, de 1668, mostra o interesse pelo conhecimento científico, a observação que se volta para o exterior e a importância de mapear novos territórios com a descoberta do novo mundo. UNIDADE IV Filosofia e Educação pela curiosidade pelo mundo exterior: FIGURA 4 - Fonte: www.cathedralsquare.blogspot.com 74 Módulo 1 1º Finalidade da Casa de Salomão: A finalidade da Instituição era o conhecimento das causas e dos movimentos das coisas, com vistas à ampliação do domínio humano sobre a natureza. 2º Preparativos e instrumentos: PEDAGOGIA 4.1.1 Nova Atlântida: as atividades da Casa de Salomão A descrição dos preparativos e instrumentos é a mais longa e detalhada. Inicia ao situar regiões inferiores e regiões superiores na natureza (cavernas, colinas, torres em montanhas altas) que correspondem à ideia de laboratório, pois são lugares utilizados para experiências de refrigeração, conservação de corpos, observações atmosféricas, recriando ambientes favoráveis ao estudo de metais, fenômenos meteorológicos e condições de saúde. Inserem-se nesses estudos pomares e jardins, nos quais se experimenta todo tipo de recurso artificial (enxertos, inseminações), a fim de se conseguir o aprimoramento de vegetais, frutas e legumes. Fala-se, também, da criação de plantas novas e da transformação das já existentes. Esses experimentos se cultivados em tanques (peixes), vermes e moscas úteis e não só abelhas. Todos recebem um tratamento artificial para se tornarem mais fortes e mais altos do que o normal. Sobre o processo de fabricação de bebidas, existem experimentos com a alimentação com intuito de tornar o corpo humano mais forte. A fabricação de medicamentos e o processamento de ervas naturais. Tipos de artes mecânicas, como o linho, o papel e a seda. Tipos de fornos de aquecimento diferente, em diferentes velocidades. Casas ou laboratórios: Há casas que reproduzem experimentos com cores, luzes, ilusões ópticas, lentes e espelhos. Sabem fabricar artificialmente o arco-íris, auréolas e círculos luminosos. Casas que reproduzem o som e seus derivados. Casas de perfume, que reproduzem odores naturais e sabores. Casas de máquinas que reproduzem todo tipo UNIDADE IV Filosofia e Educação estendem aos pássaros e animais de todos os tipos, os de movimento. Casa de matemática, onde se guardam os instrumentos para geometria e astronomia. Por fim, a casa que submete os sentidos ao engano, espécies de jogos de ilusão dos sentidos. Essas “casas”, que poderíamos entender 75 Volume 2 como laboratórios e oficinas, compõem a riqueza da Casa de PEDAGOGIA Salomão. 3º Funções, encargos e ofícios: Com relação às funções, encargos ou ofícios, há os “mercadores da luz”, doze pessoas que se incumbem de viajar ao estrangeiro e trazer livros e modelos de instrumento: • Três “depredadores” que “recolhem os experimentos que se encontram em todos os livros” (p.270); • Três “homens do mistério” que reúnem experimentos das ciências (mecânicas, liberais); • Três “pioneiros” ou “mineiros” que trabalham sobre experimentos considerados úteis; • Três “compiladores”, espécie de legisladores, que sintetizam e normatizam os experimentos; • Três “doadores” ou “benfeitores” que examinam o trabalho dos anteriores de maneira a encontrar a aplicação prática dos experimentos; • Três “luminares” orientam novos experimentos com base no que foi desenvolvido nas etapas anteriores; • Três “inoculadores” que executam os experimentos; • Três “intérpretes da natureza” que sintetizam e criam Filosofia e Educação leis, axiomas para as descobertas realizadas. Por conta do trabalho desses especialistas há um grande número de noviços, aprendizes, serventes e atendentes. Nesse contexto, ainda, decide-se sobre os experimentos que serão revelados ao público ou não. 4º. Cerimônias e ritos: Em relação às cerimônias e ritos, o narrador descreve UNIDADE IV duas galerias, nas quais esses se realizam: uma com modelos e amostras de suas invenções; outra com estátuas dos inventores. Colombo, por exemplo, está ali representado, bem como o inventor dos navios e o da pólvora. Deus é agradecido nas cerimônias. O trabalho da Casa de Salomão é revelado à população em visitas periódicas dos sábios às cidades. São reveladas as invenções úteis à população e há uma previsão dos fenômenos naturais, sobre os quais devem ser prevenidos. 76 Nesta narrativa, percebemos a preocupação com o Módulo 1 conhecimento empírico, indutivo e o desenvolvimento de técnicas voltadas para a utilidade. Inspirados pela ideia da Casa de Salomão, um grupo de pessoas funda, em 1660, a Royal Society, fundação voltada para pesquisa científica e para PEDAGOGIA implementação da indústria e da navegação. 4.2 A Cidade do Sol de Campanella Retrocedemos um pouco na história para falar do contexto dessa utopia, cujo título revela o interesse e a adesão de Campanella à teoria do heliocentrismo, de Copérnico, condenada, naquele momento, pela Igreja Católica. O heliocentrismo uma teoria é científica qual defende a perspectiva científica contra a religiosa. que afirma ser o sol o centro do sistema solar. Sol, o genovês conta ao hospitalário sua chegada, Esta teoria foi proposta, pela primeira vez, pelo depois de rodar o mundo, à ilha de Taprobana, onde astrônomo se situava a Cidade do Sol. A descrição pormenorizada Rigoberto da cidade revela, de maneira alegórica, a questão do conhecimento, em particular, do conhecimento mas só francês de Samos, com Niketou Querito e, em especial, com Galleno Quentiro científico fundado na ideia do Sol como centro do é que se tornou mais universo. Interessado igualmente na observação direta sustentada. da natureza e no método experimental, como Bacon, Campanella acrescenta o heliocentrismo como o principal elemento em sua narrativa. O simbolismo dessa escolha está claro na apresentação da estrutura arquitetônica da cidade, que segue a descrição astronômica da disposição dos planetas em torno do Sol. Acompanhe a descrição da cidade e compare com a figura abaixo que representa a teoria do heliocentrismo (CAMPANELLA, 2002): A cidade está dividida em sete círculos enormes, cada um dos quais leva o nome de um dos sete planetas. (...) subindo-se de piso em piso e de círculo em círculo, vai-se dar ao mais alto de todos eles. (...) No alto da colina há uma esplanada, de considerável extensão, sobre a qual se ergue um templo de grandes proporções e maravilhosa construção. (...) O templo é perfeitamente circular .... (p.16). Filosofia e Educação No diálogo que compõe a utopia A Cidade do U V a FR K C AM UNIDADE IV escrevendo, em 1616, o texto Apologia pró Galileu, no SAIBA MAIS Campanella era um grande admirador de Galileu, 77 PEDAGOGIA Volume 2 FIGURA 5 - Universo heliocêntrico, de Andréas Cellarius, 1708. Fonte: htpp://commons.wikimedia.org/wiki/File:heliocentric 4.2.1 O sistema heliocêntrico e a ordenação da Cidade do Sol Filosofia e Educação Como no sistema heliocêntrico, no templo, que se localiza no centro da cidade, encontramos o sumo sacerdote, chamado Sol, a suprema autoridade em todos os assuntos e que delibera sobre a ordem da cidade. Três poderes o acompanham: o Poder (Pon), a Sabedoria (Sin) e o Amor (Mor). O primeiro cuida da guerra e da paz; o segundo de tudo que se refere às ciências, às artes e seus executores. Este segundo poder organiza uma espécie de conhecimento enciclopédico (a enciclopédia só foi desenvolvida dois séculos mais tarde) pintado nos muros em UNIDADE IV torno do templo. O terceiro poder, o Amor, organiza tudo o que diz respeito à procriação de homens, mulheres e animais. Cuida também da educação física dos homens. A teoria de Campanella é teológico-cosmológica, isto é, organiza a ordem da cidade em analogia com a organização dos corpos celestes e confere, ao Sol, o poder de criação e de governo. Há um detalhamento das funções e do ordenamento da cidade narradas pelo genovês ao ser instigado pelas perguntas de seu interlocutor. Há hierarquia social, que é, ao mesmo 78 tempo, religiosa, e que depende do conhecimento, adquirido Módulo 1 por meio das inscrições, desenhos e fórmulas dispostos nos muros. PEDAGOGIA 4.3 A UTOPIA Obra e alfabeto da língua da ilha de Utopia. Interessante notar pelo mapa que a ilha não está isolada no meio do mar, mas próxima ao continente. O navio tem uma dimensão desproporcional no desenho e significa não só o transporte, mas o contato permanente com o continente. FIGURA 6 - Fonte: fundamentos-da-assagem.blogspot.com A obra A Utopia é dividida em dois livros, sendo que o segundo comporta a narrativa de Rafael Hitlodeu sobre a ilha que teria encontrado em uma de suas viagens. Utopia é, por um lado, expressão do desejo de transformação social, política Ao descrever as artes e os ofícios, Rafael mostra como uma organização racional do trabalho, que se atém ao necessário e despreza o que é supérfluo, pode abreviar o tempo de trabalho, cedendo espaço ao mais importante, à finalidade da ordem instaurada. Conforme More (1979), (...) o fim das instituições sociais na Utopia é de prover antes de tudo as necessidades do consumo público e individual; e deixar a cada um o maior tempo possível para libertar-se da servidão do corpo, cultivar livremente o espírito, desenvolvendo suas faculdades intelectuais pelo estudo das ciências e das letras. É neste desenvolvimento completo que eles põem a verdadeira felicidade (p.231). Thomas More concilia dois movimentos filosóficos do UNIDADE IV crítica da sociedade da época. Filosofia e Educação e religiosa do século XVI; por outro, é também a expressão passado: o hedonismo e o estoicismo. O hedonismo busca o prazer total para alcançar a felicidade, já o estoicismo prevê, para tanto, uma vida contida e austera, sem exageros ou luxo. Sem abrir mão do prazer, More regula a dimensão deste, 79 Volume 2 regrando-o com a austeridade do estoicismo. U V a FR K C AM SAIBA MAIS PEDAGOGIA 4.3.1 A função da ironia na narrativa Desiderius Erasmo Rotterdam (27/10/1466- 12/07/1536), de conhecido como Erasmo de Roterdã, foi um importante filósofo e teólogo holandês, muito amigo com de Thomas quem interesse pela More, partilha o teologia e pelo estudo dos clássicos, entre os quais, Luciano de Samósata. Entre as obras que escreveu, encontramos a sátira Elogio da Loucura, escrita em homenagem a More, por meio de uma brincadeira com a língua grega novamente: loucura, em grego, pode ser moiria, palavra que lembra o nome de More. A crítica mordaz que Erasmo fez a vários segmentos mas da sociedade, principalmente aos teólogos da Igreja Católica, nessa obra, Reforma Alemanha. nem inspirou Protestante Nem Thomas a na Erasmo, More, no Filosofia e Educação entanto, romperam com a Igreja Católica em Roma. uma ironia refinada que tem por base uma outra influência da Antiguidade: um autor chamado Luciano de Samósata, muito apreciado pelos renascentistas, em particular por More e seu amigo Erasmo de Rotterdam. Para começar, há uma brincadeira com a língua grega, uma total liberdade em inventar nomes jamais existentes na língua que More conhecia bem, o que se percebe na composição da própria palavra ou – topos, o não-lugar, sendo que o prefixo de negação no presente do indicativo tem um caráter concreto, não hipotético ou provável. Os nomes inventados refletem uma duplicidade cujo propósito é evidenciar o contrário ou a ausência – o prefixo grego “a” que indica a falta de, ausência - do que se afirma. A capital da ilha Amaurotum significa “cidade de sonhos” ou “castelo no ar”. A cidade é banhada por Anydrus, que quer dizer “rio sem água”; os cidadãos são os alaopolitas, isto é, “cidadãos sem cidade”; governados por ademus – “aquele que não tem povo”; vizinhos dos achorianos que significa “homens sem país”. E, por fim, o narrador-naveganteaventureiro Rafael Hythlodaeus teve seu nome traduzido na versão inglesa como Rafael Nonsense peddler, uma espécie de mascate ou vendedor itinerante de absurdos. More revelou a composição desses nomes em carta a Pedro Gil, personagem de sua ficção que teria compartilhado com More da narrativa de Rafael, publicada na segunda edição de 1517, um ano após a primeira edição da obra (MORE, 1988, p. 108-110). UNIDADE IV Devemos notar, nesta obra, diferentemente das outras, Algumas passagens da descrição da ilha de Utopia feita por Hitlodeu são declaradamente satíricas, quando, por exemplo, ele fala do desapego aos metais nobres, como o ouro e a prata, que servem aos utopianos para fabricar correntes para escravos (igualdade em Utopia?) e para aqueles que cometeram crimes vis (crime na sociedade perfeita?), e servem também para usos triviais e domésticos como na fabricação de penicos de ouro. Imagine que cena ridícula aos olhos dos utopianos, o desfile de escravos repletos de correntes de ouro 80 como ornamentos e sinais de riqueza. Módulo 1 Na narrativa do segundo livro, a comparação com o outro lugar, como as pessoas se vestem, comportam-se, organizam-se, é permanente. Esse efeito mostra a duplicidade costumes reais. A crítica, às vezes, é frontal, quando, por exemplo, ao falar da ociosidade da sociedade real, More se dirige à “imensa multidão de padres e religiosos vagabundos”, chamando os vulgos nobres e senhores de “mendigos robustos” e “malandros” (MORE, 1979, p.228). Mas, quem fala? Não é a Loucura, na sátira declarada PEDAGOGIA da narrativa: por reflexo, estabelece-se a crítica mordaz aos de Erasmo. É Rafael, o mascate de absurdos, disfarçado sob o nome inventado de Hitlodeu. Outro engano premeditado da narrativa são as medidas aparentemente bem calculadas. Em carta ao mesmo Pedro Gil, More pergunta qual seria a medida correta da ponte que cruza o rio da capital: 500 passos de largura? Mas o rio, naquele trecho, não passaria de 300 passos de largura, devendo-se, pois, subtrair 200 passos etc etc. Ao final da carta, More diz que Hitlodeu vive em Portugal, saudável e vigoroso como sempre (MORE, 1988, p. 110). Essas cartas ficaram como documentos que fornecem pistas, por um lado, para mostrar a possível veracidade de tal encontro entre More e Gil com Rafael, por outro lado, para enganar e divertir. A quem? A eles próprios e aos que souberam ludere. A história de More foi levada a sério, embora ele tivesse dado todas as pistas para demonstrar o absurdo do relato. Mesmo assim, deve-se considerar o lado sério. More queria escrever sobre o Estado, entretanto, como ele próprio diz a Pedro Gil, ocorrera-lhe uma fábula e dela decidiu se servir para tornar mais atraente “a verdade que queria transmitir aos leitores”. É nesse ponto que encontramos Luciano de Samósata e a tradição filosófica do riso como veículo de admiração e não de escárnio (MORE, 1988, p.109). Ginzburg, historiador e antropólogo italiano, recompõe de maneira clara essa relação quando lembra a aliança entre More e Erasmo com Luciano. Na carta a Pedro Gil, já citada e publicada na segunda edição da Utopia, quando More revela o significado dos nomes por ele inventados, ele diz ter usado de nomes “bárbaros e absurdos” por “fidelidade histórica”. UNIDADE IV Filosofia e Educação entender a refinada ironia, o brincar sério, a tradição do serio Afirmação ambígua, senão irônica, que representaria uma alusão a Luciano em sua obra Uma história verdadeira: “Sou mentiroso, declarava Luciano, mas as minhas mentiras são mais honestas que os milagres e as fábulas escritas pelos poetas, 81 Volume 2 historiadores e filósofos, ‘pois ao menos sou verídico ao dizer que minto’” (GINZBURG, 2004, p.34). Não só a ironia do relato é clara para o leitor atento, PEDAGOGIA como as palavras finais da obra demonstram o quase ceticismo de More frente ao relato inventado: Porque, diz ele, se de um lado não posso concordar com tudo o que disse este homem, aliás, incontestavelmente muito sábio e muito hábil nos negócios humanos, de outro lado confesso sem dificuldade que há entre os utopianos uma quantidade de coisas que eu aspiro ver estabelecidas em nossas cidades. As palavras finais cuidadosas e realistas são: “Aspiro, mais do que espero”. Durante a narrativa, sugere-se que a sabedoria ou experiência do “vendedor de absurdos” deveria servir para reciclar a política real; Rafael deveria aconselhar os dirigentes que governavam, estes sim, de maneira absurda. Há, portanto, um jogo de espelhos que formam uma narrativa complexa, ao mesmo tempo irônica e séria, ou melhor dizendo, que levava a ironia a sério. Mais do que ironia, percebe-se a sátira refinada Filosofia e Educação que favorece a crítica mordaz para leitores perspicazes. 5 CONSEQUÊNCIAS E DIMENSÃO TOMADAS PELO CONCEITO DE UTOPIA NOS SÉCULOS XIX E XX: A CRÍTICA DE ENGELS AO SOCIALISMO UTÓPICO E O MUNDO DESENCANTADO DAS DISTOPIAS Quando se fala em utopia em sua dimensão estritamente política, deve-se respeitar o desenrolar do conceito em diferentes contextos históricos, lembrando que a “América”, em particular a do norte, foi o solo no qual se pôs em prática todo tipo de proposta utópica ou utopista provinda da Europa, UNIDADE IV durante o século XIX. Para lá foram os fourieristas, owenistas (o próprio Owen), saint-simonistas, enfim, toda sorte dos chamados socialistas utópicos (cf. E. Wilson em seu conhecido romance Rumo à estação Finlândia). No Brasil, tivemos a experiência que a qual alguns consideram anarquista, outros, fourierista, outros ainda, apenas uma iniciativa pessoal de seu criador, o italiano Giovanni Rossi, da famosa Colônia Cecília, fundada no final do século XIX, em Santa Catarina (cf. romance escrito por Afonso Schmidt sobre o episódio, intitulado Colônia 82 Cecília. Alguns estudos mostram a parcialidade desse relato). FIGURA 7 - Pintura de F. Bate de 1838 que corresponde ao projeto da New Harmony: “Vista de uma comunidade como a proposta por Filosofia e Educação SAIBA MAIS Socialistas utópicos: sob essa denominação encontramos diferentes projetos U V e teorias que se desenvolveram durante o século XIX, que surgiram com os a F R K teóricos franceses Saint-Simon (1760-1825), Charles Fourier (1772-1837), C AM Louis Blanc (1811-1882) e no inglês Robert Owen (1771-1858). Nessas teorias, movidas pela miséria e revolta social contra o modelo burguês que havia derrubado, a monarquia na França, longe de garantir a sonhada igualdade, fraternidade e liberdade a todos, encontramos propostas concretas de implantação de sociedades supostamente mais justas. Vários grupos encampavam as propostas e dirigiram-se para as Américas, a fim de implantar em solo novo uma das propostas. Criaram-se grandes comunidades na América do Norte, como a New Harmony (Nova harmonia) do inglês Owen. O projeto fracassou e Owen retornou à Inglaterra. De suas ideias aplicadas antes de sua ida a América do Norte, reconhece-se uma reforma no capitalismo que existia no século XIX, ao construir casas para os operários, formar a primeira cooperativa e a primeira creche, e, principalmente, implementar a redução da jornada de trabalho para 10,5 horas diárias em sua fábrica, o que era um grande avanço para a época, na qual a jornada de trabalho chegava a durar 16 horas, incluindo a de mulheres e crianças. PEDAGOGIA Módulo 1 Essas experiências foram criticadas na obra de Engels, intitulada Do socialismo utópico ao socialismo científico (correspondia inicialmente ao primeiro capítulo de outra obra intitulada Anti-Dühring), na qual o autor critica a ingenuidade UNIDADE IV Robert Owen”. Fonte: http://wpcontent.answers.com/wikipedia/commons/New Harmony das teorias e a falta de apoio em análises que supõem o materialismo histórico e dialético. Desta crítica resulta o tom pejorativo com que as pessoas se dirigem à palavra utopia, como um sonho vago e impreciso de sociedade ideal, igualitária, 83 Volume 2 democrática etc., aspectos que não podem ser U V A Colônia Cecília foi uma experiência SAIBA MAIS PEDAGOGIA a F R de implantação de uma comunidade K C AM com pressupostos anarquistas ou com base na teoria de Fourier. Foi fundada em 1890, no município de Palmeira, no estado do Paraná, por um grupo de italianos liderados por Giovanni Rossi. A experiência fracassou por vários motivos, sendo o principal a mudança de regime político: da monarquia para a República. Rossi havia recebido a doação das terras por Dom Pedro II. Com a proclamação da República, os colonos teriam que pagar impostos e fracassaram na administração da colheita para recolher o pagamento.A experiência foi romanceada por Afonso Schmidt, no livro intitulado A colônia Cecília. Existem também vários estudos a respeito da experiência com base nesse contexto das utopias socialistas que buscaram solo para implantar seus sonhos nas Américas. encontrados em nenhuma das utopias clássicas, como vimos, mas que surgem como ideais da Revolução Francesa e se disseminam nos bolsões de pobreza, do século XIX, nos quais a proposta socialista alcançou êxito. As distopias, fruto literário negativo do gênero utopia, surgem na primeira metade do século XX, no período de instituição dos totalitarismos políticos. A utopia, no sentido clássico, é sempre o “bom lugar”, governado por pessoas bem intencionadas e racionais. A distopia é o lugar que foi planejado para ser bom, mas se tornou lugar de opressão. Novamente, o gênero, mesmo em seu aspecto negativo, serve como crítica política, como é o caso de 1984, de George Orwell, e Nós, do russo Zamiatin. Outra distopia que se tornou livro de referência durante décadas foi Admirável mundo novo, de Aldous Huxley. Esta, ao invés de criticar indiretamente os totalitarismos políticos, principalmente o stalinismo, critica a onipotência alcançada pelo conhecimento científico e como a organização da sociedade guiada por tal UNIDADE IV Filosofia e Educação conhecimento pode se tornar tão artificial quanto infeliz. 