a ética cívica e o pensamento de john rawls - PUC-Rio

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Departamento de Direito
A ÉTICA CÍVICA E O PENSAMENTO DE JOHN RAWLS
Aluna: Jade Valente Musacchio de Araujo Machado
Orientador: Marcello Raposo Ciotola
Introdução
Em face da crise do juízo ético das sociedades pluralistas atuais, a existência de
um vínculo universalizador se faz necessária, portanto, a ética cívica se encontra em
posição de destaque na conjuntura política contemporânea. A proposta de pesquisa do
grupo institucional “Ética cívica e fundamentação das leis no Estado laico” se concentra
em averiguar formulações filosóficas capazes de alcançar a ética cívica. Nesta nova fase
da pesquisa, o método abstrato racional de Rawls foi estudado.
Metodologia
A proposta de um grupo de pesquisa em filosofia é ler artigos e livros sobre o
autor estudado. Dentre o que foi lido, este trabalho se baseou, principalmente, no livro
“O Liberalismo Político” e nos artigos “A idéia de razão pública revista” e “A teoria da
justiça como eqüidade: uma teoria política, e não metafísica”, todos de autoria de John
Rawls.
Basicamente, o que resulta dos estudos do filósofo é a definição dos conceitos por
ele elaborados.
A ética cívica e o pensamento de John Rawls
O professor de filosofia política da Universidade de Harvard, desde o final da
década de 1960, se dedicou a definir os princípios de liberdade e igualdade além de se
preocupar com a forma pela qual a cooperação seria desenvolvida em uma sociedade
cujos indivíduos são livres e iguais, ou melhor, como seria possível a cooperação entre
indivíduos livres e iguais os quais, justamente devido a estas características, possuem
visões de mundo diversas e até mesmo incompatíveis. 1
Também, foi na década de 1960 que começou a participar do movimento
intelectual chamado de “reabilitação da filosofia prática” o qual visava retomar o
1
Rawls, J. B. A idéia de razão pública revista. O Direito dos Povos. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2001, p. 234-235.
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pensamento de Aristóteles tanto no direito como na ética, na política e na economia. 2
Tendo se inspirado em Kant, Rawls nos apresenta uma teoria puramente racional. 3
Apesar de ter elaborado método para cooperação social, não é considerado um
defensor dos valores da comunidade e sim um liberal igualitário pelo fato de defender o
Estado de Bem-Estar Social. Basicamente, o tímido autor busca aproximar a política à
ética na medida em que a sociedade respeita os direitos humanos no dia-a-dia. 4
De todo modo, o que interessa ao estudo de ética cívica em relação ao pensamento
de Rawls são dois conceitos: a justiça como equidade e a ideia de razão pública. O
primeiro consiste em uma concepção política única compartilhada por todos os cidadãos
livres e iguais enquanto o segundo representa o que seria a razão do Estado Constitucional
Democrático de Direito. Ambos importam ao ambicioso método racional de cooperação
social.
Entretanto, antes de aprofundar os dois conceitos acima, cabe explicar o que é o
liberalismo político para o teórico John Rawls.
O liberalismo político é uma doutrina filosófica que, conforme Fernando
Vallespín, Rawls acredita ser seu fundador mesmo admitindo que as suas características
basilares estejam presentes em outros autores.5 Como já denuncia o nome, a doutrina é
de cunho meramente político, portanto, não interfere em doutrinas religiosas, metafísicas
ou morais. Afinal, o liberalismo pressupõe que diversas concepções de vida boa existam
em decorrência do desenvolvimento da razão humana em um contexto de liberdade de
expressão e pensamento próprios da democracia constitucional. 6
Neste sentido, o liberalismo político é imparcial em relação às diversas
perspectivas abrangentes e razoáveis uma vez que não pode nem rechaçar nem criticar
nenhuma das visões razoáveis de mundo.7 Logo, a doutrina rawlsiana é um método sem
conteúdo específico porque não cabe ao liberalismo definir quais são os julgamentos
morais certos ou errados. As concepções abrangentes são dados da realidade e o mínimo
ético comum é composto da sobreposição destas concepções desde que razoáveis. Assim,
o conteúdo do mínimo ético é algo a ser definido pela própria sociedade.
Quando o autor fala em perspectivas ou concepções abrangentes, ele diz respeito
às muitas concepções de vida boa que cada indivíduo social pode ter, afinal, todos têm
liberdade para pensar e agir de forma única. Entretanto, nem todas estas concepções são
racionais, portanto, cabe a distinção entre aquelas que são razoáveis e aquelas que não.
As doutrinas razoáveis são perfeitamente compatíveis com a constituição democrática do
2
Maia, A. C. Jürgen Habermas: filósofo do direito. 1. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 45-46.
Idem, p. 74.
4
Rawls, J. B. O Liberalismo Político. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000, p. 9.
5
Habermas, J.; Rawls, J. Debate sobre el liberalismo político. 1. ed. Barcelona: Ediciones Paidós, 1998,
p. 17
6
Rawls, J. B. O Liberalismo Político. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000, p. 24.
7
Idem, p. 27.
