UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO, EXTENSÃO E CULTURA CENTRO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR DE CIÊNCIAS JURÍDICAS, POLÍTICAS E SOCIAIS CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM CIÊNCIA JURÍDICA – CPCJ PROGRAMA DE MESTRADO ACADÊMICO EM CIÊNCIA JURÍDICA - PMCJ ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: FUNDAMENTOS DO DIREITO POSITIVO A ATUAL REGULAMENTAÇÃO DO DIREITO SUCESSÓRIO DECORRENTE DA UNIÃO ESTÁVEL NO BRASIL À LUZ DA HERMENÊUTICA CONSTIT UCIONAL: UMA PROPOSTA POLÍTICO-JURÍDICA LUCIANA DE CARVALHO PAULO COELHO Itajaí [SC], dezembro de 2005 UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO, EXTENSÃO E CULTURA CENTRO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR DE CIÊNCIAS JURÍDICAS, POLÍTICAS E SOCIAIS CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM CIÊNCIA JURÍDICA – CPCJ PROGRAMA DE MESTRADO ACADÊMICO EM CIÊNCIA JURÍDICA - PMCJ ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: FUNDAMENTOS DO DIREITO POSITIVO A ATUAL REGULAMENTAÇÃO DO DIREITO SUCESSÓRIO DECORRENTE DA UNIÃO ESTÁVEL NO BRASIL À LUZ DA HERMENÊUTICA CONSTIT UCIONAL: UMA PROPOSTA POLÍTICO JURÍDICA LUCIANA DE CARVALHO PAULO COELHO Dissertação submetida à Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI como requisito final à obtenção do título de Mestre em Ciência Jurídica. Orientador: Professor Doutor Osvaldo Ferreira de Melo Co-orientadora: Professora Doutora Maria Fernanda Girardi Gugelmim Itajaí [SC], dezembro de 2005. MEUS AGRADECIMENTOS: À Deus, por orientar o meu caminhar e direcionar o meu viver. Ao Professor Doutor Osvaldo Ferreira de Melo, meus sinceros agradecimentos pela honrosa orientação neste trabalho. À professora Maria Fernanda Girardi Gugelmin, pela amizade e pelos conhecimentos de Direito de Família e Sucessões compartilhados com imensa sabedoria e pela gentileza de co-orientar este trabalho. À professora Cláudia Rosane Roesler, pelo incentivo à realização de pesquisas científicas que influenciaram grandemente no meu desenvolvimento acadêmico. Ao professor Clóvis Demarchi, Pelo carinho e pela gentileza em realizar a revisão metodológica do presente trabalho. À professora Andréa Morgado Dietrich, por termos trilhado esta etapa acadêmica juntas e pela sua contribuição para a realização deste trabalho através da sua amizade e de ensinamentos compartilhados. Aos professores, Osmar Dinis Facchini, José Carlos Machado e Antônio Augusto Lapa, pelo incentivo a realização do mestrado e pela oportunidade do meu ingresso no magistério acadêmico DEDICO ESTE TRABALHO: Aos meus pais, Maurílio e Dulcenéia, por tudo o que me ensinaram, pelas lições de vida, e, sobretudo, por terem sempre apoiado meus projetos e confiado no meu potencial. Ao meu marido Rodrigo, e ao meu filho Samuel pelo amor, pela compreensão nos momentos de ausência, e por toda alegria que trazem à minha vida. Aos meus irmãos Rodrigo e Patrícia companheiros diários, pela paciência e amizade. DECLARAÇÃO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo aporte ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, a Coordenação do Curso de PósGraduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica [CPCJ/UNIVALI], a Banca Examinadora e o Orientador de toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo. Itajaí [SC], dezembro de 2005. Luciana de Carvalho Paulo Coelho Mestranda ROL DE CATEGORIAS Casamento: “é o vínculo jurídico entre o homem e a mulher, livres, que se unem, segundo as formalidades legais, para obter o auxílio mútuo material e espiritual, de modo que haja uma integração fisiopsíquica e a constituição de uma família”. 1 Companheiro2: é a pessoa que vive com outra em União Estável. Direitos Sucessórios: são os direitos decorrentes da abertura de uma sucessão. Entidade Familiar: é a denominação utilizada pela Constituição Federal de 1988 para designar a família oriunda do casamento, da união estável e daquela composta por um dos progenitores e sua descendência. Família: “toda forma de agregação de pessoas num núcleo doméstico, regido pelo amor e pelo respeito mútuos”. 3 Hermenêutica Constitucional: “técnica jurídica voltada para a elaboração de regras para a compreensão do conteúdo e do significado das normas constitucionais [...]”. 4 Política Jurídica: disciplina que prioriza, em sua dimensão prática, “[...] alcançar a norma que responda tão bem quanto possível as necessidades gerais, garantindo o bem estar social pelo justo, pelo verdadeiro e pelo útil, sem descurar da necessária segurança jurídica e sem por em risco o Estado de Direito”. 5[5] 1 DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. 2 ed., São Paulo: Saraiva, 1996. p. 195. 