dissertação luciana versão final

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO, EXTENSÃO E CULTURA
CENTRO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR DE CIÊNCIAS JURÍDICAS, POLÍTICAS E SOCIAIS
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM CIÊNCIA JURÍDICA – CPCJ
PROGRAMA DE MESTRADO ACADÊMICO EM CIÊNCIA JURÍDICA - PMCJ
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: FUNDAMENTOS DO DIREITO POSITIVO
A ATUAL REGULAMENTAÇÃO DO DIREITO SUCESSÓRIO
DECORRENTE DA UNIÃO ESTÁVEL NO BRASIL À LUZ DA
HERMENÊUTICA CONSTIT UCIONAL: UMA PROPOSTA
POLÍTICO-JURÍDICA
LUCIANA DE CARVALHO PAULO COELHO
Itajaí [SC], dezembro de 2005
UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO, EXTENSÃO E CULTURA
CENTRO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR DE CIÊNCIAS JURÍDICAS, POLÍTICAS E SOCIAIS
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM CIÊNCIA JURÍDICA – CPCJ
PROGRAMA DE MESTRADO ACADÊMICO EM CIÊNCIA JURÍDICA - PMCJ
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: FUNDAMENTOS DO DIREITO POSITIVO
A ATUAL REGULAMENTAÇÃO DO DIREITO SUCESSÓRIO
DECORRENTE DA UNIÃO ESTÁVEL NO BRASIL À LUZ DA
HERMENÊUTICA CONSTIT UCIONAL: UMA PROPOSTA POLÍTICO
JURÍDICA
LUCIANA DE CARVALHO PAULO COELHO
Dissertação submetida à
Universidade do Vale do Itajaí –
UNIVALI como requisito final à
obtenção do título de Mestre em
Ciência Jurídica.
Orientador: Professor Doutor Osvaldo Ferreira de Melo
Co-orientadora: Professora Doutora Maria Fernanda Girardi Gugelmim
Itajaí [SC], dezembro de 2005.
MEUS AGRADECIMENTOS:
À Deus, por orientar o meu caminhar
e direcionar o meu viver.
Ao Professor Doutor Osvaldo Ferreira de Melo,
meus sinceros agradecimentos pela
honrosa orientação neste trabalho.
À professora Maria Fernanda Girardi Gugelmin,
pela amizade e pelos conhecimentos de Direito de
Família
e Sucessões compartilhados com imensa
sabedoria
e pela gentileza de co-orientar este trabalho.
À professora Cláudia Rosane Roesler,
pelo incentivo à realização de pesquisas
científicas
que influenciaram grandemente no meu
desenvolvimento acadêmico.
Ao professor Clóvis Demarchi,
Pelo carinho e pela gentileza em realizar a
revisão metodológica do presente trabalho.
À professora Andréa Morgado Dietrich,
por termos trilhado esta etapa acadêmica juntas
e pela sua contribuição para a realização deste
trabalho
através da sua amizade e de ensinamentos
compartilhados.
Aos professores, Osmar Dinis Facchini,
José Carlos Machado
e Antônio Augusto Lapa, pelo incentivo a
realização do mestrado
e pela oportunidade do meu ingresso no
magistério acadêmico
DEDICO ESTE TRABALHO:
Aos meus pais, Maurílio e Dulcenéia,
por tudo o que me ensinaram,
pelas lições de vida,
e, sobretudo, por terem sempre
apoiado meus projetos
e confiado no meu potencial.
Ao meu marido Rodrigo, e ao meu filho Samuel
pelo amor, pela compreensão nos momentos de
ausência,
e por toda alegria que trazem à minha vida.
Aos meus irmãos Rodrigo e Patrícia
companheiros diários,
pela paciência e amizade.
DECLARAÇÃO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total
responsabilidade pelo aporte ideológico conferido ao presente trabalho, isentando
a Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, a Coordenação do Curso de PósGraduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica [CPCJ/UNIVALI], a Banca
Examinadora e o Orientador de toda e qualquer responsabilidade acerca do
mesmo.
Itajaí [SC], dezembro de 2005.
Luciana de Carvalho Paulo Coelho
Mestranda
ROL DE CATEGORIAS
Casamento: “é o vínculo jurídico entre o homem e a mulher, livres, que se unem,
segundo as formalidades legais, para obter o auxílio mútuo material e espiritual,
de modo que haja uma integração fisiopsíquica e a constituição de uma família”. 1
Companheiro2: é a pessoa que vive com outra em União Estável.
Direitos Sucessórios: são os direitos decorrentes da abertura de uma sucessão.
Entidade Familiar: é a denominação utilizada pela Constituição Federal de 1988
para designar a família oriunda do casamento, da união estável e daquela
composta por um dos progenitores e sua descendência.
Família: “toda forma de agregação de pessoas num núcleo doméstico, regido
pelo amor e pelo respeito mútuos”. 3
Hermenêutica Constitucional: “técnica jurídica voltada para a elaboração de
regras para a compreensão do conteúdo e do significado das normas
constitucionais [...]”. 4
Política Jurídica: disciplina que prioriza, em sua dimensão prática, “[...] alcançar
a norma que responda tão bem quanto possível as necessidades gerais,
garantindo o bem estar social pelo justo, pelo verdadeiro e pelo útil, sem descurar
da necessária segurança jurídica e sem por em risco o Estado de Direito”.
5[5]
1
DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. 2 ed., São Paulo: Saraiva, 1996. p. 195.
2
Será utilizado como sinônimo de Convivente, podendo ser utilizadas ambas as categorias
indistintamente.
3
DAL COL, Helder Martinez. A família à luz do concubinato e da união estável . Rio de Janeiro:
Forense, 2002, p. 37.
4
DINIZ, Márcio Augusto de Vasconcelos. Constituição e hermenêutica constitucional. 2 ed. Belo
Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 230.
5[
MELO, Osvaldo Ferreira. Temas atuais de política do direito. Porto Alegre: Sérgio Antônio
Fabris, 1998, p. 80.
Princípio da Dignidade da Pessoa Humana: “[...] o princípio da dignidade da
pessoa humana constitui a base, o alicerce, o fundamento da República e do
Estado Democrático de Direito por ela instituído. A fórmula adotada implica, em
linhas gerais, que a Constituição brasileira transformou a dignidade da pessoa
humana em valor supremo da ordem jurídica política por ela instituída”. 6
Sucessão: é “a transferência da herança, ou do legado, por morte de alguém, ao
herdeiro ou legatário, seja por força de lei, ou em virtude de testamento.” 7]
União Estável: “célula familiar prevista na Constituição Federal, resultante da
união de homem e mulher sem casamento.” 8
6
MARTINS, Flademir Jerônimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional
fundamental. Curitiba: Juruá, 2003, p. 63.
7
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: direito das sucessões. V. 6, São
Paulo: Saraiva, 1998. p. 7.
8
DAL COL, Helder Martinez. A família à luz do concubinato e da união estável, p. 47.
SUMÁRIO
RESUMO.................................................................................................XI
ABSTRACT ...........................................................................................XII
INTRODUÇÃO.........................................................................................1
CAPÍTULO 1............................................................................................5
HERMENÊUTICA CONSTIT UCIONAL: PRINCÍPIOS, GARANTIAS E
DIREITO...................................................................................................5
1.1 A HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL ................................................................5
1.1.1 CONCEITO.....................................................................................................................5
1.1.2 EVOLUÇÃO ...................................................................................................................7
1.1.3 PRINCÍPIOS HERMENÊUTICOS................................................................................... 12
1.1.3.1 Princípio da supremacia da Constituição .................................................. 12
1.1.3.2 Princípio da unidade da Constituição......................................................... 13
1.1.3.3 Princípio da interpretação conforme a Constituição .............................. 15
1.2 PRINCÍPIOS E REGRAS ......................................................................................... 16
1.3 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O DIREITO
FUNDAMENTAL À HERANÇA..................................................................................... 18
1.4 A GARANTIA INSTITUCIONAL DE ESPECIAL PROTEÇÃO À FAMÍLIA.... 25
1.5 A PROTEÇÃO À UNIÃO ESTÁVEL COMO FORMA DE CONSTITUIÇÃO DE
FAMÍLIA ............................................................................................................................ 29
1.5.1 O DIREITO COMO UM FENÔMENO SOCIAL................................................................. 29
1.5.2 A EVOLUÇÃO DOUTRINÁRIA, JURISPRUDENCIAL E LEGISLATIVA QUE ANTECEDEU A
RECEPÇÃO DA U NIÃO ESTÁVEL NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988........................... 31
1.5.3 A TUTELA DA UNIÃO ESTÁVEL NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988................... 36
CAPÍTULO 2..........................................................................................40
DIREITOS SUCESSÓRIOS DECORRENTES UNIÃO ESTÁVEL.....40
2.1 A REGULAMENTAÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL PELA LEGISLAÇÃO
INFRACONSTITUCIONAL APÓS A SUA PROTEÇÃO PELA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL DE 1988......................................................................................................... 40
2.2 OS DIREITOS SUCESSÓRIOS DOS COMPANHEIROS ANTES DA
REGULAMENTAÇÃO
DA
UNIÃO
ESTÁVEL
PELAS
LEIS
INFRACONSTITUCIONAIS ........................................................................................... 42
2.3 O CONCEITO DE UNIÃO ESTÁVEL NA LEI 8.971/94 E SUA PREVISÃO
REFERENTE AO DIREITO SUCESSÓRIO ................................................................ 44
2.3.1 DO USUFRUTO LEGAL .............................................................................................. 45
2.3.2 DO DIREITO DE PROPRIEDADE À HERANÇA ............................................................. 48
2.4 O CONCEITO DE UNIÃO ESTÁVEL NA LEI 9.278/96 E SUA PREVISÃO
REFERENTE AO DIREITO SUCESSÓRIO ................................................................ 52
2.5 RECEPÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL PELO ATUAL CÓDIGO CIVIL
BRASILEIRO E A SUA PREVISÃO DOS DIREITOS SUCESSÓRIOS................. 58
2.5.1 DO DIREITO DE PROPRIEDADE À HERANÇA ............................................................. 64
2.5.2 DO DIREITO AO USUFRUTO LEGAL .......................................................................... 70
2.5.3 DO DIREITO REAL DE HABITAÇÃO ........................................................................... 70
CAPÍTULO 3..........................................................................................72
OS DIREITO SUCESSÓRIO DOS COMPANHEIROS À LUZ DA
HERMENÊUTICA CONSTIT UCIONAL: UMA PROPOSTA POLÍTICO
JURÍDICA ..............................................................................................72
3.1 A POSSIBILIDADE DA OCORRÊNCIA DE UM RETROCESSO NOS
DIREITOS SUCESSÓRIOS GARANTIDOS AOS COMPANHEIROS EM
VIRTUDE
DAS
ALTERAÇÕES
OCASIONADAS
PELA
MUDANÇA
LEGISLATIVA .................................................................................................................. 72
3.2 O RETROCESSO NOS DIREITOS SUCESSÓRIOS DOS COMPANHEIROS
EM COLISÃO COM O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA..... 78
3.3 O RETROCESSO NOS DIREITOS SUCESSÓRIOS DOS COMPANHEIROS
EM COLISÃO COM AS GARANTIAS INSTITUCIONAIS DE PROTEÇÃO À
FAMÍLIA E A UNIÃO ESTÁVEL................................................................................... 85
3.4 UMA PROPOSTA LEGISLATIVA À LUZ DA POLÍTICA JURÍDICA .............. 89
3.4.1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES SOBRE A POLÍTICA JURÍDICA ............................. 90
3.4.2 A APLICAÇÃO DA POLÍTICA JURÍDICA NA LEGISLAÇÃO REFERENTE AOS DIREITOS
SUCESSÓRIOS DOS COMPANHEIROS ................................................................................. 95
3.4.2.1 Supressão do artigo 1.790 do Código Civil............................................... 97
3.4.2.2 Alteração do art. 1.831 do Código Civil ...................................................... 99
3.4.2.3 Alteração do art. 1.832 do Código Civil ....................................................100
3.4.2.4 Alteração do caput do art. 1.836 do Código Civil ..................................101
3.4.2.5 Alteração do art. 1.838 do Código Civil ....................................................101
3.4.2.6 Alteração do art. 1.839 do Código Civil ....................................................102
3.4.2.7 Alteração do art. 1.845 do Código Civil ....................................................102
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................104
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................107
RESUMO
O presente trabalho apresenta um estudo sobre
a Hermenêutica Constitucional em sua concepção atual, procurando demonstrar a
necessidade de toda a ordem jurídica ser lida à luz dos preceitos e princípios
constitucionais, especialmente do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Na
seqüência tratou-se, especificamente, das alterações ocorridas na legislação
referente aos Direitos Sucessórios dos Companheiros, desde a proteção da União
Estável pela Constituição Federal de 1988, a regulamentação destes direitos pela
legislação infraconstitucional, até chegar-se à atual previsão do Código Civil.
Verificou-se que as modificações sofridas pelos Direitos Sucessórios dos
Companheiros, culminando com a regulamentação pelo Código Civil, representou
um retrocesso nestes direitos e a conseqüente violação à garantia constitucional
de especial proteção à Família, bem como ao Princípio da Dignidade da Pessoa
Humana. Demonstrada a impropriedade legislativa no trato dispensado à matéria,
realizou-se uma análise da legislação que regulamenta os Direitos Sucessórios
decorrentes da União Estável, à luz da Política jurídica, concluindo-se pela
necessidade de se elaborar propostas legislativas acerca do tema.
xii
ABSTRACT
The present paper presents a study about the
Constitutional hermeneutic in an actual conception, looking forward to
demonstrate the necessity of all juridical order to be read by the light of
constitutional
precept
and
principle,
especially
the
Principle
of
Dignity of the Human Beings/Person. In the sequence it handles,
specifically, the alterations that happen in the legislation referring
to the "Partners Successor Rights", since the protection of the
Stable Union by the 1988 Federal Constitution, a regulation of those
rights
by
the
infraconstitucional
legislation,
until
reach
to
the
actual
prevision
of
the
Civil
code.It
was
verified
that
the
alterations
suffered
by
the
"Partners
Successor
Rights",
culminating with the regulation by the Civil Code, represented a
retrogression
in
those
rights
and
the
consequent
violation of the special constitutional guaranty/bail to a Family
Protection, as like the "Principle of Dignity of the Human Being"
Once demonstrated the legislative impropriety about the handling of the subject, it
was realized an analyses of the legislation that regulate the "Successors Rights"
due
to
the
Stable
Union,
by
the
light
of
the
Juridical
politics,
concluding
the
necessity
to
create
legislative
proposals
around the subject.
INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho é realizar um estudo sobre as
alterações ocorridas na legislação que regulamenta os Direitos Sucessórios dos
Companheiros, principalmente em decorrência da atual previsão destes direitos
pelo
novo
Código
Civil.
Foram
considerados
aspectos
importantes
da
Hermenêutica Constitucional para verificar a possível ocorrência de uma violação
a garantias e princípios constitucionais, especialmente ao Princípio da Dignidade
da Pessoa Humana.
O estudo deste tema é de extrema relevância, tanto em
virtude da grande incidência prática da União Estável, quanto pelo destaque
atribuído à Hermenêutica Constitucional em sua concepção atual, com ênfase aos
princípios constitucionais que devem fundamentar toda a ordem jurídica,
principalmente a Dignidade Humana, princípio que tem sido considerado como
valor supremo e fundamento de todo o Estado Constitucional de Direito.
O tema justifica a realização de uma pesquisa também pela
necessidade de análise da legislação que disciplina os Direitos Sucessórios
decorrentes da União Estável para viabilizar um aperfeiçoamento dessa matéria.
No estudo foram observadas as seguintes hipóteses:
a) A concepção atual da Hermenêutica Constitucional
parece buscar uma nova perspectiva do Direito, com ênfase à supremacia e
normatividade da Constituição, bem como aos princípios e garantias nela
previstos.
b) O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana parece ser
uma das fontes de valor do sistema constitucional brasileiro, conferindo-lhe
unidade axiológica e servindo de parâmetro para a harmonização de todo o
sistema jurídico.
2
c) Ao disciplinar os Direitos Sucessórios decorrentes da
União estável, o atual Código Civil Brasileiro parece ter alterado os benefícios
anteriormente concedidos pelas Leis 8.971/94 e 9.278/96.
d) As modificações ocorridas nos Direitos Sucessórios dos
Companheiros, com a supressão de direitos anteriormente conquistados por
estes, pode ter violado o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e a garantia
institucional de especial proteção à Família.
Esta pesquisa tem como objetivo institucional, produzir uma
Dissertação para obtenção do Título de Mestre em Ciência Jurídica, no Curso de
Pós-Graduação stricto sensu em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do
Itajaí - UNIVALI. O objetivo geral é a investigação da Hermenêutica Constitucional
frente à atual regulamentação dos Direitos Sucessórios decorrentes da União
Estável no Brasil
Para alcançar as metas investigatórias acima estabelecidas
foram
traçados
destacados
da
os
seguintes
Hermenêutica
objetivos
específicos:
Constitucional,
com
descrever
ênfase
às
aspectos
garantias
institucionais de especial proteção à Família e ao Princípio da Dignidade da
Pessoa Humana; analisar as modificações sofridas pela legislação que
regulamenta os Direitos Sucessórios dos Companheiros; verificar a possibilidade
da ocorrência de um retrocesso nestes direitos, principalmente em virtude da
atual previsão do Código Civil, bem como a possível violação de garantias
institucionais e do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana; avaliar a
necessidade de uma proposta legislativa à luz da Política Jurídica.
O caminho percorrido para se alcançar os objetivos
propostos e realizar a investigação do objeto delimitado foi o método indutivo, e a
base lógica para o relatório será a indutiva.
Foram acionadas as técnicas do referente, da categoria, dos
conceitos operacionais, da pesquisa bibliográfica e do fichamento.
Para facilitar o desenvolvimento da pesquisa e aumentar a
organização e coerência lógica do relato, o relatório final, que compreende esta
3
dissertação, foi estruturado em três capítulos, cada qual com aproximadamente
trinta páginas, objetivando-se conferir harmonia estrutural ao trabalho.
O primeiro capítulo trata da Hermenêutica Constitucional,
com a abordagem dos seus aspectos fundamentais que contribuem diretamente
para a realização da pesquisa. Inicialmente, analisa-se o conceito, a evolução e
os princípios da Hermenêutica Constitucional. Na seqüência aborda-se,
especificamente, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana em virtude da sua
importância para toda a ordem jurídica, política e social e o seu desdobramento
através da concretização dos direitos fundamentais, enfatizando-se a sua
influência no direito de Família. Realiza-se, ainda, um estudo acerca das
garantias institucionais de especial proteção à Família e à União Estável.
No segundo capítulo faz-se uma abordagem sobre a
legislação referente aos Direitos Sucessórios decorrentes da União Estável. Para
cumprir o objetivo, analisa-se a proteção da União Estável pela Constituição
federal de 1988 e a sua posterior regulamentação pelas Leis 8.971/94 e 9.278/96,
especialmente no que se refere à previsão dos Direitos Sucessórios. Finaliza-se
este capítulo com a análise da atual previsão dos Direitos Sucessórios dos
Companheiros pelo Código Civil.
O terceiro capítulo reserva-se a aplicar o estudo realizado no
primeiro capítulo, acerca da Hermenêutica Constitucional, ao conteúdo dos
Direitos Sucessórios dos Companheiros analisado no segundo capítulo. Neste
contexto, objetiva -se inferir se as alterações ocorridas na legislação dos Direitos
Sucessórios decorrentes da União Estável representam um retrocesso nestes
direitos, bem como verificar a possível violação ao Princípio da Dignidade da
Pessoa Humana e da Garantia Institucional de especial proteção à Família. Após
este estudo, o resultado obtido é submetido a uma análise à luz da Política
Jurídica.
Nas considerações finais objetivou-se apresentar uma
síntese dos resultados obtidos com a investigação, verificando o cumprimento dos
objetivos propostos no início da pesquisa.
4
Cumpre registrar que o presente trabalho não possui o
propósito de oferecer respostas ou soluções definitivas sobre o tema abordado,
mas contribuir para o aperfeiçoamento das questões suscitadas, bem como o de
estimular discussão e reflexão acerca de conteúdo tão relevante para o mundo
jurídico, visando assim buscar a realização da Justiça, compromisso maior de
todo operador jurídico.
5
CAPÍTULO 1
HERMENÊUTICA CONSTIT UCIONAL: PRINCÍPIOS, GARANTIAS E
DIREITO
1.1 A HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL
1.1.1 Conceito
Inicialmente
é
importante
destacar
o
conceito
de
Hermenêutica Jurídica em seu sentido amplo.
Nesta perspectiva, o conceito de grande aceitação na
doutrina é trazido por MAXIMILIANO, segundo o qual “a Hermenêutica Jurídica
tem por objeto o estudo e a sistematização dos processos aplicáveis para
determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito”. 9
Ao explicar o conceito supra referido o autor destaca que:
As leis positivas são formuladas em termos gerais; fixam regras,
consolidam princípios, estabelecem normas, em linguagem clara
e precisa, porém ampla, sem descer a minúcias. È tarefa
primordial do executor a pesquisa da relação entre o texto
abstrato e o caso concreto, entre a norma jurídica e o fato social,
isto é, aplicar o Direito. Para o conseguir, se faz mister um
trabalho preliminar: descobrir e fixar o sentido verdadeiro da regra
positiva; e, logo depois, o respectivo alcance, a sua extensão”. 10
9
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 19 ed. Rio de Janeiro: Forense,
2004, p. 1.
10
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito, p. 1.
6
Cumpre ressaltar que na presente pesquisa adotar-se-á o
significado de Hermenêutica como vocábulo que se diferencia de interpretação.
Isto porque se entende como interpretação a aplicação da Hermenêutica, sendo a
interpretação responsável por determinar o sentido e o alcance das expressões
do Direito, ao passo que a Hermenêutica representa a teoria científica da arte de
interpretar, descobrindo e fixando os princípios que devem reger a interpretação.11
MELO ressalta um importante aspecto do fenômeno
hermenêutico ao assinalar que para este ser completo “[...] precisa ser estudado
como aplicação da norma ao fato, ou melhor, do fato à norma, pois o fato precede
à norma”.12
Assim, infere-se que a Hermenêutica está relacionada aos
fatos concretos, devendo ser analisada conjuntamente com a realidade social em
que é aplicada.
Especificamente, a Hermenêutica Constitucional, objeto de
análise desta pesquisa, representa a
[...] técnica jurídica voltada à elaboração de regras para a
compreensão do conteúdo e do significado das normas
constitucionais [...]. Assim sendo, a sua atividade, porque
hermenêutica, é um modo de pensar pragmaticamente a
realidade, dirigida a formulação de [...] regras com fundamento
nas quais ele interpretará as normas jurídicas em que se baseará
para fornecer a solução do problema concreto que a ele se
coloca.13
Assim, este conceito, no qual Hermenêutica Constitucional
difere da categoria interpretação, por ser aquela responsável por determinar as
regras em que esta se fundamenta, será adotado no decorrer do presente
trabalho.
11
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito, p. 1.
12
MELO, Orlando Ferreira de. Hermenêutica jurídica: uma reflexão sobre novos posicionamentos.