3
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Estado de Direito 8 enquanto as não razoáveis, incompatíveis com os princípios de
liberdade e igualdade, são afastadas do diálogo lógico-racional. Estas, além de irracionais,
podem ser até absurdas.9
Além do mais, a palavra “razoável” deve incidir na interpretação da doutrina
abrangente como um ponto de vista limitado de concepção política. É limitado porque o
conteúdo deve articular somente com valores políticos para apresentar uma base pública
de justificação, embora, os valores políticos possam se confundir com valores morais. 10
Também, é preciso entender que este termo “razoável” implica a junção de princípios da
concepção política com conceitos de pessoa e de sociedade sendo todos advindos da razão
prática.11
À vista disso, o liberalismo permite o reconhecimento das formas possíveis de
justificação pública razoável no que tange a questões políticas fundamentais já que separa
a perspectiva pública das não-públicas. 12
Conforme lembra o autor, foi na modernidade, entre os séculos XVI e XVII, que
o liberalismo político teria começado a se desenvolver. Segundo ele, por conta de três
fatores históricos, a filosofia moral e política até então conhecida foi severamente
transformada: a Reforma Protestante, o desenvolvimento do Estado Moderno marcado
pelo absolutismo e o desenvolvimento das ciências no século XVII.
A Reforma Protestante cindiu a unidade religiosa de modo a permitir uma
pluralidade de religiões semelhantes à católica. Assim sendo, a Reforma foi o estopim
para a existência de outros pluralismos o que desencadeou a necessidade da tolerância. 13
Primeiro, a tolerância surgiu em um contexto de pluralidade de convicções no divino,
depois, se desenvolveu para a construção de instituições liberais. Até então, nem se falava
em tolerância porque o seu antônimo servia de instrumento para a hierarquia social. 14
Segundo Kant, os seres humanos são racionais e possuem valor absoluto, logo, a
moral existe para proteger a dignidade como um código comum de mútuo respeito. A
razão humana seria um sentimento ou algo próprio de nossa natureza, portanto, ela seria
algo comum a todos nós porque quem entende irracional certas práticas como tirar a vida
de alguém ou privá-lo de liberdade pensa que o que considera justo se aplica a seja qual
for a sociedade e argumenta com base na razão para convencer qualquer interlocutor
racional. 15
8
Rawls, J. B. A idéia de razão pública revista. O Direito dos Povos. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2001, p. 174.
9
Rawls, J. B. O Liberalismo Político. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000, p. 24
10
Rawls, J. B. A idéia de razão pública revista. O Direito dos Povos. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2001, p. 179.
11
Rawls, J. B. O Liberalismo Político. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000, p. 28.
12
Idem, p. 27.
13
Idem, p. 30-32.
14
Idem, p. 33.
15
Cortina, A. Ética civil e religião. São Paulo: Paulinas, 1996, p. 35.
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Rawls tanto compartilha desta ideia que vê o entendimento de que somos livres e
iguais e dotados de razão universal como alicerce para o liberalismo político primeiro
porque, dado que a razão consiste em impulso interno que nos leva a agir da forma certa
independente de pressões externas, ela nos permite viver em sociedade. Segundo porque
o liberalismo político admite a livre manifestação das visões abrangentes de mundo
preparando o terreno para o construtivismo político.16
Existem três justificativas para o liberalismo político: a pro tanto, a plena e a
pública pela sociedade política. A primeira não diz respeito à doutrina compreensiva dos
cidadãos uma vez que concretiza valores ordenados conforme o mais conveniente a
depender da situação. Portanto, existe um julgamento de conveniência e oportunidade
para dar respostas às questões de justiça básica e de direitos fundamentais. A segunda
pertence à doutrina compreensiva dos cidadãos porque o indivíduo de uma sociedade
política pode recorrer à justiça, sozinho ou em grupo, para fazer valer seus direitos e
valores políticos. Já a terceira constitui ideia básica do liberalismo político e está ao lado
do consenso sobreposto na tarefa de reunir concepções abrangentes razoáveis para extrair
o mínimo ético.17
O professor de Harvard determinou que dois princípios de justiça bastam para
reger as instituições básicas no sentido de alcançar igualdade e liberdade. Primeiro, a
igualdade, em relação ao sistema de liberdades e de direitos básicos, diz respeito às
liberdades, oportunidades e reivindicações de igualdade. Segundo, as desigualdades
econômicas e sociais ou devem estar vinculadas a posições e cargos abertas a todos em
condições de justa igualdade de oportunidade (fair) ou os mais privilegiados devem
proporcionar maior vantagem aos membros menos favorecidos da sociedade de modo a
garantir o valor das proteções institucionais que são justamente o conteúdo do enunciado
do primeiro princípio.18
Em relação ao segundo princípio de justiça, parece que Rawls preconiza uma
igualdade talvez meritocrática uma vez que não preza pela igualdade material total como
em uma sociedade em que todos recebam o mesmo salário independente do quanto
trabalhem. Pelo contrário, o autor prevê a possibilidade de que cada indivíduo,
contribuindo para a sociedade, pela cooperação, pode se beneficiar do sucesso do outro
sem prejudicar a dignidade de ninguém. Logo, as desigualdades sociais e econômicas são
válidas desde que maximizem a posição do indivíduo menos favorecido. 19
Além dos princípios de justiça, há três elementos que os permitem expressar forma
igualitária de liberalismo: a garantia do valor equitativo das liberdades políticas para não
serem puramente formais; a igualdade equitativa de oportunidades; e o princípio da
diferença. Este princípio determina que as desigualdades sociais e econômicas relativas a
16
Rawls, J. B. O Liberalismo Político. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000, p. 35.