2 Será utilizado como sinônimo de Convivente, podendo ser utilizadas ambas as categorias indistintamente. 3 DAL COL, Helder Martinez. A família à luz do concubinato e da união estável . Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 37. 4 DINIZ, Márcio Augusto de Vasconcelos. Constituição e hermenêutica constitucional. 2 ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 230. 5[ MELO, Osvaldo Ferreira. Temas atuais de política do direito. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1998, p. 80. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana: “[...] o princípio da dignidade da pessoa humana constitui a base, o alicerce, o fundamento da República e do Estado Democrático de Direito por ela instituído. A fórmula adotada implica, em linhas gerais, que a Constituição brasileira transformou a dignidade da pessoa humana em valor supremo da ordem jurídica política por ela instituída”. 6 Sucessão: é “a transferência da herança, ou do legado, por morte de alguém, ao herdeiro ou legatário, seja por força de lei, ou em virtude de testamento.” 7] União Estável: “célula familiar prevista na Constituição Federal, resultante da união de homem e mulher sem casamento.” 8 6 MARTINS, Flademir Jerônimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional fundamental. Curitiba: Juruá, 2003, p. 63. 7 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: direito das sucessões. V. 6, São Paulo: Saraiva, 1998. p. 7. 8 DAL COL, Helder Martinez. A família à luz do concubinato e da união estável, p. 47. SUMÁRIO RESUMO.................................................................................................XI ABSTRACT ...........................................................................................XII INTRODUÇÃO.........................................................................................1 CAPÍTULO 1............................................................................................5 HERMENÊUTICA CONSTIT UCIONAL: PRINCÍPIOS, GARANTIAS E DIREITO...................................................................................................5 1.1 A HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL ................................................................5 1.1.1 CONCEITO.....................................................................................................................5 1.1.2 EVOLUÇÃO ...................................................................................................................7 1.1.3 PRINCÍPIOS HERMENÊUTICOS................................................................................... 12 1.1.3.1 Princípio da supremacia da Constituição .................................................. 12 1.1.3.2 Princípio da unidade da Constituição......................................................... 13 1.1.3.3 Princípio da interpretação conforme a Constituição .............................. 15 1.2 PRINCÍPIOS E REGRAS ......................................................................................... 16 1.3 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O DIREITO FUNDAMENTAL À HERANÇA..................................................................................... 18 1.4 A GARANTIA INSTITUCIONAL DE ESPECIAL PROTEÇÃO À FAMÍLIA.... 25 1.5 A PROTEÇÃO À UNIÃO ESTÁVEL COMO FORMA DE CONSTITUIÇÃO DE FAMÍLIA ............................................................................................................................ 29 1.5.1 O DIREITO COMO UM FENÔMENO SOCIAL................................................................. 29 1.5.2 A EVOLUÇÃO DOUTRINÁRIA, JURISPRUDENCIAL E LEGISLATIVA QUE ANTECEDEU A RECEPÇÃO DA U NIÃO ESTÁVEL NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988........................... 31 1.5.3 A TUTELA DA UNIÃO ESTÁVEL NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988................... 36 CAPÍTULO 2..........................................................................................40 DIREITOS SUCESSÓRIOS DECORRENTES UNIÃO ESTÁVEL.....40 2.1 A REGULAMENTAÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL PELA LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL APÓS A SUA PROTEÇÃO PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988......................................................................................................... 40 2.2 OS DIREITOS SUCESSÓRIOS DOS COMPANHEIROS ANTES DA REGULAMENTAÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL PELAS LEIS INFRACONSTITUCIONAIS ........................................................................................... 42 2.3 O CONCEITO DE UNIÃO ESTÁVEL NA LEI 8.971/94 E SUA PREVISÃO REFERENTE AO DIREITO SUCESSÓRIO ................................................................ 