Itajaí: Univali, 2001, p. 18.
13
DINIZ, Márcio Augusto de Vasconcelos. Constituição e hermenêutica constitucional. 2 ed. Belo
Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 230.
7
1.1.2 Evolução
À época da concretização do Código Civil de 1916,
influenciado por Napoleão Bonaparte na França, prevalecia a crença de que o
Código era a projeção escrita e completa do sistema de regras jurídicas racionais
do Direito Natural, motivo pelo qual se atribuiu ao Código as características antes
imputadas ao Direito Natural Racional. Neste contexto, a lei era considerada
completa e o seu sentido correto seria o literal. A partir desta perspectiva, nascia
a Teoria da Plenitude da Lei, limitando-se à interpretação das normas ao plano
gramatical. 14
Esta forma de interpretação e aplicação do direito era
defendida pela Escola da Exegese, sendo que “o sistema interpretativo por ela
proposto era designado de sistema dogmático”. 15
MELO assinala que a orientação dogmática é legalista por
colocar a lei em primeiro plano e realizar uma interpretação apenas do seu texto
escrito.16
Em
decorrência
desta
característica,
neste
sistema
considerava -se o juiz como mero aplicador da lei, o qual poderia realizar somente
a sua interpretação gramatical, a fim de não modificar a vontade do legislador.
Desta forma, no sistema dogmático, verifica-se uma ênfase
ao sentido estrito da lei, evidenciando-se a primazia e relevância atribuída ao
texto literal da norma.
Ao abordar a evolução experimentada, MAGALHÃES
FILHO destaca que:
14
MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da constituição. 2 ed.
Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 49.
15
MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da constituição, p.
50.
16
MELO, Orlando Ferreira de. Hermenêutica jurídica: uma reflexão sobre novos posicionamentos,
p. 35.
8
O processo de industrialização veio a invalidar as premissas da
Escola da Exegese, porquanto alterou sensivelmente as relações
sócio-econômicas, contribuindo para evidenciar o descompasso
entre o Código e a nova realidade. Isso motivou o surgimento da
Escola Histórico-Evolutiva [...]”. 17
A Escola Histórica na Alemanha teve Gustavo Hugo como
seu precursor e Savigny como seu grande expoente. Savigny era contrário aos
princípios da Escola da Exegese, pois não acreditava que a codificação do Direito
pudesse contribuir de forma decisiva para a unificação da Alemanha.
Ao contrário,
Savigny se opunha à idéia de um Direito Natural Universal, sendo
favorável a um direito para cada nação, proveniente do espírito
do povo. O costume era priorizado como manifestação imediata
do espírito do povo, tendo em vista sua evolução espontânea.
Para Savigny, a codificação petrificaria o Direito, e qualquer
legislação existente só seria válida se estivesse de acordo com o
costume.18
Concernente a sua contribuição para a Hermenêutica,
destaca-se que Savigny admitia as interpretações gramatical, lógica, sistemática e
histórica, sendo que tinha a pretensão de introduzir o método hermenêutico na
dogmática jurídica, de forma a elevar o Direito à categoria de ciência.19
Assinala MAGALHÃES FILHO que “posteriormente, surgiu a
Jurisprudência dos Conceitos (Puchta) e o Pandcetismo (Windscheid) na
Alemanha, bem como a Escola Analítica Inglesa (Austin), todas adotando
17
MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da constituição, p.
50.
18
MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da constituição, p.
51.
19
MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da constituição, p.
51.
9
métodos lógico formais e, assim, revelando-se semelhante a Escola da
Exegese”. 20
Em decorrência das orientações teóricas anteriormente
mencionadas, prevalecia a noção de Estado de Direito como aquele no qual há o
governo de leis.
LEAL registra que neste sistema o direito acaba sendo
imposto à sociedade sob a forma de lei, cuja discussão de conteúdo não existe e
a lei se torna a representação da expressão da normatividade de uma dominação
exercida pela classe que se considera elite.21
Esta forma de Estado, conhecido como Estado legalista, é
caracterizado pelo culto à lei e assentado na idéia de que os preceitos legais
sempre protegeriam as liberdades e os direitos fundamentais da pessoa
humana 22, ainda que, na prática, isto nem sempre correspondesse à realidade.
Contudo, este Estado legalista com predomínio do texto
estrito da lei, paulatinamente, cedeu lugar ao Estado Democrático de Direito,
também chamado de Estado Constitucionalista ou Estado Novo, no qual há uma
ênfase à Constituição e ao reconhecimento da existência e da importância dos
princípios.
O Estado Constitucionalista caracteriza-se pelo culto à
Constituição, enfatizando o princípio da constitucionalidade e o reconhecimento
da normatividade dos princípios que consagram direitos fundamentais, sendo que
estes preceitos supremos não são entendidos simplesmente como formas de
20
MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da constituição, p.
63.
21
LEAL, Rogério Gesta. Hermenêutica e direito: considerações sobre a teoria do direito e os
operadores jurídicos. 2 ed., Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 1999, p. 95.
22
MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da constituição, p.
64.
10
conselhos ou diretrizes ao legislador, mas, principalmente, como normas
vinculantes. 23
Esta
nova
visão,
em
consonância
com
o
Estado
Contemporâneo, tornou a Hermenêutica tradicional ultrapassada, uma vez que se
destinava a uma outra realidade, surgindo, então, a necessidade de uma nova
Hermenêutica.
Para BONAVIDES, a busca de uma moderna interpretação
da Constituição resulta de um certo inconformismo dos juristas com o positivismo
lógico-formal que prevalecia até então.24
Esta perspectiva silogística tradicional de interpretar o
Direito, passou a revelar-se debilitada em virtude da estrutura principiológica das
normas constitucionais contemporâneas destinarem-se mais à garantia de
determinados valores fundamentais do que apenas a disciplinar condutas
diretamente através de mera subsunção.25
Principalmente,
considerando-se
que
os
modelos
tradicionais de Hermenêutica existentes até então, surgiram para a interpretação
de normas com estrutura de regras e, em especial, para interpretar normas de
Direito Privado, entretanto, em virtude da ênfase social que o Direito tem
recebido, voltada à Constituição, cujas normas são estruturadas sob a forma de
princípios, tornou-se necessária uma nova metodologia.
Este contexto desencadeou a busca do sentido mais
profundo da Constituição como um verdadeiro instrumento responsável por
estabelecer a necessária adequação do Direito com a sociedade.26
23
MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da constituição, p.
64.
24
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7 ed. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 434.
25
DINIZ, Márcio Augusto Vasconcelos. Constituição e Hermenêutica Constitucional, p. 240.
26
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 434.
11
Foi justamente esta nova perspectiva do Direito, com ênfase
à supremacia e normatividade da Constituição, bem como aos princípios nela
contidos, que desencadeou a necessidade do surgimento de uma nova
concepção Hermenêutica.
Neste sentido, MAGALHÃES FILHO destaca que
Com o reconhecimento da supremacia e da normatividade plena da
Constituição no Estado Moderno, os direitos fundamentais são
considerados como limite não apenas da atividade administrativa,
mas também, da legiferante. Não há, portanto, nenhuma dúvida
mais sobre a juridicidade e aptidão de eficácia dos princípios
estabelecidos
no
Estatuto
Básico
da
Sociedade,
e
esse
reposicionamento dos direitos fundamentais tornou necessário o
surgimento de uma nova hermenêutica, porquanto as normas que os
definem possuem estrutura diferente daquelas que têm as normas
infraconstitucionais.27
Para BONAVIDES, a passagem para a Hermenêutica
contemporânea ocorre efetivamente com a nova dimensão que passou a ser
atribuída aos princípios constitucionais, os quais se transformaram de princípios
gerais para princípios constitucionais e, ainda, da necessidade de dar efetivo
sentido aos direitos fundamentais. Por meio deste novo enfoque, os princípios
adquirem grande importância, de maneira que toda a norma e, em conseqüência,
todas as demais questões jurídicas, devem observá -los e respeitá-los. 28
Verifica-se,
assim,
uma
mudança
na
realidade
Hermenêutica, uma vez que, anteriormente, o direito se restringia a mera
aplicação da lei, com a subsunção da norma ao caso concreto, permitindo a
realização apenas de uma interpretação gramatical da norma. A ênfase atribuída
aos princípios e aos direitos fundamentais demonstraram a insuficiência da velha
Hermenêutica, tornando-se necessária uma nova atividade de interpretação do
Direito, consentânea com esta moderna realidade.
27
28
MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da constituição, p.
65.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 259 e 592.
12
Neste
novo
contexto,
verifica-se
a
necessidade
da
vinculação da Hermenêutica com os princípios constitucionais, os quais são
responsáveis por definir e traduzir a concepção acerca da realidade escolhida
pela própria sociedade.
1.1.3 Princípios Hermenêuticos
Com a superação da antiga concepção Hermenêutica e a
conseqüente ascensão de uma nova Hermenêutica, verifica-se a ênfase a
determinados Princípios Hermenêuticos que conferem a desejada importância à
Carta Constitucional, dentre os quais, são destacados a seguir os de maior
relevância para a presente pesquisa.
1.1.3.1 Princípio da supremacia da Constituição
Este princípio enuncia que a interpretação constitucional se
fundamenta no pressuposto da superioridade jurídica da Constituição sobre as
demais normas no âmbito do Estado.29
Conseqüentemente,
em
decorrência
deste
princípio,
nenhum ato jurídico pode contrariar as previsões constitucionais, sob pena de não
subsistir validamente se for constatada a sua incompatibilidade com a Lei
Fundamental.
Infere-se que a legitimidade dos poderes do Estado e suas
ações derivam da Constituição, que os habilita a atuar, de maneira que a atuação
fora
dos
limites
impostos
na
Constituição
não
pode
ser
considerada
constitucional, pois estará ausente de justificação legal. 30
29
30
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 3 ed., São Paulo: Saraiva,
1999, p. 157.
CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos do Direito Constitucional. Curitiba: Juruá, 2001, p. 79.
13
Neste sentido, destaca-se a necessidade das normas
criadas pela atuação de todos os poderes públicos obedecer às diretrizes
constitucionais.
BARROSO assinala que a supremacia constitucional
assume um caráter de superlegalidade formal e material. Nesta temática,
assevera o citado autor que,
A superlegalidade formal identifica a Constituição como a fonte
primária da produção normativa, ditando competências e
procedimentos para a elaboração dos atos normativos inferiores.
E a superlegalidade material subordina o conteúdo de toda a
atividade normativa estatal à conformidade com os princípios e
regras da Constituição.31
Portanto, como se observa, este princípio enfatiza a
superioridade da Constituição sobre as demais normas do ordenamento jurídico,
condicionando o conteúdo das leis infraconstitucionais de acordo com a
Constituição.
1.1.3.2 Princípio da unidade da Constituição
O
ordenamento
estatal
constitui
um
sistema
cujos
elementos são entre si coordenados, apoiando-se um ao outro e pressupondo-se
reciprocamente, de maneira que o elo de ligação entre esses elementos é a
Constituição, por ser a origem comum de todas as normas. Assim, como norma
fundamental, a Constituição é responsável por conferir unidade e caráter
sistemático ao ordenamento jurídico.32
Oportuno registrar que a idéia de unidade da ordem jurídica
se irradia a partir da Constituição e sobre ela também se projeta. Neste sentido:
31
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição, p. 159.
32
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição, p. 188
14
Se a Constituição é norma fundamental que dá unidade e
coerência à ordem jurídica, ela própria precisa ter unidade e
coerência interna, ou seja, superação de contradições não
através de uma lógica de exclusão de uma parte a favor de outra,
mas através de uma lógica dialética de síntese, através de uma
solução de compromisso. A interpretação constitucional deve
garantir uma visão unitária e coerente do Estatuto Supremo e de
toda a ordem jurídica. 33
A Constituição representa o instrumento harmonizador de
uma sociedade pluralista em razão de sua unidade de sentido, o que decorre do
fato de ser este estatuto jurídico que deve integrar todos os valores
representativos das aspirações dos diversos segmentos sociais.34
Neste
contexto
destaca-se
a
importância
da
nova
concepção da Hermenêutica Constitucional, a qual almeja conferir unidade à
Constituição através de uma interpretação que busca a realização dos fins e dos
valores prescritos no seu texto.
Isto significa que a interpretação da Constituição deve ser
realizada de forma a evitar contradições, devendo o intérprete considerar a
Constituição na sua globalidade, procurando harmonizar os espaços de tensão
existentes entre as normas constitucionais a serem concretizadas. Deste princípio
resulta o fato importante de o intérprete não considerar as normas constitucionais
como normas isoladas e dispersas, mas sim como preceitos integrados num
sistema interno de regras e princípios. 35
Verifica-se a importância da Constituição, como instrumento
necessário para conferir unidade a todo o ordenamento jurídico estatal, o que se
cumpre através da unidade e coerência de seu próprio texto, propagando-se
33
MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da constituição, p.
79.
34
MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da Constituição, p.
97.
35
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6 ed., Coimbra:
Almedina, 2002, p. 1211.
15
também para a necessidade de todas as demais leis infraconstitucionais
apresentarem conteúdo conforme a constituição.
1.1.3.3 Princípio da interpretação conforme a Constituição
Este princípio determina que a Constituição deve ser
interpretada
de
acordo
com
os
seus
valores
básicos
e
as
normas
infraconstitucionais devem ser compreendidas a partir da Constituição, preferindose uma interpretação que vá ao encontro de um valor constitucionalmente
almejado.36
BARROSO destaca que este princípio está relacionado com
a unidade do ordenamento jurídico e, dentro desta, com a supremacia da
Constituição. Segundo o autor, “disso resulta que as leis editadas na vigência da
Constituição, assim como as que procedam de momento anterior, devem curvarse aos comandos da Lei Fundamental e ser interpretadas em conformidade com
ela”. 37
Infere-se que a nova concepção Hermenêutica, responsável
por elucidar os métodos de interpretação constitucional, preceitua e enfatiza a
necessidade
de
realização
da
leitura
ou
interpretação
da
legislação
infraconstitucional sempre a partir e de acordo com a Constituição.
Ressalta -se que esta concepção está em consonância com
as exigências da atualidade, pois, somente desta forma, será possível viabilizar
as exigências do direito contemporâneo, especialmente na área do direito de
Família, conforme se demonstrará adiante.
36
37
MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da Constituição, p.
80.
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, p. 184.
16
1.2 PRINCÍPIOS E REGRAS
Tendo sido constatado nos tópicos antecedentes que a
necessidade da evolução da Hermenêutica Constitucional decorreu da nova
dimensão atribuída aos princípios, que adquiriram normatividade ao lado das
regras jurídicas, necessária se torna a realização desta análise acerca da
distinção entre Princípios e Regras.
DWORKIN destaca, inicialmente, que a diferença entre os
princípios jurídicos e as regras jurídicas é de natureza lógica. Neste sentido
assinala o autor que
os dois padrões apontam para decisões particulares acerca da
obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguemse quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são
aplicáveis a maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma
regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta
que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em
nada contribui para a decisão. 38
O princípio, por sua vez, “deve ser levado em conta pelas
autoridades públicas, como [se fosse] uma razão que inclina numa ou noutra
direção”.39
Outra distinção entre regras e princípios enfatizada por
DWORKIN consiste na dimensão do peso ou importância característica dos
princípios que as regras não possuem. Em decorrência desta característica,
“quando os princípios se intercruzam [...], aquele que vai resolver o conflito tem de
levar em conta a força relativa de cada um”. 40
38
DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 39.
39
DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 42.
40
DWORKIN, Ronald. O império do Direito, p. 42.
17
Isto implica a necessidade de questionamento do peso ou
importância que determinado princípio possui. Já as regras não possuem esta
dimensão, de maneira que se duas regras entram em conflito, uma delas não
pode ser válida.41
ALEXY defende que apesar de existirem inúmeros critérios
para a distinção entre regras e princípios, o critério da generalidade é o utilizado
com mais frequência. Segundo ele, “los princípios son normas de un grado de
generalidad relativamente alto, y las regras normas con un nibel relativamente
bajo de generalidad“. 42
O referido autor assinala que os princípios seriam mandatos
de otimização e esta característica seria um critério decisivo para a sua distinção
das regras. Isto implica que “los principios son normas que ordenan que algo sea
realizado en la mayior medida possible, dentro de las possibilidades jurídicas y
reales existentes“.
43
As regras, por sua vez, “son normas que sólo pueden ser
cumplidas o no. Si una regla es válida, entonces de hacerse exactamente lo que
ella exige, ni más ni menos“.44
Estas características dos princípios, que os diferenciam das
regras, demonstram a sua grande importância no ordenamento jurídico. LEAL
enfatiza que, sendo elevado a este importante patamar, os princípios demonstram
uma superlegalidade material e se tornam fonte primária do ordenamento.
Especialmente porque os princípios representam valores concretos eleitos pela
sociedade política, e, neste sentido, tornam-se o critério de aferição dos
conteúdos constitucionais em sua dimensão normativa mais elevada.45
41
DWORKIN, Ronald. O império do Direito, p. 46.
42
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales, p. 83.
43
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales, p. 86.
44
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales, p. 87.
45
LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas hermenêuticas dos direitos humanos e fundamentais no
Brasil, p. 166.
18
Dentre os princípios que tem norteado o ordenamento
jurídico e o próprio Direito, destaca-se a seguir o Princípio da Dignidade da
Pessoa Humana em virtude da sua relevância como valor fonte de todo o sistema
jurídico e da sua importância para o desenvolvimento da presente pesquisa.
1.3 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O DIREITO
FUNDAMENTAL À HERANÇA
A Declaração Universal de Direitos Humanos, em seu artigo
1º prescreve: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e
direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos
outros com espírito de fraternidade”.
A Constituição Federal do Brasil de 1988 consagra a
Dignidade da Pessoa Humana como um dos fundamentos do Estado Democrático
de Direito 46, com a seguinte previsão:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal,
constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como
fundamentos:
[...].
III – a dignidade da pessoa humana;47
A partir desta previsão, o princípio da Dignidade da Pessoa
Humana adquire enfoques e contornos que vão repercutir e influenciar todo o
ordenamento jurídico, inclusive, em aspectos específicos concernentes ao direito
de Família, merecendo, por isso, uma análise no presente trabalho.
46
47
MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da Constituição, p.
136.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
19
Conforme anteriormente assinalado, a Dignidade da Pessoa
Humana foi erigida à categoria de fundamento do Estado Democrático de Direito.
MARTINS destaca que
[...] o princípio da dignidade da pessoa humana constitui a
base, o alicerce, o fundamento da República e do Estado Democrático de Direito
por ela instituído. A fórmula adotada implica, em linhas gerais, que a Constituição
brasileira transformou a dignidade da pessoa humana em valor supremo da
ordem jurídica política por ela instituída.48
Esta concepção da Dignidade da Pessoa Humana como
fundamento de uma ordem democrática implica admitir que o próprio Estado se
constrói e se fundamenta a partir da pessoa humana e para servi-la, de maneira
que um dos fins do Estado deve ser viabilizar condições mínimas, tanto materiais
quanto morais, para que as pessoas tenham dignidade.
Além de fundamento do Estado Democrático de Direito, ao
ser considerada como um valor fonte do sistema constitucional, a Dignidade da
Pessoa Humana adquire o papel especial de ser elemento que confere unidade
axiológica-normativa ao sistema constitucional.49
Neste sentido, este princípio é concebido como o elemento
responsável por conferir unidade de sentido a ordem constitucional que o enuncia.
Como decorrência do grau de importância atribuído a este
princípio, “a dignidade da pessoa humana é a fonte ética dos direitos
fundamentais, não sendo estes senão emanações do valor básico mencionado”.50
E prossegue o autor afirmando que “na realidade, os direitos fundamentais, bem
48
MARTINS, Flademir Jerônimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional
fundamental. Curitiba: Juruá, 2003, p. 63.
49
MARTINS, Flademir Jerônimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional
fundamental, p. 63.
50
MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da constituição, p.
136.
20
como toda a ordem jurídica, têm como assento material o valor da pessoa
humana [...]”. 51
Desta forma, infere-se que este princípio assume uma
função importantíssima ao delinear o conteúdo dos demais valores e normas
jurídicas em consonância com a Dignidade da Pessoa Humana.
SARLET assevera que “[...] dentre as funções exercidas pelo
princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, destaca-se, pela sua
magnitude, o fato de ser, simultaneamente, elemento que confere sentido e
legitimidade a uma determinada ordem constitucional [...]”.52
Portanto, a legitimidade, a integridade e o verdadeiro sentido
de uma ordem constitucional serão garantidos e preservados se possuírem como
parâmetro e como fundamento o respeito ao princípio da Dignidade da Pessoa
Humana.
Neste contexto, cumpre destacar a função instrumental
integradora e hermenêutica deste princípio, uma vez que “serve de parâmetro
para aplicação, interpretação e integração não apenas dos direitos fundamentais
e das demais normas constitucionais, mas de todo ordenamento jurídico”. 53
Isto implica que a interpretação do ordenamento jurídico,
tanto constitucional como infraconstitucional, deve pautar-se, levando em
consideração, o conteúdo do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
Nesta temática, MARTINS destaca que o reconhecimento de
forma expressa da Dignidade da Pessoa Humana como princípio fundamental
traduz,
51
MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da constituição, p.
136.
52
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição
federal de 1988. 2 ed, Porto Alegre: Livraria do advogado, 2002, p. 81.
53
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição
federal de 1988, p. 85.
21
em parte, a pretensão constitucional de transformá-lo em um
parâmetro objetivo de harmonização dos diversos dispositivos
constitucionais (e de todo o sistema jurídico), obrigando o
intérprete a buscar uma concordância prática entre eles, na qual
o valor acolhido no princípio, sem desprezar os demais valores
constitucionais, seja efetivamente preservado. 54
Desta forma, para que haja uma harmonização das normas,
incluídas as regras e os princípios de um sistema jurídico, não se pode desprezar
o valor da Dignidade da Pessoa Humana, pois o respeito a este princípio consiste
em uma prerrogativa para a preservação dos demais valores constitucionais.
Para SARLET, “[...] a dignidade da pessoa humana tem sido
reiteradamente considerada como o princípio (e valor) de maior hierarquia da
nossa e de todas as ordens jurídicas que a reconheceram [...]”. 55
O autor enfatiza que, cada vez mais, “[...] encontram-se
decisões dos nossos Tribunais valendo-se da dignidade da pessoa como critério
hermenêutico, isto é, como fundamento para solução das controvérsias,
notadamente interpretando a normativa infraconstitucional à luz da dignidade da
pessoa humana”.56
Quanto à função hermenêutica do Princípio da Dignidade da
Pessoa Humana, SARLET assinala que,
[...] poder-se-á afirmar a existência não apenas de um dever de
interpretação
conforme
a
Constituição
e
dos
Direitos
Fundamentais, mas acima de tudo [...] de uma hermenêutica que,
para além do conhecido postulado do in dúbio pro libertate, tenha
54
MARTINS, Flademir Jerônimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional
fundamental, p. 63.
55
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição
federal de 1988, p. 87.
56
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição
federal de 1988, p. 86.