Habermas, J.; Rawls, J. Debate sobre el liberalismo político. 1. ed. Barcelona: Ediciones Paidós,
1998, p. 90-96.
18
Rawls, J. B. A teoria da justiça como eqüidade: uma teoria política, e não metafísica. Justiça e
Democracia, Catherine Audard (org.), São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 207-208.
19
Rawls, J. B. O Liberalismo Político. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000, p. 47-48.
17
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cargos e posições devem ser ajustadas de modo que, independente do nível das
desigualdades, devem representar o maior benefício possível para os membros menos
privilegiados da sociedade. 20 Assim, o princípio da diferença se refere, implicitamente, à
divisão igual como padrão de comparação.21
O autor frisa bastante em seus escritos que a sociedade é um sistema equitativo de
cooperação capaz de perpetuar de geração para geração. A cooperação, por sua vez, não
pressupõe uma atividade organizada pela autoridade central e sim ações guiadas por
regras de boa conduta publicamente reconhecidas por todos os cidadãos. Como tais regras
norteiam a cooperação social, há termos equitativos em seu fundamento porque eles
podem ser racionalmente compartilhados por todos.22 Desta forma, os termos de
cooperação são mútuos e cada cidadão pode aceitá-los na base da razoabilidade para o
acordo social. No caso de haver ameaças de força ou coação, a liberdade e a igualdade
são desestabilizadas de forma que o acordo seja levado à fraude. 23
Em relação à ideia de reciprocidade, pode ser definida a partir das ideias de
imparcialidade e benefício mútuo. Enquanto o primeiro termo define uma atitude altruísta
pensada em beneficiar toda coletividade, o segundo busca vantagens para e por todos em
vistas da situação atual ou futura vivida. 24 Os termos equitativos de cooperação ensejam
a ideia de reciprocidade porque quem participa na cooperação em seguimento às regras e
procedimentos deve ser beneficiado por um padrão apropriado de comparação.
Neste sentido, a justiça como equidade, uma espécie de mínimo ético, vê a
reciprocidade como uma relação entre cidadãos ilustrada pelos princípios de justiça os
quais regulam uma sociedade em que todos podem se beneficiar por um padrão de
igualdade e respeito. Assim, Rawls conclui que, conjugados os princípios de liberdade,
igualdade e da diferença, há reciprocidade entre os cidadãos. 25
Também, os termos equitativos são definidos por uma concepção política de
justiça. Esta é caracterizada por uma família de princípios referentes a direitos e deveres
dentro das instituições e tem por função regular os arranjos da justiça ao longo dos anos
de modo que os benefícios adquiridos por todos sejam distribuídos equitativamente de
uma geração para outra.26
De todo modo, o ser humano, estando associado a outras pessoas, obtém da
cooperação vantagem racional porque assume compromisso considerando o sistema sob
seu ponto de vista. Esta vantagem, a meu ver, pode ser entendida como a concretização
20
Idem, 48-49.
Idem, 60.
22
Idem, p. 58.
23
Rawls, J. B. A teoria da justiça como eqüidade: uma teoria política, e não metafísica. Justiça e
Democracia, Catherine Audard (org.), São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 214-215.
24
Rawls, J. B. O Liberalismo Político. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000, p. 59.
25
Idem, p. 60.
26
Idem, p. 59.
21
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da ideia de bem comum. 27 Então, no que toca o assunto de cooperação, a faculdade
humana têm os dois elementos essenciais: vantagem racional e termos equitativos de
cooperação.
Para o autor, os conceitos de pessoa e de sociedade se confundem na medida em
que a sociedade é composta por indivíduos que participam dela por meio do nascimento
e só saem pela morte. Assim, a sociedade é um sistema de cooperação mútua
relativamente autossuficiente, entretanto, o cidadão não tem escolha de fazer parte dela
porque simplesmente é filho de outros cidadãos daquela mesma associação de pessoas.28
Sobre o conceito de pessoa, são atribuídas as faculdades morais de senso de justiça
e de concepção de bem. A primeira consiste no respeito em relação à concepção pública
de justiça a qual caracteriza os termos de uma cooperação equitativa. A segunda trata da
capacidade de formar racionalmente uma concepção de nossa vantagem ou bem
principalmente no que tange na determinação de fins últimos, isto é, na determinação de
fins que se concretizam por eles mesmos. É nas concepções de bem que nossas relações
com o mundo, sejam religiosas, filosóficas ou morais, são percebidas a fim de entender
os laços que mantemos com os outros. Além destas duas capacidades, as pessoas têm
concepção particular sobre o bem que tentam concretizar como descrição a uma possível
terceira capacidade humana. 29
Já a concepção política de pessoa pressupõe que cidadãos livres e iguais, tendo
suas próprias concepções de bem, participem do contrato social sem que filiações
religiosas ou classe social determinem privilégios em vista da igualdade dos indivíduos.