44 2.3.1 DO USUFRUTO LEGAL .............................................................................................. 45 2.3.2 DO DIREITO DE PROPRIEDADE À HERANÇA ............................................................. 48 2.4 O CONCEITO DE UNIÃO ESTÁVEL NA LEI 9.278/96 E SUA PREVISÃO REFERENTE AO DIREITO SUCESSÓRIO ................................................................ 52 2.5 RECEPÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL PELO ATUAL CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO E A SUA PREVISÃO DOS DIREITOS SUCESSÓRIOS................. 58 2.5.1 DO DIREITO DE PROPRIEDADE À HERANÇA ............................................................. 64 2.5.2 DO DIREITO AO USUFRUTO LEGAL .......................................................................... 70 2.5.3 DO DIREITO REAL DE HABITAÇÃO ........................................................................... 70 CAPÍTULO 3..........................................................................................72 OS DIREITO SUCESSÓRIO DOS COMPANHEIROS À LUZ DA HERMENÊUTICA CONSTIT UCIONAL: UMA PROPOSTA POLÍTICO JURÍDICA ..............................................................................................72 3.1 A POSSIBILIDADE DA OCORRÊNCIA DE UM RETROCESSO NOS DIREITOS SUCESSÓRIOS GARANTIDOS AOS COMPANHEIROS EM VIRTUDE DAS ALTERAÇÕES OCASIONADAS PELA MUDANÇA LEGISLATIVA .................................................................................................................. 72 3.2 O RETROCESSO NOS DIREITOS SUCESSÓRIOS DOS COMPANHEIROS EM COLISÃO COM O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA..... 78 3.3 O RETROCESSO NOS DIREITOS SUCESSÓRIOS DOS COMPANHEIROS EM COLISÃO COM AS GARANTIAS INSTITUCIONAIS DE PROTEÇÃO À FAMÍLIA E A UNIÃO ESTÁVEL................................................................................... 85 3.4 UMA PROPOSTA LEGISLATIVA À LUZ DA POLÍTICA JURÍDICA .............. 89 3.4.1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES SOBRE A POLÍTICA JURÍDICA ............................. 90 3.4.2 A APLICAÇÃO DA POLÍTICA JURÍDICA NA LEGISLAÇÃO REFERENTE AOS DIREITOS SUCESSÓRIOS DOS COMPANHEIROS ................................................................................. 95 3.4.2.1 Supressão do artigo 1.790 do Código Civil............................................... 97 3.4.2.2 Alteração do art. 1.831 do Código Civil ...................................................... 99 3.4.2.3 Alteração do art. 1.832 do Código Civil ....................................................100 3.4.2.4 Alteração do caput do art. 1.836 do Código Civil ..................................101 3.4.2.5 Alteração do art. 1.838 do Código Civil ....................................................101 3.4.2.6 Alteração do art. 1.839 do Código Civil ....................................................102 3.4.2.7 Alteração do art. 1.845 do Código Civil ....................................................102 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................104 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................107 RESUMO O presente trabalho apresenta um estudo sobre a Hermenêutica Constitucional em sua concepção atual, procurando demonstrar a necessidade de toda a ordem jurídica ser lida à luz dos preceitos e princípios constitucionais, especialmente do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Na seqüência tratou-se, especificamente, das alterações ocorridas na legislação referente aos Direitos Sucessórios dos Companheiros, desde a proteção da União Estável pela Constituição Federal de 1988, a regulamentação destes direitos pela legislação infraconstitucional, até chegar-se à atual previsão do Código Civil. Verificou-se que as modificações sofridas pelos Direitos Sucessórios dos Companheiros, culminando com a regulamentação pelo Código Civil, representou um retrocesso nestes direitos e a conseqüente violação à garantia constitucional de especial proteção à Família, bem como ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Demonstrada a impropriedade legislativa no trato dispensado à matéria, realizou-se uma análise da legislação que regulamenta os Direitos Sucessórios decorrentes da União Estável, à luz da Política jurídica, concluindo-se pela necessidade de se elaborar propostas legislativas acerca do tema. xii ABSTRACT The present paper presents a study about the Constitutional hermeneutic in an actual conception, looking forward to demonstrate the necessity of all juridical order to be read by the light of constitutional precept and principle, especially the Principle of Dignity of the Human Beings/Person. In the sequence it handles, specifically, the alterations