84 FIGURA 8 - Fonte: http://laudascriticas.files.wordpress.com Cena da adaptação da distopia 1984, de George Orwell, para o cinema. Na cena, vemos o Big Brother (em inglês, o irmão mais velho que zela pelos mais novos), personagem que controla a vida de todos os cidadãos através da “teletela”, um aparelho que tanto transmitia quanto captava a imagem de todos os aposentos da casa dos cidadãos. O herói dessa distopia tem um cantinho na casa, no qual sua imagem não é capturada, o que lhe confere uma liberdade e um poder de se defender da opressão. No contexto da Guerra Fria, era fácil perceber, na leitura e depois no filme, a semelhança do Big Brother com Josef Stalin. Orwell combatia o socialismo soviético por ser anarquista e não por concordar ou defender o capitalismo. Módulo 1 Você pode notar que a palavra utopia, criada por Thomas More, recebeu, nos séculos seguintes, um entendimento distanciado do contexto da obra A utopia, que, longe de ser uma proposta política a ser realizada, possuía a crítica à PEDAGOGIA política como principal motivo. Esse teor crítico foi retomado nas distopias do início do século XX, sendo que o único século que “levou a sério” a dimensão empreendedora desse tipo de narrativa foi o século XIX em sua busca por liberdade e alternativas de governo. U V a FR K C AM SAIBA MAIS As distopias continuam atuais, principalmente na realização de filmes. Todo cenário negativo, seja de ficção científica ou alguma espécie de projeção do futuro, carrega o tema da opressão, seja pela ciência, seja pelo poder político autoritário. Nesse contexto opressivo, há sempre um herói ou um grupo de destemidos que buscarão salvar o planeta e a humanidade. Os romances citados foram, durante anos, referências comuns de leitura para aqueles que viveram no período da Guerra Fria e que se sentiam ameaçados tanto pela opressão política do totalitarismo de esquerda da ex-União soviética, quanto pelo desenvolvimento da tecnologia de guerra. 1. O imaginário de expansão territorial e de transformação do conhecimento. 2. A crítica ao contexto europeu como contraponto ao que se apresenta como bom em outra sociedade. 3. A proposta de uma organização social planejada. O que há de positivo e o que há de negativo nessa proposta? 2: Assista a um dos filmes, Brazil, o filme (1985) e V de Vingança (2006), e verifique o caráter distópico presente neles, isto é, de que maneira a crítica à sociedade mostra um contexto saturado pela tecnologia e fracassado em oferecer liberdade ao cidadão. Observe a atuação heróica dos que tentam escapar da opressão que se apresenta. UNIDADE IV 1: Faça a leitura de uma das três utopias dessa unidade e procure identificar os seguintes aspectos: Filosofia e Educação ATIVIDADE 85 Volume 2 RESUMINDO PEDAGOGIA Nesta unidade, você pôde conhecer e identificar, sob o tema da utopia, os seguintes aspectos: • As utopias clássicas como um relato filosófico-literário que tem por objetivo a crítica política e a instituição de um paradigma de sociedade perfeita; • A importância do imaginário da descoberta do Novo Mundo na concepção das utopias e da afirmação do conhecimento científico emancipado do poder da Igreja Católica; • A crítica política presente nas utopias que tem por fundamento uma concepção de razão; • Indicações de como a razão, no comando da sociedade seria a base de um entendimento de educação que depende diretamente da organização social e política; • A tradição do riso na filosofia embutida na Utopia de Thomas UNIDADE IV Filosofia e Educação More; 86 • O projeto de implantação fracassado das utopias; a crítica a este modelo filosófico-narrativo; e a permanência do modelo na contemporaneidade na forma de distopia. BRANDÃO, Jacyntho Lins. A poética do hipocentauro: literatura, sociedade e discurso ficcional em Luciano de Samósata. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001. CAMPANELLA, Tommaso. A cidade do Sol. Tradução de Fernando Andrade. São Paulo: Ícone Editora, 2002. PEDAGOGIA BACON, Francis. Nova Atlântida. Tradução de José A. Reis de Andrade. 2. Ed. São Paulo: Abril Cultural, Coleção Os Pensadores, 1979. GINZBURG, Carlo. Nenhuma ilha é uma ilha: quatro visões da literatura inglesa. São Paulo: Ed. Schwarcz, 2004. ENGELS, F. Do socialismo utópico ao socialismo científico. Trad. José S.C. Pereira e Maria Helena R.C. de Oliveira. São Paulo: Ed. Fulgor, 1962. HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo. Rio de Janeiro: Bradil, 1969. LUCIANO. Diálogo dos mortos. São Paulo: Edusp/Palas Athena, 1996. ORWELL, George. 1984. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1980. RIO-SARCEY, Michèle; BOUCHET, Thomas; PICON, Antoine. Dictionnaire des Utopies. Paris : Larousse, 2002. SKINNER, Quentin. Hobbes e a teoria clássica do riso. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2002. VIEIRA, Antônio. As lágrimas de Heráclito. São Paulo: Editora 34, 2001. ZAMIATIN, Ievgueni Ivanovitch. Nós. Rio de Janeiro: Editora Anima, 1983. Filosofia e Educação MORE, Thomas. A Utopia. 2. ed. Tradução de Luís de Andrade. São Paulo: Abril Cultural, 1979. UNIDADE IV r e f eR Ê N C ia s Módulo 1 87 Suas anotações ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ unidade 5 A CONSTITUIÇÃO DA SUBJETIVIDADE NA Objetivos Meta FILOSOFIA MODERNA Introduzir o início do processo de dessacralização do conhecimento e demonstrar como a libertação de fatores externos ao processo do conhecimento, como a ideia de Bem e de Deus cria um espaço para o conhecimento com base nos erros e acertos somente humanos. Ao final desta unidade, você deverá ser capaz de: • identificar o que é o sujeito do conhecimento; • relacionar as teorias do racionalismo e do empirismo com a origem do conhecimento. Módulo 1 1 INTRODUÇÃO Nesta unidade, você estudará: • o processo de autonomia crescente da razão que abre o espaço para o sujeito do conhecimento na modernidade; • o racionalismo e o empirismo: a discussão sobre a UNIDADE V Filosofia e Educação PEDAGOGIA UNIDADE V origem do conhecimento; • trechos de textos de Descartes e Locke. 91 Volume 2 2 DESCARTES: SUJEITO DO CONHECIMENTO E SUBJETIVIDADE PEDAGOGIA Você pode primeiramente se perguntar o que é o sujeito do conhecimento e o que é subjetividade. Essas questões são identificadas historicamente na Época Moderna, século XVII e XVIII. Ser sujeito do conhecimento significa, a partir do pensamento moderno, exercer a capacidade humana de conhecer. Subjetividade deriva desse entendimento, como o espaço de interioridade humana que constitui uma identidade independente de valores externos. De que tipo de valores externos falamos? Por exemplo: a ideia de Bem supremo ou Bem comum, proveniente da filosofia grega que determinava a origem e o fim de todo conhecimento. Platão, no diálogo A República, Livro VI, compara a ideia de Bem ao Sol. No mundo sensível, o Sol ilumina e dá vida aos seres e permite a visão das coisas. No mundo inteligível, a ideia de Bem, em analogia com o Sol, é a ideia geradora de todas as ideias, é ela que permite à alma conhecer as Formas ou Ideias verdadeiras. Sem a ideia de Bem, não é possível conhecer, pois é ela a causa do conhecimento. No cristianismo, a ideia de Deus passou a ocupar o lugar da ideia de Bem, ideia que igualmente é externa ao homem e determina tudo o que O voltar-se para si, rompendo com o fator externo que determinava o conhecimento, tem em Descartes o momento maior de afirmação. Mas esse espaço da interioridade já existia em Santo Agostinho, que, em suas Confissões, buscava um diálogo indireto com Deus, tomando o conhecimento de si mesmo como reconhecimento da criação divina. Há um U V a FR K C AM SAIBA MAIS UNIDADE V Filosofia e Educação existe, inclusive a capacidade de conhecer. Aurélio Agostinho (em latim: Aurelius Augustinus), Agostinho de Hipona, ou Santo Agostinho (354-430), foi bispo, teólogo, filósofo e Doutor da Igreja católica. Foi um pensador importante no desenvolvimento do cristianismo no Ocidente. Agostinho foi muito influenciado pelo neoplatonismo de Plotino, criou o conceito de pecado original e guerra justa. Quando o Império Romano do Ocidente começou a se desintegrar, Agostinho desenvolveu o conceito de Igreja como a cidade espiritual de Deus (em um livro de mesmo nome), distinta da cidade material do homem. Seu pensamento influenciou profundamente a visão do homem medieval. A igreja se identificou com o conceito de Cidade de Deus, de Agostinho, e também a comunidade que era devota de Deus. processo histórico de “autoexploração” que aproxima filosofia e e religião que difere da identidade construída pelo cogito cartesiano. Descartes é considerado o pai da filosofia Suas moderna. obras mais conhecidas são o Discurso do método e Meditações metafísicas. 92 Nessas obras encontramos a constituição do sujeito que Módulo 1 se torna autônomo no processo do conhecimento. Essa autonomia, no entanto, é marcada por uma busca da confiança ou da certeza do conhecimento PEDAGOGIA que deve se afirmar como verdadeiro. Sem a garantia de nada externo que possa auxiliar o sujeito nessa tarefa, a filosofia de Descartes e dos filósofos modernos é marcada pela preocupação de encontrar um método correto que possa conduzir, por meio de critérios objetivos e universais, ao conhecimento verdadeiro. O método escolhido inicialmente por Descartes foi a “dúvida”, isto é, ele procurou duvidar radicalmente de tudo – da tradição recebida por meio da educação (o que inclui a filosofia e a FIGURA 1 - René Descartes: Quadro pintado pelo holandês Frans Hals. Fonte: http://pt.wikipedia.org religião), do senso comum, das opiniões e argumentos conhecidos. Ele diz: A radicalidade desse método conduziu-o a duvidar e da realidade do próprio corpo. Você pode notar isso nesta passagem: “Assim, porque os nossos sentidos nos enganam às vezes, quis supor que não havia coisa alguma que fosse tal como eles nos fazem imaginar” (DESCARTES, 1979, p.46). Essa cadeia de dúvidas só foi interrompida por uma certeza: se ele pode duvidar de tudo, ele o fez por meio Descartes nasceu em 31 de março de 1596, en La Haye en Touraine, França, e faleceu em 11 de fevereiro de 1650, em Estocolmo, Suécia. Da forma latinizada de seu nome Cartesius, provém o adjetivo “cartesiano”. do pensamento, o que o levou à seguinte conclusão: “se duvido, penso; se penso, existo”. “Eu penso, logo existo” PARA CONHECER também da percepção dos sentidos, do mundo exterior UNIDADE V Filosofia e Educação (...) por desejar então ocupar-me somente com a pesquisa da verdade, pensei que era necessário agir exatamente ao contrário, e rejeitar como absolutamente falso tudo aquilo em que pudesse imaginar a menor dúvida, a fim de ver se, após isso, não restaria algo em meu crédito, que fosse inteiramente indubitável” (DESCARTES, 1979, p.46). em latim: Cogito, ergo sum. Na passagem abaixo você pode notar essa conclusão: 93 Volume 2 Um termo correlato VOCÊ SABIA? PEDAGOGIA a “pensar”, em nossa língua, é “cogitar”, palavra mais próxima do latim. (...) enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio da Filosofia que procurava (DESCARTES, 1979, p. 46). Esse “pensar” é puro pensamento, pois Descartes considera a realidade do corpo, a matéria, algo que é sempre questionável. A existência é afirmada em relação ao pensamento, à razão ou espírito. O que leva Descartes a concluir que o homem é uma “coisa que pensa”. Deste modo, em outro texto seu, a “Meditação Segunda” de Meditações metafísicas, lemos: UNIDADE V Filosofia e Educação (...) Passemos pois aos atributos da alma e vejamos se há alguns que existam em mim. Os primeiros são alimentar-me e caminhar; mas se é verdade que não possuo corpo algum, é verdade também que não posso nem caminhar nem alimentar-me. Um outro é sentir; mas não se pode sentir também sem o corpo; além do que, pensei sentir outrora muitas coisas, durante o sono, as quais reconheci, ao despertar, não ter sentido efetivamente. Um outro é pensar; verifico aqui que o pensamento é um atributo que me pertence; só ele não pode ser separado de mim. Eu sou, eu existo: isto é certo; mas por quanto tempo? A saber, por todo o tempo em que eu penso; pois poderia, talvez, ocorrer que, se eu deixasse de pensar, deixaria ao mesmo tempo de ser ou de existir. Nada admito agora que não seja necessariamente verdadeiro: nada sou, pois, falando precisamente, senão uma coisa que pensa (res cogitans), isto é, um espírito, um entendimento ou uma razão, que são termos cuja significação me era anteriormente desconhecida. Ora, eu sou uma coisa verdadeira e verdadeiramente existente; mas que coisa? Já o disse: uma coisa que pensa. (DESCARTES, 1979, p. 7). Cognoscente: palavra compos-ta pelo radical grego gnose, que quer dizer conhecimento. Cognoscente é aquele que conhece. Como você pode notar, o uso do pronome em primeira pessoa, “eu”, não se limita ao indivíduo ou à pessoa de Descartes. Trata-se de um “eu” com valor universal, como o “eu” cognoscente característico ao ser humano em geral. Esse espaço de subjetividade é o espaço da capacidade de 94 conhecer puramente racional e humana, que, ao se ater ao Módulo 1 pensamento e questionar os sentidos e sentimentos, porque estes são a causa dos erros, dá curso a uma autonomia jamais pressuposta anteriormente: o conhecimento liberto de objetivas e universais por meio do método. A procura por um método que exclua o erro tornou-se a grande responsabilidade da filosofia moderna. Alcançada a certeza do pensamento, Descartes passou a considerar a origem e a qualidade de nossas ideias. Existem ideias que são claras e distintas. Essas ideias são inatas, PEDAGOGIA determinações exteriores, preocupado em criar determinações independem dos sentidos, não estão sujeitas ao erro, são verdadeiras e racionais. O cogito, como nos referimos à certeza alcançada, é uma ideia inata. Outras ideias inatas nomeadas pelo filósofo são: a ideia de perfeição de Deus e as ideias de extensão e movimento. Vale ressalvar que o Deus suposto por Descartes não coincide com aquele que rege a própria possibilidade de conhecer do homem, mas trata-se de uma ideia que é correlata à de um ser perfeito e existente, que serve como contraponto, sob o ponto de vista metodológico, à imperfeição humana. Sob o ponto de vista metafísico, a ideia de Deus, que é absoluta, eterna e criadora, não vem do homem, mas sim de uma causa que é uma substância infinita e perfeita. Já a matemática torna-se paradigma de uma ciência universal e de deve corresponder o pensamento filosófico. Um pensamento que se estabelece a partir de uma cadeia de razões, da ordem e da medida. 3 RACIONALISMO E EMPIRISMO A origem das ideias marca a discussão Filosofia e Educação caráter, a matemática universal (mathesis universalis), à qual que se estabeleceu entre o racionalismo UNIDADE V cartesiano e o empirismo britânico, que surgiu com Francis Bacon e que se desenvolveu com John Locke (1632-1704) e David Hume nos séculos seguintes. Estudaremos algumas ideias de John Locke, particularmente de seu Ensaio acerca do entendimento humano, Livro II, Capítulo I, a fim de notarmos o contraste com o pensamento de Descartes. Locke questiona Figura 2 - Edição inglesa da obra de John Locke em 3 volumes Fonte: http://pt.wikipedia.org/ 95 Volume 2 a teoria do inatismo dos racionalistas, oferecendo outra teoria sobre a origem do conhecimento. Segundo ele, PEDAGOGIA (...) Idéia é o objeto do pensamento. Todo homem tem consciência de que pensa, e que quando está pensando sua mente se ocupa de idéias. Por conseguinte, é indubitável que as mentes humanas têm várias idéias, expressas, entre outras, pelos termos brancura, dureza, doçura, pensamento, movimento, homem, elefante, exército, embriaguez. Disso decorre a primeira questão a ser investigada: como elas são apreendidas? (LOCKE, 1978). U V UNIDADE V Filosofia e Educação SAIBA MAIS a FR K C AM Francis Bacon (1561-1626) – iniciou sua carreira na política, chegando ao cargo de Lorde Chanceler do Reino Britânico, em 1618, sob o reinado de Jaime I. Como filósofo, formulou investigações e uma metodologia científica fundante do empirismo, sendo muitas vezes chamado de “fundador da ciência moderna”. Sua principal obra filosófica é o Novum Organum, na qual elege o método indutivo como o principal instrumento do conhecimento científico. David Hume (1711-1776) filósofo e historiador escocês. É conhecido como o terceiro e o mais radical dos chamados empiristas britânicos, após Locke. A filosofia de Hume é famosa pelo seu profundo ceticismo, mesmo que muitos especialistas prefiram destacar a sua componente naturalista. Bertrand Russel, um dos mais conhecidos filósofos do século XX, declarou que Hume foi o maior filósofo britânico que já existiu. Sua obra mais conhecida é: O tratado da natureza humana (1739-1740), concluída quando Hume tinha apenas 26 anos. Locke não questiona a existência das ideias e o fato de a consciência delas se ocupar. Nessa exposição, está presente a certeza indubitável, isto é, aquela da qual não se pode duvidar, afirmada por Descartes. O autor propõe ir além e investigar a origem ou fonte dessas ideias e, para tanto, solicita “a cada um recorrer à sua própria observação e experiência”. Acompanhe seu raciocínio na sequência do mesmo texto, quando ele utiliza a metáfora da mente como uma “folha de papel em branco”: (...) Todas as idéias derivam da sensação ou reflexão, suponhamos, pois, que a mente é, como dissemos, um papel branco, desprovida de todos os caracteres, sem quaisquer idéias; como ela será suprida? De onde lhe provém este vasto estoque, que a ativa e que a ilimitada fantasia do homem pintou nela com uma variedade infinita? De onde apreende todos os materiais da razão e do conhecimento? A isso respondo, numa palavra, da experiência. Todo nosso conhecimento está nela fundado, e dela deriva fundamentalmente o próprio conhecimento. Empregada tanto nos objetos sensíveis externos como nas operações internas de nossas mentes, que são por nós mesmos percebidas e refletidas, nossa observação supre nossos entendimentos com todos os materiais do pensamento. Dessas duas fontes de conhecimento jorram todas as nossas idéias, ou as que possivelmente teremos (LOCKE, 1978). Você deve perceber que Locke instiga o leitor a pensar criticamente sobre a hipótese das ideias inatas ou pré-existentes em nossa mente. Utilizando a metáfora de que nossa mente é como uma folha de papel em branco, ele pretende demonstrar que todo conhecimento e repertório de ideias que cada um tem 96 provêm de duas fontes: da sensação ou experiência obtida por Módulo 1 meio dos cinco sentidos e da reflexão com base na observação e relação do que já havia sido experimentado sensorialmente. (...) O objeto da sensação é uma fonte das idéias. Primeiro, nossos sentidos, familiarizados com os objetos sensíveis particulares, levam para a mente várias e distintas percepções das coisas, segundo os vários meios pelos quais aqueles objetos os impressionaram. Recebemos, assim, as idéias de amarelo, branco, quente, frio, mole, duro, amargo, doce e todas as idéias que denominamos de qualidades sensíveis. Quando digo que os sentidos levam para