Portanto, no nível político, as pessoas se utilizam da razoabilidade para a convivência em
sociedade, mas, isto não quer dizer que elas sejam obrigadas a abandonar as suas
convicções porque o liberalismo político permite a existência da liberdade. Esta lealdade
em relação à própria concepção de bem faz parte da personalidade do indivíduo e o Estado
não tem nada a ver com isto.30
A nível de um contrato social tão abstrato quanto o de Rousseau ou de John Locke,
Rawls formula um procedimento para a obtenção de princípios fundamentais para a
elaboração da constituição. Para as bases do acordo, seria necessário que as pessoas se
encontrassem despidas de suas identidades, logo, elas estariam sob o véu da ignorância
na posição original.
A posição original, por buscar uma concepção de justiça em um sistema de
cooperação, precisa que as variantes que propiciam as diferenças sociais estejam de fora
para o melhor desenvolvimento do acordo entre indivíduos livres e iguais. 31 A posição
original nada mais é que um procedimento de apresentação caracterizado pelo véu da
27
Rawls, J. B. A teoria da justiça como eqüidade: uma teoria política, e não metafísica. Justiça e
Democracia, Catherine Audard (org.), São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 215.
28
Idem, p. 215-216.
29
Idem, p. 216-217.
30
Idem, p. 226-227.
31
Idem, p. 219.
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ignorância. A sua função repousa na reunião das tantas concepções razoáveis formuladas
pelos cidadãos livres e iguais na democracia constitucional. 32
Quem está por trás do véu da ignorância desconhece a sua posição social e
contingências históricas de modo que a posição original propicie, nos participantes, a
responsabilidade em torno do interesse fundamental de qualquer indivíduo, ou melhor, a
posição original fornece elementos essenciais das ideias intuitivas fundamentais que
precisam de argumento em favor dos princípios de justiça aceitos após reflexão.
Também, a posição original pode ser entendida como vínculo social quando
aquiesce que as concepções razoáveis dialoguem para alcançar o mútuo acordo, porém,
o professor de filosofia política restringe as concepções de bem a razoáveis, isto é,
compatíveis com a democracia constitucional além de afastar as concepções controversas
que são as religiosas, filosóficas e metafísicas. 33 Entretanto, Rawls ressalva que as
doutrinas metafísicas sempre podem estar presentes no construtivismo político, assim,
não podem ser descartadas só por causa da sua condição, elas devem ser examinadas para
que a sua inadequação no consenso sobreposto seja argumentada.34
Tampouco a concepção política de justiça como equidade é cética porque ela
simplesmente se abstém de negar ou nega efetivamente as doutrinas compreensivas
religiosas, filosóficas ou morais. Para o autor, tal ceticismo ou indiferença poderia levar
por terra as possibilidades de consenso por colocar a filosofia política contra as doutrinas
abrangentes.35
Antes de dar seguimento ao texto, devo esclarecer a distinção entre doutrina
compreensiva, doutrina abrangente e concepção política de justiça. Existem várias
doutrinas compreensivas e elas consistem em entendimentos sobre a vida de modo global,
ou seja, são concepções sobre as relações com Deus, as virtudes políticas e morais. Assim,
as doutrinas metafísicas também são compreensivas.
A concepção política de justiça como equidade, por sua vez, é formada por
princípios derivados da sobreposição de doutrinas razoáveis. O autor frisa que o consenso
não alcança uma concepção política que engloba princípios relativos ao todo da estrutura
básica e sim princípios políticos procedimentais e fundamentais para a composição da
constituição. Desta forma, é um conjunto de ideias fundamentais implícitas na cultura
política democrática capaz de conquistar o apoio das várias doutrinas compreensivas
razoáveis. Na verdade, o consenso alcança as ideias fundamentais a serem usadas para a
elaboração da justiça como equidade 36. De todo modo, a justiça como equidade difere das
doutrinas morais, porém, pode ser acolhida por aqueles que professam diferentes morais.
32
Habermas, J.; Rawls, J. Debate sobre el liberalismo político. 1. ed. Barcelona: Ediciones Paidós,
1998, p. 84.
33
Rawls, J. B. A teoria da justiça como eqüidade: uma teoria política, e não metafísica. Justiça e
Democracia, Catherine Audard (org.). São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 223.
34
Idem, p. 225.
35
Rawls, J. B. O Liberalismo Político. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000, p. 24.
36
Idem, p. 195.
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Portanto, a concepção política de justiça não deixa de ser uma forma de concepção moral
de justiça aplicada à estrutura básica da sociedade.