that happen in the legislation referring to the "Partners Successor Rights", since the protection of the Stable Union by the 1988 Federal Constitution, a regulation of those rights by the infraconstitucional legislation, until reach to the actual prevision of the Civil code.It was verified that the alterations suffered by the "Partners Successor Rights", culminating with the regulation by the Civil Code, represented a retrogression in those rights and the consequent violation of the special constitutional guaranty/bail to a Family Protection, as like the "Principle of Dignity of the Human Being" Once demonstrated the legislative impropriety about the handling of the subject, it was realized an analyses of the legislation that regulate the "Successors Rights" due to the Stable Union, by the light of the Juridical politics, concluding the necessity to create legislative proposals around the subject. INTRODUÇÃO O objetivo deste trabalho é realizar um estudo sobre as alterações ocorridas na legislação que regulamenta os Direitos Sucessórios dos Companheiros, principalmente em decorrência da atual previsão destes direitos pelo novo Código Civil. Foram considerados aspectos importantes da Hermenêutica Constitucional para verificar a possível ocorrência de uma violação a garantias e princípios constitucionais, especialmente ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. O estudo deste tema é de extrema relevância, tanto em virtude da grande incidência prática da União Estável, quanto pelo destaque atribuído à Hermenêutica Constitucional em sua concepção atual, com ênfase aos princípios constitucionais que devem fundamentar toda a ordem jurídica, principalmente a Dignidade Humana, princípio que tem sido considerado como valor supremo e fundamento de todo o Estado Constitucional de Direito. O tema justifica a realização de uma pesquisa também pela necessidade de análise da legislação que disciplina os Direitos Sucessórios decorrentes da União Estável para viabilizar um aperfeiçoamento dessa matéria. No estudo foram observadas as seguintes hipóteses: a) A concepção atual da Hermenêutica Constitucional parece buscar uma nova perspectiva do Direito, com ênfase à supremacia e normatividade da Constituição, bem como aos princípios e garantias nela previstos. b) O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana parece ser uma das fontes de valor do sistema constitucional brasileiro, conferindo-lhe unidade axiológica e servindo de parâmetro para a harmonização de todo o sistema jurídico. 2 c) Ao disciplinar os Direitos Sucessórios decorrentes da União estável, o atual Código Civil Brasileiro parece ter alterado os benefícios anteriormente concedidos pelas Leis 8.971/94 e 9.278/96. d) As modificações ocorridas nos Direitos Sucessórios dos Companheiros, com a supressão de direitos anteriormente conquistados por estes, pode ter violado o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e a garantia institucional de especial proteção à Família. Esta pesquisa tem como objetivo institucional, produzir uma Dissertação para obtenção do Título de Mestre em Ciência Jurídica, no Curso de Pós-Graduação stricto sensu em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI. O objetivo geral é a investigação da Hermenêutica Constitucional frente à atual regulamentação dos Direitos Sucessórios decorrentes da União Estável no Brasil Para alcançar as metas investigatórias acima estabelecidas foram traçados destacados da os seguintes Hermenêutica objetivos específicos: Constitucional, com descrever ênfase às aspectos garantias institucionais de especial proteção à Família e ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana; analisar as modificações sofridas pela legislação que regulamenta os Direitos Sucessórios dos Companheiros; verificar a possibilidade da ocorrência de um retrocesso nestes direitos, principalmente em virtude da atual previsão do Código Civil, bem como a possível violação de garantias institucionais e do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana; avaliar a necessidade de uma proposta legislativa à luz da Política Jurídica. O caminho percorrido para se alcançar os objetivos propostos e realizar a investigação do objeto delimitado foi o método indutivo, e a base lógica para o relatório será a indutiva. Foram acionadas as técnicas do referente, da categoria, dos conceitos operacionais, da pesquisa bibliográfica e do fichamento. Para facilitar o desenvolvimento da pesquisa e aumentar a organização e coerência lógica do relato, o relatório final, que compreende esta 3 dissertação, foi estruturado em três capítulos, cada qual com aproximadamente trinta páginas, objetivando-se conferir harmonia estrutural ao trabalho. O primeiro