22
sempre presente o imperativo segundo o qual em favor da
dignidade não deve haver dúvida . 57
Verifica-se que o princípio da Dignidade da Pessoa Humana
está intimamente relacionado com os Direitos Fundamentais, uma vez que “na
verdade, quando a Constituição elencou um longo catálogo de direitos
fundamentais
e
definiu
os
objetivos
fundamentais
do
Estado,
buscou
essencialmente concretizar a dignidade da pessoa humana”.58
Isto ocorreu porque não teria validade ou resultados
práticos a realização de simples menção ao princípio fundamental da Dignidade
da Pessoa Humana, sem a garantia de um núcleo básico de direitos aos cidadãos
pela Constituição Federal de 1988, o que vem a confirmar a necessária e direta
ligação entre a Dignidade da Pessoa Humana e os Direitos Fundamentais.
Nesta temática, MARTINS afirma que,
Na atual quadratura histórica, uma Constituição que não institua
um amplo catálogo de direitos fundamentais (ou sequer legitime a
instituição pela ordem infraconstitucional), ainda que nela
houvesse expressa menção ao princípio, não estaria positivando
a dignidade da pessoa humana em fórmula capaz de
normatividade,
e
tampouco,
poderia
ser
considerada
democrática. No rol de direitos fundamentais de uma Constituição
se encontra a mais pura homenagem à dignidade da pessoa
humana.59
Conforme se verifica, a Dignidade da Pessoa Humana é a
fonte ética dos Direitos Fundamentais, sendo estes emanações do valor básico do
referido princípio. Assim, pode-se afirmar que os direitos fundamentais constituem
57
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição
federal de 1988, p. 88.
58
MARTINS, Flademir Jerônimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional
fundamental, p. 65.
59
MARTINS, Flademir Jerônimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional
fundamental, p. 65.
23
reflexos imediatos ou desdobramentos históricos da Dignidade da Pessoa
Humana.60
Desta forma, o rol de direitos e garantias fundamentais
consagrados no título II da Constituição Federal de 1988 traduz uma
especificação e densificação do princípio fundamental da Dignidade da Pessoa
Humana, ou seja, os direitos fundamentais constituem uma importante
concretização do referido princípio, quer se trate dos direitos e deveres individuais
e coletivos (art. 5º), dos direitos sociais (artS. 6º a 11) ou dos direitos políticos
(arts. 14 a 17). 61
Cumpre destacar, em virtude da sua relação direta com o
tema da presente pesquisa, a previsão do inciso XXX do artigo 5º da Constituição
Federal de 1988, o qual prevê o direito fundamental à herança, nos seguintes
termos:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:
[...]
XXX – É garantido o direito de herança;”.62
Assim,
constitucionalmente
por
assegurado,
constituir
o
direito
um
à
direito
herança,
fundamental,
consiste
em
um
desdobramento do princípio da Dignidade da Pessoa Humana, sendo a sua
regulamentação e efetivação indispensável para a garantia de uma existência
digna à pessoa humana.
60
MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da constituição, p.
136.
61
MARTINS, Flademir Jerônimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional
fundamental, p. 66.
62
BRASIL, Constituição Federal de 1988.
24
Antes de encerrar este subcapítulo, oportuno registrar que o
princípio da Dignidade da Pessoa Humana também é mencionado direta e
indiretamente em outras passagens constitucionais. Especificamente, na área do
direito de Família, em item que interessa para o presente estudo, o § 7º do artigo
226 da Constituição Federal de 1988 estabelece que o planejamento familiar é de
livre decisão do casal e funda-se nos princípios da Dignidade da Pessoa Humana
e da paternidade responsável. 63
Art. 226. A Família, base da sociedade, tem especial proteção do
Estado.
[...]
§7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da
paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão
do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais
e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer
forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.64
(grifo nosso)
Neste sentido, registra-se que a Dignidade da Pessoa
Humana é um dos princípios do Direito de Família, de maneira que o seu respeito
constitui a base da comunidade familiar e a garantia necessária para o pleno
desenvolvimento e realização de todos os seus membros.
Portanto, em síntese, destaca-se que
o que se percebe, em última análise, é que onde não houver
respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser
humano, onde as condições mínimas para uma existência digna
não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder,
enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e
dignidade) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e
63
64
MARTINS, Flademir Jerônimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional
fundamental, p. 52.
BRASIL. Constituição Federal de 1988.
25
minimamente assegurados, não haverá espaço para a dignidade
da pessoa humana e esta (a pessoa), por sua vez, poderá não
passar de mero objeto de arbítrio e injustiças .65
Desta forma, infere-se que a plena garantia e efetividade
dos direitos fundamentais constitui uma prerrogativa para a realização do princípio
da Dignidade da Pessoa Humana, especialmente no que se refere ao Direito de
Família, área na qual o respeito a este princípio representa a base de uma
comunidade familiar saudável.
1.4 A GARANTIA INSTITUCIONAL DE ESPECIAL PROTEÇÃO À FAMÍLIA
Para falar-se de garantia institucional, importante destacar
uma definição para esta expressão, delimitando-se o seu alcance e âmbito de
atuação.
Neste sentido, BONAVIDES define garantia institucional
como sendo “a proteção que a Constituição confere a algumas instituições, cuja
importância reconhece fundamental para a sociedade, bem como a certos direitos
fundamentais providos de um componente institucional que os caracteriza”.66
Segundo o autor, a garantia institucional visa a proteger a
essência da instituição reconhecida, assegurando a sua permanência, dificultando
eventual supressão e, principalmente, preservando o mínimo de substantividade
ou essencialidade, ou seja, o cerne que não deve ser atingido, nem violado, uma
vez que isto implicaria no próprio perecimento do ente protegido.67
65
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição
federal de 1988, p. 61.
66
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 492.
67
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 493.
26
A
Constituição
Federal
de
1988,
reconhecendo
a
importância da Família para o desenvolvimento do indivíduo e do próprio Estado,
tratou de estabelecer, de forma direta, a garantia constitucional a esta instituição,
com a seguinte previsão do caput do artigo 226:
Art. 226. A Família, base da sociedade, tem especial proteção do
Estado.68
Ao afirmar a importância da Família, DIAS destaca que a
Família sempre foi e sempre será a célula básica da sociedade, como um ponto
de partida necessário para possibilitar o desenvolvimento das outras relações
sociais.69
A Constituição Federal de 1988, através de importantes
previsões, foi sensível à alteração dos valores que circundam esta instituição, não
mais concebendo a Família como uma estrutura única, engessada pelos sagrados
laços do matrimônio, mas ao contrário, reconheceu que o traço principal que a
identifica são os laços de afetividade.70
Verifica-se, assim, a ocorrência de uma mudança no
enfoque dado a Família, de maneira que atualmente a Família regulada e
protegida constitucionalmente não é apenas aquela constituída pelo casamento,
mas, especialmente encontra-se a sua identificação através da análise dos
vínculos afetivos que originam e consolidam a sua formação.
Neste contexto, enfatiza-se as relações de sentimentos
entre os membros do grupo familiar, valorizando-se “as funções afetivas da
Família que se torna o refúgio privilegiado das pessoas contra a agitação da vida
nas grandes cidades e das pressões econômicas e sociais”. 71
68
69
70
71
BRASIL. Constituição Federal do Brasil de 1988.
DIAS, Maria Berenice. Direito de Família e o novo código civil. 3 ed, Belo Horizonte: Del Rey,
2003, p. xiii.
DIAS, Maria Berenice. Direito de Família e o novo código civil, p. ix.
OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de. Curso de Direito de Família. 4 ed, Curitiba, Juruá, 2004,
p. 13.
27
Esta nova perspectiva fez com que o artigo 226 da Carta
Constitucional, trouxesse previsões específicas de que a entidade familiar é plural
e não mais singular, tendo várias formas de constituição, voltando-se assim, para
a realidade que engloba as várias possibilidades de representação social da
Família.72
O artigo 226 da Constituição Federal de 1988, traz no seu
conteúdo previsão que protege expressamente a União Estável e a Família
Monoparental como entidades familiares, ao lado do casamento.
Importante repetir o texto do seu caput, já citado,
transcrevendo os parágrafos pertinentes ao tema:
Art. 226. A Família, base da sociedade, tem especial proteção do
Estado.
[...]
§3º Para efeito da proteção do Estado é reconhecida a união
estável entre o homem e a mulher como entidade familiar,
devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
§4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade
formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
Assim, com a previsão dos §3º e §4º do artigo 226 da Carta
Constitucional foi alargado o conceito de Família, passando a proteger além da
Família constituída pelo casamento civil, também a Família constituída pela União
Estável entre o homem e a mulher e pela comunidade formada por qualquer dos
pais e seus descendentes.73
DIAS enfatiza que esta nova ordem de valores, adotada
pela Constituição Federal de 1988, ao proteger a Família de uma forma mais
72
DIAS, Maria Berenice. Direito de Família e o novo código civil, p.xv.
73
DIAS, Maria Berenice. Direito de Família e o novo código civil, p. 04.
28
ampla vem ao encontro do constitucionalismo moderno, que privilegia a Dignidade
da Pessoa Humana.74
Este novo enfoque, fundamentado na efetividade do
princípio da Dignidade da Pessoa Humana, demonstra a necessidade de alargarse a concepção de Família, visando proteger a pessoa humana de forma cada
vez mais ampla.
Para COSTA, a especial tutela constitucional reservada à
Família “[...] é justamente no sentido de garantir que a Família seja um espaço de
promoção, resguardo e efetivação da dignidade de cada um dos integrantes do
grupo familiar”.75
Segundo a referida autora, este enfoque à Família
[...] se coloca justamente na dimensão do reconhecimento do
primado da pessoa, em que a Família se põe como
instrumento e espaço para realização dessa dignidade, seja no
relacionamento entre os cônjuges, seja na educação e
formação
da
personalidade
dos
filhos.
Seu
caráter
instrumental está posto, portanto, como instrumento de tutela
da dignidade humana. 76
Neste contexto, destaca-se a importância da garantia
institucional de especial proteção à Família em sentido amplo, abrangendo às
Uniões Estáveis, dispensada pela Carta Constitucional, a fim de que o objetivo de
concretização da Dignidade da Pessoa Humana através da Família possa ser
efetivamente alcançado.
74
75
76
DIAS, Maria Berenice. Direito de Família e o novo código civil, p. xv.
COSTA, Judith Martins. A reconstrução do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002, p. 459.
COSTA, Judith Martins. A reconstrução do direito privado, p. 460.
29
1.5 A PROTEÇÃO À UNIÃO ESTÁVEL COMO FORMA DE CONSTITUIÇÃO DE
FAMÍLIA
Conforme expendido no item anterior, a Constituição Federal
do Brasil de 1988, no §3º do seu artigo 226 77, reconheceu e legitimou a União
Estável como uma das modalidades constitutivas de Família, ao lado do
casamento e da família monoparental.
Cumpre registrar que até chegar-se a esta recepção
constitucional houve uma grande evolução doutrinária e jurisprudencial, no
sentido de reconhecer efeitos jurídicos a relacionamentos não matrimoniais entre
pessoas de sexo diferente, que impulsionaram o legislador constitucional a
também adotar este entendimento.
Sabendo-se que o direito é um fenômeno social, todas
estas transformações foram impulsionadas e antecedidas por ingerência da
própria sociedade que exigiu proteção jurídica a uma situação que, apesar de não
possuir amparo legal, já existia na prática.
A análise desta influência impulsionadora exercida pelos
fenômenos sociais, bem como da evolução doutrinária e jurisprudencial ocorrida,
até chegar-se à efetiva proteção da União Estável pela Constituição Federal de
1988 como uma das modalidades de Família, é de fundamental importância para
o entendimento do tema.
1.5.1 O Direito como um fenômeno social
A recepção da União Estável pela Constituição Federal de
1988 ocorreu em virtude das profundas mudanças havidas na sociedade, bem
como em decorrência da evolução dos valores e princípios dos padrões
77
“Art. 226. §3º. Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem
e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.
30
comportamentais, que fizeram com que a sociedade, através de um clamor social,
exigisse o reconhecimento de legitimidade familiar às relações concubinárias.
KRELL destaca “a necessidade da conjugação da realidade
social com a realidade jurídica, preferivelmente esta como reflexo daquela, e o
enorme esforço na evo lução do Direito de Família Brasileiro foram conseqüência
da evolução dos valores sociais que impulsionaram um redimensionamento das
relações familiares e a humanização das mesmas.”78
Esta alteração evidenciada no Direito de Família, com o
reconhecimento constitucional da União Estável como entidade familiar, decorre
das importantes modificações ocorridas na própria sociedade, que, através da
mudança de mentalidade/consciência jurídica dos indivíduos, quanto a uma
realidade fática, tornam-se propulsoras de uma modificação também no mundo
jurídico.
Segundo CZAJKOWSKI,
[...] não é difícil perceber que, no âmbito do Direito de Família,
não há um sistema legislativo perfeito e acabado. É comum, até,
que a aplicação do direito nessa área, se antecipe à confecção
legislativa, atendendo aos anseios de uma sociedade em
constante evolução de costumes, em contínuo processo de
assimilação de novos valores e esquecimento de outros 79.
E o Direito, no intuito de corresponder à consciência jurídica
social, precisa acompanhar esta evolução dos fatos e dos valores através da
evolução normativa, pois, conforme assevera KRELL,
se a sociedade tende a organizar inovações, o Direito tem de
evoluir na mesma direção e consagrar os princípios apropriados
por essa evolução. Se considerarmos a sociedade como algo
78
79
KRELL, Olga Jubert Gouveia. União estável: Análise Sociológica. Curitiba: Juruá, 2003, p. 74.
CZAJKOWSKI, Rainer. União Livre: à luz das Leis 8.871/94 e 9.278/96. 2ª ed, 3ª tir. Curitiba:
Juruá, 2003, p. 33.
31
vivo, cuja dinâmica se impõe na evolução e no desenvolvimento
dos seres humanos, não podemos deixar de considerar o grande
papel desenvolvido pelo Direito enquanto instrumento a serviço
do social.80
Neste contexto, verifica-se que a regulamentação da União
Estável como entidade familiar na Constituição Federal de 1988 surgiu como
resultado direto da sua aceitação e desejabilidade do próprio grupo social
brasileiro81.
Assim, a União Estável, como um padrão de comportamento
genericamente aceito pelo grupo social, foi garantida constitucionalmente para
retomar a correspondência entre a realidade fática e a realidade jurídiconormativa.
1.5.2 A
evolução
doutrinária,
jurisprudencial
e
legislativa
que
antecedeu a recepção da União Estável na Constituição Federal de
1988
Oportuno registrar, que o reconhecimento da União Estável
pela Constituição Federal de 1988, como forma de constituição de Família foi
antecedido por um lento processo de conquistas e quebra de paradigmas, pois,
mesmo quando reconhecida à existência do concubinato como um fato social
inquestionável, o sistema jurídico sempre se mostrou resistente à concessão de
efeitos jurídicos positivos à qualquer relação extramatrimonial, ou seja, que não
fosse constituída através do casamento.
80
KRELL, Olga Jubert Gouveia. União estável: Análise Sociológica, p. 75.
81
KRELL, Olga Jubert Gouveia. União estável: Análise Sociológica, p. 76.
32
Esta resistência, segundo CAHALI82, era decorrente de uma
orientação inspirada no Direito Canônico, insistente em prestigiar como base da
sociedade unicamente o casamento segundo as normas vigentes, de maneira que
apenas o matrimônio criava a Família legítima e apenas esta mereceria a
proteção do Estado.
Portanto, a influência dos valores religiosos, repudiando o
concubinato como uma forma de constituição de Família foi, em grande parte,
responsável pela resistência verificada em nosso sistema jurídico para acolher
qualquer iniciativa dos Companheiros, que vivessem em União Estável, em
regulamentar por escrito a sua relação.
Desta forma, a regulamentação legislativa do concubinato
sempre representou a necessidade de uma quebra de padrões e de valores, para
a construção e o acolhimento de novos valores e princípios ansiados pela
sociedade.
A sociedade, na sua “[...] constante função criadora e
recriadora de princípios e normas, motivadora das mudanças nas relações
sociais, sensibilizando os estudiosos e operadores do Direito, não se furtava a
provocar o Judiciário e o Legislativo apresentando esta realidade, que, mesmo
não sendo nova, passou a ser cada vez mais constante [...]” 83.
A provocação da sociedade, no sentido de exigir proteção do
Estado a uma situação de fato existente, originou a ocorrência de uma evolução
doutrinária, jurisprudencial e legislativa, tanto antes, como depois da vigente
Constituição Federal, no intuito de trazer respostas aos anseios sociais ao conferir
efeitos jurídicos decorrentes do concubinato.
Importante registrar que o Código Civil de 1916 não
reconhecia ou previa direitos à Família constituída fora dos padrões oficiais do
casamento civil ou religioso com efeitos civis. OLIVEIRA assevera que as poucas
82
83
CAHALI, José Francisco. Contrato de Convivência na União Estável. São Paulo: Saraiva, 2002,
p. 02.
CAHALI, José Francisco. Contrato de convivência na União Estável, p. 04.
33
referências do texto legal à vida em concubinato possuíam um caráter censóriorestritivo, principalmente no que se refere a uniões adulterinas, que ficavam à
margem de qualquer proteção jurídica.84
De maneira paulatina, ocorreu um avanço nesta área,
caracterizado pelo reconhecimento de determinados direitos às pessoas que se
uniam através deste modo de convivência informal, tanto na esfera legislativa,
quanto jurisprudencial.
Na esfera legislativa, as uniões entre homem e mulher sem
casamento, tiveram seus primeiros direitos reconhecidos na legislação esparsa.
A área precursora na evolução legislativa está relacionada
ao Direito Previdenciário, conforme assinala CAHALI, “na seara legislativa, em
nosso ordenamento jurídico, o tratamento inicial foi no campo dos efeitos
previdenciários decorrentes do concubinato, sendo nítida a preocupação
assistencial, de cunho estritamente social, e não patrimonial, entre os
conviventes”. 85
CAHALI registra também a
[...] iniciativa apresentada por NELSON CARNEIRO, em 1947,
buscando equiparar a companheira à esposa para os fins de
pleitear alimentos, pensão, montepio e meio-soldo ou, do mesmo
Parlamentar, já como Senador da República em 1966, com o
objetivo, embora assim não identificado o projeto, de permitir a
conversão da união estável em casamento86.
Sem pretender esgotar o assunto, destacam-se os seguintes
tópicos extraídos de dispositivos da legislação esparsa em favor do concubinato:
reconhecimento de filhos, independente de sua origem 87 ; adoção de filhos por
84
OLIVEIRA, Euclides. Curso de direito de família. Coordenador: Douglas Philips Freitas.
Florianópolis: Vox Legem, 2004, p. 103.
85
CAHALI, José Francisco. Contrato de convivência na União Estável, p. 05.
86
CAHALI, José Francisco. Contrato de convivência na união estável, p. 06.
87
Revogação do art. 358 do Código Civil de 1916, pela Lei n. 7.841/89, Lei n. 883/49, arts. 26 e 27
da Lei 7.250//84, 8.069/90, Lei n. 8.560/92.
34
concubinos 88; dependência do companheiro para levantar certos valores do autor
da herança 89 ; direito da mulher ao nome do companheiro 90 ; bem de família
extensível a qualquer espécie de entidade familiar 91; sub -rogação do companheiro
na locação de imóveis urbanos 92, em caso de dissolução da vida em comum com
o locatário ou de seu falecimento.93
Esta evolução, visando ao reconhecimento de direitos aos
Companheiros que vivessem como se casados fossem, embora não estivessem
unidos pelo matrimônio, ocorreu também através da jurisprudência.
O Supremo Tribunal Federal (STF) editou as Súmulas 35 e
380, que representavam a garantia de determinados direitos aos Companheiros.
A Súmula 35 94 do STF concedeu à companheira o direito de
ser indenizada pela morte do Companheiro em caso de acidente do trabalho ou
de transporte, ainda que não fossem casados, desde que não houvesse entre
eles impedimento para o matrimônio.
A súmula 380
95
do STF, por sua vez, reconheceu a
existência de sociedade de fato entre os Companheiros, autorizando a partilha de
bens adquiridos pelo esforço comum, por ocasião da dissolução desta sociedade.
A doutrina da época também caminhava no sentido de
aceitação e proteção dos interesses e direitos dos Companheiros e, não obstante
a proibição legislativa quanto à realização e registro em cartório de contratos
particulares entre os Companheiros, a doutrina já passava a acolher estes pactos
88
Lei n. 8.069/90, art. 42, § 2º.
89
Art. 1.037 do CPC e Lei n. 6.858/80.
90
Lei n. 6.015/73, art. 57, §§ 2º a 6º.
91
Lei n. 8.009/90.
92
Lei n. 8.245/91, arts. 11 e 12.
93
OLIVEIRA, Euclides. Curso de direito de família, p. 104.
94
“Em caso de acidente do trabalho ou do transporte, a concubina tem direito de ser indenizada
pela morte do amásio, se entre eles não havia impedimento para o matrimônio”.
95
“Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução
judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”.
35
entre os concubinos como instrumento apto a gerar efeitos entre as partes
contratantes.
Neste sentido, Márcio Moacyr Porto, citado por CAHALI
afirma que “a união entre pessoas não proibidas de casar não constitui,
reiteramos, uma situação ilícita, ou imoral, pelo que nada impede que os
parceiros, de espontânea vontade, estabeleçam, por escrito, as regras aplicáveis
às suas relações pessoais e patrimoniais, mas dos interesses recíprocos que
resultam da vida em comum” 96.
Pensava -se
que
estas
uniões
concubinárias
eram
conseqüência da impossibilidade de dissolução do vínculo matrimonial, o que
impedia as pessoas que encerrassem o matrimônio de contrair nova união
através do casamento, fazendo com que estabelecessem uniões sem as
formalidades do matrimônio.
Em 1977, com a promulgação da Lei do Divórcio, admitindo
e regulamentando a possibilidade de dissolução do vínculo matrimonial,
[...] acreditava-se na redução drástica, para números
inexpressivos, de relações concubinárias, uma vez que não mais
existiria o óbice da indissolubilidade do casamento. Entretanto,
contrariando as expectativas, o concubinato continuou a ser
socialmente uma forma de agrupamento familiar, e agora por
opção entre seus partícipes, que, embora livres para o
matrimônio, passaram a eleger este meio de constituição de
Família até para fugir à arcaica e conservadora estruturação do
casamento, exigindo, definitivamente, uma postura direta do
legislador quanto a esta figura, agora jurídica, pela crescente
proteção e efeitos proclamados pela jurisprudência e legislação
esparsa.97
96
CAHALI, José Francisco. Contrato de convivência na união estável, p. 22.
97
CAHALI, José Francisco. Contrato de Convivência na União Estável, p. 25.
36
Portanto, em virtude destas mudanças de valores e de
padrões culturais, ocasionando uma transformação social, que culminou com uma
evolução doutrinária, jurisprudencial e legislativa, tornou-se de fundamental
importância a tutela da União Estável pelo ordenamento constitucional brasileiro.
1.5.3 A tutela da União Estável na Constituição Federal de 1988
Em decorrência dos reclames sociais e do direcionamento
tomado pela doutrina e pela jurisprudência pátrias no sentido de não deixar as
relações concubinárias à margem do sistema legal, a Constituição Federal de
1988 deu um grande avanço ao ampliar o conceito de Família, em consonância
com o constitucionalismo moderno, abrangendo também sob a proteção do
Estado, as relações concubinárias.