Já as doutrinas abrangentes razoáveis endossam uma concepção política de justiça
própria e participam do consenso sobreposto. As doutrinas que não são razoáveis, sejam
compreensivas, sejam abrangentes, não participam do construtivismo político. Desta
forma, se as doutrinas razoáveis são concepções abrangentes que podem sustentar uma
democracia constitucional, as doutrinas abrangentes não são necessariamente contrárias
aos elementos de uma democracia constitucional. 37
Segundo Rawls, existem concepções liberais políticas de justiça que se aplicam à
estrutura social básica e podem ser tanto sustentadas pelo consenso sobreposto razoável
das doutrinas abrangentes como podem independer delas uma vez que existe a
possibilidade de serem elaboradas a partir de ideias fundamentais implícitas na cultura
política pública.
Neste sentido, verificamos que a ética mínima, em Rawls, é a concepção moral de
justiça para a estrutura básica da sociedade e as éticas de máximos são as doutrinas
compreensivas de bem. 38 Em contrapartida, o autor denomina de doutrina abrangente as
concepções de bem e de vida boa não relativas à metafísica e de doutrina compreensiva
as concepções da metafísica.
Depois de reunidas as concepções de bem na posição original, ocorre o consenso
sobreposto. Este último é uma formulação filosófica pensada para a construção
argumentativa da ética de modo que encontre um ponto de equilíbrio na sociedade a partir
da sobreposição de concepções razoáveis. O ponto de equilíbrio é o conjunto de ideias
fundamentais implícitas na cultura democrática constitucional capaz de formular a
concepção política de justiça como equidade.
A importância da sobreposição está no fato de a justiça como equidade não poder
ter somente o conteúdo de uma doutrina abrangente qualquer. Assim, a busca pelo o que
há de comum entre as doutrinas compreensivas e abrangentes permite o consenso com
base na razão além da não-exclusão daquele que não compartilha determinadas
concepções de bem. 39 O interessante deste modelo é que o seu sucesso está garantido uma
vez que a justiça como equidade não é uma concepção imposta e sim construída a partir
das convicções políticas mais íntimas dos cidadãos.
Tampouco, o consenso sobreposto é indiferente, cético ou contra a verdade. Se o
fosse, a filosofia política estaria em contrassenso a numerosas doutrinas abrangentes
levando o consenso sobreposto ao fracasso.40
37
Rawls, J. B. A idéia de razão pública revista. O Direito dos Povos. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2001, p. 232.
38
Ciotola, M. Estudo Preliminar. In: Ludmer, J. O Projeto de Ética Mundial de Hans Küng. 1 ed. Rio
de Janeiro: Multifoco, 2016, p. 16.
39
Habermas, J.; Rawls, J. Debate sobre el liberalismo político. 1. ed. Barcelona: Ediciones Paidós,
1998, p. 21.
40
Rawls, J. B. O Liberalismo Político. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000, p. 196.
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A teoria da justiça como equidade é, portanto, resultado da sobreposição de
doutrinas intuitivas capazes de garantir um regime constitucional justo, logo, é uma
concepção liberal da política, mas, ao mesmo tempo tem conteúdo ético mínimo porque
as concepções políticas ensejam ideias morais.
Conforme admite o autor, a severa abstração da posição original pode submetê-la
a mal-entendidos41 até porque a formulação teórica rawlsiana não possui conteúdo. Este
será descoberto pelo procedimento de apresentação (posição original como véu da
ignorância) e a sobreposição de concepções razoáveis.
Outro mal- entendido seria tornar a teoria da justiça um modus vivendi42 porque
as pessoas buscariam somente a sua própria vantagem em detrimento dos outros de modo
a configurar um acordo hobbesiano.43 Conforme o autor, a expressão modus vivendi é
usada para denominar tratados entre dois Estados que tenham interesses conflitantes.
Caso o interesse nacional seja relevante o suficiente para quebrar o acordo, o Estado
quebra relações com o outro sem pensar duas vezes se sua atitude o prejudicará.
Rawls ironiza em “O Liberalismo Político” ao dizer que a esperança de uma
comunidade política deve ser abandonada se a sociedade estiver unida pela aceitação de
uma única doutrina abrangente. Primeiramente, a possibilidade de pluralismo razoável é,
nesta hipótese, afastada e a pluralidade de opiniões e formas de viver também porque a
unicidade de doutrina abrangente é compatível à imposição coercitiva do Estado em
relação a uma forma de viver, suprimindo outras possibilidades de vida boa. 44
Outro conceito de teor ético mínimo é a ideia de razão pública. Ela substitui o que
seria a razão de Estado e, assim como a justiça como equidade, faz parte da sociedade
democrática constitucional por pressupor o pluralismo razoável. 45 Neste sentido, as
observações feitas para com a justiça como equidade são válidas para a razão publica
assim como o fato de não rechaçar nenhuma doutrina a não ser aquelas incompatíveis
com a democracia constitucional ou ainda a expressão política do liberalismo político
embora os princípios que a formem sejam intrinsecamente morais, etc.
A maior diferença entre a justiça como equidade e a razão pública é que, enquanto
a primeira é única, a segunda pode ser mais de uma. Ou seja, é possível que haja mais de
uma razão pública na quantidade de chances de haver diversos arranjos com as
concepções de justiça razoáveis presentes na posição original.