capítulo trata da Hermenêutica Constitucional, com a abordagem dos seus aspectos fundamentais que contribuem diretamente para a realização da pesquisa. Inicialmente, analisa-se o conceito, a evolução e os princípios da Hermenêutica Constitucional. Na seqüência aborda-se, especificamente, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana em virtude da sua importância para toda a ordem jurídica, política e social e o seu desdobramento através da concretização dos direitos fundamentais, enfatizando-se a sua influência no direito de Família. Realiza-se, ainda, um estudo acerca das garantias institucionais de especial proteção à Família e à União Estável. No segundo capítulo faz-se uma abordagem sobre a legislação referente aos Direitos Sucessórios decorrentes da União Estável. Para cumprir o objetivo, analisa-se a proteção da União Estável pela Constituição federal de 1988 e a sua posterior regulamentação pelas Leis 8.971/94 e 9.278/96, especialmente no que se refere à previsão dos Direitos Sucessórios. Finaliza-se este capítulo com a análise da atual previsão dos Direitos Sucessórios dos Companheiros pelo Código Civil. O terceiro capítulo reserva-se a aplicar o estudo realizado no primeiro capítulo, acerca da Hermenêutica Constitucional, ao conteúdo dos Direitos Sucessórios dos Companheiros analisado no segundo capítulo. Neste contexto, objetiva -se inferir se as alterações ocorridas na legislação dos Direitos Sucessórios decorrentes da União Estável representam um retrocesso nestes direitos, bem como verificar a possível violação ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e da Garantia Institucional de especial proteção à Família. Após este estudo, o resultado obtido é submetido a uma análise à luz da Política Jurídica. Nas considerações finais objetivou-se apresentar uma síntese dos resultados obtidos com a investigação, verificando o cumprimento dos objetivos propostos no início da pesquisa. 4 Cumpre registrar que o presente trabalho não possui o propósito de oferecer respostas ou soluções definitivas sobre o tema abordado, mas contribuir para o aperfeiçoamento das questões suscitadas, bem como o de estimular discussão e reflexão acerca de conteúdo tão relevante para o mundo jurídico, visando assim buscar a realização da Justiça, compromisso maior de todo operador jurídico. 5 CAPÍTULO 1 HERMENÊUTICA CONSTIT UCIONAL: PRINCÍPIOS, GARANTIAS E DIREITO 1.1 A HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL 1.1.1 Conceito Inicialmente é importante destacar o conceito de Hermenêutica Jurídica em seu sentido amplo. Nesta perspectiva, o conceito de grande aceitação na doutrina é trazido por MAXIMILIANO, segundo o qual “a Hermenêutica Jurídica tem por objeto o estudo e a sistematização dos processos aplicáveis para determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito”. 9 Ao explicar o conceito supra referido o autor destaca que: As leis positivas são formuladas em termos gerais; fixam regras, consolidam princípios, estabelecem normas, em linguagem clara e precisa, porém ampla, sem descer a minúcias. È tarefa primordial do executor a pesquisa da relação entre o texto abstrato e o caso concreto, entre a norma jurídica e o fato social, isto é, aplicar o Direito. Para o conseguir, se faz mister um trabalho preliminar: descobrir e fixar o sentido verdadeiro da regra positiva; e, logo depois, o respectivo alcance, a sua extensão”. 10 9 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 19 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 1. 10 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito, p. 1. 6 Cumpre ressaltar que na presente pesquisa adotar-se-á o significado de Hermenêutica como vocábulo que se diferencia de interpretação. Isto porque se entende como interpretação a aplicação da Hermenêutica, sendo a interpretação responsável por determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito, ao passo que a Hermenêutica representa a teoria científica da arte de interpretar, descobrindo e fixando os princípios que devem reger a interpretação.11 MELO ressalta um importante aspecto do fenômeno hermenêutico ao assinalar que para este ser completo “[...] precisa ser estudado como aplicação da norma ao fato, ou melhor, do fato à norma, pois o fato precede à norma”.12 Assim, infere-se que a Hermenêutica está relacionada aos fatos concretos, devendo ser analisada conjuntamente com a realidade social em que é aplicada. Especificamente, a Hermenêutica Constitucional, objeto de análise desta pesquisa, representa a [...] técnica jurídica voltada à elaboração de regras para a compreensão do conteúdo e do significado das normas constitucionais [...]