AZEVEDO destaca a necessidade e a importância de o
legislador efetivamente considerar o concubinato, não adulterino e não
incestuoso, como um fato social que existe e é merecedor de proteção do Estado
“[...] para que não pereça grande parte da família, que vive com os mesmos
anseios da legítima, com o mesmo senso de moralidade, mas tolhida pela
ausência de tratamento jurídico, até que se editasse a Constituição Federal de
1988”.98
Esta proteção ocorreu através do §3º do artigo 226 da
Constituição Federal de 1988, que institucionalizou o Concubinato, atribuindo-lhe
uma nova nomenclatura, qual seja, União Estável.
O artigo 226 e seu parágrafo 3º, já citados, apresentam a
seguinte redação na Carta Constitucional:
98
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato. São Paulo: Atlas, 2002, p. 230.
37
Art. 226. A Família, base da sociedade, tem especial proteção do
Estado.
(...)
§ 3º. Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união
estável entre o homem e a mulher como entidade familiar,
devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.99
Oportuno ressaltar que a expressão Concubinato era
utilizada em um sentido amplo, “abrangendo tanto as situações de vida em
comum de pessoas desimpedidas, isto é, solteiras, separadas, divorciadas ou
viúvas, como as uniões paralelas ao casamento, ou adulterinas (triângulo
amoroso)”. 100
Inclusive, alguns autores adotam denominações específicas
de concubinato puro e concubinato impuro para distinguir as duas situações de
vida em comum, sendo que o concubinato puro corresponde à convivência
duradoura de homem e mulher sem impedimentos decorrentes de outra união,
vivendo como uma Família de fato. Já o concubinato impuro corresponde à
relação adulterina, que envolva pessoa casada em ligação amorosa com terceiro
ou com outros impedimentos matrimoniais absolutos.
EUCLIDES DE OLIVEIRA destaca que o concubinato puro é
que se igualou à União Estável, a qual veio a ser reconhecida pela Constituição
Federal de 1988 como entidade familiar. Segundo o referido autor, deve-se tratar
de maneira diferente, situações jurídicas distintas, portanto, “melhor se reserve
[...] a denominação oficial de “união estável” para a união entre homem e mulher
segundo o figurino legal, e se deixe o termo “concubinato” para as demais
espécies de união fora desse modelo”. 101
99
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
100
OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do novo
código civil. 6 ed. São Paulo: Método, 2003, p 73.
101
OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do novo
código civil, p 74.
38
Desta
forma,
depreende-se
que
a
situação
jurídica
abrangida e tutelada pela Constituição Federal de 1988 consiste apenas no
concubinato puro, sendo denominado, a partir de sua proteção constitucional, de
União Estável, reservando-se o termo concubinato para tratar as relações não
protegidas constitucionalmente, por apresentarem algum impedimento legal.
Neste sentido, o Código Civil previu especificamente que as
relações dotadas de impedimento são denominadas de concubinato:
Art. 1727. As relações não eventuais entre homem e mulher,
impedidos de casar, constituem concubinato. 102
Verifica-se que a existência de União Estável com a
conseqüente
proteção
do
Estado
está
subordinada
a
inexistência
de
impedimentos na relação, uma vez que caso exista algum impedimento trata-se
de Concubinato, instituto não alcançado pela proteção constitucional.
Oportuno destacar, que a previsão da Constituição Federal
de 1988, referente à proteção da União estável como uma forma de entidade
familiar, ensejou uma grande mudança no que se refere aos direitos dos
Companheiros, “[...] autorizando, definitivamente, que as questões relativas a
essa outra forma de família fossem tratadas no campo do Direito de Família e não
mais no campo do Direito Obrigacional”.103
Neste contexto, referida previsão constitucional, além de
garantir proteção jurídica à União Estável, garantiu, ainda, a própria moralização
do instituto, que, conforme anteriormente expendido, recebeu a qualificação de
entidade familiar, ao lado do matrimônio legítimo.
102
103
Código Civil Brasileiro de 2002.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de Família e o novo código civil. Belo Horizonte: Del Rey,
2001, p. 221.
39
CAHALI registra que “[...] a institucionalização da união
estável trouxe consigo a preservação moral da relação, impondo fosse afastada
qualquer espécie de discriminação, até mesmo pela sociedade, a este núcleo
familiar”. 104
Destaca-se que “atualmente as uniões estáveis passaram a
ser consideradas uma forma socialmente aceita de constituição da Família, dela
derivando direitos e obrigações, com ampla proteção patrimonial tanto para os
conviventes como para os filhos”.105
Assim, verifica-se a importância da proteçã da União
Estável pela Constituição Federal de 1988, concebendo status jurídico a uma
situação de fato já existente, bem como garantindo a moralização do instituto e o
conseqüente respeito àqueles que optarem por esta forma de constituição de
Família.
Após a apresentação da proteção específica garantida à
União Estável, pretende-se enfatizar, na presente pesquisa, os Direitos
Sucessórios dos Companheiros, análise que será objeto do próximo capítulo.
104
105
CAHALI, José Francisco. Contrat o de Convivência na União Estável, p. 27.
DAL COL, Helder Martinez. A família à luz do concubinato e da união estável. Rio de Janeiro:
forense, 2002, p. 94.
40
CAPÍTULO 2
DIREITOS SUCESSÓRIOS DECORRENTES DA UNIÃO ESTÁVEL
2.1 A REGULAMENTAÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL PELA LEGISLAÇÃO
INFRACONSTITUCIONAL APÓS A SUA PROTEÇÃO PELA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL DE 1988
Após a proteção, de forma explícita, aos Companheiros
conferida pelo §3º do art. 226 da Constituição Federal de 1988, surgiu entre os
doutrinadores uma discussão acerca da repercussão da norma constitucional
quanto aos direitos decorrentes da União Estável.
CAHALI sustenta que,
não obstante o respeito a doutrinadores de escolas que
sustentam a equiparação da união estável ao casamento, ou ao
menos uma igualdade de tratamento entre os dois institutos, pelo
só texto constitucional, acabamos por concluir [...] que a nova
Carta identificou as duas formas de constituição de Família
apenas e exclusivamente para efeito de proteção do Estado,
deixando para a legislação infraconstitucional, sede própria para
tanto, a fixação dos efeitos da união entre os seus partícipes, e a
sua conversão em casamento.106
A União Estável foi recepcionada pela Constituição Federal
de 1988 a fim de garantir a sua proteção pelo Estado como uma das formas de
constituição de Família, contudo a regulamentação das conseqüências jurídicas e
dos direitos inerentes a esta modalidade de entidade familiar consiste em uma
atribuição da legislação infraconstitucional.
106
CAHALI, José Francisco. Contrato de Convivência na União Estável, p. 26
41
Justamente visando a atender esta necessidade, buscouse a sua regulamentação a fim de determinar de maneira específica os direitos
e as conseqüências jurídicas desta forma de constituição de Família.
Assim, com o intuito de cumprir o mandamento
constitucional de proteção à União Estável como entidade familiar, previsto no
§3º do artigo 226 da Constituição Federal de 1988, foram editadas duas Leis
especiais sobre a matéria visando regulamentá-la: a Lei de nº 8.971/94 e a Lei
de nº 9.278/96.
A Lei nº 8.971, de 29.12.1994, dispôs acerca dos direitos
dos Companheiros a alimentos, sucessão e meação em caso de morte, sendo
que permaneceu vigente desde a sua publicação em 30.12.1994 até ser
parcialmente revogada pela Lei nº 9.278/96.
A Lei nº 9.278/96, de 10.05.1996, em vigor desde
13.05.1996, traz uma nova definição para União Estável, estabelece os direitos
e deveres dos Companheiros, trata dos alimentos em caso de dissolução da
União estável, garante o direito à meação dos bens adquiridos na constância
da união e a título oneroso, acrescenta o direito de habitação no que se refere
aos Direitos Sucessórios, estabelece a possibilidade de conversão da União
estável em Casamento, bem como remete à competência da Vara da Família
toda a matéria relativa a este tema.
Por ser objeto principal do presente trabalho restringe-se
a análise a seguir de forma específica à regulamentação referente aos Direitos
Sucessórios atribuídos e garantidos aos Companheiros através das referidas
leis especiais, enfatizando-se, inicialmente, quais
eram
os
Direitos
Sucessórios gozados pelos Companheiros antes da regulamentação da União
Estável.
42
2.2 OS
DIREITOS
SUCESSÓRIOS DOS COMPANHEIROS
REGULAMENTAÇÃO
DA
UNIÃO
ESTÁVEL
ANTES
PELAS
DA
LEIS
INFRACONSTITUCIONAIS
O Direito Sucessório trata das regras de transmissão de
bens em razão da morte de um titular. 107
Segundo Clóvis Beviláqua, citado por LIPPIMAN, o “direito
das sucessões ou hereditário é o complexo dos princípios segundo os quais se
realiza a transmissão do patrimônio de alguém que deixa de existir. Essa
transmissão constitui a sucessão, o patrimônio transmitido, a herança”. 108
A terminologia Direito Sucessório na presente pesquisa,
assim como para a maioria dos juristas, tem o alcance certo acima referido, não
se confundindo com as sucessões feitas em vida, pelos titulares dos direitos,
reservando-se o disciplinamento destas para o direito das obrigações.109
Antes da promulgação das Leis nº 8.971/94 e 9.276/96 não
havia uma garantia, através de previsão legal, de Direitos Sucessórios entre
Companheiros, inclusive, nem mesmo o Código Civil de 1916, previa a existência
de qualquer direito à herança entre Companheiros.
Neste sentido, OLIVEIRA assinala que
antes da regulamentação legal da união estável não havia direito
à herança entre companheiros. Na ordem de vocação hereditária,
prevista no art. 1603 do Código Civil de 1916, aparece apenas o
cônjuge sobrevivente, para haver a herança depois dos
descendentes e dos ascendentes. Na falta do cônjuge, sucediam
107
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direito das sucessões. 3 ed, São Paulo: Atlas, 2003, p.
16.
108
LIPPMAN, Ernesto. Os direitos fundamentaisda constituição de 1988: com anotações e
jurisprudência dos tribunais. São Paulo: LTr, 1999, p. 105.
109
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direito das sucessões, p. 16.
43
os colaterais, sem lugar, portanto, para chamamento de
companheiro supérsite.110
Apesar da falta de proteção legal, era reconhecido pela
jurisprudência pátria, através da Súmula 380 do STF, o direito de partilha de bens
adquiridos por esforço comum dos Companheiros em sociedade de fato
configurada à luz do direito obrigacional.
Segundo OLIVEIRA, o direito reconhecido através desta
Súmula 380 do STF “não se tratava de reconhecimento de direito à herança, mas
de participação equiparáve l à meação patrimonial [...]”.111
Assim, no que se refere ao Direito Sucessório, vislumbravase a possibilidade de favorecimento do Companheiro apenas através de
disposição testamentária. Contudo, esta modalidade ainda encontrava a vedação
do artigo 1.719, inciso III do Código Civil de 1916 112, que proibia a outorga de
homem casado à sua Companheiro, pois, neste caso, tratava-se de concubina.
Existia, ainda, uma previsão na Lei nº 6.858/80 quanto à
possibilidade de o Companheiro efetuar o levantamento de certos valores da
herança, como saldo de salários, FGTS, PIS/PASEP, restituição de tributos e
depósitos de pequeno valor, desde que constasse como dependente do
falecido.113
Verifica-se, desta forma, a existência de uma situação de
instabilidade e insegurança geradas pela ausência de amparo legal, que somente
se modificou com a promulgação das leis que regulamentaram a União Estável, e,
admitiu expressamente a sucessão causa mortis entre Companheiros.
110
OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do novo
código civil, p 201.
111
OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do novo
código civil, p 201.
112
BRASIL. Código Civil. “Art. 1719. Não podem também ser nomeados herdeiros, nem legatários:
[...]
III- a concubina do testador casado”.
113
OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do novo
código civil, p 202.
44
2.3 O CONCEITO DE UNIÃO ESTÁVEL NA LEI 8.971/94 E SUA PREVISÃO
REFERENTE AO DIREITO SUCESSÓRIO
Ao regulamentar a União Estável, a Lei nº 8.971/94,
inicialmente, estabeleceu o seu conceito para, na seqüência, prever os Direitos
Sucessórios dos Companheiros.
O conceito de União Estável com a previsão de alguns
requisitos para a sua configuração resta estabelecido no artigo 1º da referida Lei
nos seguintes termos:
Art 1º. A companheira comprovada de um homem solteiro,
separado judicialmente, divorciado ou viúvo, que com ele viva há
mais de cinco anos, ou dele tenha prole, poderá valer-se do
disposto na Lei 5.478, de 25 de julho de 1.968, enquanto não
constituir nova união e desde que prove a necessidade.
Parágrafo único. Igual direito e nas mesmas condições é
reconhecido ao companheiro de mulher solteira, separada
judicialmente , divorciada ou viúva. 114
Os elementos conceituais caracterizadores da União
Estável, estabelecidos por esta regra jurídica são: a convivência entre homem e
mulher, não impedidos de casarem-se ou separados judicialmente; que esta
convivência tenha duração superior a cinco anos, ou tenha resultado no
nascimento de filho; bem como os direitos dela decorrentes perduram enquanto
os Companheiros não constituírem nova união115.
Quanto à previsão específica dos Direitos Hereditários
garantidos aos Companheiros que preencherem as condições do artigo 1º
supra mencionado, a Lei nº 8.971/94 estabelece que o Companheiro
sobrevivente participará da sucessão do falecido nos seguintes termos:
114
Artigo 1º da Lei nº 8.971/94.
115
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato, p. 434.
45
Art. 2º - As pessoas referidas no artigo anterior participarão da
sucessão do(a) companheiro(a) nas seguintes condições:
I – o (a) companheiro (a) sobrevivente terá direito enquanto não
constituir nova união, ao usufruto de quarta parte dos bens do de
cujus, se houver filhos destes ou comuns;
II – o (a) companheiro (a) sobrevivente terá direito, enquanto não
constituir nova união, ao usufruto de metade dos bens do de
cujus, se não houver filhos, embora sobrevivam ascendentes;
III – na falta de descendentes e de ascendentes, o (a)
companheiro (a) sobrevivente terá direito à totalidade da
herança.116
Infere-se que os incisos I e II, do art. 2º da Lei nº 8.971/94
supra citado, atribuíram o direito ao usufruto legal, e o inciso III, do mesmo
artigo, estabelece o direito à propriedade da herança.
Para um melhor entendimento é necessária a análise em
separado dos Direitos Sucessórios que foram conferidos pela referida lei aos
Companheiros.
2.3.1 Do Usufruto Legal
O usufruto consiste no direito de fruir as utilidades e frutos
dos bens, destacando-se da nua propriedade reservada aos herdeiros117.
NERY JUNIOR afirma que
116
117
Lei 8.971/94
OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do novo
código civil, p 207.
46
o usufruto é um dos chamados direitos reais sobre coisa alheia
(ius in re aliena). O direito real de usufruto significa destaque da
propriedade. O exercício do usar e do fruir, enquanto propriedade
plena, é direito reflexo do domínio (direito de disposição) e,
conseqüentemente, seu titular é o proprietário. Com o usufruto, o
exercício passa a ser exclusivamente do usufrutuário, destituído o
proprietário deste direito. 118
O instituto do usufruto legal tem um caráter protetivo, e,
LOPES DE OLIVEIRA relembra que “[...] deve visar a garantir o convivente
sobrevivente que, por ter se unido em regime de separação de bens ou de
comunhão parcial de bens, não seja contemplado com bens do de cujus, pois,
como visto, este pode afastar o convivente sobrevivente de sua sucessão causa
mortis, através de testamento”.119
O direito ao usufruto legal foi concedido ao Companheiro
sobrevivente, entretanto, importante destacar a ressalva estabelecida na lei de
que o direito ao usufruto sobre os bens deixados pelo falecido Companheiro é
assegurado ao sobrevivente apenas enquanto este não constituir nova união, ou
seja, enquanto permanecer o estado de viuvez. 120
A análise conjunta dos incisos I e II, do artigo 2º da lei em
análise, leva à conclusão de que o usufruto será parcial sobre ¼ dos bens, se
houver herdeiro descendente, e, sobre ½ dos bens, no caso de haver herdeiro
ascendente.
Conforme se verifica, no inciso I do aludido art. 2º da Lei
8.971/94, o texto legal utiliza a palavra filhos e não descendentes, mas
EUCLIDES OLIVEIRA adverte que “a lei menciona ‘filhos’ impropriamente, pois é
118
NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Novo código civil e legislação
extravagante anotados. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 486.
119
OLIVEIRA, J. M. Leoni Lopes. Alimentos e sucessão no casamento e na união estável. 7 ed,
Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2002, p. 246.
120
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato, p. 335.
47
possível a subsistência de outros herdeiros, na linha descendente (netos), em
face da pré-moriência de filho do autor da herança” 121.
Os incisos I e II do art. 2º, ainda esclarecem que os filhos,
entenda-se descendentes, podem ser do de cujus, ou seja, havidos de outra
união, ou comuns, o que implica ser resultante da união com o Companheiro
supérstite 122.
Nas hipóteses previstas nestes incisos, por não ter direito à
herança, o Companheiro é assistido com o direito de usufruto sobre parte dos
bens, através de fração ideal ou sobre bens determinados, conforme reste
estabelecido na partilha.123
A concessão deste direito de usufruto legal ao Companheiro
sobrevivente equipara-se ao direito de usufruto concedido ao cônjuge
sobrevivente previsto no artigo 1.611, § 1º do Código Civil de 1916 124.
Neste sentido CZAJKOWSKI afirma que
nos incisos I e II do art. 2º supra transcrito, estendeu-se o
chamado usufruto vidual, estabelecido para o cônjuge viúvo no
art. 1.611, §1º, do Código Civil, também para o companheiro
sobrevivente de uma união estável. Aqui, há uma equiparação
bastante significativa da condição jurídica do companheiro e do
cônjuge viúvo, desde que este último não tenha sido casado com
o falecido em regime de comunhão universal de bens.125
121
OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do novo
código civil, p 207.
122
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato, p. 335.
123
OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do novo
código civil, p 207.
124
BRASIL. Código Civil de 1916. “Art 1.611. [...]
§1º- O cônjuge viúvo, se o regime de bens do casamento não era o da comunhão universal, terá
direito, enquanto durar a viuvez, ao usufruto da quarta parte dos bens do cônjuge falecido, se
houver filhos, deste ou do casal, e à metade, se não houver filhos embora sobrevivam
ascendentes do de cujus”.
125
CZAJKOWSKI, Rainer. União Livre: à luz das Leis 8.871/94 e 9.278/96, p. 172.
48
Assim,
restou
garantido
o
direito
de
usufruto
ao
Companheiro sobrevivente, nos moldes previstos para o cônjuge viúvo,
ampliando-se os Direitos Sucessórios decorrentes da União Estável.
2.3.2 Do Direito de Propriedade à Herança
O inciso III 126 do artigo 2º da Lei 8.971/94 ora analisada,
concede ao Companheiro sobrevivente direito sobre a totalidade da herança do
Companheiro falecido, quando este não deixar descendentes e ascendentes.
EUCLIDES DE OLIVEIRA assinala que a situação prevista
neste dispositivo implica na alteração da ordem de vocação hereditária definida
no artigo 1.603 do Código Civil de 1916127.
O artigo 1.603 do Código Civil de 1916, vigente à época da
promulgação da Lei em comento, 8.971/94, e seus incisos, apresentavam a
seguinte redação:
A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I – aos descendentes;
II – aos ascendentes;
III – ao cônjuge sobrevivente;
IV – aos colaterais;
V – aos Municípios, ao Distrito Federal ou à União. 128
126
“III – na falta de descendentes e de ascendentes, o (a) companheiro (a) terá direito à totalidade
da herança”.
127
OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do novo
código civil, p 204.
49
Assim, com a previsão do inciso III do artigo 2º da Lei nº
8.971/94, segundo EUCLIDES DE OLIVEIRA, “no inciso III, onde consta o
deferimento da herança ”ao cônjuge sobrevivente”, leia-se, também, “ou ao
companheiro sobrevivente”. Significa dizer que os colaterais somente recebem a
herança se o extinto não foi casado nem deixou companheira em situação de
união estável”. 129
Oportuno registrar a advertência de que referida disposição
legal não pretende tornar o Companheiro um herdeiro necessário, privando o
autor da herança de testar seus bens da maneira que lhe aprouver. Na realidade,
segundo LOPES DE OLIVEIRA, o legislador simplesmente desejou incluir o
Companheiro na ordem de vocação hereditária, inserindo-o entre os herdeiros
facultativos, juntamente com o cônjuge e os colaterais130.
Quanto a alteração da ordem de vocação hereditária
prevista no Código Civil de 1.916, João Roberto Parizatto, citado por LOPES DE
OLIVEIRA, afirma que
no caso em apreço, igualou-se para fins sucessórios a (o)
concubina (o) ao cônjuge, prevendo-se que, na hipótese de
inexistirem descendentes ou ascendentes do de cujus, a(o)
concubina(o) receberá a totalidade da herança, o que ocorre, na
mesma hipótese, ao cônjuge sobrevivente que aparece em
terceiro lugar na ordem de vocação hereditária prevista no artigo
1.603 do Código Civil.131
Quanto ao alcance e relevância do inciso III do artigo 2º ora
analisado, VENOSA enfatiza que referido dispositivo veio proporcionar uma
equiparação entre o Companheiro sobrevivente e o cônjuge supérstite na ordem
128
BRASIL. Código Civil de 1916, art. 1603.
129
OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do novo
código civi, p 204.
130
OLIVEIRA, J. M. Leoni Lopes. Alimentos e sucessão no casamento e na união estável, p. 236 e
237.
131
OLIVEIRA, J. M. Leoni Lopes. Alimentos e sucessão no casamento e na união estável, p. 238.
50
de vocação hereditária expressa no artigo 1.603 do Código Civil de 1916. Esta
previsão implica que, na inexistência de ascendentes ou descendentes, o
Companheiro será herdeiro da totalidade dos bens do de cujus. 132
Nesta hipótese, deduz-se que, conseqüentemente, ocorrerá
a exclusão dos colaterais e do Estado em obter a herança.
Neste contexto, assim como o é para o Direito Sucessório
do cônjuge, também é irrelevante para o Companheiro o regime de bens adotado,
sendo da mesma forma irrelevante o fato de ter, ou não, havido conjugação de
esforços para a obtenção do patrimônio comum pelos Companheiros. O
importante nesta situação, para o Direito Sucessório é que realmente tenha
havido uma União Estável, cujo exame dos requisitos deve ser feito no caso
concreto 133.
Importante destacar que os requisitos necessários para o
direito à sucessão, de início, eram os mesmos previstos no artigo 1º da Lei nº
8.971/94, que eram exigidos para caracterização da qualidade de Companheiros,
quais sejam: união comprovada de homem e mulher solteiros, separados
judicialmente, divorciados ou viúvos, por mais de cinco anos, salvo se com prole.