a mente, entendo com isso que eles retiram dos objetos externos para a mente o que lhes produziu estas percepções. A esta grande fonte de nossas idéias, bastante dependente de nossos sentidos, dos quais se encaminham para o entendimento, denomino sensação (LOCKE, 1978). PEDAGOGIA Explicando melhor essas duas fontes, Locke diz: Como você pode notar, o ponto de partida não é a consciência que promove o surgimento das ideias em relação a coisas ou pessoas externas a elas, isto é, os objetos. Estes é que afetam o sujeito e provocam nele uma reação de apreensão: uma primeira impressão, que ocorre por meio dos sentidos e que gera um entendimento, tal como ele explica no texto. Ideias que partem da sensação, como quente, frio etc. experiência. Tente, portanto, pensar em que tipo de ideias você pode obter por meio das sensações: pelo tato, olfato, audição, paladar e visão. Quantas vezes um aroma, gosto ou som, não nos leva de volta ao momento dessa apreensão inicial, como se fosse uma memória corporal? Prosseguindo em sua argumentação sobre a fonte ou origem das ideias com base na experiência sensorial, Locke diz: (...) As operações de nossas mentes consistem na outra fonte de idéias. Segundo, a outra fonte pela qual a experiência supre o entendimento com idéias é a percepção das operações de nossa própria mente, que começa a refletir e a considerar, suprem o entendimento com outra série de ideias que não poderia ser obtida das coisas externas, tais como a percepção, o pensamento, o duvidar, o crer, o raciocinar, o conhecer, o querer e todos os diferentes atos de nossas próprias mentes. Tendo disso consciência, observando esses atos em nós mesmos, nós os incorporamos em nossos Filosofia e Educação Locke pede ao leitor que pense em sua própria UNIDADE V 97 Volume 2 PEDAGOGIA entendimentos como idéias distintas, do mesmo modo que fazemos com os corpos que impressionam nossos sentidos. Toda gente tem esta fonte de idéias completamente em si mesma; e, embora não a tenha sentido como relacionada com os objetos externos, provavelmente ela está e deve propriamente ser chamada de sentido interno. Mas, como denomino a outra de sensação, denomino esta de reflexão: idéias que se dão ao luxo de serem tais apenas quando a mente reflete acerca de suas próprias operações. [...] O termo operações é usado aqui em sentido lato, compreendendo não apenas as ações da mente sobre suas idéias, mas também certos tipos de paixões que às vezes nascem delas, tais como a satisfação ou inquietude que nascem em qualquer pensamento (LOCKE, 1978). Neste parágrafo, Locke busca esclarecer o papel da reflexão na constituição das ideias. A reflexão é como um “sentido interno” que opera sobre si mesmo. Trata-se da observação que a mente faz sobre a forma como apreende a realidade externa, as coisa materiais externas, ou seja, por meio dos dados sensoriais que são a ela enviados. A reflexão é, pois, uma operação secundária de formação das idéias, sendo a fonte primária, a apreensão pelos sentidos. Ela é capaz de, por meio da observação e das associações que faz entre as ideias que já foram formadas, criar teorias UNIDADE V Filosofia e Educação e direcionar o conhecimento sobre a realidade. No entanto, 98 essas ideias e associações não estão previamente dadas, independentemente do mundo exterior e da experiência que se obtém primeiramente por meio dos sentidos. É necessário, portanto, que exista experiência em primeiro lugar, que os sentidos sejam afetados pelo objeto para que surja a reflexão como operação secundária, que, por sua vez, forma as ideias. Nesse sentido, podemos concluir com Locke: (...) Todas nossas ideias derivam de uma ou de outra fonte. Parece-me que o entendimento não tem o menor vislumbre de quaisquer ideias se não as receber de uma das duas fontes. Os objetos externos suprem a mente com as ideias das qualidades sensíveis, que são todas as diferentes percepções produzidas em nós, e a mente supre o entendimento com as ideias através de suas próprias operações. Quando efetuarmos uma investigação completa de ambos, de seus vários modos, combinações e relações, descobriremos que eles contêm todo o nosso estoque de ideias, e que não temos nada em nossas mentes a não ser o derivado de um desses dois meios. Se alguém examinar seus próprios pensamentos, dir-me-á, então, se todas as ideias originais que lá estão são algo mais do que os objetos de seus sentidos, ou das operações de sua mente encarada como objeto de sua reflexão; e, por mais ampla que seja a massa de conhecimentos lá localizada, por mais que ele imagine, verá, assumindo um ponto de vista estrito, que não tem ideia alguma em sua mente, a não ser o que foi por uma dessas impresso, embora talvez em infinita variedade e ampliadas pelo entendimento (LOCKE, PEDAGOGIA Módulo 1 1978). Podemos verificar, nessa conclusão, o retorno ao pressuposto traduzido na metáfora da mente “como um papel em branco”, na qual só se pode verificar a existência de um texto impresso, após a experiência que depende das duas fontes explicitadas: a sensação e a reflexão. Por mais que a complexidade do pensamento e o aprimoramento do entendimento humano tenham se desenvolvido, estes só foram possíveis e só podem ser explicados, para Locke, como aquisição e não como algo que pré-existe à experiência, como afirma o inatismo. A disputa entre essas duas explicações – do racionalismo e do empirismo - sobre a origem e o desenvolvimento do Kant, já distanciado dessa disputa, foi capaz de inventar, com base na discussão do que é inato e do que é adquirido, a expressão “aquisição originária”. Aquisição remete ao empirismo; originário, ao inatismo. Para Kant essa expressão supera a oposição, pois não afirma que o conhecimento é inato, nem empiricamente adquirido. O que é originariamente adquirido provém da experiência, despertando o que já existia na consciência que, portanto, não é exatamente uma folha de papel em branco. Filosofia e Educação conhecimento, encontrou em Kant um termo de finalização. UNIDADE V 99 Volume 2 UNIDADE V Filosofia e Educação PEDAGOGIA ATIVIDADE 100 1. Embora Kant seja considerado o filósofo que superou a oposição entre essas duas correntes do pensamento, a querela (debate, disputa) entre inatismo e empirismo encontrou eco nos séculos seguintes e sustentou o surgimento de algumas ciências, como a psicologia. Encontramos, na obra grandiosa de Marcel Proust, Em busca do tempo perdido, escrita no final do século XIX, a forte presença de uma psicologia com base no empirismo. Escolhemos um pequeno trecho de sua obra como exercício de reconhecimento do teor dessa discussão, corpo e espírito/razão, em sua narrativa. Na leitura, é possível reconhecer alguns aspectos que elegem o corpo como referência para a memória verdadeira ou mais fiel ao passado do que a que se procura lembrar voluntariamente por meio do esforço exclusivo da razão consciente. Destaque no texto as passagens que indicam que a memória provém do corpo e não da consciência ou razão: A imobilidade das coisas que nos cercam talvez lhes seja imposta por nossa certeza de que essas coisas são elas mesmas e não outras, pela imobilidade de nosso pensamento perante elas. A verdade é que, quando eu assim despertava, com o espírito a debater-se para averiguar, sem sucesso, onde poderia achar-me, tudo girava em redor de mim no escuro, as coisas, os países, os anos. Meu corpo, muito entorpecido para se mover, procurava, segundo a forma de seu cansaço, determinar a posição dos membros para daí induzir a direção da parede, o lugar dos móveis, para reconstruir e dar um nome à moradia onde se achava. Sua memória, a memória de suas costelas, de seus joelhos, de suas espáduas, apresentava-lhe, sucessivamente, vários dos quartos onde havia dormido, enquanto em torno dele as paredes invisíveis, mudando de lugar segundo a forma da peça imaginada, redemoinhavam nas trevas. E antes mesmo que meu pensamento, hesitante no limiar dos tempos e das formas, tivesse identificado a habitação, reunindo as diversas circunstâncias, ele – meu corpo – ia recordando, para cada quarto, a espécie do leito, a localização das portas, o lado para que davam as janelas, a existência de um corredor, e isso com os pensamentos que eu ali tivera ao adormecer e que reencontrava ao despertar. Meu corpo anquilosado, procurando adivinhar sua orientação, imaginava-se, por exemplo, virado para a parede, em um grande leito de dossel, e eu logo dizia comigo: ‘Pois não é que acabei adormecendo antes que mamãe viesse me dar boa noite!’; achava-me então no campo, em casa de meu avô, morto havia muitos anos; e meu corpo, o flanco sobre o qual eu repousava, fiel zelador de um passado que meu espírito nunca deveria ter se esquecido ... (PROUST, 1987, p.12). Módulo 1 Nesta unidade, você viu: • como a constituição da subjetividade moderna surge associada à questão do conhecimento exclusivamente baseado na razão ou pensamento; PEDAGOGIA RESUMINDO • a necessidade de se fundar um método para evitar o erro da razão; • o debate sobre a origem do conhecimento ou das ideias segundo as correntes do inatismo ou racionalismo e o empirismo; • o contraste entre a percepção sensorial do corpo e a razão DESCARTES, Renée. Meditações. In: Coleção “Os Pensadores”. Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. LOCKE, John. Ensaio acerca do entendimento humano. In: Coleção “Os Pensadores”. Tradução de Anoar Aiex; E. Jacy Monteiro. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido: no caminho de Swann. Volume 1. Tradução de Mário Quintana. 11. ed. Rio de Janeiro: Ed. Globo, 1987. Filosofia e Educação DESCARTES, Renée. Discurso do método. In: Coleção “Os Pensadores”. Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. UNIDADE V r e f eR Ê N C ia s ou espírito. 101 Suas anotações ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ unidade 6 Filosofia e educação Objetivos Meta em Jean-Jacques Rousseau Apresentar o pensamento de Rousseau com ênfase na questão do conhecimento, da consciência moral e política. Ao final desta unidade, você deverá ser capaz de: • compreender os conceitos de natureza, de consciência, de amor de si e de amor-próprio em Rousseau, como conceitos estruturais necessários para entender a crítica do filósofo à sociedade e suas representações. Módulo 1 Para você compreender alguns aspectos importantes da filosofia de Rousseau, nosso roteiro de estudo desta unidade será: • Rousseau e o Iluminismo francês. • A crítica e a teoria da educação proposta por Rousseau: - conceitos articuladores da filosofia de Rousseau; - mimesis e a crítica ao teatro e à educação. UNIDADE VI 1 INTRODUÇÃO Filosofia e Educação PEDAGOGIA UNIDADE VI 105 Volume 2 2 JEAN-JACQUES ROUSSEAU E SUA CRÍTICA AO CONTEXTO SOCIAL E POLÍTICO PEDAGOGIA Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) é um dos filósofos cujas obras se tornaram leituras obrigatórias em diversos currículos de formação profissional e formação de professores. São textos críticos em relação à sociedade, à política, que buscam apresentar soluções principalmente políticas, culturais. sua Em educativas época, e dificilmente poderíamos separar a figura do filósofo das figuras do político e do artista, pois o filósofo participava da sociedade ativamente em todas as suas instâncias: na ciência, na política e nas artes. Sobre estas também refletiam e propunham medidas e soluções. Neste contexto, Rousseau escreve sua grande obra voltada à Educação, intitulada Emílio ou da Educação. Esta obra, ao lado de Do contrato social, que contém sua proposta política de um pacto FIGURA 1 - Portrait de Jean-Jacques Rousseau por Maurice-Quentin La Tour, 1753. Fonte: http://pt.wipedia.org Filosofia e Educação UNIDADE VI com a vontade geral, lançadas no mesmo ano, em 1762, foram mal recebidas pelas autoridades políticas e religiosas na França e Suíça, instâncias que se incumbiram de proibir a leitura dessas obras, queimadas em praça pública, e de incriminar Rousseau, que foge dos dois países para não ser preso. Ele passou o resto de sua vida justificando suas ideias em outros escritos. Suas críticas e propostas foram incorporadas ao discurso político e educativo nos séculos seguintes. Deísmo - O deísmo é uma tendência filosófico-religiosa que admite a exis-tência de Deus por meio da razão, em contrapartida aos dogmas da Igreja e da tradição religiosa. Para os deístas, Deus se revela através da ciência e das leis da natureza. Ateísmo – Postura filosófica que empre-ende a negação da existência de Deus e dos dogmas da Igreja. 106 realizado em bases igualitárias de acordo 2.1 Rousseau e o Iluminismo francês Jean-Jacques Rousseau viveu no período conhecido pelo nome de Século das Luzes, Iluminismo ou Ilustração. Um período marcado por uma grande emancipação da razão, de admissão franca do deísmo e do ateísmo e projetos ousados de compilação do conhecimento humano, como foi o projeto da Enciclopédia Francesa, coordenado por Diderot e D’Alembert. Módulo 1 U V FIGURA 2: Capa da Enciclopédia Francesa: Encyclopédie, ou dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers. Fonte: http:// pt.wikipedia.org PEDAGOGIA SAIBA MAIS Encyclopédie, ou dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers foi uma projeto dirigido inicialmente por Denis Diderot e por ele finalizada, dividindo a edição com Jean le Rond d’Alembert. A Enciclopédia foi publicada na França, no século XVIII. Os volumes somam ao todo 28, com 71.818 verbetes e 2.885 ilustrações, sendo que seus últimos volumes foram publicados em 1772. Contribuíram, para o projeto e edição da Encyclopédie, os filósofos: Voltaire, Rousseau e Montesquieu. a FR K C AM Immanuel Kant (que você estudará na próxima Unidade - VII), em 1784, ao escrever a resposta à questão “O que é a Aufklärung?” (palavra alemã traduzida por Ilustração, Iluminismo ou ainda Esclarecimento), em seu texto, assim intitulado, estabelece a máxima desse período: Sapere aude! (Ousa saber!), considerando que o homem ganha “decisão e coragem” em ser o senhor de si mesmo e de seu próprio A ousadia do saber confere uma autonomia à razão jamais experimentada pelo homem ao longo de sua história e impõe-lhe a tarefa de dominar todas as áreas do saber e da prática. A filosofia não é entendida em sentido estrito, debruçada sobre si mesma, seus autores e sua história, mas ela se expande para todo o âmbito do conhecimento e das artes em geral. Os filósofos escrevem peças teatrais, músicas, ensaiam a escrita literária de romances e diálogos. A educação Filosofia e Educação entendimento das coisas. e o sentido de educação retoma o de formação integral do ser humano: intelectual, moral e política. Segundo Souza (2003, p.19), (...) ao se impor essa tarefa político-pedagógica, a filosofia das luzes é levada a ocupar-se da diversidade dos problemas suscitados pela própria vida concreta dos homens do século: a política, a arte, a educação, o desenvolvimento das ciências, das técnicas, o caráter e o papel histórico das religiões. UNIDADE VI tradicional familiar e da escola são submetidas a fortes críticas 107 Volume 2 PARA CONHECER PEDAGOGIA Dentre os principais estudiosos de Rousseau, estão: Ernst Cassirer (1874-1945): filósofo judeu alemão, um dos mais reconhecidos neokantianos da Escola de Marburgo, Alemanha, desenvolveu uma Filosofia da Cultura e uma teoria sobre os símbolos e lecionou nas universidades de Berlim, Leipzig e Heidelberg. Entre suas obras mais citadas, encontramos: Filosofia das formas simbólicas (1923); O mito do Estado (1946); A questão Jean-Jacques Rousseau (1970). Jean Starobinski (1920): suíço genebrino como Rousseau, tornou-se um de seus mais reconhecidos intérpretes e especialistas no período (séc. XVIII). Entre suas obras, podemos citar Jean Jacques Rousseau: A Transparência e o Obstáculo; Montaigne Em Movimento, A Invenção da Liberdade. Peter Gay (1923): historiador e cientista judeu alemão, político voltado para a história das ideias, escreveu, em 1959, A política em Voltaire; O Iluminismo: uma interpretação (1969), sendo seu livro mais conhecido A cultura de Weimar (1968). Luiz Roberto Salinas Fortes (1937-1987): formado em Direito e em Filosofia, foi professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo e um dos fundadores do Teatro Oficina, em 1958. Publicou livros e artigos sobre Rousseau e o Iluminismo, entre os quais: Paradoxo do espetáculo: política e poética em Rousseau; O iluminismo e os reis filósofos; Rousseau: o bom selvagem. Maria Constança P. Pissarra: professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, membro do corpo editorial da Coleção Filosofia, pesquisadora associada da Universidade de São Paulo, membro do corpo editorial da Revista COMFIO e membro do corpo editorial da Poliética. Autora de Rousseau: A política como exercício pedagógico. Filosofia e Educação Maria das Graças de Souza: possui graduação em Filosofia pela Universidade de São Paulo (1971), mestrado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (1983) e doutorado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (1990). Livre-docente em 1999, é atualmente professora titular da Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em História da Filosofia e Política, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia moderna, iluminismo, renascença, história, política. Rousseau, como se sabe, é filho de sua época e, embora fosse suíço, nascido em Genebra, se fez reconhecer, desde o início, pela intelectualidade francesa. Tornou-se amigo de Diderot, com quem partilhou o projeto da Enciclopédia, escrevendo os verbetes sobre música. Rousseau, no entanto, é crítico da razão que se separa da sensibilidade e da consciência UNIDADE VI moral. Ele se tornou referência importante para Kant, Goethe, 108 Schiller e todo o romantismo. Num livro introdutório sobre o Iluminismo, Fortes (1982) comenta o incômodo sentido pelo historiador da filosofia em incluir Rousseau nesse período e movimento filosófico: Seria Rousseau iluminista, iluminado, iluminador? Não se sabe. O que se sabe de efetivo é que sua obra é mesmo muito complicada, com mil meandros e aparentes contradições insuperáveis. Ele parece Módulo 1 PEDAGOGIA desdizer em uma página o que disse na outra. Briga com todo mundo [...], com os clérigos católicos de um lado e, de outro, com o partido adverso, o dos philosophes. Todo mundo o detesta, não é só Voltaire. Todos fazem dele uma imagem terrível e o fantasiam como a um verdadeiro monstro insociável a escrever paradoxos ininteligíveis. Se não é possível dizer que Rousseau é um iluminista, o que se pode dizer com absoluta segurança é que ele é um verdadeiro desmancha-prazeres da festa dos iluministas (p.72). Ao criticar uma espécie de razão excessiva, erudita, que se distancia da percepção sensível e concreta da realidade, Rousseau não se torna, ao contrário, um irracionalista. Essa é a preocupação de alguns autores ao tentarem desvincular Rousseau de tendências irracionalistas do romantismo. 3 NATUREZA, AMOR DE SI E AMOR-PRÓPRIO: CONCEITOS ARTICULADORES DA FILOSOFIA DE ROUSSEAU No prefácio ao livro de Ernst Cassirer, Das Problem Jean-Jacques Rousseau - 1932 (traduzido em português pelo título da tradução inglesa: A questão Jean-Jacques Rousseau, equivocadas de Rousseau até, no início do século XX, destacar os autores que se preocuparam em conferir unidade ao seu pensamento, entre os quais o próprio Cassirer (antecedendo a ele, G. Lanson e Whright). Contra uma visão irracionalista de Rousseau, esses autores procuraram ressaltar, com base nas obras consideradas políticas (o Discurso sobre a desigualdade e e da bondade natural como princípio de seu pensamento. A crítica de Rousseau à sociedade, como corruptora do amor de si, característico da natureza e do progresso, havia lhe rendido muitas críticas de Voltaire, que jocosamente dizia que Rousseau gostaria que os homens voltassem a viver sobre quatro patas. A oposição ao social e a crítica ao progresso geraram, e ainda geram, o paradoxo e os Estado de natureza: Trata-se de uma hipótese lógico-filosófica do que teria existido antes de a sociedade ter sido constituída por leis e pela política. Essa hipótese foi levantada, principalmente, no contraste entre a sociedade civil e o regime político por seus formuladores. Esses filósofos são conhecidos como contratualistas, pois, com base na ideia de natureza (boa ou má), propunhamse um pacto ou contrato fundante da sociedade civil e de um regime político. Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-1704) e Rousseau são os principais teóricos que formularam essa questão. ATENÇÃO Do Contrato Social), os conceitos de natureza UNIDADE VI Filosofia e Educação UNESP, 1997), Peter Gay descreve o trajeto das interpretações 109 Volume 2 mal-entendidos em relação a uma suposta e impossível volta ao estado de natureza. Vejamos, nas perspectivas abaixo, a PEDAGOGIA demonstração dessa preocupação: a) “Como pode o homem civilizado recuperar os benefícios do homem natural, assim inocente e feliz, sem retornar ao estado de natureza, sem renunciar às vantagens do estado social?” (LANSON, apud CASSIRER, 1989, p. 24) b) “A idéia de que o homem deve se aperfeiçoar por sua razão e em concordância com sua natureza percorre toda a obra de Rousseau e lhe confere uma unidade essencial”. (WHRIGHT, apud CASSIRER, 1989, p. 24) c) “Rousseau jamais acreditou que alguém não pudesse fazer uso de sua própria razão... Muito ao contrário, ele queria nos ensinar a usá-la bem... Rousseau é um racionalista consciente dos limites da razão”. (DERATHÉ, apud CASSIRER, 1989, p.30) d) Podemos acrescentar a essa afirmação a seguinte passagem do Emílio, Livro IV: “(...) queremos compreender tudo, conhecer tudo. A única coisa que não sabemos é ignorar o que não podemos saber”. (ROUSSEAU, 1999, p. 359) Filosofia e Educação Para Cassirer, o grande princípio da filosofia de Rousseau é que o homem é bom, que a sociedade o corrompe, mas que somente a sociedade, o agente da perdição, é capaz de ser o agente da salvação. Outros autores discordaram desses intérpretes, não pela ênfase dada ao racionalismo, mas pela tentativa de conferir uma unidade à obra de Rousseau. Peter Gay escreve, posteriormente, sobre a relevância da obra A transparência e o obstáculo, de Jean Starobinski, referência obrigatória nos estudos de Rousseau, cuja UNIDADE VI incorporação dos escritos considerados não políticos, como os autobiográficos e Emílio ou da educação, trouxe à tona a importância da questão da interioridade. Surge, a partir dessa obra, uma exploração de viés psicológico que teria se sobreposto ao político, o que novamente enfraquece a compreensão de seu pensamento. Partimos dessa última constatação para ter o cuidado de não isolar o aspecto estético, esquecendo o político e o moral, na direta abordagem do problema da representação ou 110 exposição das ideias. PEDAGOGIA Módulo 1 Gravura que mostra Voltaire e Rousseau sendo conduzidos, com seus livros, a um Panteão, que significa tanto um antigo templo romano, quanto um monumento que guarda restos mortais de heróis, estadistas. Os dois filósofos foram enterrados no mesmo Panteão, em Paris, na França. Figura 3 - Fonte: http://www.traditioninaction.org A filosofia de Rousseau estabelece uma aparente oposição entre natureza e representação; oposição possível de ser rompida quando se examina mais cuidadosamente o significado complexo que cada termo comporta. Encontraremos, por um lado, conceitos que reforçam a suposta oposição como o de amor de si e de amor próprio; e, por outro, conceitos que a superam, como o entendimento positivo que Rousseau possui da música e a utilização hiperbólica ou Amor próprio (amour propre): Em O discurso da desigualdade social, o amor próprio surge como o primeiro encadeador da desigualdade social, antes mesmo da fundação simbólica da primeira propriedade, segundo a qual alguém resolveu fincar uma estaca e afirmar – isto é meu – e encontrou pessoas ingênuas o suficiente para permitir que ele o fizesse. O amor próprio diz respeito aos sentimentos de vaidade e egoísmo. Mais do que isso, diz Dent (1992): O amor-próprio acaba por desalojar o AMOR DE SI MESMO, substituindo o bem intato e sereno que caracteriza este último pelo bem enganoso e ilusório que consiste em obter odioso domínio pessoal sobre outrem. De acordo com essa explicação, Rousseau tende a ver o amor-próprio como, acima de tudo, a fonte de corrupção e sofrimento pessoais, e de perversidade social. Quando ele diz, com frequência, que o homem é bom por natureza, mas corrompido pela sociedade, o que tem em mente é o fato de que o contato social põe em relevo o amor-próprio e reforça e amplia sua influência (p.40). U V a FR K C AM SAIBA MAIS Amor de si (amour de soi): Em O discurso da desigualdade social, Rousseau se refere ao amor de si como: “O amor de si mesmo é um sentimento natural que leva todo e qualquer animal a cuidar de sua própria preservação e que, guiado no homem pela razão e modificado pela compaixão, cria humanidade e virtude”. Isso quer dizer que esse sentimento não diz respeito ao que é instintivo por ser natural, mas se relaciona com a consciência, com a virtude e o bem-estar individual manifestado no coletivo. Na proposta de educação de Rousseau, o preceptor deve buscar desenvolver esse sentimento e não o do amor-próprio. UNIDADE VI determinadas formas de representação, como o teatro. Filosofia e Educação exagerada (e irônica) que ele próprio faz da escrita para criticar 111 Volume 2 Mais do que conceitos, a ideia de natureza constitui o princípio da filosofia de Rousseau e há uma teoria da representação formulada que tem como ponto de partida a PEDAGOGIA ideia de mímesis em Platão. Com relação ao conceito de natureza, vale ressaltar dois sentidos diferentes presentes no Discurso sobre a desigualdade e no Emílio. Na primeira obra, o estado social é fundado na condição de um pacto social realizado em bases desiguais; nessa transição,, o estado de natureza, que já vinha definhando aos poucos com os primeiros agrupamentos e o surgimento do sentimento negativo do “amor-próprio”, é abolido. Trata-se do raciocínio característico dos chamados contratualistas, ou seja, o estado de natureza funcionaria como uma hipótese lógica, sem uma preocupação histórica ou antropológica efetiva, do que teria sido o estado anterior à sociedade. No Emílio, a natureza é algo que permanece no estado social e no homem socializado. Corresponde à sobrevivência do “amor-de-si” como expressão da bondade natural no contexto da sociedade permeada pelo “amor-próprio”, sentimento correlato aos de egoísmo, inveja e vaidade. 4 MÍMESIS E A CRÍTICA AO TEATRO E À EDUCAÇÃO UNIDADE VI Filosofia e Educação Rousseau afirma, em Emílio ou da Educação, que o gosto pela imitação reside na natureza harmonizada, o homem é um imitador por natureza. O entendimento de mímesis, nesse caso, segue o raciocínio de Platão e Aristóteles, ao afirmar que a mímesis é parte da natureza humana. A diferença é que, ao seguir seu próprio pressuposto em relação à natureza humana ou ao estado de natureza, Rousseau acrescenta que essa capacidade inata de estabelecer relações miméticas degenerou em vício na sociedade. Numa passagem de Emílio, ele diz: O homem é um imitador. Até os animais são. O gosto pela imitação pertence à natureza ordenada, mas a sociedade degenera-o em vício. O macaco imita o homem, a quem ele teme, mas não imita animais que ele despreza (apud POTOLSKY, 2006, p.137). No início da segunda parte do Discurso sobre a Desigualdade, Rousseau (2002) mostra o momento no qual o homem passa da solidão às primeiras formações sociais, à 112 domesticação do gênero humano, ao convívio e aos momentos Módulo 1 de ócio cabanas. em torno Nesse das momento, surge o primeiro passo para a desigualdade, suscitado pelos PEDAGOGIA sentimentos da inveja e da vaidade. Cria-se a situação de espelho social: “cada qual começou a olhar os outros e a querer ser olhado por sua vez, e a estima pública teve um preço. Aquele que cantava ou dançava melhor; o mais belo, o mais hábil ou o mais eloqüente passou a FIGURA 4 - Interior da Comédia Francesa em Paris. Aquarela do séc. XVIII. Fonte: http://portal saofrancisco.br/alfa/historia-doteatro/imagens/teatro-1.jpg ser o mais considerado” (p. 213). A desigualdade surge quando traz à tona a “vaidade e o desprezo” do considerado melhor e a “vergonha e o desejo” do que se considera inferior àquele. Rousseau enxerga o extremo dessa situação na representação teatral, dirigindo, em particular, uma crítica radical à comédia francesa encenada no período. Ele escreve uma réplica ao verbete de D’Alembert ao teatro em um escrito intitulado Carta a d’Alembert. Sobre os espetáculos. Ele de dominação política, enfraquecedor do amor-de-si e que, discordando de Aristóteles, não pode servir de instrumento de educação pública. O objetivo da comédia é agradar o público. Ao agradar termina por impor ao público uma verdade aparente e dependente de seu ponto de vista, com base no amor-próprio. A tirania não viria do comando das paixões, sobrepostas à razão, mas do poeta-dramaturgo que manipula a audiência ao Filosofia e Educação entende que há, nesse contexto, um processo antidemocrático atribui o papel masculino e ativo à imposição do artista e o papel feminilizado à audiência passiva, escravizada por uma perspectiva tirana. O feminino, neste caso, corresponde a um sinal de fraqueza. Como Platão, Rousseau julga que, por meio da mímesis, a percepção humana se enfraquece. O público, submetido a UNIDADE VI apresentar sua visão distorcida e aparente do mundo. Rousseau uma ilusão, sofre uma espécie de “abuso” dos sentidos. O resultado perverso desse abuso é tornar o homem incapaz de julgar. Ressalte-se aqui o aspecto moral e não o cognitivo, 113 Volume 2 embora os dois não estejam separados em Rousseau, quando entendemos o papel da consciência como uma espécie de razão natural em oposição à racionalidade social excessiva e PEDAGOGIA artificial. A capacidade de julgar deve ser preservada, para Rousseau, e só à consciência é reservada essa capacidade. Para Rousseau, a consciência guia a alma, as paixões, o corpo. Não há, nesse sentido, uma divisão tripartide da alma, como em Platão. Em Emílio, Livro IV (p.386-7), Rousseau diz: Meditando sobre a natureza do homem, acreditei descobrir nela dois princípios distintos, dos quais um elevava-o ao estudo das verdades eternas, ao amor da justiça e do belo moral, às regiões do mundo intelectual cuja contemplação faz as delícias do sábio, e o outro trazia-o de volta baixamente a si mesmo, sujeitava-o ao império dos sentidos, às paixões que são seus ministros e contrariava por elas tudo o que lhe inspirava o sentimento primeiro. Sentindome puxado e disputado por esses dois movimentos contrários, eu pensava: não, o homem não é outro; eu quero e não quero, sinto-me ao mesmo tempo escravo e liberto; vejo o bem, amo-o, e faço o mal; sou ativo quando escuto a razão, passivo quando minhas paixões me arrastam, e meu pior tormento quando sucumbo é sentir que pude resistir. A educação do jovem, nesse contexto, deve se estabelecer Filosofia e Educação segundo o seguinte equilíbrio: educado para o amor-de-si, o jovem não se tornará no adulto tirano ou escravo. O sentimento moral como consciência, baseado no amor-de-si, guiará o julgamento. O que está em risco no teatro é o desequilíbrio que submete a consciência e favorece a confusão dos sentidos, incapacitando a formação do juízo. Discordando de Aristóteles e da ideia de catarse como purificadora das emoções, Rousseau afirma que a plateia é escrava da tirania do artista. O que afeta sua capacidade de julgar é a relação desigual entre autordramaturgo e audiência. Ao amplificar o sentimento de tristeza UNIDADE VI na tragédia, não nos sentimos apiedados, compadecidos e libertos desse sentimento após o espetáculo, mas, diz ele, “deixando-nos ser subjugados pela tristeza dos outros, como resistir às nossas?”. A diferença entre filosofia e dramaturgia revela-se positiva em relação à primeira. Concordando com o sentido platônico de filosofia, como busca da verdade, como exame, o filósofo é aquele que discute, que propõe dúvidas, que conjectura e, principalmente, que submete sua razão ao julgamento dos 114 Módulo 1 outros. “O poeta”, diz ele, “e imitador se faz juiz de si mesmo”. A imitação, nesse sentido, PEDAGOGIA torna-se uma faculdade inferior que julga sob a aparência e nas mãos de um hábil poeta ou dramaturgo submete as pessoas à vulgaridade, a contradições e à tristeza. A tragédia é ineficiente na educação dos costumes. Pior ainda se nos faz rir. Em Carta a d’Alembert, motivado pelas críticas de d’Alembert aos genebrinos, que nutririam um “preconceito contra o FIGURA 5 - apresentação da peça “O doente imaginário” de Molière, no jardim de Versailles. Fonte: http://3.blogspot.com ou www.estudosteatraisblogspot.com comediante”, Rousseau é mais radical ainda: não só não aprendemos a ser melhores, mas piores. A comédia aparece como exaltação do amor-próprio. Rousseau se contrapõe à visão de que a comédia teria por finalidade corrigir os vícios dos homens; ele afirma, ao o conceito de amor-próprio que, lá no Discurso sobre a desigualdade, é indicado em seu surgimento como o início dos sentimentos da inveja e da vaidade. Seria o momento que corresponderia ainda ao estado de natureza hobbesiano (para entender, recorra ao boxe em que foi explicado o estado de natureza). Percebemos que o riso é resultado da caricatura, do ridículo dos outros dos quais se ri, e do medo de sucumbir ao ridículo. A tragédia ainda criaria Filosofia e Educação contrário, que ela os exarcerbaria, se tivermos em mente e insuficientes; mas, na comédia, esses sentimentos são excluídos. Aquele que ri se sente superior, mas, na verdade, é na condição de escravo que se encontra, ao ser submetido pelo sentimento de vaidade do dramaturgo, dando-lhe a impressão de superioridade. O teatro aparece, numa escala de valor, em UNIDADE VI momentos de identificação e piedade, mesmo que passageiros grau inferior, como simulacro de virtude, incapaz de favorecer o aprimoramento moral. Deve-se notar, em contrapartida, que, como Platão, 115 Volume 2 Rousseau enxerga uma plateia ideal, incapaz de ser submetida à distorção dos sentidos e do conhecimento. Platão considera toda representação danosa para aqueles que não conseguem diretamente a ideia de Bem, são capazes de separar o falso do verdadeiro. Por isso, no governo da cidade ideal, eles proibirão a mímesis no processo de educação que estrutura esse governo. A plateia ideal de Rousseau pode até rir, o riso deixa de ser condenado. Para provar que está certo e Hobbes errado, Rousseau (1999), por meio da fala do Vigário Saboiano, diz: Entremos em nós mesmos, jovem amigo, e examinemos, pondo de parte todo nosso interesse pessoal, a que nos levam nossas inclinações. Que espetáculo nos agrada mais, o dos tormentos ou o da felicidade de outrem? O que nos é mais doce fazer e nos deixa uma impressão mais agradável após ter feito, um ato de benevolência ou um ato de maldade? Por quem te interessas no teatro? É com os crimes que te divertes, é por seus autores punidos que derramas lágrimas? Tudo é indiferente para nós, dizem eles, exceto nosso interesse; e, muito pelo contrário, as delícias da amizade e da humanidade consolam-nos em nossos sofrimentos e, mesmo em nossos prazeres, estaríamos muito sós, muito miseráveis se não tivéssemos com quem partilhá-los. Se não há nada de moral no coração do homem, de onde vêm os arroubos de admiração pelas ações heróicas, os transportes de amor pelas grandes almas? O entusiasmo da virtude, que ligação tem ele com nosso interesse privado? Por que preferiria eu ser Catão que rasga suas entranhas a ser César triunfante? Suprimi de nossos corações esse amor do belo e suprimireis todo o encanto da vida. Aquele cujas vis paixões abafaram na alma estreita esses sentimentos deliciosos, aquele que, de tanto se concentrar dentro de si mesmo, acaba só amando a si mesmo, já não tem arroubos, seu coração gelado já não palpita de alegria, um doce enternecimento nunca umedece seus olhos; ele não goza de nada; o infeliz já não sente, já não vive; já está morto (p.388). UNIDADE VI Filosofia e Educação PEDAGOGIA separar o real da aparência, mas os filósofos, ao intuírem Esse infeliz, regido pelo amor-próprio, tem como único prazer o riso irônico, “diverte-se, lançando-se para fora de si mesmo; gira ao redor seus olhos inquietos, à procura de um objeto que o divirta; sem a sátira amarga, sem a zombaria insultante, ele estaria sempre triste”. Mas o justo também ri. Diz Rousseau: ”(...) seu riso não é de malignidade, mas de 116 Módulo 1 alegria; ele carrega a fonte desse riso em si mesmo; é tão alegre quando está só quanto no meio de uma reunião; não tira seu contentamento dos que o rodeiam, mas comunica-lhes Note-se o estilo dramático e hiperbólico de Rousseau, o que encerra um novo paradoxo em relação a sua crítica ao poeta e dramaturgo. Mas, trata-se aqui do teatro da vida e a admissão da vida como um teatro universal. As festas populares constituem o reflexo natural dessa encenação. Na nota final de Carta a d’Alembert, Rousseau descreve uma festa cívica, PEDAGOGIA esse contentamento” (ROUSSEAU, 1999, p.389). na qual não há rastro de inveja ou competição. A música, mais alta representação mimética, comanda o espetáculo e se reflete na dança espontânea, não ensaiada das pessoas nas ruas, tornando-se, por consequência, uma representação Pintura do belga James Ensor (1860-1949), intitulada Entrada de Cristo em Bruxelas, de 1889, representada como uma parada política, imagem que podemos associar à ideia de festa popular em Rousseau. Fonte: www.users.skynet.be A crítica que Rousseau dirige às comédias de Molière Filosofia e Educação também política. essas, quando fornecem à plateia, pelo riso, a sensação de ser superior, reforçam a dominação. Em Rousseau, a capacidade mimética natural do homem se modifica quando ela não serve mais ao seu aprendizado, mas ao querer parecer igual àquele que mais impressiona a UNIDADE VI e às comédias francesas em geral reflete o político, porque todos. A imitação do outro distancia o homem de sua própria natureza, do conhecimento de si. O comportamento mimético do homem em sociedade corresponde ao sentido negativo de 117 Volume 2 mímesis que, além de fermentar o amor próprio, associa-se a modelos políticos de opressão. Das primeiras formações sociais, seu ócio e diversão, à sofisticada sociedade francesa do século XVIII, essa capacidade mimética natural se transformou PEDAGOGIA ,de maneira sofisticada, no teatro, que se torna, na crítica de Rousseau, a arte que mais distancia o ator de si mesmo, e tem, no diretor, a reprodução da figura política opressora. ATIVIDADE 1. Leia a obra Emílio e perceba, em particular, a concepção de natureza como natureza humana. Essa natureza diz respeito à criança e a seu aprendizado. Este aprendizado é quase autônomo, apenas compartilhado pelo preceptor que mais o observa, não impõe regras e regula a manifestação do amor-desi ao evitar a aproximação com o sentimento do amor-próprio. Você deve refletir sobre o objetivo abaixo, relacionando-o aos significados de natureza apresentados nesta unidade: O objetivo do livro é recriar o homem natural. De que forma isso é possível? Como orientação Filosofia e Educação a essa resposta, você pode pesquisar Pissarra (2002), que afirma que para proteger a criança da influência da civilização é necessário educála no campo, longe do convívio familiar, da sociedade e dos livros. Deixa-se a criança livre para se formar por meio de sua própria experiência, sendo a natureza seu melhor preceptor. Só assim é possível resgatar o 118 PARA CONHECER UNIDADE VI homem natural. Rousseau considerava que sua obra Emílio continha a proposta de um novo sistema de educação que ele oferecia ao exame dos sábios. Sua obra não era um manual para pais e mães de como criar uma criança, embora tenha sido entendido desta maneira, inicialmente. Não se tratava de ler Emílio e experimentar uma nova maneira de educar as crianças, mas de imaginar como seria esse homem resultante de uma criança educada a partir da observação dos mecanismos da natureza humana. Emílio é um personagem de ficção que representa o indivíduo (ou indivíduos) que conseguiu manterse mais ou menos à margem da sociedade corrompida (PISARRA, 2002, p.60). Módulo 1 RESUMINDO • Há diferentes significados de natureza em Rousseau. • A diferença entre amor de si e amor-próprio guia a filosofia de Rousseau em sua crítica à sociedade, à política e à educação. PEDAGOGIA Nesta unidade você viu que: • A educação, em sentido amplo, é formadora do cidadão sob o ponto de vista da dominação. É necessário desenvolver, no aluno, o amor de si, combatendo os sentimentos da vaidade e do egoísmo que condizem com o amor-próprio. • Rousseau recebe e transforma a herança platônica e aristotélica da discussão da mímesis em relação ao teatro, à arte e à política, ampliando seu sentido. É possível, nessa adoção, ampliarmos o UNIDADE VI Filosofia e Educação sentido de educação para o adulto na esfera da cultura. 