Afinal, a razão pública é constituída por uma família de concepções políticas de
justiça razoáveis e se destina a todos, principalmente, a funcionários do governo e
41
Rawls, J. B. A teoria da justiça como eqüidade: uma teoria política, e não metafísica. Justiça e
Democracia, Catherine Audard (org.), São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 223.
42
Rawls, J. B. O Liberalismo Político. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000, p. 193.
43
Rawls, J. B. A teoria da justiça como eqüidade: uma teoria política, e não metafísica. Justiça e
Democracia, Catherine Audard (org.), São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 235.
44
Rawls, J. B. O Liberalismo Político. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000, p. 192.
45
Rawls, J. B. A idéia de razão pública revista. O Direito dos Povos. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2001, p. 174.
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candidatos públicos além de ser aplicável a questões políticas fundamentais. Tais
questões seriam aquelas referentes à justiça por expressar razão humana e condizentes à
política pública como a decisão judicial, em especial, as decisões do Supremo e o discurso
de candidatos públicos, de chefes de campanhas e de membros do executivo e do
legislativo como o Presidente da República e parlamentares porque, no fim das contas,
não deixam de ser meros funcionários públicos.46
É cabível mencionar que o ideal de razão pública pode ser concretizado a partir
da atuação dos funcionários públicos e candidatos a cargos eletivos e da verificação dos
cidadãos quanto à satisfação do critério de reciprocidade. Os primeiros devem justificar
seus atos na concepção política que creem a mais razoável e os segundos averiguam se
os critérios decorrentes das concepções de justiça que formam a razão pública são
respeitados.47 Em outras palavras, os civis concretizam a razão pública no momento em
que questionam as decisões públicas.
Rawls propõe que este questionamento se dê da seguinte maneira: os cidadãos se
colocam no lugar dos legisladores, buscam os estatutos que melhor atendem ao critério
de reciprocidade e chegarão à conclusão que o mais razoável dentre eles será o aplicado
na situação real. Este controle é um dever moral e não jurídico já que ninguém será punido
se não acompanhar os desígnios políticos do país. Tal dever moral de verificação deixa
bem claro a relação que a cidadania tem com a razão pública. 48
A cidadania nada mais é que a forma como o cidadão dialoga com a estrutura
básica da sociedade e os seus semelhantes, tão livres e iguais como ele. Segundo o
Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, cidadão é quem aproveita direitos civis e
políticos de um Estado livre, portanto, os cidadãos devem honrar o regime democrático
constitucional para estarem em condições de exercer a cidadania.
Gostaria de lembrar que o conceito de democracia deliberativa é sinônimo de
democracia constitucional na perspectiva da razão pública. Afinal, a deliberação tem
importância para a razão pública na definição de elementos constitucionais essenciais e
questões de justiça básica. Deste modo, a deliberação é essencial para as questões política
públicas.49
Um aspecto importante para a deliberação é que os cidadãos tenham
conhecimento do que está ocorrendo na vida política pública de sua sociedade. Até
porque, se não souber dos acontecimentos políticos, não poderá fazer sua parte no dever
moral de verificação de forma a não se esforçar em concretizar o ideal de razão pública.
Rawls exemplifica a necessidade do conhecimento na situação de haver uma crise no
sistema de previdência social e, para a garantia dos votos, as pessoas não são informadas
sobre a crise e o governo aumenta o benefício mesmo que mais tarde tenha que cobrar
aumentos vertiginosos. O correto seria que o governo informasse a população antes de
46
47
48
49
Idem, p. 175-177.
Idem, p. 180.
Idem, p. 178-179.
Idem, p. 183.
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tomar qualquer atitude. Ainda que as atitudes sejam sensatas como diminuir o
crescimento dos benefícios ou elevar a idade de aposentadoria, o governo não pode
simplesmente tomar uma decisão para a manutenção do jogo político. 50 Entretanto, o que
ocorre é, estando os cidadãos informados ou não, se manifestando ou não, algo deve ser
decidido por mais relevante que o assunto seja.
Além do mais, por mais óbvio que pareça, a deliberação deve ser livre de qualquer
imposição de vantagem, seja econômica ou física, para se desenvolver na democracia
constitucional. Caso contrário, servirá aos mais ricos e mais fortes tornando a democracia
em uma ditadura.
Vale dizer que os valores políticos pressupõem forma social e política e, na razão
pública, não podem ser tratados como qualquer valor porque concretizam instituições
democráticas. Exemplo de que estes valores têm maior relevância que qualquer outro
valor é que a razão pública norteia a decisão do voto, isto é, a via mais importante de
cidadania. As pessoas são livres para pensar da forma que bem entendem e seguir a
concepção razoável de justiça que lhes convier na hora de votar. Se alguns considerarem
o resultado da votação como incorreto porque o candidato votado não ganhou, a
legitimidade da razão pública permanece inalterada e tampouco é violada porque é
internalizada por todos os cidadãos razoáveis.