Contudo, com a edição da Lei nº 9.278/96, houve uma
alteração na conceituação de União Estável, com a dispensa de certos
requisitos pessoais, como o estado civil das partes e do prazo de cinco anos
de vida em comum. Assim, seria inviável a permanência da existência de dois
conceitos para União Estável, pois esta dualidade conceitual contraria a regra
de proteção legal devida ao ente familiar 134.
Desta forma, a partir da edição da Lei nº 9.278/96, para a
caracterização do direito à herança (direito de propriedade) previsto na Lei nº
132
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direito das sucessões, p. 114.
133
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: direito das sucessões, p. 115.
134
OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do novo
código civil, p 205.
51
8.971/94, basta a configuração da União Estável nos termos previstos por esta
lei, a qual exige a convivência duradoura, pública e contínua com o propósito
de constituir Família, além do atendimento de outras condições específicas
necessárias aos pleitos sucessórios 135.
VARJÃO assevera que para reconhecimento do Direito
Sucessório exige-se que a união tenha perdurado até a data da abertura da
sucessão, ou seja, até a morte do ex-Companheiro, sendo que, se ao tempo
da morte já estava dissolvida a União Estável, desaparece o direito à sucessão
do Companheiro sobrevivente. 136
Assim, não há que se falar em Direito Hereditário, se a
dissolução da vida em comum ocorreu antes da morte de um dos
Companheiros, assemelhando-se à situação prevista para os cônjuges, no
caso de separação judicial.
Da mesma forma, não se admite a pretensão de herança
de ex- Companheiro que tenha constituído nova união, uma vez que a
extinção da vida em comum dos Companheiros também faz cessar o Direito
Sucessório por ocasião do óbito de um deles.
AZEVEDO ressalta o fato importante de que o direito à
herança previsto neste inciso III, do art. 2º, da Lei nº 8.971/94, independe se
os bens adquiridos pelo falecido Companheiro ocorreram a título gratuito ou
oneroso, mas simplesmente o fato de tais bens terem sido reconhecidamente
adquiridos durante a união estável137.
135
OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do novo
código civil, p 205.
136
VARJÃO, Luiz Augusto Gomes. União estável: requisitos e efeitos. São Paulo: Juarez de
Oliveira, 1999, p. 139.
137
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato, p. 339.
52
Art. 3º - Quando os bens deixados pelo (a) autor (a) da herança
resultarem de atividade em que haja colaboração do
companheiro (a), terá o sobrevivente direito à metade dos
bens 138.
Este artigo, por sua vez, estabelece que em caso de
sucessão por morte, o Companheiro sobrevivente terá direito à metade dos
bens adquiridos pelos Companheiros quando este patrimônio resultar de
atividade em que haja colaboração daquele. AZEVEDO destaca tratar-se,
neste caso, de meação e não de herança139.
Portanto, verifica-se que a Lei nº 8.971/94, que
regulamentou a União Estável, garantiu os direitos sucessórios aos
Companheiros de uma maneira benéfica e ampla, visando atribuir segurança e
estabilidade aos que optarem por esta forma de constituição de Família.
2.4 O CONCEITO DE UNIÃO ESTÁVEL NA LEI 9.278/96 E SUA PREVISÃO
REFERENTE AO DIREITO SUCESSÓRIO
O artigo 1º da Lei nº 9.278/96 estabelece o conceito e os
elementos necessários para a caracterização da União Estável, elevando-a à
categoria de entidade familiar, da seguinte forma:
Art. 1º. É reconhecida como entidade familiar a convivência
duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher,
estabelecida com objetivo de constituição de Família 140.
138
Lei 8.971/94
139
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato, p. 342.
140
Artigo 1º da Lei 9.278/96.
53
Inicialmente, já se verifica a necessidade de a convivência
ser entre pessoas do sexo diferente, pois a previsão do artigo 1º, ora analisado,
não reconhece a união entre pessoas do mesmo sexo como apta a receber a
proteção do Estado, uma vez ter deixado clara a necessidade da união ser entre
homem e mulher 141.
Da leitura do artigo supra citado se depreendem algumas
alterações quanto ao conceito de União Estável em comparação com o
estabelecido pela Lei nº 8.971/94.
Resta evidenciado que este artigo não estabelece prazo
certo para a existência da União Estável, devendo-se, em cada caso, observar-se
a efetiva configuração desta união através da posse recíproca dos Companheiros
com intenção de formação do lar, desde que a convivência seja duradoura, e
capaz de demonstrar a existência de Família.142
Esta característica se diferencia da previsão constante na lei
anterior, a qual exigia o preenchimento do decurso do prazo de 5 (cinco) anos ou
a existência de filhos para que se configurasse a União Estável.
PEREIRA destaca a importância do conteúdo do artigo 5º143
da lei em comento, ao prever a existência de uma presunção do esforço comum
entre os Companheiros, no que se refere aos bens adquiridos onerosamente na
constância da relação.144
Portanto, se até o advento da referida lei, o esforço comum
deveria ser provado, a partir da sua previsão, prevalece a presunção do esforço
141
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato, p. 435.
142
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato, p. 339.
143
Lei 9.278/96. Art. 5º. Os bens móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos os
conviventes, na constância da união estável e a título oneroso, são considerados fruto do
trabalho e da colaboração comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes
iguais, salvo estipulação contrária em contrato escrito.
144
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família e o novo código civil. Belo Horizonte: Del Rey,
2001, p 221.
54
comum
145
. Esta regulamentação apresenta um caráter muito importante,
especialmente por repercutir nos Direitos Sucessórios já garantidos aos
Companheiros.
A Lei nº 9.278/96 trouxe apenas uma previsão referente ao
Direito Sucessório, atribuindo ao Companheiro o direito real de habitação, contido
no parágrafo único do artigo 7º que traz a seguinte redação:
Art. 7º Dissolvida a união estável por rescisão, a assistência
material prevista nesta Lei será prestada por um dos conviventes
ao que dela necessitar, a título de alimentos.
Parágrafo único. Dissolvida a união estável por morte de um dos
conviventes, o sobrevivente terá direito real de habitação,
enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento,
relativamente ao imóvel destinado à residência da Família.146
AZEVEDO explica que “o direito real de habitação consiste
na utilização gratuita de imóvel alheio. O titular desse direito deverá residir, com
sua Família, nesse imóvel, não podendo alugá-lo, emprestá-lo”147.
Oportuno destacar que o direito à habitação distingue-se de
usufruto, pois tem um caráter mais restrito. Conforme EUCLIDES DE OLIVEIRA a
habitação
consiste em uso para moradia, não abrangente da percepção dos
frutos, pois somente confere direito de habitar, gratuitamente,
imóvel residencial alheio. Quem habita não pode alugar, nem
emprestar a coisa, mas somente ocupá-la com sua Família. 148
145
Oportuno registrar que esta presunção não é absoluta, podendo ser contestada. Entretanto, a
Lei nº 9.278/96 contribui por inverter o ônus da prova, uma vez que o esforço comum a princípio
existe, dependendo de prova da parte interessada em sentido contrário para ser derrubado.
146
Artigo 7º da Lei 9.278/96
147
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato, p. 339.
148
OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do novo
código civil, p 209.
55
A previsão do direito real de habitação na legislação
especial constitui mais uma conquista dos Companheiros em termos sucessórios,
pois, não haveria sentido a Lei nº 8.971/94 ter conferido o direito de propriedade e
o direito de usufruto ao Companheiro e ter silenciado acerca do direito real de
habitação.149
Trata-se de um instituto paralelo ao estabelecido para o
cônjuge viúvo no artigo 1.611, §2º do Código Civil de 1916150, e mantido no artigo
1831 do Código Civil de 2002151.
LOPES DE OLIVEIRA destaca que a partir da vigência Lei
nº 9.278/96, o Direito Sucessório do Companheiro sobrevivente se tornou igual ao
Direito Sucessório do cônjuge sobrevivente.152
Do dispositivo citado, que confere o direito real de habitação
ao Companheiro sobrevivente, se verifica a exigência do cumprimento de dois
requisitos importantes: a destinação do imóvel objeto do direito real de habitação
e a ausência de nova união ou casamento.
Quanto ao primeiro requisito,
exige a lei que o imóvel objeto do direito real de habitação seja
destinado à residência da Família. Apesar de o parágrafo único
do art. 7º da Lei 9.278/96 não conter exigência semelhante à
contida no §2º do art. 1611 do Código Civil, no sentido de que o
imóvel objeto do direito real de habitação “seja o único bem
149
OLIVEIRA, J. M. Leoni Lopes. Alimentos e sucessão no casamento e na união estável, p. 251.
150
“Ao cônjuge sobrevivente, casado sob regime de comunhão universal, enquanto viver e
permanecer viúvo, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o
direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da Família, desde que
seja o único bem daquela natureza a inventariar”.
151
“Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo
da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel
destinado à residência da Família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar”.
152
OLIVEIRA, J. M. Leoni Lopes. Alimentos e sucessão no casamento e na união estável, p. 251.
56
daquela natureza a inventariar”, também aqui entendemos deva
ser feita a mesma exigência, a fim de conferir ao convivente o
direito real de habitação. 153
O parágrafo único do artigo 7º da Lei nº 9.278/96 determina,
ainda, que o Companheiro terá este direito real de habitação enquanto viver ou
não constituir nova união ou casamento.
Desta forma, o segundo requisito exigido para a concessão
do direito real de habitação é a permanência do estado de viuvez, sem casar ou
constituir nova união.
LOPES DE OLIVEIRA considera,
mais claro e preciso, esse dispositivo, do que o § 2º do art. 1.611
do Código Civil, pois prevê, como hipóteses de extinção do direito
real de habitação, tanto o novo casamento, como a constituição
de nova união estável, por parte do convivente sobrevivente.
Como já tivemos oportunidade de afirmar, entendemos que,
também em relação ao cônjuge sobrevivente, é causa de
extinção do direito real de habitação a constituição de união
estável. 154
O direito real de habitação ao Companheiro foi, inclusive,
objeto de manifestação do Superior Tribunal de Justiça, nos seguintes termos: “A
companheira tem, por direito próprio e não decorrente do testamento, o direito de
habitação sobre o imóvel destinado a moradia da família, nos termos da Lei
9.278/96, 7º par. ún.”. 155
153
OLIVEIRA, J. M. Leoni Lopes. Alimentos e sucessão no casamento e na união estável, p. 253.
154
OLIVEIRA, J. M. Leoni Lopes. Alimentos e sucessão no casamento e na união estável, p. 255.
155
STJ, 4ª T, Resp 175862-ES, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, v. u., j. 16.8.2001, DJU 24.9.2001,
p. 308)
57
Com a edição da Lei nº 9.278/96, que concedeu o direito
real de habitação aos Companheiros, surgiu a discussão na doutrina se houve ou
não a revogação da Lei nº 8.971/94 que regulava a União Estável anteriormente.
Acerca da matéria, AZEVEDO defende que não houve
revogação total da lei anterior, mas apenas a sua revogação tácita parcial, naquilo
que for conflitante com a lei posterior. 156
Portanto, permaneceu vigente a Lei nº 8.971/94, no que se
refere ao conteúdo não regulado pela Lei 9.278/96, ocorrendo apenas a
derrogação parcial da lei anterior quanto à matéria que foi objeto de nova
regulamentação pela lei editada posteriormente.
Especificamente
quanto
ao
Direito
Sucessório
dos
Companheiros, regulado pelas referidas leis, destaca-se a permanência em vigor
das disposições do art. 2º da Lei nº 8.971/94, relativas ao direito de propriedade à
herança do Companheiro sobrevivente, e ao direito de usufruto, haja vista não
terem sido revogadas pela Lei nº 9.278/96, que se limitou a reconhecer mais o
direito real de habitação aos Companheiros. 157
Desta forma, não havendo menção de forma expressa à
revogação da lei anterior, a concessão pela Lei nº 9.278/96 do direito real de
habitação, não exclui os demais Direitos Sucessórios já garantidos aos
Companheiros pela lei anterior.
Portanto, os direitos previstos na Lei nº 8.971/94 acrescidos
dos direitos previstos nesta Lei nº 9.278/96, ampliaram as garantias dos
Companheiros, tornando os seus Direitos Sucessórios amplamente protegidos.
156
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato, p. 368.
157
OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento, p. 98.
58
2.5 RECEPÇÃO
DA UNIÃO ESTÁVEL
PELO
ATUAL
CÓDIGO CIVIL
BRASILEIRO E A SUA PREVISÃO DOS DIREITOS SUCESSÓRIOS
No atual Código Civil, a União Estável encontra-se prevista
no Livro IV, Título III, em um capítulo dedicado unicamente à União Estável, que
compreende os arts. 1.723 a 1.726, e prevê sua conceituação, impedimentos,
direitos e deveres dos Companheiros, regime de bens e conversão em
casamento, mais o art. 1.727, que apresenta a definição de concubinato.
Existem, ainda, disposições esparsas em outros capítulos
do Código Civil que regulamentam efeitos patrimoniais da União Estável, como
nos casos de obrigação alimentar, prevista no art. 1.694 e, especificamente,
previsão relativa ao Direito Sucessório do Companheiro no art. 1.790.
OLIVEIRA assinala a “impropriedade em destacar como
título a união estável, quando deveria ser um dos subtítulos do “Direito Pessoal”,
pois constitui forma acrescida de entidade familiar, em parelha ao casamento”.158
Portanto, logo de início, já se verifica uma impropriedade
legislativa, em virtude da forma com que foi abordada e regulamentada a União
Estável na legislação substantiva civil.
Segundo o referido autor, esse tratamento diferenciado
talvez possa ser explicado, embora não justificado, pelo fato de a União Estável
não estar prevista no projeto original do Código Civil, vindo a ser acolhida apenas
posteriormente, motivo pelo qual foi colocada na parte final do texto anteriormente
elaborado.159
O conceito de União Estável trazido pelo Código Civil
Brasileiro de 2002 permanece o mesmo já estabelecido pela Lei nº 9.278/96 no
158
OLIVEIRA, Euclides. Curso de direito de família. Coordenador Douglas Philips Freitas, p. 105.
159
OLIVEIRA, Euclides. Curso de direito de família. Coordenador Douglas Philips Freitas, p. 105.
59
seu art. 1º já citado, apresentando apenas uma pequena mudança na redação, o
que não lhe altera a essência do conteúdo.
O artigo 1.723 prevê o conceito do instituto em apreço, nos
seguintes termos:
Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável
entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública,
contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de
constituição de Família. 160
Conforme se verifica, o conceito de União Estável no atual
Código Civil, não fixa um período de tempo específico para a caracterização da
União Estável, mas exige as características de a convivência ser pública, contínua
e duradoura.
Inicialmente, destaca-se novamente, que a União Estável
não abrange a união homossexual, pois este dispositivo prevê e protege apenas a
união entre homem e mulher.
PEREIRA assevera que o verdadeiro delineamento para
chegar-se ao atual conceito de União Estável deve levar em consideração os
elementos caracterizadores de um núcleo familiar. Estes elementos consistem na
durabilidade, estabilidade, convivência sob o mesmo teto, prole, relação de
dependência econômica.161
Contudo, ressalta o mesmo autor, que a simples falta de um
dos elementos acima referidos, não implica na descaracterização da União
Estável, pois, segundo ele, “é o conjunto de determinados elementos que ajuda a
objetivar e a formatar o conceito de família. O essencial é que se tenha formado
com aquela relação afetiva e amorosa uma família, repita-se”.162
160
BRASIL. Código Civil de 2002, art. 1723.
161
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família e o novo código civil, p. 208.
162
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família e o novo código civil, p. 209.
60
Portanto, este entendimento vem ao encontro da moderna
concepção de Família, segundo a qual, para a sua caracterização, prevalece a
importância dos laços de afeti vidade que uniram os membros que a compõe.
Destaca-se, a seguir, uma abordagem acerca dos requisitos
estabelecidos pelo Código Civil ao estabelecer o conceito de União Estável.
Quanto ao requisito da publicidade, AZEVEDO esclarece
que “[...] como um fato social, a união estável é tão exposta ao público como o
casamento, em que os companheiros são conhecidos, no local em que vivem, nos
meios sociais, principalmente de sua comunidade, pelos fornecedores de
produtos e serviços, apresentando-se, enfim, como se casados fossem”. 163
Portanto, o fato de a convivência ser pública, pressupõe o
seu conhecimento no meio social em que vivem os Companheiros, o que impede
a configuração de união estável com caráter familiar aos encontros realizados às
escondidas, em segredo, de maneira clandestina, por ser incompatível com a
idéia de verdadeira Família no meio social.
Da mesma forma que no casamento, a continuidade da
União Estável também é necessária, sem a existência de interrupções que lhe
retirem a característica de permanência, especialmente, porque o vai e vem de
encontros e desencontros, demonstra uma instabilidade na união.164
Esta característica pressupõe que os Companheiros não
apenas se visitem, mas efetivamente vivam juntos, participando um da vida do
outro, sem a existência período certo para a duração da convivência ou de tempo
marcado para se separarem.
163
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato, p. 437.
164
OLIVEIRA, Euclides. Curso de direito de família. Coordenador Douglas Philips Freitas, p. 107.
61
No que se refere ao prazo para atestar-se à eficácia da
União Estável, no atual Código Civil, novamente optou o legislador por não fixá-lo,
afirmando que esta união existe quando for duradoura.165
O requisito de ser uma união duradoura tem o mesmo
sentido de estável, o que significa a permanência por um tempo razoável, que
seja suficiente para caracterizar o intuito de constituir Família.
LISBOA enfatiza que “o período de tempo anteriormente
fixado em ao menos cinco anos não foi adotado pelo novo Código, bastando que
se demonstre que houve tempo suficiente para a prova da estabilidade, o que
deve ser analisado casuisticamente pelo julgador”. 166
Isto decorre em virtude do fato de que a União Estável
nasce com o afeto entre os Companheiros, não possuindo prazo certo para existir
ou para terminar, devendo o juiz, em cada caso, auferir se houve ou não duração
suficiente para configuração da existência de União Estável. 167
Além dos requisitos de caráter objetivo acima expendidos,
cumpre registrar que a União Estável exige o elemento subjetivo, intencional, que
consiste no propósito de formação da Família.
Nesta temática, ressalta-se que
[...] é no intuito de constituição de Família que está o fundamento
da união estável. Esse estado de espírito de viver no lar pode não
existir, por exemplo, no companheirismo, que objetive, além da
companhia esporádica, relações sexuais ou sociais, com ampla
liberdade de que tenham outras convivências ou companheiros,
não encarando os afazeres domésticos com seriedade. Nessa
situação, pode um casal viver mais de dez anos sem que se
165
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato, p. 438.
166
LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil, volume 5: direito de Família e das sucessões.
3 ed, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 427.
167
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato, p. 438.
62
vislumbre união estável. Os tribunais chamam esse estado de
mero companheirismo, de união aberta ou de relação aberta. 168
Portanto, não é qualquer tipo de convivência que se
enquadra no modelo de entidade familiar, mas apenas e especificamente a União
Estável entre homem e mulher com a intenção de efetivamente constituir uma
Família.
O Código Civil, além de regulamentar os direitos inerentes a
União Estável, estabelece, ainda, alguns deveres a serem respeitados pelos
Companheiros, nos seguintes termos:
Art. 1724. As relações pessoais entre os companheiros
obedecerão aos deveres de lealdade, respeito e assistência, e de
guarda, sustento e educação dos filhos.169
Desta forma, verifica-se que, além de estabelecer os
requisitos a serem cumpridos para a configuração da União Estável, bem como os
direitos concedidos aos Companheiros, a legislação civil prevê também deveres a
serem observados, fortalecendo ainda mais os seus vínculos.
Os deveres pessoais entre os Companheiros estabelecidos
na referida disposição legal, são os mesmos previstos para os cônjuges, com
exceção da coabitação, conforme se verifica no art. 1.566 170 do código civil,
demonstrando a aproximação dos citados institutos, e a importância atribuída à
União Estável como forma de entidade familiar, colocada ao lado do casamento.
168
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato, p. 438.
169
BRASIL, Código Civil de 2002.
170
BRASIL, Código civil. Art. 1566. São deveres dos cônjuges:
I – fidelidade recíproca;
II – vida em comum, no domicílio conjugal;
III – mútua assistência;
IV – sustento, guarda e educação dos filhos.
63
O Código Civil trouxe um novo disciplinamento no que se
refere aos Direitos Sucessórios dos Companheiros, sendo que, em
decorrência
desta
previsão,
a
posição
do
Companheiro
altera-se
substancialmente se comparada com os direitos que lhe eram anteriormente
garantidos pelas leis especiais.
O Código Civil trata do direito do Companheiro
sobrevivente no âmbito sucessório em um único artigo, o 1.790, que se
encontra no capítulo das Disposições Gerais do Direito das Sucessões.
OLIVEIRA registra que “merece reparo essa colocação
da matéria fora do rol dos sucessores legítimos”. Segundo o autor, o artigo que
regulamenta o Direito Sucessório dos Companheiros deveria estar no Título da
Sucessão Legítima, no Capítulo da Ordem de Vocação Hereditária, que
abrange os descendentes, ascendentes, cônjuges e colaterais. 171
Neste sentido, não poderia o Companheiro ser excluído
da qualidade de sucessor legítimo.
A redação do art. 1.790, que prevê os Direitos
Sucessórios dos Companheiros, é a seguinte:
Art. 1790. A companheira ou o companheiro participará da
sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na
vigência da união estável, nas condições seguintes:
I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota
equivalente à que por lei for atribuída ao filho;
II – se concorrer com descendentes só do autor da herança,
tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;
171
OLIVEIRA, Euclides. Curso de direito de família. Coordenador Douglas Philips Freitas, p. 110.
64
III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a
um terço da herança;
IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade
da herança. 172
Antes de iniciar a abordagem acerca dos Direitos
Sucessórios do Companheiro sobrevivente, cumpre destacar que “o patrimônio
hereditário do Companheiro morto será inventariado após exclusão da parte
devida ao companheiro sobrevivente a título de meação, nos termos do que
convencionaram ou sob os regramentos do regime de comunhão parcial de
bens”. 173
Portanto, os Direitos Sucessórios previstos neste artigo,
referem-se apenas à parte concernente à meação do Companheiro falecido.
Realiza -se esta abordagem dos Direitos Sucessórios dos
Companheiros, analisando separadamente e de forma específica os três aspectos
que já lhe haviam sido garantidos pela legislação infraconstitucional: direito de
propriedade à herança, direito de usufruto vidual e direito real de habitação.
2.5.1 Do Direito de Propriedade à Herança
O Companheiro sobrevivente terá direito à herança, em
concorrência com os demais herdeiros sucessíveis, recebendo um quinhão nas
condições previstas nos incisos I ao IV do artigo 1.790 do Código Civil, da
seguinte forma:
172
173
Artigo 1790 do Código Civil de 2002.
NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Novo Código Civil e Legislação
Extravagante Anotados, p. 599
65
a) se o Companheiro sobrevivente tem filhos comuns com o autor
da herança: têm direito de suceder o Companheiro falecido para
receber uma quota equivalente a que foi atribuída ao filho quanto
aos bens que o falecido adquiriu onerosamente;
b) se o Companheiro sobrevivente não tem filhos comuns com o
autor da herança: têm direito de suceder o Companheiro morto
para receber uma quota equivalente à metade da que foi atribuída
ao filho quanto aos bens adquiridos onerosamente pelo falecido;
c) se o de cujus não deixou descendentes, mas ascendentes ou
colaterais: o Companheiro sobrevivente tem direito a um terço
daquilo que foi adquirido onerosamente pelo falecido;
d) na hipótese de o de cujus não ter deixado parentes sucessíveis,
o Companheiro sobrevivente tem direito a totalidade da herança.174
Verifica-se uma diferença de tratamento quanto ao regime
estabelecido pela Lei nº 8.971/94 e mantido tacitamente com a edição da Lei nº
9.278/96, na qual o Companheiro sobrevivente recebia a totalidade da herança na
falta de descendentes ou ascendentes, uma vez que, no atual Código Civil, o
Companheiro se sujeita à concorrer com os demais parentes sucessíveis, quais
sejam os colaterais até o quarto grau.
Isto ocorre em virtude do inciso III, do artigo 1.790, do
Código Civil, estabelecer que, havendo colaterais sucessíveis, o Companheiro
terá direito apenas a um terço da herança.
Portanto, o Companheiro somente terá direito à totalidade
da herança se não houver parentes sucessíveis, o que não ocorria no sistema
vigente antes do Código Civil, pois a lei especial que regulamentava a matéria
estabelecia que na falta de descendentes e ascendentes o Companheiro
recolheria a totalidade da herança.
174
NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Novo código civil e legislação
extravagante anotados, p. 600.
66
Este tratamento, de recolher toda a herança na falta de
descendentes e ascendentes, é o que estabelece o Código Civil vigente ao
cônjuge, colocando-o em terceiro lugar na ordem de vocação hereditária.175
EUCLIDES entende injustificável tamanha discrepância no
tratamento dispensado ao Companheiro, atribuindo-lhe o concurso minoritário
com parentes colaterais. Para o autor, “melhor seria manter o sistema da
legislação revogada para, em similitude ao disposto com relação ao cônjuge,
reservar ao companheiro a totalidade dos bens da herança como efetivo terceiro
na ordem de vocação hereditária”. 176
Assim verifica-se a impropriedade do tratamento legislativo,
ao atribuir ao cônjuge a terceira colocação na ordem de vocação hereditária, logo
após descendentes e ascendentes e, dispensar ao Companheiro um tratamento
que enseja a sua concorrência com parentes colaterais.
Ao abordar acerca da concorrência do Companheiro
supérstite com os colaterais até o quarto grau, HIRONAKA expõe o tratamento
injustificado de uma forma prática:
[...] morto alguém que vivia em união estável, os primeiros a
herdar serão os descendentes em conc orrência com o
companheiro supérstite. Na falta de descendentes, serão
chamados os ascendentes em concorrência com o companheiro
sobrevivo. Na falta também destes e inexistindo, como é óbvio,
cônjuge que amealhe todo o acervo, serão chamados os
colaterais até o quarto grau ainda em concorrência com o
companheiro, uma vez que, afinal, são também os colaterais
parentes sucessíveis. E só na falta desses será chamado o
companheiro remanescente para, aí sim, adquirir a totalidade do
acervo. È flagrante a discrepância.177
175
Brasil. Código Civil, art. 1829, inc. III, c/c art. 1.838.
176
OLIVEIRA, Euclides. Curso de direito de família. Coordenador Douglas Philipis Freitas, p. 118.
177
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Afeto, ética, família e o novo código civil.
Coordenador Rodrigo da Cunha Pereira. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 229.
67
Desta forma, segundo o tratamento dispensado pelo atual
Código Civil, o Companheiro só irá adquirir a totalidade da herança, no caso de
não haver parentes sucessíveis.
Ademais, EUCLIDES DE OLIVEIRA traz à discussão “[...] a
hipótese de o falecido ter deixado apenas bens adquiridos antes da união estável,
ou havidos por doação ou herança. Então, o Convivente nada herdará, mesmo
que não haja parentes sucessíveis, ficando a herança vacante para o ente público
beneficiário [...]”. 178
Esta situação se torna controvertida e discutida na doutrina,
pois, conforme NELSON NERY, “não está claro na lei como se dá a sucessão dos
bens adquiridos a título gratuito pelo falecido na hipótese de ele não ter deixado
parentes sucessíveis”. 179
Esta discussão ocorre porque o caput do artigo 1790 supra
transcrito dispõe que a participação do Companheiro sobrevivente à sucessão do
outro se dará apenas quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da
união estável. Isto implica em dizer que não terá qualquer participação na herança
relativa a outros bens, que tenham sido adquiridos antes ou havidos
graciosamente, através de herança ou doação, pelo autor da herança.180
Segundo OLIVEIRA, esta discussão é resultante da má
redação do artigo 1.790, uma vez que, enquanto o caput do artigo concebe direito
de herança somente sobre os bens adquiridos onerosamente durante a
convivência, o seu inciso IV, estabelece que na falta de parentes sucessíveis o
Companheiro recebe a totalidade da herança.181
178
OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do novo
código civil, p 211.
179
NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Novo código civil e legislação
extravagante anotados, p. 600.
180
OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do novo
código civil, p. 211.
181
OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do novo
código civil, p. 212.
68
NELSON NERY argumentando acerca do assunto, crítica a
falta de técnica legislativa, asseverando que
o CC 1790 caput, sob cujos limites os incisos que lhe seguem
devem ser interpretados, somente confere direito de sucessão ao
companheiro com relação aos bens adquiridos onerosamente na
vigência da união estável, nada dispondo sobre os bens
adquiridos gratuitamente durante esse mesmo período. É de se
indagar se, em face da limitação do CC1790 caput, o legislador
ordinário quis excluir o companheiro da sucessão desses bens,
fazendo com que a sucessão deles fosse deferida à Fazenda. 182
Buscando solucionar o problema, o mesmo autor sugere a
realização de uma interpretação que favoreça os interesses do Companheiro,
visando extrair a real intenção do legislador.
Neste sentido, defende que a herança não deve ser
deferida à Fazenda Pública por três motivos:
a) o CC 1844 manda que a herança seja devolvida ao ente
público, apenas na hipótese de o de cujus não ter deixado
cônjuge, companheiro ou parente sucessível; b) quando o
companheiro não concorre com parente sucessível, a lei se
apressa em mencionar que o companheiro terá direito à
totalidade da herança (CC 1790 IV), fugindo do comando do
caput, ainda que sem muita técnica legislativa; c) a abertura de
herança jacente dá-se quando não há herdeiro legítimo (CC
1819) e, apesar de não contar do rol do CC 1829, a qualidade
sucessória do companheiro é de sucessor legítimo e não de
testamentário. 183
182
NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Novo código civil e legislação
extravagante anotados, p. 600.
183
NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Novo código civil e legislação
extravagante anotados, p. 600.
69
GOMES também entende que apesar de o inciso IV se
referir ao caput do artigo, o qual trata apenas dos bens adquiridos a título
oneroso, cabe ao Companheiro sobrevivente a totalidade dos bens, havidos a
qualquer título, na constância ou não da União Estável, caso não haja parentes
com direito à sucessão.184
Segundo o referido autor “essa interpretação se coaduna
com o disposto no artigo 1.844, inserido no capítulo da ordem de vocação
hereditária, que estatui que a herança somente é devolvida ao Estado se não
houver cônjuge, companheiro, nem parente algum sucessível”.185
Contudo, parte dos doutrinadores defende uma interpretação
literal da lei, segundo a qual o Companheiro deve ter direito à herança somente
sobre os bens adquiridos onerosamente, na constância da União Estável.
Neste sentido, LISBOA afirma que “a sucessão apenas
beneficia o convivente sobre os bens adquiridos onerosamente durante a vigência
da união estável”. 186
Acerca deste assunto é necessário aguardar-se uma
manifestação da jurisprudência, para verificar qual o posicionamento será
adotado, uma vez que o fato de se adotar uma ou outra posição traz
conseqüências jurídicas totalmente diferentes.
Ao adotar-se o entendimento da realização de uma
interpretação literal do caput, atribuindo ao Companheiro sobrevivente direito
somente sobre os bens adquiridos onerosamente, na hipótese do inciso IV,
mesmo não havendo parentes sucessíveis, este não terá direito sobre os bens
adquiridos a título gratuito, os quais ficarão para o ente público.
184
GOMES, Orlando. Sucessões. 12 ed, Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 68.
185
GOMES, Orlando. Sucessões, p. 68.
186
LISBOA, Roberto Senise. Manual de Direito Civil, p. 427.
70
2.5.2 Do Direito ao Usufruto Legal
No que se refere ao direito de usufruto, garantido pelas Leis
infraconstitucionais de 1994 e 1996, que regulavam a matéria anteriormente, a
questão torna-se prejudicada com o advento do Código Civil de 2002, uma vez
que este não mais prevê o Direito Sucessório de usufruto.
Quanto à falta de garantia do direito ao usufruto, por não ser
mais previsto no novo ordenamento civil, EUCLIDES DE OLIVEIRA entende ser
justificável em decorrência da participação do Companheiro, assim como do
cônjuge, na herança atribuída aos descendentes e ascendentes. 187
2.5.3 Do Direito Real de Habitação
Com relação ao direito real de habitação, garantido ao
Companheiro sobrevivente através da Lei nº 9.278/96, também não houve
previsão deste direito no atual Código Civil, que o manteve apenas para o cônjuge
sobrevivente.
EUCLIDES DE OLIVEIRA destaca que o Código Civil de
2002
conserva apenas o direito de habitação no imóvel que servia de
residência ao casal, mas somente em favor do cônjuge
sobrevivente. Não estende o mesmo direito, de elevado cunho
social, ao companheiro sobrevivente, que assim, é deixado
inteiramente à míngua, nem mesmo podendo continuar a residir
no imóvel que lhe servia de residência na união estável, quando
não tenha direito à meação ou a participação na herança.188
187
OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do novo
código civil, p. 213.
188
OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do novo
código civil, p 208.
71
Portanto,
verifica-se
um
tratamento
incompreensível
dispensado ao Companheiro pelo atual Código Civil quanto ao direito real de
habitação, diferenciando-o do cônjuge sobrevivente, bem como retirando um
direito que havia sido concedido-lhe pela Lei nº 9.278/96, de maneira que com a
nova regulamentação dispensada pelo Código Civil, o Companheiro sobrevivente
não é mais contemplado pelo benefício de utilização da moradia que servia ao
casal.
Após a realização desta análise sobre a previsão das Leis nº
8.971/94, 9.278/96 e do Código Civil vigente acerca dos Direitos Sucessórios dos
Companheiros, torna -se importante verificar se, efetivamente, ocorreu um
retrocesso nestes direitos, bem como relaciona-los com a Hermenêutica
Constitucional. Tema que será objeto do capítulo seguinte.
72
CAPÍTULO 3
OS DIREITOS SUCESSÓRIOS DOS COMPANHEIROS À LUZ DA
HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL: UMA PROPOSTA POLÍTICO
JURÍDICA
3.1 A POSSIBILIDADE DA OCORRÊNCIA DE UM RETROCESSO NOS
DIREITOS
SUCESSÓRIOS
VIRTUDE
DAS
GARANTIDOS
ALTERAÇÕES
AOS
COMPANHEIROS
OCASIONADAS
PELA
EM
MUDANÇA
LEGISLATIVA
A partir da análise retrospectiva do instituto da União Estável
desde a sua proteção pela Constituição Federal de 1988 e regulamentação pelas
Leis Infraconstitucionais de nº 8.971/94 e 9.276/96, verifica-se que os Direitos
Sucessórios garantidos aos Companheiros restaram amplamente protegidos.
Conforme ficou demonstrado, este reconhecimento da União
Estável como Entidade Familiar e a proteção legislativa dos seus Direitos
Sucessórios ocorreu pela necessidade de o legislador acompanhar os fatos
sociais, devendo criar normas consentâneas com a realidade.189
Desta forma, ao regulamentar a União Estável, garantindolhe amplos Direitos Sucessórios, cumpriram-se preceitos e fundamentos
constitucionais que determinam o amparo legal a esta forma de constituição de
Família, inclusive, colocando-a ao lado do matrimônio ao considerá-la como
Entidade Familiar.
De acordo com o expendido no capítulo anterior, após a
recepção do instituto da União Estável pela Constituição Federal de 1988, foram
189
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato. 2 ed., São Paulo: Atlas, 2002, p. 237.
73
editadas leis infraconstitucionais com o intuito de regulamentar as conseqüê ncias
jurídicas advindas desta forma de convivência familiar.
Assim, as Leis 8.971/94 e 9.278/96 ao regulamentarem a
União Estável garantiram e protegeram, de uma forma extremamente ampla, os
Direitos Sucessórios dos Companheiros.
Destaca-se
a
ocorrência
de
uma
importante
cadeia
evolutiva, pois, antes da tutela da União Estável pela Constituição Federal de
1988,
não
havia
previsão
legal
quanto
aos
Direitos
Sucessórios
dos
Companheiros, sendo que após a garantia oferecida a esta forma de Entidade
Familiar pela Carta Constitucional verificou-se uma proteção estabelecida pela
jurisprudência e legitimada pela doutrina.
Já com a edição da Lei 8.971/94, depreende-se uma
proteção garantida pela própria legislação infraconstitucional ao prever Direitos
Sucessórios específicos, como o direito à herança a título de propriedade e o
direito de usufruto.
A Lei 9.278/96, editada posteriormente, além de manter a
previsão referente ao Direito Sucessório previsto na legislação anterior, ainda
acrescentou aos Companheiros o direito real de habitação.
Quanto à ocorrência desta evolução legislativa, culminando
na ampla garantia dos Direitos Sucessórios dos Companheiros, importante a lição
trazida por EUCLIDES DE OLIVEIRA:
Como visto, o direito à sucessão hereditária, nas leis da união
estável, é assegurado de forma ampla ao companheiro
sobrevivente, em prática equiparação ao direito do cônjuge viúvo.
Somam-se aos direitos de herança e de usufruto do
companheiro, previstos na Lei 8.971/94, o direito real de
habitação cuidado na Lei 9.278/96 [...]. 190
190
OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do novo
código civil. 6 ed. São Paulo: Método, 2003, p 208.
74
Contudo, contrariando esta evolução, o Código Civil de
2002 surpreendeu a muitos ao regulamentar os Direitos Sucessórios dos
Companheiros de maneira menos favorável do que era antes da sua
promulgação.
Isto porque, ao invés de manter os Direitos Hereditários já
conquistados
pelos
Companheiros
nas
leis
infraconstitucionais
que
o
antecederam, o atual Código Civil retirou determinados direitos no âmbito
sucessório dos quais os Companheiros já haviam sido contemplados, deixandoos em situação desvantajosa se comparados ao tratamento dispensado ao
cônjuge sobrevivente.
Assim, a atual regulamentação do Direito Sucessório
mostra-se prejudicial aos Companheiros em dois aspectos: primeiro, em virtude
de a previsão do Código Civil vigente implicar um visível retrocesso aos Direitos
Sucessórios anteriormente conquistados e gozados pelos Companheiros;
segundo, destaca-se o fato de o tratamento dispensado ao Companheiro, no que
se refere aos Direitos Sucessórios, ter implicado um descompasso com o
tratamento mais benéfico dispensado ao cônjuge viúvo.
Ao abordar o retrocesso ocorrido nos Direitos Sucessórios
dos Companheiros EUCLIDES DE OLIVEIRA destaca que
O NOVO CÓDIGO sequer inclui o companheiro na ordem de
vocação hereditária, limitando-se a tratar de seus direitos nas
disposições gerais do Direito das Sucessões. Pelo teor de seu
art. 1.790, o companheiro terá direito a participar da sucessão do
outro apenas quanto aos bens adquiridos onerosamente na
vigência da união estável. Essa participação dá-se em concurso
com os demais herdeiros, ou seja: concorrendo com
descendentes do falecido, uma cota-parte igual à dos filhos
comuns, ou metade do que receber cada um dos filhos;
concorrendo com outros parentes sucessíveis (ascendentes ou
colaterais), um terço da herança.191
191
OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do novo
código civil, p. 203.
75
VENOSA também enfatiza a ocorrência de um retrocesso na
amplitude dos Direitos Sucessórios dos Companheiros, pois, segundo a previsão
da Lei 8.971/94, que antecedeu o Código Civil de 2002 e foi revogada por este,
não havendo herdeiros descendentes ou ascendentes do de cujus, o
Companheiro sobrevivente recolheria toda a herança.192
Contudo, a partir do sistema implantado pelo Código Civil,
havendo colaterais sucessíveis, o Companheiro herdará apenas um terço da
herança, sendo que só terá direito à totalidade da herança se não houver
parentes sucessíveis. Isto significa que o Companheiro concorrerá na herança
com o tio-avô ou com o primo-irmão de seu companheiro, o que, segundo o autor,
“[...] não é uma posição que denote um alcance social sociológico e jurídico digno
de encômios”.193
Desta forma, em virtude da atual previsão no Código Civil de
2002 acerca dos Direitos Sucessórios dos Companheiros, depreende-se que o
direito à totalidade da herança somente é reconhecido em favor do Companheiro
sobrevivente se não houver herdeiros sucessíveis.
Verifica-se,
assim,
que
a
sucessão
legítima
do
Companheiro, a partir do regramento estabelecido no Código Civil de 2002,
ocorre de forma distinta e mais desvantajosa do que a previsão reservada ao
cônjuge sobrevivente, pois na ordem de vocação hereditária atualmente
estabelecida, o Companheiro sobrevivente não prefere nenhum parente
sucessível, nem mesmo os colaterais.194
Ainda, com a agravante do disposto no caput do artigo
1.790 do Código Civil, segundo o qual a sucessão do Companheiro restringe-se
aos bens adquiridos onerosamente durante a convivência, gerando a discussão,
já expendida no capítulo anterior, se esta disposição aplica-se ao inciso IV ou se,
192
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: direito das sucessões. 3 ed, São Paulo: Atlas, 2003, p.
120.
193
194
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: direito das sucessões, p. 120.
NERY JUNIOR, Nelson. Novo Código Civil e legislação extravagante anotados, p. 600.
76
neste caso, o Companheiro será beneficiado também com os bens adquiridos a
título gratuito.
Admitindo-se que a participação do Companheiro na
herança tenha sido limitada, incidindo apenas sobre os bens adquiridos
onerosamente durante a convivência, verificar-se-á uma inadmissível restrição ao
Companheiro pela vedação do seu acesso aos demais bens, ainda que faltem
herdeiros sucessíveis. 195
O direito ao usufruto garantido aos Companheiros pela Lei
8.971/94, também foi extinto pelo Código Civil, tanto aos Companheiros como aos
cônjuges, posição que se justifica em virtude de ter sido substituído pela
concorrência na sucessão com os parentes do falecido.196
O Direito real de habitação concedido aos Companheiros por
previsão da Lei 9.278/96, também foi extinto pelo atual Código Civil,
evidenciando-se a ocorrência de mais um retrocesso nos Direitos Hereditários
que eram garantidos aos Companheiros, e, que foi suprimido após a entrada em
vigor do Código Civil de 2002.
O fato de o atual Código Civil ter suprimido o direito real de
habitação ao Companheiro sobrevivente, mantendo este direito apenas ao
cônjuge sobrevivente, traduz, para OLIVEIRA, “inadmissível disparidade no trato
jurídico entre referidas pessoas”. 197
Portanto, referido tratamento do Código Civil, ao beneficiar
apenas o cônjuge sobrevivente com o direito real de habitação, mostra-se
injustificado.
Registra-se, ainda, a circunstância de o Companheiro ter
sido excluído da qualidade de sucessor legítimo, encontrando-se em posição
desvantajosa em relação ao casado, uma vez que o Código Civil reserva apenas
195
OLIVEIRA, Euclides. Curso de direito de família. Coordenador Douglas Philips Freitas, p. 111.
196
OLIVEIRA, Euclides. Curso de direito de família. Coordenador Douglas Philips Freitas, p. 111.
197
OLIVEIRA, Euclides. Curso de direito de família. Coordenador Douglas Philips Freitas, p. 111.
77
ao cônjuge sobrevivente a qualificação de herdeiro necessário, juntamente com
descendentes e ascendentes.198
Assim, se antes da promulgação do Código Civil os Direitos
Sucessórios dos Companheiros estavam amplamente protegidos, inclusive,
igualando-os aos direitos dos cônjuges no âmbito sucessório, com a entrada em
vigor da legislação civil em 2002, os Direitos Hereditários dos Companheiros
sofreram um profundo retrocesso em decorrência da supressão de direitos
anteriormente conquistados, bem como a diminuição de sua condição no plano
sucessório.
Com relação ao tratamento diferenciado dispensado ao
Companheiro e ao cônjuge no atual Código Civil, destaca-se que não se verificou
o mesmo posicionamento distinto ao se tratar de outras áreas de proteção
jurídica, tornando esta disparidade de tratamento ainda mais injustificável.
Nesta temática OLIVEIRA assevera que,
num exame abrangente da proteção jurídica dispensada à união
estável, tenha-se em mente que, no campo dos direitos relativos
a alimentos (art. 1.694) e à meação (art. 1.725), o companheiro é
tratado em posição de igualdade com a pessoa casada. Mas, não
assim, na esfera do direito sucessório, onde as disposições do
novo ordenamento são bem diversas das que constavam da
legislação pretérita. 199
Portanto, demonstrada a real ocorrência de um retrocesso
nos Direitos Sucessórios atribuídos aos Companheiros, deixando-os em situação
desvantajosa em relação aos mesmos direitos concedidos aos cônjuges, entendese injustificado o tratamento diferenciado, especialmente levando-se em conta a
atual concepção de família e a proteção constitucional garantida à União Estável
como forma de Entidade Familiar.
198
OLIVEIRA, Euclides. Curso de direito de família. Coordenador Douglas Philips Freitas, p. 111
199
OLIVEIRA, Euclides. Curso de direito de família. Coordenador Douglas Philips Freitas, p. 111.
78
Concernente a este atraso verificado, ao comparar os
direitos anteriormente garantidos aos Companheiros através das leis especiais,
com o tratamento agora dispensado aos Companheiros no âmbito sucessório,
OLIVEIRA registra que “[...] o Código Civil de 2002 dá um salto para trás em face
dessa redução de direitos”. 200
Oportuno destacar que a discussão anteriormente realizada
fundamenta-se no fato de o Companheiro sobrevivente ter ficado em posição
menos vantajosa do que o cônjuge sobrevivente, bem como e, principalmente, em
decorrência
do
retrocedimento
verificado
nos
Direitos
Sucessórios
dos
Companheiros após a edição do Código Civil de 2002, ao suprimir direitos
anteriormente previstos pela legislação infraconstitucional.
3.2 O RETROCESSO NOS DIREITOS SUCESSÓRIOS DOS COMPANHEIROS
EM COLISÃO COM O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
A atual concepção do Direito, surgida com a nova
Hermenê utica, enfatiza a importância do Princípio da Dignidade da Pessoa
Humana, uma vez que a atividade estatal deve ser dirigida ao próprio ser humano
e não mais ao ente público.