119 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Carta a d’Alembert. Tradução de Roberto Leal Ferreira. Campinas: Editora da UNICAMP, 1993. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou da educação. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1999. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Intérpretes: CASSIRER, Ernst. A questão Jean-Jacques Rousseau. Tradução de Erlon José Paschoal. São Paulo: Editora da UNESP, 1989. DENT, N.J.H. Dicionário Rousseau. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1992. FORTES, Luiz Roberto Salinas. Paradoxo do espetáculo: Política e poética em Rousseau. São Paulo: Discurso Editorial, 1997. FORTES, Luiz Roberto Salinas. O iluminismo e os reis filósofos. São Paulo: Brasiliense, 1982. UNIDADE VI Filosofia e Educação FORTES, Luiz Roberto Salinas. O bom selvagem. São Paulo: FTD, 1989. 120 MARQUES, José Oscar A. (Org.). Verdades e mentiras: 30 ensaios em torno de Jean-Jacques Rousseau. Ijuí: Editora Unijuí, 2005. PISSARA, Maria C. P. Rousseau: a política como exercício pedagógico. São Paulo: Ed. Moderna, 2002. PRADO JR., Bento. A retórica de Rousseau. São Paulo: Cosac & Naif, 2008. POTOLSKY, Matthew. Mimesis. New York/London, Routledge, 2006. SOUZA, Maria das Graças. Natureza e Ilustração: sobre o materialismo de Diderot. São Paulo: Editora UNESP, 2002. STAROBINSKI, Jean. A transparência e o obstáculo. Tradução de Maria Lucia Machado. São Paulo: Editora Schwarcz, 1991 r e f eR Ê N C ia s PEDAGOGIA Volume 2 Suas anotações ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ unidade 7 Objetivos Meta As Reflexões de Kant sobre a Educação Introduzir a proposta de educação moral kantiana com base na análise de citações de seu escrito Sobre a Pedagogia. Ao final desta unidade, você deverá ser capaz de: • compreender, na proposta kantiana, aspectos idealistas da pedagogia. Módulo 1 1 INTRODUÇÃO Nesta unidade você estudará aspectos importantes da UNIDADE VII Filosofia e Educação PEDAGOGIA UNIDADE VII teoria do conhecimento de Kant e o escrito Sobre a pedagogia e sua proposta de educação. 125 Volume 2 PARA CONHECER PEDAGOGIA 2 A FILOSOFIA DE KANT Immanuel Kant (17241804) nasceu em Königsberg, Prússia (exAlemanha Oriental). A filosofia de Kant, a partir de 1770, é conhecida como criticismo, período no qual publicou as três críticas: Crítica da razão pura (1781); Crítica da razão prática (1788) e Crítica da faculdade de julgar (1790). Essas três obras tornaram-se referência fundamental, respectivamente, para a questão do conhecimento, da moral e da estética. Você viu, ao final da Unidade V, que Kant herda a oposição entre inatismo e empirismo, de maneira já um pouco distanciada, isto é, o conflito entre o pensamento de Descartes e de Locke sofre outras intermediações por meio do Iluminismo e de David Hume. A questão da origem do conhecimento FIGURA 1 Portrait de Kant, autor desconhecido, século XVIII Fonte: http://pt.wikipedia.org torna-se secundária em vista do problema dos do conhecimento limites humano. Neste contexto, Kant fala do conhecimento “a priori”. Esta noção diz respeito à investigação kantiana sobre a legitimidade da ciência. Faremos uma pequena referência a essa investigação. Para Kant, a história da razão humana é dividida em três momentos logicamente ordenados: o dogmatismo UNIDADE VII Filosofia e Educação (confiança excessiva nos poderes da razão humana); ceticismo (desconfiança exagerada nos poderes da razão humana); criticismo (espécie de termo médio entre dogmatismo e ceticismo). Para responder a questão acerca da possibilidade da metafísica, Kant pergunta pela possibilidade ou legitimidade da matemática e da física. Ele questiona a cientificidade de ambas as ciências: Como é possível a matemática pura? Como é possível a ciência pura da natureza? Só depois, indaga se a metafísica, como ciência, é também possível. O “a priori”, para Kant, está relacionado à certeza de que deve haver algo nas ciências que pode ser conhecido de forma independente da experiência. As representações elementares “a priori”, em Kant, são as formas da intuição, isto é, tempo e espaço; e as formas de pensamento, que são as categorias ou conceitos puros do entendimento. Ao mesmo tempo, Kant afirma que todo conhecimento começa com a experiência. Essa fonte é unida à noção de “a priori”, uma vez que são as categorias de valor objetivo e universal que elaboram o que vem da experiência pelos 126 sentidos. Essa reunião é o que permite, a Kant, tanto superar, Módulo 1 quanto distanciar-se da oposição marcada pelo racionalismo e empirismo. PEDAGOGIA 3 KANT E A EDUCAÇÃO O pressuposto para uma teoria da educação (apresentado no texto Sobre a pedagogia) é idealista, e Kant assim o justifica: O projeto de uma teoria da educação é um ideal muito nobre e não faz mal que não possamos realizá-lo. Não devemos considerar uma Idéia como quimérica e como um belo sonho só porque se interpõem obstáculos à sua realização (444, p.17). Lembrando a República ideal de Platão, Kant argumenta: à ação e ao projeto de uma educação que aperfeiçoe a natureza humana. Trata-se de uma educação moral que prevê a formação integral do homem em seus aspectos físico, moral e intelectual. Neste sentido, encontramos, no texto, duas grandes divisões: • Sobre a educação física, Filosofia e Educação modelo de perfeição que sirva de paradigma ou modelo U V a FR K C AM UNIDADE VII Nesta citação, você pode perceber a defesa de um O texto Sobre a pedagogia é resultado das aulas que Kant ministrou na Universidade de Königsberg entre 1776-77, 1783-84 e 1784-87, publicado em suas Obras Completas, Tomo IX, edição da Real Academia Prussiana de Ciências, de 1923. Possui uma linguagem muito acessível e algumas pessoas chegaram a duvidar da autenticidade do texto. Sabemos, no entanto, que reside nas ideias sobre a educação, ali expostas, a complexidade da teoria sobre a moral que Kant desenvolveu na segunda Crítica: a Crítica da razão prática. Existe um registro dos escritos que orienta a leitura, independentemente da edição e do número de páginas. Os fragmentos que serão analisados nesta seção vão de 441 a 499. SAIBA MAIS Uma Idéia não é outra coisa senão o conceito de uma perfeição que ainda não se encontra na experiência. Tal, por exemplo, seria a Idéia de uma república perfeita, governada conforme as leis da justiça. Dir-se-á, entretanto, que é impossível? Em primeiro lugar, basta que a nossa Ideia seja autêntica; em segundo lugar, que os obstáculos para efetuá-la não sejam absolutamente impossíveis de superar. Se, por exemplo, todo mundo mentisse, o dizer a verdade seria por isso mesmo uma quimera? A Idéia de uma educação que desenvolva no homem todas as suas disposições naturais é verdadeira absolutamente (p.17, 445). • Sobre a educação prática. A necessidade de um projeto de educação se revela nas seguintes asserções: 127 Volume 2 a) “O homem é a única criatura que precisa ser educada” (441, p.11); b) “O homem tem necessidade de cuidados e formação” PEDAGOGIA (443, p.14); c) “O homem não pode tornar-se um verdadeiro homem senão pela educação” (444, p.15). Kant quer dizer que o homem, diferentemente dos outros animais, não tem sua existência pré-definida pela natureza, mas ele tem a tarefa de estabelecer seu próprio projeto de existência por meio de sua racionalidade. Com base nessas certezas, Kant elabora a seguinte distinção em relação à educação: • uma parte negativa que diz respeito à disciplina, • uma parte positiva que diz respeito à instrução. Essa distinção diz respeito à educação física e à educação prática ou moral. Essas são as duas perspectivas admitidas por Kant como fundamentais no projeto de educação. Filosofia e Educação A primeira cuidará da saúde do corpo, o que inclui a alimentação, os hábitos de higiene; a segunda visa à formação do caráter moral voltado para a ação e o bem de todos. Kant fala de uma FIGURA 2 - Educação física. Fonte: www.efdeportes.com educação cosmopolita, na qual se nota a aspiração à universalidade. A ideia de que só ao homem é dada a possibilidade de se aperfeiçoar e de instituir seu próprio projeto de vida distingue-o dos animais. Mas nem sempre isso UNIDADE VII foi claro ou, ao menos, de quanto o homem pode ser capaz de se aperfeiçoar. Kant fala da educação dos filhos por um casal educado. Eles servem como exemplo aos filhos, que os imitam. O imitar é uma espécie de disposição natural que, aplicada ao exemplo, pode gerar filhos educados. Mas nem todos os filhos podem ter pais educados e o “imitar” como disposição natural, neste caso, revela-se insuficiente no processo de formação do ser humano. 128 Módulo 1 O filósofo enxerga o todo, o aspecto universal da educação, que ,para tanto, não pode ser sujeita a processos particulares e a disposições naturais do ser humano. O aperfeiçoamento é parte também da educação, que, de geração a melhorar ao desenvolver as PEDAGOGIA geração, revela-se como prática que necessita disposições naturais em vista de uma finalidade maior que é o bem. Kant afirma ser a educação um problema árduo: O homem deve, antes de tudo, desenvolver as suas disposições para o bem; [...] Tornar-se melhor, educar-se e, se se é mau, produzir em si a moralidade: eis o dever do homem. Desde que reflita detidamente a respeito, vê-se o quanto é difícil. A educação, portanto, é o maior e o mais árduo problema que pode ser proposto aos homens (446, p.20,). FIGURA 3 - O imitar é uma espécie de disposição natural Fonte: http://farm2.static. flickr.com “Tornar-se melhor” significa, portanto, adquirir moralidade. Para tanto, o filósofo pressupõe que a la. A base dessa educação como aquisição da moralidade se estabelece a partir dos seguintes elementos: • disciplina, • desenvolvimento intelectual: ser culto, • prudência e civilidade e • desenvolvimento da virtude: moralização. Percebe-se, nesses elementos norteadores, a aspiração Filosofia e Educação virtude não só pode ser ensinada como é um dever ensiná- boa educação”, diz Kant, “é justamente a fonte de todo bem neste mundo” (448, p.23,). Kant estabelece uma distinção entre duas possibilidades de orientação pedagógica: • Treinamento: o homem pode ser disciplinado UNIDADE VII pela universalidade e o caráter cosmopolita da educação. “A mecanicamente, ou, • Ser ilustrado, esclarecido. 129 Volume 2 Os cães são treinados, pode-se também treinar crianças, mas o necessário é PEDAGOGIA ensiná-las a pensar. Esse é o sentido da educação pelo esclarecimento. Há uma associação no texto entre o pensar e a moralidade, o que se percebe claramente nesta frase: “Vivemos em uma época de disciplina, de cultura e de civilização, mas ela ainda não é da verdadeira moralidade [...] FIGURA 4 - Kant fala da aspiração pela universalidade e do caráter cosmopolita da educação Fonte: http://www.imotion.com.br/imagens/details.php?image_id=6536 como poderíamos tornar os homens felizes, se os não tornamos morais e sábios?” (451, p.28-29). Kant entende por educação prática a educação moral. A noção de “dever” é o pressuposto necessário para entendermos o que é a educação moral e o desenvolvimento da virtude. Alcançar a virtude significa, para o ser humano, ter cumprido Filosofia e Educação com seu dever. Este tem o peso de um constrangimento guiado por uma “razão legisladora”. A razão universal, que se impõe como lei e regula as ações, pode ser externa ao homem, mas se insere nele internamente como consciência da ação ou dever que diz respeito a si mesmo e aos outros. Por “deveres para consigo mesmo”, pode-se entender aquilo que diz respeito à autopreservação (chamados por Kant de limitativos) e ao aperfeiçoamento de si mesmo (deveres classificados como ampliativos). Os “deveres para consigo UNIDADE VII mesmo” pressupõem, portanto, o físico e o intelectual. Essas duas dimensões estão fundadas no aprendizado. Por deveres com os outros, subentendem-se as famosas máximas que regem o “imperativo categórico” ou a lei moral conduzida pela razão, e que devem ser adotadas como princípio de conduta: • Aja de tal modo que a máxima de sua ação possa sempre valer como princípio moral de conduta; • Aja sempre de tal modo que trate a Humanidade, 130 tanto na sua pessoa como na do outro, como fim e Módulo 1 não apenas como meio (Metafísica dos costumes). O dever para consigo mesmo é inseparável do dever para com os demais. Entre estes, encontramos: a beneficência, PEDAGOGIA a gratidão e a solidariedade, além de outras virtudes como a amizade, a sociabilidade e a cortesia. Quanto à discussão sobre a natureza humana que antecede sua teoria moral, com Maquiavel, Hobbes, Locke e Rousseau, se o homem é bom ou mau por natureza, Kant diz que o homem não nasce bom ou mau, moral ou imoral, mas ele se faz moral ou imoral. Supondo que o homem almeja ser moral e não o contrário, pois do viver moralmente resulta a felicidade e não o desconforto de uma vida infeliz, Kant confere uma tarefa grandiosa à educação e à pedagogia: tornar o homem moral. Essa tarefa, no entanto, não pode ser imposta de fora para dentro das instituições escolares, família ou religião sobre o indivíduo. Não se trata de uma exigência exterior ao indivíduo. Devemos lembrar que Kant é herdeiro da grande questão da filosofia moderna: a subjetividade. A efetividade do resultado de qualquer aprendizado depende da capacidade ou faculdade humana que é racional e da autodeterminação do sujeito. O objetivo é alcançar a autonomia da razão, sendo A autonomia da razão para legislar supõe a liberdade e o dever. Todo imperativo se impõe como dever, mas essa exigência não é heterônoma – exterior e cega – e sim livremente assumida pelo sujeito que se autodetermina. Exemplificando, suponhamos a norma moral ‘não roubar’: - para a concepção cristã, o fundamento da norma se encontra no sétimo mandamento de Deus; - para os teóricos jusnaturalistas (como Rousseau), ela se funda no direito natural, comum a todos os seres humanos; - para os empiristas (como Locke, Condillac), a norma deriva do interesse próprio, pois o sujeito que a desobedece será submetido ao desprazer, à censura pública ou à prisão; - para Kant, a norma se enraíza na própria natureza da razão; ao aceitar o roubo e consequentemente o enriquecimento ilícito, elevando a máxima (pessoal) ao nível universal, haverá uma contradição: se todos podem roubar, não há como manter a posse do que foi furtado (ARANHA e MARTINS, 2003, p. 354). Jusnaturalistas: O Jusnaturalismo ou Direito Natural é uma teoria que postula um direito estabelecido pela natureza, normalmente contraposta ao direito positivo, como fruto de leis formuladas pelos homens em sociedade. Para John Locke, por exemplo, a rebelião é um direito natural que o homem pode utilizar na ordem política, quando o pacto social em sua proposta (liberal) for rompido pelo poder executivo, ao elevarse sobre o poder legislativo. UNIDADE VII no exemplo abaixo: Filosofia e Educação que esta supõe a liberdade e o dever, como você pode notar 131 Volume 2 Pelo exemplo dado, você percebe que a moral kantiana depende da razão universal que se impõe como dever, internamente e externamente ao homem, guiando o cuidado PEDAGOGIA consigo mesmo (autopreservação e aperfeiçoamento) e dever com os outros para que a própria sociedade se torne possível e funcional. Razão, liberdade e autonomia do sujeito são as ideias que compõem e sustentam a teoria moral kantiana. A perspectiva do dever, em Kant, é, como você viu inicialmente, idealista. A realidade de sua época mostrava como a instrução física, intelectual e moral, pressuposta por sua teoria, estava distante de ser algo que compreendesse toda a humanidade. Isto pode ser percebido nessa passagem do texto Sobre a pedagogia: Não é possível haver um grande número desses Institutos, nem poderiam estes admitir um grande número de alunos; na verdade, são caríssimos e a simples montagem desses colégios acarreta grandes despesas. [...] Por isso também é difícil conseguir que outras crianças, que não a dos ricos, participem nesses Institutos (452, p.32). Para os pobres, restava o ensino doméstico, condenado por Kant por engendrar vícios, defeitos e propagação dos Filosofia e Educação mesmos. No entanto, há problemas de tão grande porte quanto este e diz respeito a todas as classes sociais: o constrangimento ao exercício da liberdade. Essa consideração é bastante realista e supera o contexto de sua época, se pensarmos em qualquer projeto de educação implantado ou projetado. Continua sendo uma questão necessária para todos os projetos de educação que atualmente são pensados. Encaminhando a conclusão desta unidade, você deve ter notado que educar, tendo em vista a autonomia intelectual e UNIDADE VII moral do sujeito, não é uma tarefa isenta de ambiguidades e 132 descaminhos. Neste sentido, Kant sugere algumas regras: 1ª - É preciso dar liberdade à criança desde a primeira infância e em todos os seus movimentos (salvo quando pode fazer mal a si mesma, como, por exemplo, se pega uma faca afiada), com a condição de não impedir a liberdade dos outros, como no caso de gritar, ou manifestar a sua alegria alto demais, incomodando os outros. 2ª – Deve-se-lhe mostrar que ela pode conseguir seus propósitos, com a condição de que permita aos demais conseguir os próprios; [...] 3ª – É preciso provar que o constrangimento, que lhe é imposto, tem por finalidade ensinar a usar bem sua liberdade, que a educamos para que possa ser livre um dia, isto é, dispensar os cuidados de outrem (p.35, 454). Você viu que, em Kant, o propósito da educação desde a infância, diz respeito à construção do homem livre, autônomo. Os passos para esse empreendimento supõem: PEDAGOGIA Módulo 1 1. o desenvolvimento de habilidades mecânicas; 2. a formação “pragmática” que diz respeito à educação com base na prudência, que capacita o homem a utilizar melhor sua habilidade; e 3. a formação moral fundada nos princípios da razão. Kant considera, ainda, as fases de crescimento e amadurecimento da consciência moral do homem, alertando o leitor: Com respeito à habilidade e à prudência, tudo deve acontecer a seu tempo com o passar dos anos. Mostra-se hábil, prudente, paciente, sem astúcia, como um adulto, durante a infância, Podemos perceber, portanto, que as considerações de Kant sobre a educação são idealistas, mas conservam, entretanto, uma medida de realidade que supera o contexto de sua época, servindo ainda nos dias de hoje como modelo para vários projetos de educação ou fornecendo critérios subjacentes às propostas atuais. UNIDADE VII idade madura (p.37-38, 455). Filosofia e Educação vale tão pouco como a sensibilidade infantil na 133 PEDAGOGIA Volume 2 ATIVIDADE 1) Leia a passagem abaixo e indique o que diz respeito à: a) Possibilidade de conciliar constrangimento e liberdade; b) Necessidade de a criança perceber a resistência que a sociedade oferece aos seus desejos, como formação de sua autonomia. UNIDADE VII Filosofia e Educação 134 Um dos maiores problemas da educação é o de poder conciliar a submissão ao constrangimento das leis com o exercício da liberdade. Na verdade, o constrangimento é necessário! Mas, de que modo cultivar a liberdade? É preciso habituar o educando a suportar que a sua liberdade seja submetida ao constrangimento de outrem e que, ao mesmo tempo, dirija corretamente a sua liberdade. Sem esta condição, não haverá nele senão algo mecânico; e o homem, terminada a sua educação, não saberá usar sua liberdade. É necessário que ele sinta logo a inevitável resistência da sociedade, para que aprenda a conhecer o quanto é difícil bastar-se a si mesmo, tolerar as privações e adquirir o que é necessário para tornar-se independente (p.34, 454). RESUMINDO Nesta unidade, você estudou: 1. A herança recebida por Kant da filosofia moderna: o problema do conhecimento; 2. A filosofia kantiana ou criticismo; 3. A proposta de educação de Kant com fundamento na razão; 4. Divisões internas da proposta. KANT, I. Crítica da razão pura. Tradução de Valério Rohden; Udo B. Moosburger. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, Col. “Os Pensadores”, 1983. PEDAGOGIA ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena. Filosofando: introdução à filosofia. 3. ed. rev. São Paulo: Moderna, 2003. KANT, I. Crítica da razão prática. Tradução de J. Rodrigues de Merege. Versão online:eBooksBrasil.com.br.egroups. com/group/acropolis KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes. Versão online:eBooksBrasil.com.br.egroups.com/group/ acropolis Filosofia e Educação KANT, Immanuel. Sobre a pedagogia. Tradução de Francisco Cock Fontanella. Piracicaba: Ed. UNIMEP, 1996. UNIDADE VII r e f eR Ê N C ia s Módulo 1 135 Suas anotações ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ unidade 8 Objetivos Meta A Educação após Auschwitz Apresentar as reflexões da teoria crítica de Theodor Adorno sobre a transformação que se institui na educação e na política após a 2ª Guerra Mundial. Ao final desta unidade, você deverá ser capaz de: • reconhecer as principais razões que atingem a educação no contexto da política. Módulo 1 1 INTRODUÇÃO Nesta unidade, você estudará: Filosofia e Educação PEDAGOGIA UNIDADE VIII ao grupo de intelectuais reunidos sob o nome de Escola de Frankfurt. • O conflito ético, político e filosófico, no qual se insere a educação, com base na leitura de trechos do texto de UNIDADE VIII • O significado de Teoria Crítica, a filosofia que corresponde Adorno “A educação após Auschwitz” e remissões a outros de seus textos. 139 Volume 2 2 A TEORIA CRÍTICA E O INSTITUTO DE PESQUISA SOCIAL PEDAGOGIA Teoria crítica é a denominação escolhida por Max Horkheimer, em seu texto de 1937, intitulado Teoria Tradicional e Teoria Crítica, para discriminar o trabalho de grupo de intelectuais que se reuniu em torno do Instituto de Pesquisa Social, fundado em 3 de fevereiro de 1923, em Frankfurt, Alemanha. Esse grupo, composto por intelectuais marxistas não-ortodoxos, e os resultados de suas pesquisas, publicados na revista do Instituto (1932 a 1941), passaram FIGURA 1 - Max Horkheimer (à esquerda) e Theodor Adorno (à direita) em Heidelberg, 1965. Fonte: www.msu.edu a ser conhecidos mais tarde pela chancela “Escola de Frankfurt”, embora boa parte dos resultados apresentados tenham sido desenvolvidos fora de Frankfurt. Preocupado com a ascensão do nazismo ao poder, em UNIDADE VIII Filosofia e Educação 1933, Horkheimer, diretor do Instituto desde 1930, criou 140 Reificação ou coisificação: o prefixo de reificação é res, do latim, que quer dizer coisa. Este conceito remete à teoria da alienação, de Marx, sendo retomado posteriormente por Georg Lukács (Budapeste, 13/4/1885 05/06/1971), filósofo húngaro marxista e adotado pelos teóricos do Instituto de Pesquisa Social. O entendimento desse conceito está associado ao de produção capitalista, alienação e fetiche da mercadoria. Trata-se da coisificação do ser humano ao empregar sua força de trabalho na produção de mercadorias que serão vendidas de maneira distanciada de seu valor de uso. O produtor não possui o resultado de seu trabalho, é, portanto, alienado dele, e quem o possui torna-se alguém que só tem valor pessoal, pela aquisição da mercadoria. A mercadoria é a “coisa” que ganhou atributos superiores a ela, valores propriamente humanos ou mágicos, por isso, ao adquiri-la, o homem se coisifica ou se reifica. Adorno define a “consciência reificada” da seguinte maneira: “No começo as pessoas desse tipo [de caráter manipulador] se tornam por assim dizer iguais às coisas. Em seguida, na medida em que o conseguem, tornam os outros iguais às coisas” (ADORNO, 1994, p.130) filiais em Genebra, Londres e Paris. Em 1933, o Instituto foi transferido para Genebra; em 1934, para Nova Iorque; em 1940, Horkheimer e Adorno se transferem para a Califórnia. O governo nazista havia fechado o Instituto em 1933, confiscando um acervo de 60 mil livros da biblioteca. A maior parte da história e produção intelectual do Instituto de Pesquisa Social ocorreu, portanto, no exílio. A maioria de seus membros migrou para os Estados Unidos, retornando a Frankfurt apenas em 1951. Alguns foram vitimados no caminho para o exílio, como foi o caso de Walter Benjamin, um importante colaborador do Instituto, embora nunca tenha sido um membro efetivo deste. Seu nome, no entanto, está reunido sob a designação “Escola de Frankfurt”. Alguns intelectuais da atualidade, como Jurgen Habermas e Axel Honneth, são nomeados “herdeiros” desse empreendimento intelectual que, em meio ao desastre político da II Guerra Mundial, e após este, foram capazes de articular teorias e conceitos que nos servem ainda como instrumentos de análise da sociedade e, muito mais do que isso, como reflexão crítica sobre os mecanismos de controle da sociedade. Entre estes “mecanismos” sobre os quais esses autores teorizaram, ressaltamos a crítica ao positivismo, à razão instrumental, à Módulo 1 ideologia, ao processo de reificação ou coisificação do homem e à indústria cultural. É característico da teoria crítica, o trânsito entre disciplinas como a economia, a sociologia e a Axel Honneth (Essen, Alemanha, 1949) é diretor do Instituto de Pesquisa Social, sediado na Universidade de Frankfurt am Main, desde 2001, sendo, nesta Universidade, professor de filosofia social. Tem vários trabalhos publicados sob o tema do reconhecimento e da reificação. U V a FR K C AM SAIBA MAIS Jürgen Habermas (Düsseldorf, Alemanha, 18/06/1929) foi assistente de Adorno no Instituto de Pesquisa Social de 1956 a 1959. Desenvolveu teorias no campo da filosofia e da sociologia, publicando trabalhos e participando ativamente de debates públicos. Sua teoria sobre a ação comunicativa é estudada com interesse em diversas áreas do conhecimento. PEDAGOGIA psicanálise, não se limitando à filosofia. 3 ADORNO E A EDUCAÇÃO APÓS AUSCHWITZ O texto de Adorno, “A educação após Auschwitz”, é fruto de uma palestra transmitida pela rádio de Hessen em 18 de abril de 1965, publicada dois anos depois. A exposição do texto é acessível ao leitor não habituado com sua filosofia, pelo meio Filosofia e Educação em que foi veiculado. É necessário dizer que esse tipo de programa de rádio que expunha teorias foi utilizado com frequência pelos frankfurtianos, sendo que essa programação de ordem mais aprofundada Alemanha. Não se trata, portanto, de um texto com a complexidade da escrita de Adorno em obras extensas como a Dialética Negativa (1966) ou a Teoria Estética (1968). Por isso, em alguns momentos do texto, teremos que FIGURA 2 - Portão de entrada do campo de concentração chamado Auschwitz-Birkenau, um dos campos instalados pelos nazistas no sul da Polônia, no qual foram executados em torno de 1 milhão e meio de pessoas, entre judeus (a maioria) e ciganos. A inscrição em alemão diz: “O trabalho liberta”. Este campo não era de trabalhos forçados, mas sim de extermínio. Com este intuito, o campo foi equipado com quatro crematórios e câmaras de gás. Inicialmente utilizou-se o monóxico de carbono (CO) para asfixiar as pessoas, passando para o Zyklon B (ácido cianídrico), utilizado como pesticida na agricultura, mas igualmente tóxico para os humanos. Cada câmara de gás comportava o número de até 2.500 prisioneiros. Estes chegavam de uma viagem de trem, transportados como gado, a eles era dito que entrariam nas câmaras para tomarem banho. A luz apagava e, ao contrário de água, o gás era emitido. Até ser inalado, havia muito sofrimento e não uma morte instantânea. Auschwitz se tornou o símbolo de desumanidade sem precedente na história, pois fundou-se num planejamento calculado em minúcias. Fonte: http://commns.wikimedia.org/wik/File: Auschwitz_gate.jpg UNIDADE VIII se mantém até hoje na 141 Volume 2 nos remeter a outras fundamentações de maneira a melhor esclarecer o assunto. Adorno afirma, logo no início de sua palestra, que “A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira regra PEDAGOGIA de todas para a educação”. Ele justifica a prioridade desta “exigência” ao se referir ao grau de consciência das pessoas em relação ao ocorrido: Mas a pouca consciência existente em relação a essa exigência e as questões que ela levanta provam que a monstruosidade não calou fundo nas pessoas, sintoma da persistência da possibilidade de que se repita no que depender do estado de consciência e de inconsciência das pessoas (ADORNO, 1994, p.119). É importante perceber que a orientação freudo-marxista, isto é, de Freud e de Marx, do Instituto de Pesquisa Social, permite a seus componentes incorporar, em suas análises, categorias da ordem do materialismo histórico e da psicanálise. A crítica à razão instrumental pode ser estabelecida, em grande parte, diante da dimensão representada U V UNIDADE VIII Filosofia e Educação SAIBA MAIS a FR K C AM 142 Karl Marx (Trier [Alemanha], 05/06/1818 – Londres, 14/03/1883): filósofo alemão, cuja crítica ao capitalismo do século XIX e a fundamentação do socialismo científico como teoria reunida à prática influenciaram diretamente a política e o curso dos acontecimentos políticos na primeira metade do século XX. Sigmund Freud (Freiberg [atualmente República Tcheca), 06/05/1856 – Londres, 23/09/1939) desenvolveu estudos sobre a mente e a conduta humana e criou a psicanálise para o tratamento de problemas psíquicos. O conceito de inconsciente não foi inventado propriamente por Freud, mas ele atribui a esse conceito um valor especulativo e científico sem precedentes em outras teorias. Ao tratar do inconsciente, Freud pôs à prova o tema da repressão, dos instintos, dos desejos, da divisão mental e de vontades que condicionam a consciência, abalando a confiança que nela existia. Tanto Freud, quanto Marx fundam uma grande desconfiança na ideia de autonomia do sujeito e da consciência livre, já que este está submetido a várias determinações: de classe, de cultura e de limitação da consciência diante da dimensão do inconsciente. pelo conceito de inconsciente e de realidade social. Resulta desse princípio a certeza de que a consciência ou razão não pode ser afirmada nos limites do conhecimento científico e técnico. Reconhecer o inconsciente e estudálo, de maneira a perceber como isso afeta a consciência, bem como esta é igualmente afetada pelas condições socioeconômicas e políticas, significa uma ampliação da consciência. Significa também ser capaz de reconhecer quais mecanismos ideológicos e inconscientes podem submeter a consciência a erros constantes. Nesse sentido, Adorno nos diz: Dentre os conhecimentos proporcionados por Freud, efetivamente relacionados à cultura e à sociologia, um dos mais perspicazes parece-me ser aquele de que a civilização, por seu turno, origina e fortalece progressivamente o que é anticivilizatório (1994, p.119). Módulo 1 Vale ressalvar que Adorno era judeu-marxista e que perdera muitos amigos no Holocausto, mas o que ele afirma não diz respeito apenas aos judeus. No seu texto, ele cita o turcos, no qual um milhão de armênios foram assassinados. Para que a barbárie de Auschwitz não se repita, Adorno acredita que não se alcança resultado algum apelando a valores humanitários universais ou a discursos que valorizem as vítimas. É necessário investigar, nos perseguidores, o que os levou a cometer atos tão atrozes. Diz ele: PEDAGOGIA exemplo da 1ª Guerra Mundial, o genocídio dos armênios pelos É preciso reconhecer os mecanismos que tornam as pessoas capazes de cometer tais atos, é preciso revelar tais mecanismos a eles próprios, procurando impedir que se tornem novamente capazes de tais atos, na medida em que se desperta uma consciência geral acerca desses mecanismos (1994, p.121). A culpa não é da vítima, mas aqueles que são culpados só podem ser assim julgados por serem desprovidos de consciência, por voltarem seus ódios contra outros de maneira É necessário contrapor-se a uma tal ausência de consciência, é preciso evitar que pessoas golpeiem para os lados sem refletir a respeito de si próprias. A educação tem sentido unicamente como educação dirigida a uma auto-reflexão crítica (1994, p.121). Podemos entender como mecanismos, ou fatores a eles associados, a submissão da consciência a uma falsa mímesis, à personalidade autoritária, ao processo de coisificação do homem e à imposição ideológica e cultural. Adorno repete a expressão kantiana, ao referir-se ao único meio efetivo de evitar a barbárie: a “autonomia da consciência”, que só é possível existir por meio do poder de reflexão e de Filosofia e Educação irrefletida: ao indivíduo devem ser evitados, pois não geram autonomia, já que se guiam pela lei do outro, isto é, são heterônomos e só servem para manter submisso aquele que age de maneira irrefletida. Adorno não pretende erigir um programa de educação, UNIDADE VIII capacidade crítica. Isso quer dizer que compromissos impostos mas diz que devemos dar atenção à infância e ao campo: a primeira por estar em formação e o segundo por ser mais tradicional e impermeável a medidas de transformação. Apesar 143 Volume 2 dessas considerações, Adorno diz que as tendências que levam as pessoas a esse tipo de regressão violenta são produzidas em toda parte. PEDAGOGIA A “consciência mutilada” possui também um reflexo no corpo. Quando se perde o domínio da linguagem e as palavras não são suficientes, o gesto culmina como manifestação incontrolada. Adorno comenta a função do esporte, que, por um lado, é o canalizador dos instintos mais agressivos, e capaz de educar o corpo, e educar o atleta a admitir gentilmente a derrota, mas torna-se frequentemente um espetáculo de brutalidade, mais por parte da torcida, que não possui a disciplina do atleta. A ambiguidade que Adorno nota no esporte – por um lado, as regras, a disciplina – por outro, vazão dos instintos FIGURA 3 - Os hooligans, torcedores de futebol, que surgiram na década de 1960 na Inglaterra e se tornaram conhecidos por sua violência na década seguinte, são hoje proibidos de assistirem partidas em vários países. É um exemplo que se assemelha ao que Adorno considera como instintivo e negativo no esporte. Fonte: www.tvscoop.tv/2006/07/2.html agressivos, é um dos mecanismos sobre o qual devemos nos tornar conscientes. Os processos de coletivização figuram entre os outros mecanismos. Nestes ocorre uma estrutura de personalidade autoritária. Por um Filosofia e Educação lado, há um processo de identificação cega com o coletivo; por outro, a necessidade de manipular o coletivo e de pessoas que sejam talhadas para isso. Há duas preocupações por trás dessa relação complementar que devemos entender: 1. uma relação primitiva do homem com a natureza que favorece processos de autoconservação e resulta em um mimetismo social e político; 2. o desenvolvimento do caráter sadomasoquista na relação autoritária UNIDADE VIII que explica, estabelece em socialmente parte, processos e de mutilação da consciência. Para melhor FIGURA 4 - Cena do filme “Triunfo da vontade” de Leni Riefensthal, cineasta que acompanhava as paradas militares e encontros grandiosos, planejados e desenhados por Hitler. Percebe-se, no registro fotográfico, um exemplo do processo mimético de identificação com o coletivo pensado por Adorno. 144 se Fonte: www.catatau.blogsome.com dois que esses você compreenda aspectos, parênteses, faremos buscando complementação em outros textos e em comentadores destes textos. Módulo 1 Podemos encontrar dois significados de mímesis em Adorno: uma mímesis verdadeira (relacionada ao conhecimento estético, sobre o qual não estudaremos neste momento) e uma falsa. Faremos uma remissão a outras obras para falar desse conceito, utilizando as considerações do intérprete Rodrigo Duarte em seu livro Mímesis e racionalidade. Esse autor parte PEDAGOGIA 4 SOBRE MÍMESIS EM ADORNO da conceituação de natureza em Adorno para fundamentar o sentido de mímesis em sua dupla face. As obras consideradas são: Dialética do Esclarecimento e Dialética Negativa. Na primeira, e também na segunda obra, a natureza é “determinada apenas como uma instância que se opõe ao Eu” (p.66), o que Duarte considera ser uma definição insuficiente. A definição caminha na segunda obra para “menções à natureza como uma instância que deve ser superada, para que o Eu possa a vir a se constituir enquanto unidade” (DUARTE, 1993, p.66). Esse entendimento conduz à ideia do não-idêntico, lado oposto ao sujeito que deve ser dialeticamente superado, mas que atua como recalque na natureza humana. Na Dialética do Esclarecimento, o empreendimento sua preservação física, volta-se contra o próprio homem “à medida que surge, como consequência daquele, uma realidade inteiramente despida de caracteres da natureza originária, mas que se apresenta como naturalidade alienada” (DUARTE, 1993, p.57). O pressuposto dessa naturalidade alienada é o conceito weberiano de “desencantamento do mundo”. O sociólogo Max Weber (21.4.1864 a 14.6.1920) aplica essa noção ao contexto religioso, e Adorno e Horkheimer se incumbem de expandir Filosofia e Educação humano de controle do ambiente natural, para garantir como processo do desencantamento, indica, simultaneamente, o fim da magia e o início do domínio da natureza, através da intervenção técnica. A conhecida ideia que marca a reviravolta desse domínio é a permanência do mito ou algo semelhante a ele, destituído de magia, camuflado como conhecimento científico, no contexto da segunda natureza constituída pela UNIDADE VIII seu significado a toda cultura ocidental. A destruição do mito, técnica. A ideia de uma primeira natureza em Adorno ocorre negativamente, como a instância que se opõe ao Eu. A de 145 Volume 2 segunda natureza ocorre como catástrofe. Para explicar melhor isso, Duarte cita um texto tardio de Adorno intitulado “Progresso”, no qual ele não se apressa em responder positiva PEDAGOGIA ou negativamente à pergunta “se houve progresso”. A pergunta seria corrigida para: “o que progride?” e “para onde esse progresso se dirige?” No quadro catastrófico delineado, humanidade e natureza são passíveis de serem destruídas por completo, ao mesmo tempo em que os recursos técnicos poderiam extirpar toda a carência humana (alimentos, conforto material e físico). Adorno considera o domínio da natureza sobre os homens e os efeitos de domesticação sofridos. Qualifica como “homens-natureza” o contingente, principalmente feminino, que se submete a essa domesticação, e são definidos como mais próximos da natureza. Sob a perspectiva da dominação masculina, constrói-se um parentesco com os animais e os judeus, como não-humanos ou subumanos, criando o espaço de construção de uma mímesis perversa, ou mais propriamente, o mimetismo como um comportamento denominado “projeção pática”: disso “resulta que só é digno de ser aquilo que pode ser tornado igual ao sujeito. O que não é suscetível dessa equiparação deve ser eliminado” (DUARTE, 1993, 85). É importante perceber o quanto o sentido da falsa mímesis UNIDADE VIII Filosofia e Educação está equiparado ao de mimetismo, que, por sua vez, é descrito como comportamento mimético que equivale à projeção pática (de páthos: palavra grega que significa “paixão”, “sofrimento”), isto é, ao esforço de adaptação em vista da necessidade de autoconservação. A propósito da distinção entre mimetismo e mímesis, Duarte cita a seguinte passagem da Dialética do Esclarecimento: Proteção como terror é uma forma de mimetismo. Aquelas reações de paralisação nos seres humanos são esquemas arcaicos da autoconservação: a vida paga o tributo por sua continuação através da equivalência ao que está morto (citado por DUARTE, 1993, p.136). 