O autor também escreveu notas sobre a importância da família na sociedade. Para
ele, a estrutura básica é sistema social único e faz da família parte dela como “base da
produção e reprodução ordenadas da sociedade e da sua cultura de uma geração para
outra”. Em outras palavras, é tarefa da família criar e cuidar dos filhos lhes assegurando
desenvolvimento moral e educação para a cultura mais ampla porque os cidadãos devem
conhecer os valores políticos que sustentam as instituições políticas e sociais e os
princípios de justiça para a durabilidade da sociedade política.51
A tarefa de criação da família consiste em impor restrições à forma como a
igualdade e a oportunidade podem ser alcançadas e, em contrapartida, os princípios de
justiça são formulados para tentar levar em conta estas restrições. Entretanto, para que a
razão pública se aplique à família, ela deve ser vista como objeto de justiça política.
Devo incluir uma ressalva do autor quanto às concepções de justiça. Estando
ciente de que o liberalismo político diferencia a justiça como equidade (ou concepção
política de justiça como equidade) como aplicável a estrutura básica e as outras
concepções de justiça como inseridas em diversas associações da estrutura básica, não há
separação entre domínio político e não-político como espaços estanques e governados por
regras diferentes.52 Se pudesse representar graficamente a explicação, faria duas
circunferências, uma dentro da outra: a de dentro significaria o conjunto das associações
sociais e a de fora a estrutura básica.
Assim, as regras que determinam a estrutura básica atingem as associações. Sendo
estas regras os princípios de justiça, é possível afirmar que, apesar de os princípios de
justiça não serem diretamente aplicados à vida interna de uma família, se aplicam a ela
50
Idem, p. 184.
Idem, p. 206-208.
52
Idem, p. 211
51
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enquanto instituição e impõe restrições para o alcance da liberdade, igualdade e
oportunidade. Desta forma, ao mostrar a importância da família como instituição social,
Rawls conclui que as concepções políticas de justiça alcançam domínios da vida que vão
para além do político, isto é, “os princípios de justiça são aplicados diretamente à estrutura
básica e indiretamente às associações dentro dela” uma vez que a unicidade do sistema
social (a estrutura básica) influencia o resto da sociedade. 53
Algo a acrescentar é que, quando se fala em família, se fala em todo tipo de
família. Logo, pode-se dizer que a justiça como equidade lida com os direitos e deveres
dos homossexuais. Também, o autor afirma que a família, por produzir divisão social do
trabalho baseada no gênero, é a parte da estrutura básica em que se verifica se há
igualdade de gênero na sociedade.54
É importante entender a reserva de Rawls sobre a razão pública no que tange a sua
função. Ela não consiste em uma concepção sobre instituições e programas políticos
específicos, logo, não soluciona questões políticas de forma antecipada. No entanto,
alguns podem entendê-la como restritiva porque, diante de um impasse, pode inibir
decisões sobre questões controvertidas. Quando há impasse, os argumentos jurídicos
parecem estar equilibrados em ambos os lados, porém, ele não pode ser solucionado pelo
acesso às concepções abrangentes individuais se não violará o princípio da reciprocidade.
Portanto, se o correto é que os cidadãos raciocinem pela razão pública e sejam guiados
pelo critério de reciprocidade, eles devem escolher os valores políticos que pensam ser os
mais razoáveis. 55
Desta forma, em relação às questões de difícil elucidação, é possível que, por
exemplo, o direito ao aborto seja considerado como pertencente da lei legítima e esteja
em conformidade com instituições políticas legítimas e com a razão pública. Porém,
aqueles que são contra o aborto, ainda que possam manifestar a sua opinião, não podem
impor à força a sua concepção abrangente. Assim, mesmo que os cidadãos não cheguem
a um acordo, quando os argumentos de um debate seguem a razão pública, a cultura
política é instruída e a compreensão mútua é aprofundada. 56
Decerto, é incorreto afirmar que a razão pública é desnecessária para uma
democracia constitucional bem ordenada ainda que seja capaz de limitar a atuação de
grupos religiosos ou seculares (não-religiosos) hostis que tentam deter o poder político
de uma sociedade. Segundo Rawls, se alguém diz que, nas sociedades europeias e a norteamericana, a razão pública é desnecessária porque não há divisões religiosas profundas,
o autor replica que os cidadãos realizam a razão pública não importando se há ou não
profundas divisões religiosas. Portanto, se uma sociedade é profundamente dividida por
grupos religiosos que tentam tomar o poder, significa que as pessoas não buscam agir
conforme a razão pública. Além do mais, a harmonia, a concórdia entre doutrinas e a
afirmação da razão pública dependem da vitalidade da cultura política pública. 57
53
Idem, p. 211-212.
Idem, p. 213.
55
Idem, p. 218-220.
56
Idem, p. 221-223.
57
Idem, p. 228.