Em virtude desta nova concepção, um regime democrático
deve ter como finalidade a realização concreta de políticas públicas que
preservem e, especialmente, promovam a Dignidade da Pessoa Humana.
Isto porque, conforme enfatizado, a própria razão de
existência do Estado Contemporâneo é o ser humano, o qual é o titular da noção
de Dignidade, haja vista que a Dignidade constitui-se como qualidade inerente de
cada pessoa humana, o que a torna destinatária do respeito e proteção, tanto do
Estado quanto das demais pessoas.
200
OLIVEIRA, Euclides. Curso de direito de família. Coordenador Douglas Philips Freitas, p. 111.
79
Para que efetivamente se cumpra o Princípio da Dignidade
da Pessoa Humana é necessário o respeito pela vida e pela integridade física e
psíquica do ser humano, com a garantia de condições mínimas de sobrevivência
através do reconhecimento e proteção de direitos fundamentais.201
Verifica-se, neste contexto, que a concretização do Princípio
da Dignidade da Pessoa Humana pressupõe o respeito e a proteção tanto de
ordem física quanto de ordem moral do indivíduo.
Cumpre também registrar que o Princípio da Dignidade da
Pessoa Humana constitui a base, o alicerce, ou seja, o próprio fundamento do
Estado Democrático de Direito. Isto implica que referido princípio representa o
valor supremo não somente da ordem jurídica, mas também da ordem política,
social e econômica.
Em virtude desta importância, ao ser incorporado ao sistema
jurídico sob a forma de princípio pela Constituição Federal de 1988, a Dignidade
da Pessoa Humana determina uma inversão na prioridade política, social,
econômica e jurídica até então existente no Estado Constitucional Brasileiro. A
partir do texto de 1988, adquire-se a consciência constitucional de que a
prioridade do Estado, em todas as suas áreas de atuação, deve ser o homem,
considerado como fonte de sua inspiração e fim último de seus objetivos.202
Assim, infere-se que conceber a Dignidade da Pessoa
Humana como o fundamento do Estado Democrático de Direito, implica admitir
que o próprio Estado se constrói a partir da pessoa humana e para servi-la, sendo
esta a prioridade que justifica a atuação do Estado.
A partir desta compreensão decorre o fato de que o ser
humano está protegido de qualquer humilhação ou desrespeito à sua integridade
não só física, mas também psíquica.
201
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre,
2002, p. 61.
202
MARTINS, Flademir Jerônimo Belinati. Dignidade da Pessoa Humana: princípio constitucional
fundamental. Curitiba: Juruá, 2003, p. 72.
80
Demonstrada a amplitude e a abrangência do Princípio da
Dignidade da Pessoa Humana atuando como valor e fundamento de toda a ordem
jurídico-política, oportuno registrar que a Dignidade exerce importante influência
no Direito de Família, principalmente nas relações afetivas, uma vez que a
Família é a base para a garantia de uma vida digna e feliz para todos os seus
membros.
Para FARIAS a Família, na visão contemporânea, consiste
em um meio para a realização da felicidade do homem e afirmação de sua
dignidade. Deste contexto, decorre a necessidade de buscar-se uma visão
essencialmente funcionalizada da Família, considerando-a como o “[...] locus
privilegiado para o desenvolvimento da personalidade e afirmação da dignidade
de seus membros“. 203
Portanto, depreende-se que a proteção do ser humano, com
a finalidade de preservar-se a Dignidade da Pessoa Humana, pressupõe a
necessidade de proteção do ente familiar.
Foi justamente com o intuito de cumprir este objetivo,
protegendo o ente familiar no seu sentido mais amplo, que a Constituição Federal
de 1988 dispensou tutela específica à União Estável como uma forma de
constituição de Família, ao lado do Casamento e da Família Monoparental.
Contudo, a maneira com que foi disciplinado o Direito
Sucessório dos que vivem em União Estável, provocando o demonstrado
retrocesso nestes direitos, bem como relegando aos Companheiros uma posição
de inferioridade em relação ao cônjuge, mostra-se injustificável e violadora do
Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
VELOSO assevera que as Famílias constituídas através de
União Estável possuem a mesma Dignidade, a mesma importância e,
conseqüentemente, merecem igual respeito, consideração e proteção. Segundo o
citado autor, “acabou-se o tempo em que, com base em preconceitos
203
FARIAS, Cristiano Chaves. Revista Brasileira de direito de família. Porto Alegre: Síntese,
IBDFAM, v. 5, n. 18, jun/jul, 2003, p. 67.
81
aristocráticos, concepções reacionárias, passadistas e argumentos repletos de
hipocrisia, as famílias eram classificadas [...] em famílias de primeira classe, de
segunda classe e, até, de classe nenhuma“. 204
Portanto, o tratamento inferiorizado, em virtude da retirada
de
direitos
já
conquistados
pelos
Companheiros
pela
legislação
infraconstitucional, relega à União Estável uma posição secundária, ferindo, desta
forma, o princípio da Dignidade da Pessoa Humana, principalmente, por saber-se
que a concretização do referido princípio ocorre através dos direitos
fundamentais, os quais constituem explicitações ou exteriorizações da Dignidade
Humana, o que, conseqüentemente, traz o entendimento de que em cada direito
fundamental faz-se presente um conteúdo ou alguma projeção da Dignidade da
Pessoa.205
Neste sentido, registra-se que a Constituição Federal de
1988 ao instituir e elencar um amplo rol de direitos fundamentais pretendeu não
apenas preservar, mas, principalmente, promover a Dignidade da Pessoa
Humana.206
Assim, a concretização da Dignidade da Pessoa Humana
exige
e
pressupõe
o
reconhecimento
dos
direitos
fundamentais
constitucionalmente assegurados, de maneira que a violação dos direitos
fundamentais representa a negação da própria Dignidade.207
Do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana “[...]
decorrem, simultaneamente, obrigações de respeito e consideração (isto é, de
204
VELOSO, Zeno. Direito de família e o novo código civil. Coordenadores: Maria Berenice Dias e
Rodrigo da Cunha Pereira. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 235.
205
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição
federal de 1988, p. 89.
206
MARTINS, Flademir Jerônimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional
fundamental, p. 52.
207
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição
federal de 1988, p. 90.
82
sua não-violação), mas também um dever de sua promoção e proteção (por meio
de medidas positivas) [...]”. 208
Em virtude do citado valor supremo atribuído à Dignidade da
Pessoa Humana, este princípio constitui um limite à atividade restritiva do
legislador, principalmente no que se refere aos Direitos Fundamentais.
Neste sentido, SARLET destaca que “[...] a dignidade da
pessoa atua simultaneamente como limite dos direitos e limite dos limites, isto é,
barreira última contra a atividade restritiva dos direitos fundamentais”.209
Portanto, por ser parte integrante do conteúdo dos direitos
fundamentais, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana atua como importante
elemento de proteção dos direitos contra medidas restritivas.
A análise desta questão remete ao Princípio da Proibição de
Retrocesso, sendo que, para CANOTILHO, este princípio deve ser entendido da
seguinte maneira:
o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efetivado
através
de
medidas
legislativas
deve
considerar-se
constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer
medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas
alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática numa
‘anulação’, ‘revogação’ ou ‘aniquilação‘ pura e simples desse
núcleo essencial.210
Este princípio, apesar de não desconsiderar totalmente a
existência de uma certa liberdade da qual dispõe o legislador inserido em uma
ordem democrática, possui, a função de impedir que o legislador venha a
simplesmente desconstituir o grau de concretização que ele próprio havia dado às
normas da Constituição.
208
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição
federal de 1988, p. 99.
209
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição
federal de 1988, p. 123.
210
CANOTILHO, ob. cit. p. 321.
83
Principalmente, enfatiza-se a questão de se tratar de normas
constitucionais que, em maior ou menor grau, dependem de normas
infraconstitucionais para atingirem sua plena efetividade, ou seja, para serem
aplicadas e cumpridas pelos entes públicos e pelos particulares.
Verifica-se que com base no Princípio da Proibição de
Retrocesso, principalmente no que se refere a direitos fundamentais, o que se
pretende é evitar que o legislador venha a revogar (no todo ou em parte
essencial) uma ou mais normas infraconstitucionais que concretizaram um direito
fundamental constitucionalmente consagrado. Mesmo que não se esteja referindo
a uma alteração da própria Constituição, ainda assim se estaria diante da
hipótese de um verdadeiro golpe contra a nossa Lei Fundamental. 211
O Direito à Herança representa um Direito Fundamental
constitucionalmente assegurado, previsto no inciso XXX do artigo 5º da
Constituição Federal de 1988, e visando dar efetividade ao direito fundamental a
Herança aos Companheiros, o legislador havia garantido um grau de
concretização a este direito através das Leis 8.971/94 e 9.278/96.
Contudo, conforme sustentado e demonstrado no item
precedente, os Direitos Sucessórios dos Companheiros sofreram um profundo
retrocesso com a edição do Código Civil de 2002.
Este fato resta devidamente evidenciado em decorrência da
diminuição de determinados direitos que eram garantidos aos Companheiros pela
legislação infraconstitucional que regulava a matéria antes da entrada em
vigência do Código Civil atual.
211
SANTIAGO, Leonardo Ayres. O perfil dos direitos sociais na atualidade e os aspectos
decorrentes
de
sua
concretização.
Disponível
em
www.mundojuridico.adv.br/html/artigos/documentos/texto. Acesso em 25/05/2005.
84
A retirada ou diminuição destes Direitos Sucessórios, já
assegurados e gozados pelos Companheiros, representa uma violação ao
Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, uma vez que este representa um
importante elemento de proteção dos direitos contra medidas restritivas.
Mormente, porque o Princípio da Dignidade da Pessoa
Humana concretiza-se através da efetividade dos direitos fundamentais e a
restrição do direito fundamental à herança constitucionalmente assegurado aos
Companheiros atinge diretamente um aspecto da Dignidade Humana.
Desta forma, sabendo-se que os direitos assegurados aos
Companheiros
são
oriundos
de
uma
aspiração
da
própria
sociedade,
contemplados através de um lento processo de conquistas e adequação à
realidade, é necessário que se resguardem direitos já consagrados e assumidos
pelo legislador em detrimento de outros interesses que não estão relacionados à
vontade coletiva.
FARIAS
enfatiza
que
“[...]
o
reconhecimento
da
fundamentalidade da dignidade humana impõe uma nova postura aos civilistas
modernos (especialmente aqueles que laboram com o Direito de Família),
devendo, na interpretação e aplicação das normas e conceitos jurídicos,
assegurar a vida humana de forma integral e prioritária”.212
A inobservância deste entendimento está fadada ao
desrespeito e ao tratamento indigno àqueles que optarem por viver em União
Estável,
a
qual
representa
uma
forma
de
constituição
de
Família
constitucionalmente assegurada.
212
FARIAS, Cristiano Chaves. Revista brasileira de direito de família. Porto Alegre: Síntese,
IBDFAM, v. 5, n. 18, juh/jul, 2003, p. 66.
85
3.3 O RETROCESSO NOS DIREITOS SUCESSÓRIOS DOS COMPANHEIROS
EM COLISÃO COM AS GARANTIAS INSTITUCIONAIS DE PROTEÇÃO À
FAMÍLIA E À UNIÃO ESTÁVEL
O Estado possui interesse em preservar a vida familiar com
segurança jurídica, uma vez que a Família representa a sua base, seu
sustentáculo, sua própria vida, ou seja, a menor porção da sociedade. A Família,
por sua vez, é fortalecida através de uma convivência pacífica e segura de seus
membros, unidos pelos laços do amor.213
Assim, em virtude da importância da instituição familiar, o
caput do art. 226 da Constituição Federal de 1988 prevê expressamente que a
Família constitui a base da sociedade e possui especial proteção do Estado.
Segundo FREITAS, esta proteção garantida à Família pelo
Estado constitui um direito subjetivo público, sendo oponível à sociedade e ao
próprio Estado.214
A concepção de Família sofreu alterações ao longo dos
tempos, sendo que a moderna concepção de Família é àquela que privilegia os
laços de afetividade entre os membros que a compõem.
Neste sentido DAL COL enfatiza que “por família não se
pode entender somente aquela constituída sob os auspícios da legislação civil
atinente ao casamento, mas toda forma de agregação de pessoas num núcleo
doméstico, regido pelo amor e pelo respeito mútuos”. 215
Este entendimento expressa a nova concepção de Família,
baseada nos laços afetivos, na compreensão e no amor, a qual modificou
profundamente as bases do Direito.
213
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato, p. 241.
214
FREITAS, Douglas Phillips. Curso de Direito de Família. Florianópolis: Vox Legem, 2004, p. 01.
215
DAL COL, Helder Martinez. À família à luz do concubinato e da união estável. Rio de Janeiro:
Forense, 2002, p. 37.
86
Para atender esta evolução ocorrida na concepção de
Família, o Direito modificou-se a fim de abranger um novo estado de
comportamento, representativo de uma nova forma de constituir Família, qual
seja, a União Estável.
Assim, conforme já restou expendido, atendendo às
aspirações sociais e regulamentando uma situação de fato já existente, a
Constituição Federal de 1988 garantiu de forma expressa a proteção do Estado à
União Estável, inc lusive, qualificando-a como Entidade Familiar.
Oportuno destacar o status de Entidade Familiar atribuído à
União Estável pela Constituição Federal de 1988, colocando-a ao lado do
Casamento e da Família Monoparental. 216
Portanto, o Estado reconheceu e legitimou a União Estável
como uma forma de constituir Família também merecedora da ampla proteção
estatal e da regulamentação dos direitos a ela inerentes.
Verificou-se que, após esta proteção constitucional, os
direitos decorrentes desta forma de convivência restaram amplamente protegidos,
especialmente no que se refere ao âmbito sucessório.
Contudo, a atual regulamentação do Direito Sucessório dos
Companheiros, retirando direitos anteriormente protegidos, bem como o
colocando em posição menos vantajosa do que o cônjuge sobrevivente, viola
frontalmente a garantia institucional dispensada pelo Estado à União Estável
como forma de Entidade Familiar.
Pois, ao erigir a União Estável, por ser uma forma de
constituir
Família,
à
categoria
de
instituição
protegida
e
garantida
constitucionalmente, o Estado pretendia preservar o mínimo de substantividade a
esta instituição, assegurando a sua permanência e impedindo eventual supressão
no seu alcance.217
216
AMIM, Andréa Rodrigues. O Novo código civil: livro IV do direito de família. Coord. Heloísa
Maria Dalto Leite. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2002, p. 429.
217
Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7 ed, São Paulo: Malheiros, 1997, p. 497.
87
O retrocesso verificado no âmbito sucessório colide com a
garantia institucional dispensada à União Estável, uma vez que o atual
disciplinamento representa um tratamento indigno aos Companheiros e distante
da realidade social vivenciada, a qual alargou a concepção de Família a fim de
abranger a União Estável também como forma de Entidade Familiar.
A ocorrência deste recuo dos Direitos Sucessórios dos
Companheiros no Código Civil torna -se ainda mais injustificada em virtude do
tratamento diferenciado, por certo, mais desvantajoso, atribuído ao Companheiro
em relação ao cônjuge nas mesmas condições.
VELOSO registra que, se o princípio da igualdade, vigente
em nossa ordem constitucional, determina que se coloque no mesmo plano, tanto
a Família constituída pelo Casamento, como a que decorre da convivência
pública, contínua e duradoura, não se pode admitir tamanha discriminação no
tratamento conferido aos Companheiros no que se refere ao Direito Sucessório
pelo atual código civil.218
Principalmente, em virtude de estar assentada de forma
pacífica a posição do Companheiro sobrevivente similar à do cônjuge supérstite.
Segundo o citado autor, “salvo a necessidade de alguns ajustes, não se via na
doutrina pátria nenhuma objeção mais profunda sobre a forma como a matéria foi
disciplinada pelas legislações especiais. Não há, portanto, razão jurídica, motivo
histórico, causa sociológica que justifique mudança tão intensa e radical”. 219
Desta forma, se a União Estável foi equiparada à Família
constituída pelo matrimônio como forma de Entidade Familiar, verifica-se que este
tratamento atribuído ao Companheiro na esfera do Direito Sucessório pelo atual
Código Civil colide diretamente com a previsão constitucional de especial
proteção à Família e, especificamente, à União Estável, por ser uma forma de
vida familiar constitucionalmente assegurada.
218
VELOSO, Zeno. Direito de família e o novo código civil. Coordenadores: Maria Berenice Dias e
Rodrigo da Cunha Pereira, p. 235
219
VELOSO, Zeno. Direito de família e o novo código civil. Coordenadores: Maria Berenice Dias e
Rodrigo da Cunha Pereira, p. 235.
88
Especialmente, ante a inexistência de justificativas jurídicas,
históricas ou mesmo sociais, que autorizassem este disciplinamento diferenciado
entre as Famílias matrimonializadas e as Famílias formadas por União Estável.
Neste contexto, FACHIN enfatiza a importância de as
disposições do Código Civil de 2002, especialmente as referentes ao Direito de
Família, serem lidas e aplicadas à luz dos princípios constitucionais. 220
Assinala VELOSO que se a Família possui especial proteção
do Estado por representar a base da sociedade; se a União Estável, por sua vez,
é reconhecida como entidade familiar; se estão praticamente equiparadas as
Famílias formadas pelo matrimônio e as Famílias criadas de maneira informal,
através da convivência pública, contínua e duradoura entre o homem e a mulher,
a discrepância existente entre a posição sucessória do cônjuge e do Companheiro
sobrevivente, além de ser totalmente contrária ao sentimento e as aspirações
sociais, efetivamente, fere e maltrata, tanto na letra, quanto no espírito, os
preceitos e fundamentos constitucionais. 221
Portanto,
demonstradas
as
disparidades
existentes,
importante realizar-se uma reflexão crítica acerca da legislação que regulamenta
os Direitos Sucessórios dos Companheiros, com a realização de uma proposta à
luz da política jurídica, a fim de que o seu conteúdo se mostre, efetivamente,
coerente com o paradigma da Família contemporânea, bem como respeite ao
Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, nos moldes previstos pela
Constituição Federal de 1988.
220
FACHIN, Luiz Edson. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre; Síntese, IBDFAM,
v. 5, n. 17, abr/mai, 2003, p. 34.
221
VELOSO, Zeno. Direito de família e o novo código civil. Coordenadores: Maria Berenice Dias e
Rodrigo da Cunha Pereira, p.237.
89
3.4 UMA PROPOSTA LEGISLATIVA À LUZ DA POLÍTICA JURÍDICA
Conforme se observou nos itens precedentes, a proteção
legal da União Estável foi sendo concretizada como resposta a um clamor da
própria sociedade, demonstrando que o Direito é dinâmico e deve evoluir a fim de
atender aos anseios sociais, uma vez que “se a sociedade tende a organizar
inovações, o Direito tem de evoluir na mesma direção e consagrar os princípios
apropriados por essa evolução”.222
Neste sentido, KRELL assinala que a realidade social é
dinâmica e o Direito também, devendo ser estudado como algo mutável para
evitar a ocorrência de um descompasso entre uma realidade em constante
evolução e um direito estático, 223 principalmente, considerando-se que as
sociedades contemporâneas, que apresentam como característica a democracia,
não aceitam um direito positivo que permaneça alheio às mudanças culturais e às
conquistas sociais, refletindo apenas o voluntarismo do legislador ou do juiz. 224
Busca-se,
assim,
a
elaboração
de
um
Direito
que
corresponda aos anseios sociais, à realidade vivenciada, e, principalmente,
atenda aos valores de justiça.
Se o direito é representado ou exteriorizado através das
normas jurídicas, o conteúdo destas deve concretizar o valor justiça, bem como
oferecer respostas compatíveis com a realidade social.
Nesta
temática,
cumpre
registrar
a
existência
e
a
importância da Política Jurídica, como disciplina específica que tem como objetivo
“buscar o direito adequado a cada época, tendo como balizamento de suas
proposições os padrões éticos vigentes, e a história cultural do respectivo
povo”. 225
222
KRELL, Olga Jubert Gouveia. União estável: análise sociológica. Curitiba: Juruá, 2003, p. 75.
223
KRELL, Olga Jubert Gouveia, União estável: análise sociológica, p. 75.
224
MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica. Porto Alegre: Sérgio Antônio
Fabris, 1994, p. 17.
225
MELO, Osvaldo Ferreira de. Temas atuais de política do direito. Porto Alegre: Sérgio Antônio
Fabris, 1998, p. 80.
90
Portanto, verificada a importância da Política Jurídica como
disciplina própria, destinada a buscar o direito que deve ser, compatível com cada
época, neste capítulo apresentar-se-á, inicialmente, algumas considerações
acerca da Política Jurídica, para, posteriormente, analisar-se a sua aplicação
específica nos Direitos Sucessórios dos Companheiros.
3.4.1 Considerações Preliminares sobre a Política Jurídica
Enfatiza-se a grande importância da Política Jurídica, pois
esta é uma disciplina que prioriza, em sua dimensão prática, “[...] alcançar a
norma que responda tão bem quanto possível às necessidades gerais, garantindo
o bem estar social pelo justo, pelo verdadeiro e pelo útil, sem descurar da
necessária segurança jurídica e sem por em risco o Estado de Direito”. 226
Neste sentido, infere-se que a Política Jurídica preocupa-se
com que a norma traduza um efetivo instrumento de justiça e, por isso, sempre se
posiciona além do direito positivo com o objetivo de orientá -lo para as necessárias
alterações e reformas.
Desta forma, aos políticos jurídicos incumbe a realização de
um estudo crítico perceptivo do ordenamento jurídico positivo, assumindo a
responsabilidade de aperfeiçoar o sistema normativo vigente.227
Para cumprir seu propósito, e atingir a justiça através da
norma, a Política Jurídica é uma disciplina que se preocupa, entre outros
aspectos, com a Consciência Jurídica da Sociedade e com a Validade Material da
Norma.
226
227
MELO, Osvaldo Ferreira de. Temas atuais de política do direito, p. 20.
OLIVEIRA, Gilberto Callado de. Filosofia da Política Jurídica: propostas epstemológicas para a
pol´tica do direito. Itajaí: Univali, 2001, p. 125.
91
A Consciência Jurídica representa os valores prevalecentes
em uma sociedade, de maneira que a Política Jurídica preocupa-se em verificar
quais seriam estes valores, descobrindo, assim, o que deseja a maioria das
pessoas sobre questões de interesse comum.228
Apesar das dificuldades em estabelecer consensos em
decorrência da existência de conflitos de interesses, bem como pensamentos
ideológicos distintos dentro de uma mesma sociedade, a Política Jurídica
pretende descobrir e fazer com que a norma jurídica efetivamente represente a
vontade e os interesses da maioria.
Neste sentido, OLIVEIRA assevera a importância de a
Política Jurídica atentar para os interesses legítimos da sociedade, ou seja, para a
consciência jurídica dos indivíduos, [...] “às suas raízes éticas, aos valores que
oscilam em razão de novos costumes, às múltiplas tradições regionais, ao sentir
comum das pessoas, à opinião pública e a tantas outras manifestações que
formam todo um realismo axiológico”. 229
Portanto, a constatação da consciência jurídica de uma
sociedade pela Política Jurídica, representa a aferição dos valores e anseios
dominantes, com o objetivo de que se possam encontrar os meios adequados
para o fim proposto de bem ordenar esta sociedade, através da elaboração de
normas que alcancem efetivamente a realização da justiça.