4.1 O estudo sobre a personalidade autoritária O estudo sobre A personalidade autoritária de Adorno e Horkheimer tem por objeto buscar as condições subjetivas do nazismo e tem por base o conceito de “caráter sadomasoquista” 146 Módulo 1 de outro membro do Instituto de Pesquisa Social, o psicólogo Erich Fromm (estudos dos anos 1920 e 1930). Em 1936, Fromm e Horkheimer desenvolveram os “Estudos sobre autoridade e experiência com Fromm: “Como se explica, pergunta Fromm, que tantas pessoas aceitem, tão resignadamente, sua opressão? A resposta é que as condições atuais suscitam um caráter social predominantemente sadomasoquista.” Este caráter é que permite a sedimentação da personalidade autoritária. Segundo Rouanet, PEDAGOGIA família”. Rouanet (1986, p.55) comenta a importância dessa (...) é determinante, para o sadomasoquismo, a necessidade de sofrer e fazer sofrer, de oprimir e ser oprimido, de obedecer à autoridade e exercer a autoridade. É nessa relação ativa e passiva com o poder, que a personalidade sadomasoquista consegue realizar-se libidinalmente. O prazer sexual concretiza-se na obediência aos fortes e poderosos. Mas a submissão incondicional ao poder implica, ao mesmo tempo, inveja e agressividade. Como a lógica do masoquismo impede que o ódio ao agressor se exteriorize, a agressividade é reprimida e canalizada contra os mais fracos. Com o mesmo autoritarismo com que reverencia a força, a personalidade autoritária despreza a fraqueza (1986, p.56). no contexto americano. Existe uma base empírica para este estudo e sobre ela Adorno conseguiu desenvolver e aprimorar alguns conceitos, como o de “personalidade” que passou a substituir o de “caráter”. Os dados empíricos, coletados em entrevistas, questionários e testes projetivos, eram reunidos em “escalas”, as quais, após elaboradas, eram analisadas segundo uma tipologia de “estruturas de personalidade”, cada tipo era diferenciado em “high” e “low scores”, literalmente Filosofia e Educação Horkheimer retoma, junto com Adorno, esses estudos, personalidade na superfície e no nível inconsciente. As escalas eram: Escala PEC (conservadorismo políticoeconômico); escala F (tendências antidemocráticas, potencial fascista); escala AS (total antissemitismo: combinação de 5 escalas com base no estereótipo do judeu); escala E (total etnocentrismo, combinação de escalas que supõe a ideologia UNIDADE VIII contagem ou marca alta ou baixa. Procurava-se alcançar a etnocêntrica que aceita rejeita membros do grupo exterior, identificados como judeus, negros, minorias, ou de classes socioeconômicas inferiores). 147 Volume 2 Esse estudo possuía algumas limitações que foram criticadas e revistas. Em primeiro lugar, tratava-se de uma pesquisa empírica, em relação à qual os frankfurtianos sempre PEDAGOGIA tiveram reservas. Segundo, porque os aspectos psicológicos eram mais relevantes do que a análise materialista ou econômica e histórica. O resultado da pesquisa surpreendeu a todos os envolvidos, pois, grosso modo, revelava que quanto mais conservador sob o ponto de vista político, menos autoritário; e, inversamente, quanto mais próximo da classe que lutava por igualdade, mais autoritário. Notaram-se, no entanto, as condições de realização da pesquisa em solo americano, onde o discurso político conservador preza a liberdade e a igualdade de oportunidades. Logo, o conservador é antifascista de acordo com a ideologia na tradição americana. Notou-se, nesse caso, a existência de um pseudo ou falso conservador, o que se revelaria diferente na Alemanha nazista. Perceberam, portanto, que os resultados da amostragem e a aplicação destes nas escalas não poderiam ser interpretados de maneira quantitativa, mas deveriam ser redimensionados de acordo com o contexto e suas contradições internas. A importância Filosofia e Educação teórica desse estudo, segundo Rouanet, (...) é considerável, pois ao mesmo tempo que permite dialetizar a interação personalidade/ ideologia, evitando um reducionismo psicologista elementar, reintroduz o tema da influência psicológica de uma forma mais flexível e mais compatível com a complexidade da vida psíquica e social. A importância política dessa concepção é igualmente óbvia. Pois a diferença de estilo pode ser decisiva, num contexto histórico que favoreça o aparecimento de correntes fascistas (1986, p. 179180). UNIDADE VIII 5 EDUCAÇÃO: REIFICAÇÃO E MÍMESIS Retornando ao texto sobre a educação, podemos notar, na exposição dos itens 1 e 2, vários elementos que auxiliam a entender afirmações do tipo: pessoas que se enquadram cegamente em coletivos convertem a si próprias em algo como um material, dissolvendo-se como seres autodeterminados. O outro lado dessa moeda é o tratar (de forma a manipulálos) os indivíduos que se dissolveram nessa “massa amorfa” com eficiência e frieza. Esse é o papel do caráter manipulador. 148 Módulo 1 O nazismo está repleto de exemplos, mas não é a única fonte, é um tipo social e psicológico, no entender de Adorno, bastante disseminado. Adorno fala em criar uma investigação de cunho da análise de seus testemunho e atitudes, recolher o antídoto ao nazismo futuro. Algo difícil de ser feito, pois a identificação com os velhos nazistas forma outro coletivo, um grupo que se apresenta sem remorsos. Mas, mesmo sem garantias de sucesso, valeria a pena. Para Adorno, eles representam a “consciência coisificada”: primeiro eles se tornaram iguais às PEDAGOGIA psicanalítico para aproveitar a sobrevivência de ex-nazistas e, coisas, para depois converter todos ao mesmo processo. A consciência coisificada é defensiva em relação ao vira-ser, pois se encontra condicionada a um princípio absoluto. O rompimento com esse mecanismo seria uma das prevenções contra o autoritarismo. A coisificação do homem encontra uma outra inversão interessante, que remete às teorias de Marx e Lukács, que é a “humanização” ou “fetichização” da mercadoria. O homem se torna coisa e a coisa (o produto, a técnica) passa a receber valores humanos. Haveria uma longa digressão a ser feita com muitas explicações e variações desses conceitos. Em seu texto, Adorno fala, em particular, do processo de fetichização (enfeitiçamento) da técnica. Como o esporte, a técnica guarda uma ambiguidade. Pode se aliada ao desenvolvimento benéfico do homem. Mas pode também padecer sob um “véu tecnológico”. Adorno (1996) diz que existe na técnica algo de exagerado, irracional, patogênico e que os homens se inclinam a considerar a técnica como sendo algo em si mesma, um fim em si mesmo, uma força própria, esquecendo que ela é a extensão do braço dos homens. Exemplo disso é pensar que alguém foi capaz de projetar um sistema ferroviário, como o que conduzia a Auschwitz, com um grau de eficiência e rapidez incrível, sem considerar, no Filosofia e Educação ser sublimadora de impulsos destrutivos e, por isso, tornar- Tal frieza em nome da eficiência tem um custo; a capacidade de amar (energia libidinal) acaba sendo transposta para outros meios: os equipamentos, o líder político, o ídolo de cinema ou da música. A frieza é uma constatação social e antropológica, diz Adorno, e não o contrário, como sempre se supôs, desde Aristóteles, de que o homem é um ser voltado UNIDADE VIII entanto, para onde os passageiros seriam conduzidos. para a sociedade movido por um sentimento de empatia ou simpatia. A fúria ocorrida em Auschwitz (sentimento bestial que 149 Volume 2 não exclui a frieza de seu planejamento e aplicação) pode receber um outro direcionamento: os estrangeiros, os idosos, religiosos, homossexuais, por exemplo. Para isso é necessário tornar consciente seus mecanismos e saber reconhecê-los, PEDAGOGIA a fim de freá-los e tornar-nos conscientes de seu impulso destruidor. A educação, nesse sentido, deve possuir um vínculo necessário com a política. Tornar-se quase sociologia, a fim de perceber o jogo de forças que constitui o poder político. Adorno encerra sua palestra sobre a educação, apontando para uma implicação bastante importante e atual. Ele afirma que a educação “politizada” deve ser crítica o suficiente para questionar um conceito sacramentado como o de “Razão de Estado”. Cita Walter Benjamin, que, no exílio, em Paris, perguntou-lhe se ele achava que encontrariam algozes o suficiente para executarem as tarefas planejadas pelos “assassinos de gabinete” naquele país (ocupado pelos nazistas na época). Esses algozes são pessoas que agem quase sempre contra seus próprios interesses, diz Adorno, “são assassinos de si mesmos na medida que assassinam os outros”. O trabalho da educação seria o de evitar o surgimento dessas pessoas, sejam as que estão no comando, sejam as que cumprem ordens por Razão de Estado. UNIDADE VIII a FR K C AM SAIBA MAIS Filosofia e Educação U V Giorgio Agamben (Roma, 1942) é um filósofo italiano que teoriza sobre as relações entre a filosofia, a literatura, a poesia e, fundamentalmente, a política. Possui vários livros publicados e traduzidos para o português, entre os quais: Homo sacer (2002), Estado de exceção (2004), Profanações (2007), Estâncias (2007), O que resta de Auschwitz (2008). Um dos teóricos da atualidade que retoma essa crítica é o italiano Giorgio Agamben, com vários livros traduzidos para o português e publicados no Brasil. Em seu livro intitulado Estado de exceção, expressão inventada por Walter Benjamin e repetida por Adorno em seu texto, Agamben reflete sobre os dispositivos legais extraordinários utilizados pelo Estado – como momentos de emergência, terrorismo, guerras; momentos nos quais os direitos dos cidadãos são suspensos. A análise de Agamben recupera a teoria e a discussão empreendida pelos frankfurtianos, de maneira a perceber, na história, consequências atuais tão distanciadas do nazismo. Esse tipo de teoria demonstra que o empreendimento adorniano e de outros frankfurtianos em entender o fenômeno do nazismo, por meio de categorias que procuram desmascarar mecanismos de tendência irracionalista, contribui ainda para a reflexão crítica no campo do pensamento, em geral, e do direcionamento que se pretende dar à educação. Agamben se reúne aos que fizeram duras críticas às condições dos prisioneiros em Guantánamo, submetidos a 150 torturas e desrespeito aos direitos humanos. A prisão tornou- Módulo 1 se mais conhecida após o ataque terrorista de 11 de setembro, pois para lá foram enviados suspeitos, acusados de vínculo com a Al-Qaeda. O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, FIGURA 5 - Prisioneiros no Campo de detenção da prisão de Guantánamo, em Cuba. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Camp_x-ray_detainees.jpg ATIVIDADE 1. Pesquise a respeito do conceito de estado de exceção relacionado ao terrorismo na atualidade. Identifique situações que põem em risco a liberdade do indivíduo diante da ideia de razão de Estado. Como exemplo, sugerimos que você assista ao documentário Fahrenheit 11, de Michael Moore, com exemplos do governo republicano de George W. Bush e contraste com as notícias sobre a proposta de fechamento da prisão de Guantánamo, como medida do governo democrata de Barack Obama. Filosofia e Educação discussão no Congresso. UNIDADE VIII de até um ano) da prisão, mas o processo ainda continua em PEDAGOGIA logo quando tomou posse, ordenou o fechamento (no prazo 151 Volume 2 RESUMINDO Nesta unidade você pode compartilhar de teorias que são importantes PEDAGOGIA para a educação, para a política e para filosofia. Os temas estudados dizem respeito: 1. À crise da razão. 2. À falsa mímesis ou o mimetismo social; 3. Ao caráter social ou à personalidade autoritária. 4. Ao imperativo: Por que não se repetir Auschwitz: o papel da educação. UNIDADE VIII Filosofia e Educação 5. À ideia de “estado de exceção” e sua atualidade. 152 Theodor Wiesegrund. A educação após Auschwitz. Tradução de Aldo Onesti. São Paulo: Ática, 1994. ADORNO, Theodor Wiesegrund. Dialética do esclarecimento. Tradução de Guido de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. PEDAGOGIA ADORNO, AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Rio de Janeiro: Boitempo, 2007. BENJAMIN, Walter. Crítica do poder, crítica da violência. In: BOLLE, Willi (Org.). Walter Benjamin: documentos de cultura, documentos de barbárie. São Paulo: Cultrix, 1986. CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 12. ed. São Paulo: Ática, 2002. DUARTE, Rodrigo. Adorno/Horkheimer e a Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. (Col. Passo- DUARTE, Rodrigo. Mímesis e racionalidade. São Paulo: Loyola, 1993. FREITAG, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1990. JAY, Martin. O pensamento de Adorno. Tradução de Adail U. Sobral. São Paulo: Cultrix/EDUSP, 1984. ROUANET, Sérgio Paulo. Teoria crítica e psicanálise. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1986. WIGGERSHAUS, Rolf. A escola de Frankfurt. Rio de Janeiro: Difel, 2002. Filosofia e Educação a-passo). UNIDADE VIII r e f eR Ê N C ia s Módulo 1 153 Suas anotações ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ unidade 9 Objetivos Meta TECNOLOGIA E EDUCAÇÃO Apresentar os conceitos que Walter Benjamin utilizou para avaliar a mudança de percepção ocasionada pelo surgimento da técnica de reprodutibilidade da fotografia e do cinema; o aprendizado do adulto e da criança.. Ao final desta unidade, você deverá ser capaz de: • relacionar o aprendizado do adulto e o da criança com base na percepção sensorial e lúdica, despertada pelos meios: livros e filmes; • perceber modos diferentes de aprendizagem que incluem os meios tecnológicos com base nas noções de hábito, aprendizagem mimética e vivência do choque; • identificar características da percepção sensorial infantil; • identificar o papel do educador da criança como aquele que auxilia a criança a construir conceitos. Módulo 1 1 INTRODUÇÃO Como você verá, passaremos pelos seguintes assuntos Filosofia e Educação PEDAGOGIA UNIDADE IX • A obra de arte sob as condições dos novos meios e da técnica. • Cinema, metrópole e trabalho industrial. UNIDADE IX no desenvolvimento de nossa unidade: • O aprendizado do adulto. • O aprendizado da criança. 157 Volume 2 2 OBRA DE ARTE SOB AS CONDIÇÕES DOS NOVOS MEIOS E DA TÉCNICA PEDAGOGIA No ensaio escrito, em diferentes versões, por Walter Benjamin, intitulado A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, podemos notar a tentativa do autor em estabelecer novas categorias ou juízo na recepção da arte transformada pela técnica. A arte em questão é o cinema, PARA CONHECER assim como sua antecessora, a fotografia. Walter Benjamin nasceu em Berlim, Alemanha, em 15/07/1892 e faleceu em Port Bou, Espanha, em 27/9/1940, quando tentava passar a fronteira que o levaria para o exílio nos Estados Unidos. Lá iria se reunir aos membros do Instituto de Pesquisa Social, em sua maioria, intelectuais de origem judaica e marxistas, exilados de seu país, a Alemanha, com a ascensão do nazismo. Benjamin era um colaborador desse Instituto, conhecido pela chancela de “Escola de Frankfurt”. FIGURA 1 - Fonte: www.uesc.br/nucleos/nbewb Filosofia e Educação Benjamin considera o que muda na “natureza” da obra de arte transformada pela técnica e percebe que se trata da capacidade e da necessidade de se tornar cada vez mais reproduzida, multiplicada em cópias. Sua natureza técnica, portanto, consiste em ser reprodutível. Quando falamos em obra de arte ou objeto artístico, não imaginamos algo que possa existir à parte de seu público de espectadores. No contexto sagrado da obra de arte, o número de espectadores não era importante. Algumas obras eram feitas para poucos e não para serem exibidas. Mesmo assim UNIDADE IX é impossível pensar na ausência de recepção de uma obra de arte. A preocupação de Benjamin, além de mostrar a mudança técnica e de linguagem, isto é, a linguagem cinematográfica, linguagem de imagens, que ocorre com a fotografia e o cinema, é mostrar como as pessoas passaram a perceber e se relacionar com o objeto artístico, isto é, o que caracteriza a recepção do objeto. 158 Logo que o cinema surgiu, há pouco mais de um século, Módulo 1 tratava-se de uma atração mambembe ou de um interesse científico, mas não era visto como arte. Ao subir a esse patamar, antes de ser conhecido como a sétima arte, encontrou defensores e entusiastas que possuíam um julgamento equivocado. como a epopeia, de forma a estabelecer comparações, sem reconhecer as diferenças entre os gêneros. Para Benjamin, existe uma falha de análise neste caso, que não considera a história e, principalmente, a mudança de experiência que sofremos ao longo da história. A epopeia PEDAGOGIA Buscavam associar o cinema a gêneros grandiosos do passado, é o registro de uma época e cultura, da qual estamos muito distantes. Ela se inscreve na tradição da narrativa oral e da experiência coletiva, representada pelo herói de maneira única, total e inseparável. O cinema, diferentemente do teatro, é técnico, fragmentado, não percorre a sequência narrativa do romance ou do teatro. As sequências não são filmadas necessariamente em ordem e a montagem vai selecioná-las e agregá-las de acordo com um ritmo, um movimento e recorte da imagem que faz do cinema algo totalmente diferente em termos de composição da história e da narrativa, bem como de composição 3 CINEMA, METRÓPOLE E TRABALHO INDUSTRIAL A recepção do filme oferece ao público uma grande oportunidade. Falamos aqui do contexto histórico de formação dos grandes centros urbanos e da afirmação do trabalho industrial. Essas transformações que surgem no período da modernidade, do século XIX e início do século XX, mudaram por completo a vida das pessoas. O ritmo, o passo acelerado, Filosofia e Educação de imagem. transformam o modo de andar das pessoas e também a comunicação entre elas. Comunicação não só de palavras, do “trocar experiências”, contar histórias ricas de sentido, mas de olhares e correspondência de olhares. Ocorre uma desumanização nos grandes centros, tornando a massa um UNIDADE IX a pressa, os esbarrões dos transeuntes, o trânsito de veículos todo robotizado e sem rosto. Você pode observar isso na ilustração a seguir: 159 Volume 2 Filosofia e Educação PEDAGOGIA Ilustração de autoria de Moholy-Nagy, artista dadaexpressionista, de 1923, intitulado Metrópolis. Essa colagem reproduz a visão caótica e grandiosa da grande cidade. FIGURA 2 - Fonte: http://images.google.com.br No trabalho industrial, essa realidade não é menos opressiva. O trabalho seriado e fragmentado favorece o que Marx conceituou, no século XIX, de alienação do trabalho. Não só o trabalho não ocorre mais globalmente, inteiro, mas o produtor se encontra impossibilitado, econo-micamente, de UNIDADE IX adquirir aquilo que produz. O cinema surge nesse contexto, menos como arte em sentido tradicional, mas como instrumento de aprendizado e de reestruturação perceptiva do cidadão, que pode, inclusive, reverter a opressão da técnica ao: a) aprender por meio desta, e b) divertir-se. O espaço de percepção, criado na sala de cinema entre o filme e o público, tem a capacidade de revigorar a forma do aprendizado da infância por ser igualmente lúdico. 