54
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No final do artigo “A idéia de razão pública revista”, Rawls explica o que seria
razão pública em “Uma teoria da justiça” e em “O Liberalismo Político”. No primeiro, a
ideia de contrato social é trazida juntamente com o entendimento de justiça como base
moral da sociedade democrática. Esta base moral é resumida na justiça como equidade a
qual é representada como doutrina liberal abrangente reconhecida por todos os membros
da sociedade bem ordenada. Ainda que o liberalismo político considere a sociedade bem
ordenada como impossível pelo fato de contradizer o pluralismo razoável, a razão pública
detém lugar também como uma doutrina liberal abrangente, porém, como já foi
mencionado, ela pode ser mais de uma.58
Já, no segundo, a razão pública aparece como uma forma de raciocinar valores
políticos compartilhados por cidadãos livres e iguais dentro de um contexto de pluralismo
razoável. Na verdade, para o liberalismo, quando se fala em pluralismo razoável, se pensa
na possibilidade de pessoas que acreditam em diferentes e, até mesmo, em divergentes
doutrinas abrangentes possam conviver com uma única concepção política razoável de
justiça que sustenta a sociedade democrática constitucional. 59
Conclusão
Enquanto, na filosofia política, as pessoas são vistas de forma padronizada para
que seja possível pensar na hipótese de todos aceitarem as mesmas razões, no liberalismo
político, as doutrinas teológicas ou seculares e as concepções naturais ou psicológicas são
deixadas de lado na construção de princípios-base para as instituições da estrutura básica.
Ainda assim, é primordial, para o liberalismo político, que os cidadãos, os quais são livres
e iguais, afirmem uma doutrina abrangente e uma concepção política ao mesmo tempo.
Desta forma, considerando que muitas pessoas de uma mesma sociedade nem
sempre carregam os preceitos da mesma cultura ou professam as mesmas doutrinas, para
a manutenção da cooperação e da dignidade humana, é preciso que haja tolerância.
Porém, tal atitude deduz que exista um mínimo denominador comum entre as pessoas na
sociedade.
Afinal, a sociedade política sempre é considerada como um esquema de
cooperação social que se perpetua ao longo do tempo e este sistema deve ser mantido a
partir da existência de um vínculo caso contrário nem haveria sociedade.
O que é primordial para entender no autor é que a sociedade não existe se não
existirem sócios, isto é, se não existir cooperação entre os cidadãos. Ademais, os diversos
conceitos por ele criados servem para segmentar o funcionamento do seu método e
intensificar a importância da própria cooperação.
A meu ver, Rawls não tem a necessidade de diferenciar doutrinas compreensivas
de abrangentes e ainda razoáveis de irrazoáveis. A primeira distinção confunde um pouco
porque bastava dizer que são doutrinas radicais ou de máximos. Também, apesar de
ressalvar a importância de não afastar as doutrinas compreensivas devido à sua condição
de concepção metafísica, filosófica ou religiosa, acaba como alvo de críticas como a de
58
59
Idem, p. 243.
Idem, p. 234-235.
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Hans Küng o qual pensa o seu método como pouco eficaz justamente por rechaçar as
religiões do consenso. Rawls ainda assume que ideias de doutrinas compreensivas são
inevitáveis, mas esta ressalva denunciaria dúvidas do autor quanto ao funcionamento do
método.
Em relação à segunda distinção, não vejo necessidade para tanto porque se todas
as doutrinas estivessem misturadas para observar o que há de comum entre elas, de
imediato, os entendimentos desarrazoados estariam de fora. Por exemplo, se uma doutrina
prega a tortura aos corruptos, outra doutrina que crê na integridade física não terá este
ponto em comum com aquela. Se o mínimo corresponde àquilo que há de comum,
acredito que tais distinções sejam desnecessárias, no entanto, entendo que o autor buscava
enfatizar que existem doutrinas irrazoáveis capazes de colocar a ordem constitucional
democrática em risco.
De todo modo, me parece que o modelo de Adela Cortina, apesar de mais simples,
é mais coerente ou pelo menos mais fácil de entender que o de Rawls. Basicamente,
existem éticas de máximos que podem ser tanto concepções radicais políticas ou de vida
boa como concepções religiosas ou metafísicas. A ética de mínimos é única,
compartilhada por todos e constitui dado da realidade, isto é, as éticas de máximos já
existem na sociedade e a ética de mínimos também, porém, lhe faltaria ser definida.
Referências Bibliográficas
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Küng. 1. ed. Rio de Janeiro: Multifoco, 2016.
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Ed. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2010.
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pensamento de John Rawls. Revista Juiris Poiesis/ UNESA. Rio de janeiro, v. 17, n. 17,
jan./ dez. 2014.
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teoria da igualdade complexa e a teoria da justiça como imparcialidade. Rio de
Janeiro, 2005. Doutorado – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro.
5 – Cortina, A. Ética civil e religião. São Paulo: Paulinas, 1996.
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Ediciones Paidós, 1998.
7 - Ludmer, J. O Projeto de Ética Mundial de Hans Küng. 1. ed. Rio de Janeiro:
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8 - Maia, A. C. Jürgen Habermas: filósofo do direito. 1. ed. Rio de Janeiro: Renovar,
2008.
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9 – Rawls, J. B. A idéia de razão pública revista. O Direito dos Povos. 1. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2001.
10 – Rawls, J. B. A teoria da justiça como eqüidade: uma teoria política, e não metafísica.
Justiça e Democracia, Catherine Audard (org.), São Paulo: Martins Fontes, 2000.
11 – Rawls, J. B. O Liberalismo Político. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000.
12 - Silva, R. P. M. da. Teoria da Justiça de John Rawls. Revista de Informação
Legislativa, a. 35, n. 138, abr./jun.1998.
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