Este enfoque reflete mais um alcance da Política Jurídica, o
qual representa a preocupação com a validade material da norma. Esta, segundo
MELO, é obtida através do respeito aos critérios de justiça e utilidade social, pois
estes valores representariam as qualidades de uma norma perfeita.230
228
MELO, Osvaldo Ferreira de. Temas atuais de política do direito, p. 23.
229
OLIVEIRA, Gilberto Callado de. Filosofia da Política Jurídica: propostas epstemológicas para a
política do direito, p. 141.
230
MELO, Osvaldo Ferreira de. Temas atuais de política do direito, p. 32.
92
Assim, a validade da norma, enfatizada pela Política
Jurídica, distingue-se da idéia de validade defendida pela ciência jurídica de
natureza eminentemente positivista, para a qual a norma é válida quando
compatível com a norma superior, através de uma relação hierárquica, bem como
quando o seu processo de formação obedeceu ao procedimento previsto para a
sua constituição.231
Neste caso, a verificação de validade da norma possui um
critério estritamente formal, sem levar em consideração a integração normativa da
consciência jurídica da sociedade, ou seja, a sua conformidade com a realidade
vivenciada e desejada.
A Política Jurídica, por sua vez, defende que “a validade de
uma norma não pode ser extraída apenas de seus aspectos formais. mas deve
considerar também a legitimidade ética de seu conteúdo e de seus fins”,
primando, desta forma, pela validade material da norma que deve ser buscada
nas idéias do justo e do socialmente útil. 232
O critério de utilidade apresenta -se legítimo e adequado
para definir a validade material de uma norma, quando esta tratar de questões
técnicas, organizacionais e pragmáticas, que não envolvam direitos individuais e
sociais.233
Por isso, a fim de atender aos objetivos da presente
pesquisa, aborda-se, com maior ênfase, o critério de justiça.
Apesar da dificuldade dos doutrinadores em conceituar
Justiça, MELO apresenta uma contribuição ao estabelecer a possibilidade de se
alcançar um conceito racional para esta categoria. Segundo o autor, a Política
Jurídica entende e examina a “[...] Justiça como categoria cultural ou seja como
um valor que a Consciência Jurídica da sociedade atribui à norma posta ou à
231
OLIVEIRA, Gilberto Callado de. Filosofia da Política Jurídica: propostas epstemológicas para a
política do direito, p. 227.
232
MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica, p. 88.
233
MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica, p. 120,121.
93
norma proposta pois, afinal, todo valor designa o grau de aptidão de um objeto
para satisfazer necessidades”. 234
Abordando justiça neste sentido, segundo o autor, é possível
estabelecer critérios objetivos de justiça, os quais orientam, na Consciência
Jurídica, o arbitramento da norma como justa ou injusta:
1 – Justiça como ideal político de liberdade e igualdade: A norma
que obstaculizar ou fraudar as aspirações de coparticipação e
compartilhamento será considerada injusta. 2 – Justiça como
relação entre as reivindicações da sociedade e a resposta que
lhes dê a norma: Se houver inadequação nessa relação, o
sentimento resultante será de que se trata de norma injusta. 3 –
Justiça como a correspondência entre o conhecimento científico
sobre o fato (conhecimento empírico da realidade) e a norma em
questão: A norma cujo sentido não corresponda a verdade
empiricamente demonstrada e socialmente aceita será norma
injusta. 4 – Justiça como legitimidade ética. A norma do direito
que conflitar com a norma de moral poderá ser considerada
injusta.235
Para a Política Jurídica, a legitimidade da norma depende da
observância destes critérios, sendo necessária a identificação da norma com as
aspirações sociais, afastando-se do conceito de legalidade para aproximar-se do
conceito de justiça social.236
Neste sentido, surge a importante função que a Política
Jurídica exerce sobre o Direito, orientando-o para as necessárias transformações,
quando constatada a desconformidade da norma com a realidade almejada pela
sociedade.
OLIVEIRA assevera que a Política Jurídica penetra no
Direito inicialmente com uma postura crítica, para,
234
MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica, p. 108.
235
MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica, p. 108
236
MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica, p. 83.
94
[...] a partir daí observar as tendências indesejáveis e
contrárias aos interesses mais elevados da coletividade e da
sua própria razão de existir, e propor as mudanças de rumo,
quer mediante correções adequadas, quer mediante a
introdução de uma nova estrutura legal. São correções e
acrescimentos inspirados pela conveniência e utilidade dos
meios, tendo em vista o cotidiano progresso da sociedade e a
contínua transformação do direito com o elevado objetivo de
ajusta-los a uma verdadeira ordem social”. 237
MELO enfatiza que “a Política Jurídica é crucial quando se
trate de escolhas, de juízos e de respostas concretas visando a correção de
norma imperfeita, à criação da norma nova ou a exclusão de norma indesejável,
por uma questão de legitimação”.238
Portanto, infere-se a relevante preocupação da Política
Jurídica, a qual não se limita simplesmente ao direito posto, ou ao direito vigente,
mas especialmente ao direito desejado, visando a consecução dos anseios
sociais e dos valores de justiça através da norma.
Sendo que, para cumprir sua tarefa, esta disciplina propõe a
realização de análises críticas ao ordenamento vigente, para a efetivação das
medidas necessárias de transformação e readequação das normas indesejadas.
Após esta breve abordagem acerca dos fundamentos da
Política Jurídica, realiza-se a análise dos principais aspectos dos Direitos
Sucessórios dos Companheiros, estabelecendo-se propostas de correção
legislativa à luz da Política Jurídica.
237
OLIVEIRA, Gilberto Callado de. Filosofia da Política Jurídica: propostas epstemológicas para a
política do direito, p. 46.
238
MELO, Osvaldo Ferreira de. Temas atuais de política do direito, p. 21.
95
3.4.2 A aplicação da Política Jurídica na legislação referente aos
Direitos Sucessórios dos Companheiros
A partir da abordagem realizada acerca dos Direitos
Sucessórios dos Companheiros nos capítulos antecedentes, ficou demonstrada a
ocorrência de um retrocesso nestes direitos após a sua regulamentação pelo
Código Civil.
A atual previsão dos Direitos Sucessórios dos Companheiros
demonstra uma inadequação da norma vigente com o direito efetivamente
almejado pela Sociedade, bem como se distancia da realidade vivenciada pela
União Estável ao confrontar-se a prática com a legislação que a regulamenta.
Ademais, a partir da análise realizada, infere-se, ainda, a
desconformidade do Código Civil, na matéria referente aos Direitos Sucessórios
dos Companheiros, com o princípio da Dignidade da Pessoa Humana e com as
garantias constitucionais de especial proteção à Família.
Portanto, alguns itens específicos dos Direitos Sucessórios
dos Companheiros, no atual Código Civil, merecem uma análise à luz da Política
Jurídica, com o objetivo de estabelecer-se propostas de alteração das normas
vigentes a fim de torná -las mais consentâneas com a realidade, bem como mais
aptas a atingir o valor Justiça, tão almejado pelo Direito.
Referidas propostas são apresentadas neste trabalho, não
com a pretensão de que sejam efetivamente acatadas como alterações
legislativas, mas, especialmente, de contribuir para a discussão do tema e o
aperfeiçoamento do direito vigente.
Ainda que não se concretizem referidas propostas de
modificação legislativa, a reflexão sobre o assunto por si só já cumpre o objetivo
de alertar a comunidade jurídica acerca de imperfeições legislativas que merecem
atenção.
96
Inicialmente
cumpre
registrar
a
impropriedade
do
retrocesso ocorrido na legislação no que se refere aos Direitos Sucessórios
dos Companheiros, uma vez que se já havia sido garantido um grau de
concretização dos Direitos concedidos à União Estável, bem como ao Direito
fundamental à herança aos Companheiros, é injustificável que uma norma
editada posteriormente venha a retirar direitos que já havi am sido gozados
pelos destinatários das normas.
Especialmente, porque referido grau de concretização e
amplitude dos direitos tutelados, foi alcançado através de um lento processo
de conquistas, implicando resposta aos anseios e reivindicações da própria
sociedade.
Também não se justifica o tratamento diferenciado
dispensado
ao
Companheiro
em
relação
ao
Cônjuge
sobrevivente,
privilegiando este em detrimento daquele no que se refere aos Direitos
Sucessórios, pois a própria Constituição Federal de 1988 havi a garantido
especial proteção à Família, reconhecendo como forma de constituição de
Família a União Estável, ao lado do casamento e da família monoparental.
Esta igualdade de tratamento constitucional, garantindo
igual proteção a estas formas de constituir Família, torna injustificável o
tratamento menos benéfico atribuído ao Companheiro sobrevivente.
Em virtude destas injustificadas impropriedades da lei, é
que se realiza uma breve abordagem sobre novas propostas legislativas do
texto normativo do Código Civil Brasileiro, à luz da Política Jurídica, a fim de se
corrigirem as inadequações existentes.
97
3.4.2.1 Supressão do artigo 1.790 do Código Civil
Conforme se verifica, o Código Civil traz a previsão referente
aos Direitos Sucessórios dos Companheiros no art. 1.790, que está inserido no
Livro V que trata do direito das sucessões, no Título I que aborda aspectos da
sucessão em geral, especificamente no capítulo I que prevê disposições gerais.
Esta posição do art. 1.790, que prevê os Direitos
Sucessórios dos Companheiros, mostra-se injustificável, sendo que tal previsão
deveria ter sido inserida no Título II, do livro V, que trata da sucessão legítima.
Neste sentido, HIRONAKA afirma que, “não obstante sua
importância, parece, todavia, que a regra está topicamente mal colocada. Trata-se
de verdadeira regra de vocação hereditária para as hipóteses de união estável,
motivo pelo qual deveria estar situada no capítulo referente à ordem de vocação
hereditária”. 239
Assim, visando a uma maior adequação da norma, o art.
1.790 do Código Civil poderia ser suprimido, inserindo-se o Companheiro, ao lado
do cônjuge, na ordem de vocação hereditária prevista pelo art. 1.829, em seu
inciso III.
Esta alteração implicaria na seguinte redação do art. 1.829
do Código Civil:
Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na seguinte ordem:
[...]
III – ao cônjuge ou ao Companheiro sobrevivente.
239
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Afeto, ética, família e o novo código civil.
Coordenador: Rodrigo da Cunha Pereira. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 225.
98
Esta inserção implicaria, ainda, a necessidade de alterar-se
também os incisos I e II do artigo 1.829, a fim de coadunar-se com a modificação
realizada no inciso III, o que os deixaria com a seguinte redação:
I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge
sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime de
comunhão universal ou no da separação obrigatória de bens (art.
1.640, parágrafo único), ou se, no regime da comunhão parcial, o
autor da herança não houver deixado bens particulares; ou em
concorrência com o Companheiro sobrevivente, acerca dos bens
que fossem exclusivos do falecido, não pertencentes ao acervo
comum adquirido na constância da união estável.
II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge ou com o
Companheiro sobrevivente.
Esta alteração, com a supressão do art. 1.790, implicaria
ainda a correção da previsão do seu caput 240 , cujo conteúdo se mostra
injustificável ao atribuir a participação de um Companheiro na sucessão do outro
apenas quanto aos bens adquiridos onerosamente.
BARROS afirma ser inconstitucional o caput do art. 1.790 do
Código Civil, ao excluir um Companheiro do direito de participar da sucessão do
outro, exceto, estritamente, quanto aos bens adquiridos de forma onerosa durante
a União Estável. Segundo o autor:
Se a Constituição equipara a união estável ao casamento ao
incluí-la entre as formas de entidade familiar que igualmente
aceita como válidas, resulta inconstitucional qualquer exclusão
aplicada aos companheiros por união estável, que os discrimine in
pejus, em cotejo com os cônjuges por casamento. Tal dispositivo
240
Código Civil. Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará na sucessão do outro,
quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições
seguintes:
[...].
99
do art. 1.790 do Código Civil recém-posto em vigor fere a
isonomia entre as entidades familiares assegurada pela
Constituição nas disposições do seu art. 226. É fulminante e
irreparável a sua inconstitucionalidade. 241
Portanto, não se justifica a participação de um Companheiro
na sucessão do outro apenas com relação aos bens que foram adquiridos de
forma onerosa, sendo de extrema importância a supressão deste artigo.
Esta alteração, suprimindo-se o art. 1.790 do Código Civil,
acarretaria, ainda, a correção do tratamento injustificado previsto nos incisos
deste artigo, ao atribuir ao Companheiro a concorrência com os colaterais, de
maneira que só seria beneficiado com a totalidade da herança se não houvessem
parentes sucessíveis.
3.4.2.2 Alteração do art. 1.831 do Código Civil
Tendo restado demonstrado ser injustificável a concessão
do direito real de habitação apenas ao Cônjuge sobrevivente, excluindo este
direito ao Companheiro nas mesmas condições, é necessária a alteração do
art. 1.831 do Código Civil.
Mormente, ante o fato de que as legislações especiais
que regulamentavam a União Estável, antes da entrada em vigência do
Código Civil, terem concedido o direito real de habitação ao Companheiro
sobrevivente242, o qual foi suprimido pela legislação civil.
241
BARROS, Sérgio Resende de. Afeto, ética, família e o novo código civil, p. 619.
242
Art. 7º, parágrafo único da Lei nº 9.278/96.
100
Desta forma, a fim de se corrigir a inadequação existente, a
redação do art. 1.831 poderia ser a seguinte:
Art. 1.831. Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime
de bens, ou ao Companheiro sobrevivente, será assegurado, sem
prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real
de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da
família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar.
Portanto, esta modificação é importante para corrigir tanto
o retrocesso provocado pelo atual Código Civil, ao suprimir este direito ao
Companheiro, quanto o tratamento desvantajoso dispensado ao Companheiro
se comparado ao cônjuge.
3.4.2.3 Alteração do art. 1.832 do Código Civil
A alteração deste artigo, inserindo-se o Companheiro, ao
lado do cônjuge, é necessária para se coadunar com as demais propostas de
alterações nos dispositivos legais antecedentes.
A referida alteração, manteria a redação do artigo na sua
forma atual, incluindo apenas o Companheiro juntamente com o Cônjuge, o
que implicaria na seguinte previsão:
Art. 1.832. Em concorrência com os ascendentes (art. 1829,
inciso I) caberá ao cônjuge ou ao Companheiro, quinhão igual
ao dos que sucederem por cabeça, não podendo a sua quota
ser inferior à quarta parte da herança, se for ascendente dos
herdeiros com que concorrer.
101
3.4.2.4 Alteração do caput do art. 1.836 do Código Civil
Esta alteração é necessária a fim de manter-se a igualdade
de tratamento entre o cônjuge e o Companheiro dispensada pela Constituição
Federal de 1988, ao considerar tanto o casamento, quanto a União Estável, como
formas de entidade familiar.
Art. 1.836. Na falta de descendentes, são chamados à sucessão
os ascendentes, em concorrência com o cônjuge ou
Companheiro sobrevivente.
[...].
Desta forma, a modificação realizada implicaria na inserção
do Companheiro, ao lado do cônjuge, para concorrer juntamente com os
ascendentes.
3.4.2.5 Alteração do art. 1.838 do Código Civil
Neste artigo sugere-se apenas a inserção do Companheiro
ao lado do cônjuge, deixando referido artigo com a seguinte redação:
Art. 1.838. Em falta de descendentes e ascendentes, será
deferida a sucessão por inteiro ao cônjuge ou Companheiro
sobrevivente.
A modificação deste artigo, colocando-se o Companheiro
juntamente com o cônjuge no terceiro lugar da ordem de vocação hereditária, é
imprescindível para buscar-se a efetiva justiça no alcance desta norma jurídica.
Primeiramente,
esta
alteração
corrigiria
o
retrocesso
provocado pela legislação atual, que prevê a concorrência do Companheiro com
102
outros parentes sucessíveis, recebendo apenas um terço da herança, no caso de
não haverem descendentes e ascendentes.243
Registra-se que a legislação anterior ao Código Civil, que
regulamentava a matéria, já previa o terceiro lugar para o Companheiro na ordem
de vocação hereditária, deferindo a ele a totalidade da herança se não
houvessem descendentes e ascendentes. 244
Além disso, manteria-se a igualdade de tratamento entre
cônjuge e Companheiro sobreviventes, corrigindo o tratamento desvantajoso
dispensado a este pelo atual Código Civil, que prevê a concorrência do
Companheiro com outros parentes sucessíveis, para apenas, na falta destes,
herdar a totalidade da herança.
3.4.2.6 Alteração do art. 1.839 do Código Civil
A alteração do art. 1.838 do Código Civil tornaria também
necessária a alteração do art. 1.839 para manter a correspondência legislativa
bem como a concordância entre os artigos, deixando-o com a seguinte redação:
Art. 1.839. Se não houver cônjuge ou Companheiro sobrevivente,
nas condições estabelecidas no art. 1.830, serão chamados a
suceder os colaterais até o quarto grau.
3.4.2.7 Alteração do art. 1.845 do Código Civil
A modificação deste artigo, incluindo-se o Companheiro na
classe dos herdeiros necessários, é imprescindível para harmonizar-se este
dispositivo com todos os demais analisados.
243
Art. 1.790, inciso III do Código Civil.
244
Artigo 2º, inciso III da Lei 8.971/94.
103
Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os
ascendentes e o cônjuge ou Companheiro.
HIRONAKA, defendendo a realização desta modificação,
inserindo-se o Companheiro como herdeiro necessário, assevera que não se
vislumbra “motivo para que as condições do cônjuge e do companheiro não se
equiparassem também na proteção da legítima, como aliás, seria de bom alvitre
em face das disposições constitucionais a respeito da equivalência entre o
casamento e a união estável”.245
Estas alterações não esgotariam as mudanças necessárias,
bem como não traduziriam a perfeição legislativa, contudo, contribuiriam para o
aperfeiçoamento da previsão normativa acerca dos Direitos Sucessórios dos
Companheiros, visando ao efetivo cumprimento de preceitos e princípios
constitucionais.
Em especial, destaca-se a necessidade desta reforma
legislativa, a fim de preservar-se o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e
da garantia constitucional de especial proteção à Família.
Para a realização desta tarefa destaca-se a importância da
Política Jurídica, disciplina que fornece uma base teórica para a elaboração de
estratégias e direcionamentos metodológicos visando às necessárias adequações
entre os avanços sociais e a proteção da Dignidade da Pessoa Humana.246
Portanto,
aos
operadores
jurídicos,
munidos
da
fundamentação teórica específica, incumbe a missão de não se conformar com o
direito como está, mas buscar, incessantemente, através da pesquisa e análise
crítica, as necessárias adaptações e melhorias com vistas ao aperfeiçoamento do
direito vigente.
245
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Afeto, ética, família e o novo código civil.
Coordenador: Rodrigo da Cunha Pereira, p. 225.
246
MELO, Osvaldo Ferreira de. Temas atuais de política do direito, p. 85.
104
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com a realização do presente trabalho, através da
exposição do assunto pesquisado, acredita-se que foram confirmadas as
hipóteses inicialmente assumidas e alcançados os objetivos propostos, chegandose às seguintes considerações:
No
capítulo
1
verificou-se
a
concepção
atual
da
Hermenêutica Constitucional, segundo a qual, prevalecendo a supremacia da
Constituição, toda ordem jurídica e política deve coadunar-se com os princípios e
garantias constitucionalmente assegurados.
Através deste novo enfoque hermenêutico, constatou-se a
importância dos princípios e dos direitos fundamentais como elementos
indispensáveis na atividade de interpretação do Direito em um Estado
Democrático, superando-se a aplicação da lei como mera subsunção da norma ao
fato.
Neste contexto, o Princípio da Dignidade da Pessoa
Humana revela uma importante função, tendo sido transformado pela Constituição
Federal em valor supremo da ordem jurídico-política por ela instituída, servindo
como parâmetro e delineando o conteúdo dos demais valores e normas do
ordenamento jurídico brasileiro.
Constatou-se, sobretudo, a importante influência do Princípio
da Dignidade da Pessoa Humana no Direito de Família, juntamente com o
respeito às garantias constitucionais de especial proteção à Família e à União
Estável, como circunstância necessária para o pleno desenvolvimento e
realização de todos os membros da comunidade familiar.
No capítulo 2 realizou-se uma análise específica dos Direitos
Sucessórios decorrentes da União Estável, verificando-se a importância da
105
proteção da União Estável pela Constituição Federal de 1988, e a sua posterior
regulamentação pelas Leis nº 8.971/94, nº 9.278/96 e pela Lei nº 10.406/02
(Código Civil).
Verificou-se a relevância da proteção dispensada a União
Estável pela Carta Constitucional, que a coloca ao lado do casamento por
considerá-la também como entidade familiar, seguindo-se a sua regulamentação
pela legislação infraconstitucional a fim de proteger os direitos dos Companheiros.
A
abordagem
específica
dos
Direitos
Sucessórios
decorrentes da União Estável demonstrou que as Leis 8.971/94 e 9.278/96,
cumprindo preceitos constitucionais, protegeram estes direitos de uma forma
bastante ampla, em prática equiparação ao direito do cônjuge viúvo, garantindo
aos Companheiros o direito à herança, de maneira que não havendo herdeiros
descendentes ou ascendentes o Companheiro sobrevivente recolheria toda a
herança, o direito de usufruto e o direito real de habitação.
Contudo, contrariando a evolução ocorrida nos Direitos
Sucessórios garantidos aos Companheiros, o Código Civil trouxe uma
regulamentação destes direitos de maneira menos favorável do que a existente
antes da sua promulgação.
No capítulo 3 verificou-se que o disciplinamento referente
aos Direitos Sucessórios decorrentes da União Estável representa um profundo
retrocesso, pois, além de retirar determinados direitos no âmbito sucessório, dos
quais
os
Companheiros
já
haviam
sido
contemplados
pela
legislação
infraconstitucional anterior, ainda, com o atual regramento deixou-os em situação
desvantajosa se comparado ao tratamento dispensado ao cônjuge sobrevivente.
Esta realidade representa uma violação ao Princípio da
Dignidade da Pessoa Humana, bem como as garantias institucionais de especial
proteção á Família, pois a União Estável foi erigida pela Constituição Federal de
106
1988 como entidade familiar, merecendo igual respeito dispensado ao casamento,
sendo injustificada a situação de inferioridade com que o Companheiro foi tratado.
Além
disso,
a
retirada
de
direitos
dos
quais
os
Companheiros já haviam sido contemplados, especialmente por tratar-se de
direito fundamental, como o direito à herança, também implica violação à
Dignidade Humana, em sua dimensão no Princípio da Proibição de Retrocesso,
pois desconstitui o grau de concretização deste direito que o legislador já havia
outorgado.
Demonstradas as discrepâncias existentes na legislação que
regulamenta os Direitos Sucessórios dos Companheiros, realizou-se uma reflexão
crítica acerca desta legislação á luz da Política Jurídica, verificando-se a
necessidade de uma proposta de alteração do texto da lei, a fim de que seu
conteúdo venha a mostrar-se coerente com o contemporâneo paradigma de
Família e com os princípios e garantias constitucionais.
107
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Disponível
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108
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