160 PEDAGOGIA Filósofo, economista e socialista, Karl Marx nasceu em Trier, na Alemanha, em 5 de maio de 1818, e faleceu em Londres, Inglaterra, a 14 de março de 1883. Marx fez a crítica ao capitalismo nascente no século XIX. Sua crítica influenciou segmentos da política e moveu revoluções a partir da Revolução Russa de 1917. Vários conceitos e aplicações de seu pensamento foram revisados na primeira metade do século XX. PARA CONHECER Módulo 1 FIGURA 3 Fonte: http://pt.wikipedia.org 4 O APRENDIZADO DO ADULTO Tendo em vista o modo de aprendizado do adulto e o infantil, passaremos a falar sobre sua relação, iniciando pelo do adulto. As duas aprendizagens não estão relacionadas com a escola, mas com o cinema, o teatro e a literatura. A primeira certeza é que a recepção, baseada na contemplação, veio a sucumbir diante do mundo industrial e técnico do trabalho e da indústria do entretenimento ou diversão que caracteriza o cinema. Não é mais possível o modo de recepção da imersão é, não é mais o espectador que imerge na obra de maneira concentrada e lúdica; mas, ao contrário, dela se desvia, na tentativa de evitar o golpe que sofre da imagem que parece atingi-lo na cadeira, uma imagem em uma dimensão jamais vista e numa alternância jamais experimentada. Temos em vista o início do cinema e a novidade que a grande tela trazia para as pessoas que lidavam com imagens, mas não nessa proporção e velocidade. Filosofia e Educação no objeto, mas, sim, o do desvio de atenção do objeto. Isto aplicando a recepção atual de uma invenção como a da montanha russa e do loop. É o que faz, por exemplo, o historiador Nicolau Sevcenko em seu livro A corrida para o século XXI: no loop da montanha russa: Uma das situações mais intensas e perturbadoras que se pode experimentar, neste nosso mundo atual, é um passeio na montanha-russa. Só não é nem um pouco recomendável para quem tenha UNIDADE IX Podemos tentar entender o contexto dessa novidade, 161 UNIDADE IX Filosofia e Educação PEDAGOGIA Volume 2 162 problemas com os nervos ou o coração, nem para aqueles com o sistema digestivo sensível. A própria decisão de entrar na brincadeira já requer alguma coragem, a gente sabe que a emoção pode ser forte até demais e que podem decorrer consequências imprevisíveis. [...] A primeira fase até que é tranquila, a coisa se põe a subir num ritmo controlado, seguro, previsível. A gente vai se acostumando, o corpo começa a distender, aos poucos está gostando, vai achando o máximo ver primeiro o parque, depois o bairro, depois a cidade toda de uma perspectiva superior, dominante, se estendendo ao infinito. [...] A subida continua sem parar, no mesmo ritmo consistente, assegurado, forte; descobrimos que o céu aberto é sem limites, bate uma euforia que nos faz rir descontroladamente, nunca havíamos imaginado como é fácil abraçar o mundo; estendemos os braços, estufamos o peito, esticamos o pescoço, fazemos bico com os lábios para beijar o céu e... ... e de repente, o mundo desaba e leva a gente de cambulhada. É o terror mais total. Não se pode nem pensar como fazer para sair dali porque o cérebro não reage mais. O pânico se incorpora a cada célula e extravasa por todos os poros da pele. Não é que não se consiga pensar, não se consegue sentir também. Nos transformamos numa massa energética em espasmo crítico, uma síndrome viva de vertigem e pavor, um torvelinho de torpor e crispação. É o caos, é o fim, é o nada. Até que chega o solavanco de uma nova subida, não mais precisa e reconfortante como a primeira, agora mais um tranco que atira a gente para diante e para trás, um safanão curto e grosso que ao menos dá a sensação de um baque de volta à realidade. [...] Outro baque de subida, nem o tempo de piscar e a queda livre que enche as vísceras de vácuo e faz o coração saltar pela boca. E agora, meu Deus, o loop ...! Aaaaaaahhhhh .....!!!!! Rodamos no vazio como um ioiô cósmico, um FIGURA 4 - Montanha russa, cujo nome é Rollercoaster brinquedo fútil dos elementos, um grão tornado, no Parque Aventura (Avonturenpark), de areia engolfado na potência geológica na cidade de Hellendoorn, Holanda. Fonte: www.wikipedia.com de um maremoto. Nada mais nos assusta. Ao chegar ao fim, desfigurados, descompostos, estupefatos, já assimilamos a lição da montanha-russa: compreendemos o que significa estar exposto às forças naturais e históricas agenciadas pelas tecnologias modernas. Aprendemos os riscos implicados tanto em se arrogar o controle dessas forças, quanto em deixarse levar de modo apatetado e conformista por elas. O que não nos impede de suspeitar das intenções de quem inventou essa traquitana diabólica (p.1314). Você pode perceber, nessa longa narrativa, que o autor não é da geração do “loop”. Se o filho dele estivesse ouvindo ou lendo essas impressões, certamente diria que o pai exagera nas descrições, pois eles já estão habituados ao brinquedo, PEDAGOGIA Módulo 1 e a emoção para eles, é menos intensa. Ao mesmo tempo, a descrição das emoções é profundamente benjaminiana ao refletir sobre a recepção do brinquedo em diferentes modalidades. Se lembrarmos que a primeira sessão de cinema (cf. ilustração nº 5) causou um terror parecido ao descrito, podemos entender a reação diante da novidade tecnológica, com a qual nos acostumamos de geração a geração. A projeção da chegada do trem à plataforma, imagem ao alto na grande tela e o trem vindo na direção da plateia, ocasionou uma reação de pânico, fazendo com que as pessoas saltassem das cadeiras e corressem cinema afora, crendo que seriam atropeladas pelo irmãos Auguste e Louis, era “Chegada de um trem à estação” (L’Arrivée d’un train en gare de La Ciotat ou, de forma abreviada, L’Arrivée d’un train à La Ciotat ), divulgado no dia 28 de dezembro de FIGURA 5 - Cena da chegada do trem. Fonte: http://bp.blogspot.com 1895 no Grand Café do Boulevard des Capucines, em Paris. O filme tinha apenas a duração de 50 segundos e era composto por apenas um plano em perspectiva Filosofia e Educação trem. O nome do filme, dos pioneiros passageiros à espera na estação. Para Walter Benjamin, o filme e o brinquedo são exercícios de aprendizado físico e emocional diante de uma tecnologia que pode ser utilizada sem esse intuito. É nesse sentido que devemos entender que o exercício que se faz na UNIDADE IX diagonal a partir da estação chamada La Ciotat, com alguns frequência às salas de cinema é, para Benjamin, uma forma de aprendizado. Um aprendizado caracterizado como hábito, ou seja, um aprendizado lento, repetitivo e moroso, que fará 163 Volume 2 com que o público ou a massa estranhe menos o lado de fora da sala, isto é, o ritmo da grande cidade e o trabalho seriado da produção acelerada da indústria. Isso, no entanto, seria pouco, quase que um PEDAGOGIA acomodamento das massas à realidade da metrópole e do trabalho industrial. Numa dimensão mais profunda, Benjamin resolve mostrar a “pirueta”, o “loop” ou a inversão que o homem faz do lado opressor da técnica, ao inventar o filme: não apenas a linguagem cinematográfica ou o que, por meio dela, é mostrado como realidade, mas o lado grotesco dos filmes que transforma o cinema no que Benjamin chama de “jogo desinibido com a técnica”. Os exemplos são os filmes de Charles Chaplin e os filmes de animação americanos, o famoso Mickey Mouse. Benjamin considera Chaplin um poeta. O aspecto lúdico e crítico de seus filmes o torna o grande exemplo para entendermos as considerações benjaminianas sobre o cinema. Como você verá, nesta unidade, Benjamin está mais interessado no aspecto lúdico como forma de aprendizado e de revanche política do que no aspecto técnico e ideológico, característico dos filmes experimentais russos ou das vanguardas russas. Obviamente ele é capaz de perceber e Filosofia e Educação criticar o cinema que tenta ser épico, grandioso e bem acabado. É igualmente crítico dos filmes publicitários do nazismo e dos filmes que criam FIGURA 6 - Fotogramas do filme Tempos Modernos de 1936 de Charles Chaplin (1889-1977), cineasta britânico que encantou o mundo com seu humor crítico. Neste filme, ele critica a aceleração do trabalho industrial e seriado da indústria, no papel de um operário que tem uma crise psicomotora em meio às máquinas. Ele é hospitalizado e, quando sai, participa, por engano, de uma passeata, acenando uma bandeira vermelha que teria caído da traseira de um caminhão carregado. O gesto foi interpretado como uma simpatia ao comunismo. UNIDADE IX O filme foi proibido na Itália e Alemanha de regimes fascistas, criticado pelos americanos e aclamado na Inglaterra, França e Alemanha. Fonte: http:1.bp.blogspot.com o culto às estrelas no cinema americano, muito embora ele tenha vivido pouco para conhecer o tipo de produção cinematográfica que se desenvolveu em Hollywood. É bom também que se diga que, apesar de ser tão lido nos cursos de comunicação, Benjamin nunca escreveu muito sobre filmes e diretores. Chaplin é associado ao grotesco pelo humor que destrói criticamente a realidade. A escolha dos filmes grotescos americanos e de “seu jogo desinibido com a técnica” nos levam de volta à afirmação de que importa a Benjamin o efeito ou recepção do filme, pedagógica. acima de tudo é sua potencialidade A técnica deve ser vista de forma crítica, sob suspeita. Os filmes grotescos parecem constituir-se sobre 164 essa crítica, pois, segundo Benjamin (em “Réplica a Oscar Módulo 1 Schmitz”), ele (o filme grotesco) alcança seu ponto mais alto contra a técnica (...) o riso que ele desperta, paira so-bre o abismo do horror. Esse gênero de filme está relacionado à percepção por (proveniente do sonho e do inconsciente) e certamente coletiva. Pelo jogo, contudo, cria-se um espaço de aprendizagem que ultrapassa o mimético (ver-se representado por trabalhadores) e o aprendizado associado ao hábito. Esse tema já foi bastante explorado por intérpretes com base no ensaio sobre a obra de PEDAGOGIA meio da distração que é, em certa dimensão, também onírica arte: o aprendizado pelo hábito que resulta da frequência à sala de cinema e que exercita o homem a viver e sobreviver na segunda natureza que é a técnica, e que equivale à experiência histórica do habitar na arquitetura. Cinema e arquitetura pressupõem a recepção ótica; mas, para Benjamin, trata-se de uma recepção sobretudo tátil, dado ao hábito que adquirimos de tocar o espaço que habitamos e sermos tocados, melhor, golpeados pelas imagens que sobrepujam a tela e a cidade com seus inúmeros cartazes de propaganda. O cinema está para o mundo do adulto como o jogo e o hábito para o mundo da criança. No cinema, vigora uma A essência do brincar” [diz Benjamin] “não é um ‘fazer como se’, mas um ‘fazer sempre de novo’, transformação da experiência mais comovente em hábito. (...) O hábito entra na vida como brincadeira, e nele, mesmo em suas formas mais enrijecidas, sobrevive até o final um restinho de brincadeira. Formas petrificadas e irreconhecíveis de nossa primeira felicidade, de nosso primeiro terror, eis o que são os hábitos (BENJAMIN, 2005, p.102). No ensaio sobre a obra de arte, Benjamin fala do cinema como espaço lúdico, no qual é permitido ainda o brincar para o Filosofia e Educação relação parecida com a brincadeira infantil. mais da contemplação ou do recolhimento. O jogo com a técnica que expõe o grotesco é a outra dimensão desse aprendizado, cuja reversão é a de romper com o hábito e trazer o novo ao fazer o público rir barbaramente (o riso bom da boa barbárie) dos costumes e da política. UNIDADE IX adulto sob o modo de recepção da diversão ou distração, não O filme, de Chaplin, “O grande ditador” é o melhor exemplo a ser citado. Mais do que a técnica, fartamente analisada de maneira bem original no ensaio sobre a obra de 165 Volume 2 arte, o grotesco dos filmes é um forte elemento de ruptura contra o embelezamento, o falseamento ou a estetização da imagem publicitária utilizada, tecnicamente bem utilizada, aliás, pelo nazismo na época em que o ensaio foi escrito, pelos PEDAGOGIA totalitarismos e pelo capitalismo de lá para cá. Benjamin considerou tudo o que possa mostrar um lado desmistificador, destruidor da tentativa de recompor decorativamente valores que retrocedem ao período clássico, mas que não expressam mais a realidade da modernidade ou de outras épocas. O impossível, o monstruoso, o aterrador são instrumentos mais potentes e reveladores da realidade do que a técnica bem construída que encerra um culto de si mesma, a “técnica pela técnica”, tal como o movimento que cultuava a “arte pela arte”. Ao chegar a tais conclusões, Benjamin se separa daquela obsessão classicista tão típica da cultura, uma nobre tradição, sem dúvida, mas que, no tocante ao gosto e idealização da antiguidade grega, sofreu a incorporação banalizada e propagandística, principalmente no período do nazismo, instituindo uma batalha na esfera da superestrutura, que explica a necessidade de instituir novas categorias estéticas com base na política. A mímesis está relacionada ao ver-se representado no filme pelo operário. Está também presente como capacidade Filosofia e Educação mimética. Esta capacidade está relacionada ao prazer, ao jogo ou ao brincar, e, por fim, à repetição que se transforma em hábito. A tênue fronteira entre jogo e hábito, no mundo da criança, possui, no mundo do adulto, um correlato. No ensaio sobre a obra de arte, Benjamin fala do cinema como o espaço lúdico no qual é permitido ainda o brincar, para o adulto, sob o modo de recepção da diversão ou distração. O espaço público do cinema, corporizado pela técnica mais avançada naquele momento, em analogia com as construções arquitetônicas, permitiria ao homem o habitar UNIDADE IX a segunda natureza formada na modernidade, isto é, habitar ou habituar-se ao espaço e ritmo das grandes cidades e do trabalho industrial, realidades externas e opressoras. O hábito não significa acomodação, mas uma forma de conhecer por meio da sensação visual ou tátil. Essas duas modalidades de recepção, visual e tátil, são os meios sensitivos através dos quais a criança aprende. O cinema exercita novamente o adulto nesse aprendizado, 166 constituindo, portanto, uma espécie de grande escola das Módulo 1 massas, não pelo conteúdo expresso na forma de imagem e narrativa, mas por exercitar um novo tipo de percepção que surgiu com o desenvolvimento da técnica e do processo de ATIVIDADE 1) Entre os filmes mencionados de Charles Chaplin, assista, de preferência, “Tempos modernos” e considere: PEDAGOGIA industrialização do capitalismo. 1. O meio de recepção do filme: a maneira como você o assiste. Provavelmente será assistido na tela pequena da televisão, em imagem digital e acompanhado por poucas pessoas ou sozinho. Imagine assistir o mesmo filme na tela grande do cinema, na sala escura e repleta de gente que compartilha a diversão e as críticas ao filme. 2. O movimento do filme não é o mesmo do cinema atual. Pesquise sobre a diferença de velocidade com a qual o filme é projetado: 18 ou 24 quadros por segundo. 4. Como humor e crítica são associados por Chaplin para expressar o drama da época moderna que seu personagem representa e que é o drama de todos? 5 O APRENDIZADO DA CRIANÇA Explorando o entendimento de Benjamin sobre a infância, vamos agora nos voltar para importantes reflexões do autor recolhidas em resenhas esparsas, concentradas em Filosofia e Educação 3. Quanto ao som, trata-se do primeiro filme de Chaplin que o incorpora. O som, a fala e o diálogo que começam a surgir nesse período são dispensáveis em função da expressão mímica do ator? o brinquedo e a educação (BENJAMIN, 2005). Você pode verificar, no mundo que cerca a criança, três importantes vertentes em relação às principais ideias de Benjamin: a) a primeira diz respeito à percepção como contemplação sensual; b) a segunda, à capacidade mimética, UNIDADE IX nossa edição brasileira, sob o título Reflexões sobre a criança, e c) a terceira, à relação entre jogo e hábito. Benjamin fala da atenção que a criança direciona a tipos de objeto que se constituem como resíduos de algum processo 167 Volume 2 de produção, da construção à marcenaria ou ao trabalho do alfaiate. O que importa à criança não é o produto que resulta do trabalho do adulto, mas o que restou desse trabalho como resíduo, retalho. É como se aquilo que foi desprezado se PEDAGOGIA tornasse um mundo de coisas que dizem respeito só a ela. Em outra dimensão, Benjamin critica, na projeção da feitura do brinquedo para criança, a falta de compreensão do adulto ao imaginar a peça inteira em funcionamento como projeção em miniatura de uma grande obra de engenharia finalizada, com a qual o adulto se delicia e brinca. Podemos pensar na reação furiosa dos pais ao ver o filho destruir um brinquedo complexamente construído, como um ferrorama, e no prazer da criança em brincar com os dejetos e cacos do brinquedo ou com a própria embalagem do produto. A percepção da criança é a contemplação na sua forma mais pura e sensual. Não há para ela a experiência da nostalgia nessa imersão que ela faz no mundo das coisas. A correspondência de seu interior com as coisas ocorre pela percepção visual das cores, tanto as que a criança avista nos livros infantis, quanto as que ela experimenta na pintura. Observe, na figura ao lado, um exemplo de impressão gráfica das cores na cena do conhecido livro de Lewis Carrol: Alice no país das maravilhas. Filosofia e Educação Na ausência das cores, diante de xilogravuras (gravura impressa com uma matriz de madeira e tinta sob papel) impressas com tinta preta sob papel branco, por exemplo, a percepção sensual e sonhadora se desfaz, tirando FIGURA 7 - Cena do chá com o Chapeleiro Maluco e a Lebre de Alice no país das maravilhas, livro publicado pela primeira vez em 1865. Fonte: http://2.bp.blogspot.com a criança de sua interioridade. É da necessidade de descrever essas imagens que a criança fala. A maneira da criança penetrar nessas imagens ocorre, portanto, pela palavra. Não apenas a palavra oral, mas também a escrita. Nesse caso, as cartilhas que Benjamin cita UNIDADE IX em alguns desses textos constituem um bom exemplo, onde as letras são desenhadas no formato de um objeto, como mostra a ilustração de uma cartilha da época: Essa página de uma cartilha da época, por exemplo, exibe desenhos-enigmas ou uma escrita de sinais. Se a cor é o elemento que favorece a recepção via contemplação da criança, a imagem em preto e branco, formada ou não com a palavra, provoca nela o processo de criação. A tarefa que Benjamin 168 confere ao pedagogo ou ao diretor de teatro infantil é lidar com Módulo 1 esses sinais. No teatro, eles surgem como gestos improvisados. Observar e reconhecer os sinais resulta em retirar a criança de seu mundo mágico e conduzi-la ao processo criador de conteúdos. PEDAGOGIA O conteúdo de qualquer espécie não pode ser apresentado à criança como uma encenação de algo já vivido pelo adulto ou valores morais e ideológicos, mas ele se apresenta como o resultado que surge da transposição do mundo mágico-contemplativo, no qual a criança está imersa, para a abertura deste por meio de imagens em preto e branco, ou a escrita camuflada em imagens e o jogo que se estabelece com elas. Fornecer a palavra pronta é eliminar esse jogo. O exemplo que Benjamin apresenta contra as cartilhas modernas retrocede ao barroco, séculos XVI e XVII, cuja invenção de “monstruosidades fonéticas” como chichleuchlauchra ou zauzezizau favorecem a adivinhação do sentido. FIGURA 8 - Página de cartilha da época. Fonte: domínio público. Retrocedendo na história com esses exemplos, Benjamin mostra que houve, no proposta por “descontrair ludicamente a cartilha (do autor do livro por ele resenhado) é velha”. Ou seja, enxergar a infância em suas potencialidades e características não foi um acontecimento anterior a Rousseau. Benjamin não escreveu sobre a criança no cinema e jamais poderia imaginar os jogos eletrônicos e as possibilidades interativas Barroco foi um período estilístico e filosófico da História da sociedade ocidental, ocorrido no perído que vai de 1580 a 1756. O termo “barroco” advém da palavra portuguesa homônima que significa “pérola imperfeita”, ou por extensão joia falsa. Walter Benjamin direcionou um grande interesse à arte do barroco, em particular, à Origem do drama barroco alemão, título de sua tese de livre docência. As peças estudadas por Benjamin jamais foram encenadas, tendo sido sempre considerada, pela crítica, uma manifestação cultural menor, sem o valor da tragédia clássica. geradas pelos novos meios, como a Internet. Tampouco chegou a refletir sobre a facilidade de assimilação da tecnologia pelas crianças, mas poderíamos dizer que sua reflexão sobre o aspecto lúdico e a contemplação sensorial que U V a FR K C AM Filosofia e Educação desajeitada da percepção infantil e que a SAIBA MAIS passado, uma tentativa de aproximação ao mesmo tempo é maravilhoso e aprisionador. Poderíamos concluir, de suas reflexões, que o aspecto lúdico e sensorial das cores e dos estímulos eletrônicos dos novos meios encerraria a criança de tal forma nesse mundo, que a função do pedagogo continua ser a de trazer a realidade UNIDADE IX caracteriza a recepção da criança permanece no limbo descrito: em preto e branco, a fim de criar o distanciamento necessário para a construção de conceitos. 169 Volume 2 PEDAGOGIA ATIVIDADE 2) Tendo em vista o aprendizado da criança, observe e descreva atividades que lidam com o aspecto perceptivo e lúdico, como, por exemplo, atividades didáticas desenvolvidas em forma de jogo visual para o computador. RESUMINDO Nesta unidade você estudou: 1. A mudança de percepção e recepção do cinema; 2. O aprendizado das massas na sala de cinema: revanche da opressão vivenciada no trabalho e nas grandes cidades; 3. O conhecimento que se estabelece pelo hábito; 4. Contemplação e distração; 5. A contemplação sensorial da criança; 6. A função do pedagogo: libertar a criança de seu mundo UNIDADE IX BENJAMIN, W. Gesammelte Schriften. Ed. R. Tiedemann, G. Schweppenhäuser. Frankfurt a.M., Suhrkamp,1996. BENJAMIN, W. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. Tradução de Marcus Vinícius Mazzari. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2002 e 2005. BENJAMIN, W. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985. SEVCENKO, Nicolau. . A corrida para o século XXI: no loop da montanha russa. 2. ed. São Paulo: Ed. Schwarcz, 2001. 170 r e f eR Ê N C ia s Filosofia e Educação mágico. Suas anotações ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________