. Assim sendo, a sua atividade, porque hermenêutica, é um modo de pensar pragmaticamente a realidade, dirigida a formulação de [...] regras com fundamento nas quais ele interpretará as normas jurídicas em que se baseará para fornecer a solução do problema concreto que a ele se coloca.13 Assim, este conceito, no qual Hermenêutica Constitucional difere da categoria interpretação, por ser aquela responsável por determinar as regras em que esta se fundamenta, será adotado no decorrer do presente trabalho. 11 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito, p. 1. 12 MELO, Orlando Ferreira de. Hermenêutica jurídica: uma reflexão sobre novos posicionamentos. Itajaí: Univali, 2001, p. 18. 13 DINIZ, Márcio Augusto de Vasconcelos. Constituição e hermenêutica constitucional. 2 ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 230. 7 1.1.2 Evolução À época da concretização do Código Civil de 1916, influenciado por Napoleão Bonaparte na França, prevalecia a crença de que o Código era a projeção escrita e completa do sistema de regras jurídicas racionais do Direito Natural, motivo pelo qual se atribuiu ao Código as características antes imputadas ao Direito Natural Racional. Neste contexto, a lei era considerada completa e o seu sentido correto seria o literal. A partir desta perspectiva, nascia a Teoria da Plenitude da Lei, limitando-se à interpretação das normas ao plano gramatical. 14 Esta forma de interpretação e aplicação do direito era defendida pela Escola da Exegese, sendo que “o sistema interpretativo por ela proposto era designado de sistema dogmático”. 15 MELO assinala que a orientação dogmática é legalista por colocar a lei em primeiro plano e realizar uma interpretação apenas do seu texto escrito.16 Em decorrência desta característica, neste sistema considerava -se o juiz como mero aplicador da lei, o qual poderia realizar somente a sua interpretação gramatical, a fim de não modificar a vontade do legislador. Desta forma, no sistema dogmático, verifica-se uma ênfase ao sentido estrito da lei, evidenciando-se a primazia e relevância atribuída ao texto literal da norma. Ao abordar a evolução experimentada, MAGALHÃES FILHO destaca que: 14 MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da constituição. 2 ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 49. 15 MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da constituição, p. 50. 16 MELO, Orlando Ferreira de. Hermenêutica jurídica: uma reflexão sobre novos posicionamentos, p. 35. 8 O processo de industrialização veio a invalidar as premissas da Escola da Exegese, porquanto alterou sensivelmente as relações sócio-econômicas, contribuindo para evidenciar o descompasso entre o Código e a nova realidade. Isso motivou o surgimento da Escola Histórico-Evolutiva [...]”. 17 A Escola Histórica na Alemanha teve Gustavo Hugo como seu precursor e Savigny como seu grande expoente. Savigny era contrário aos princípios da Escola da Exegese, pois não acreditava que a codificação do Direito pudesse contribuir de forma decisiva para a unificação da Alemanha. Ao contrário, Savigny se opunha à idéia de um Direito Natural Universal, sendo favorável a um direito para cada nação, proveniente do espírito do povo. O costume era priorizado como manifestação imediata do espírito do povo, tendo em vista sua evolução espontânea. Para Savigny, a codificação petrificaria o Direito, e qualquer legislação existente só seria válida se estivesse de acordo com o costume.18 Concernente a sua contribuição para a Hermenêutica, destaca-se que Savigny admitia as interpretações gramatical, lógica, sistemática e histórica, sendo que tinha a pretensão de introduzir o método hermenêutico na dogmática jurídica, de forma a elevar o Direito à categoria de ciência.19 Assinala MAGALHÃES FILHO que “posteriormente, surgiu a Jurisprudência dos Conceitos (Puchta) e o Pandcetismo (Windscheid) na Alemanha, bem como a Escola Analítica Inglesa (Austin), todas adotando 17 MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da constituição, p. 50. 18 MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da constituição, p. 51. 19 MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da constituição, p. 51. 9 métodos lógico formais e, assim, revelando-se semelhante a Escola da Exegese”. 20 Em decorrência das orientações teóricas anteriormente mencionadas, prevalecia a noção de Estado de Direito como aquele no qual há o governo de leis. LEAL registra que neste sistema o direito acaba sendo imposto à sociedade sob a forma de lei, cuja discussão de conteúdo não existe e a lei se torna a representação da expressão da normatividade de uma dominação exercida pela classe que se considera elite.21 Esta forma de Estado, conhecido como Estado legalista, é caracterizado pelo culto à lei e assentado na idéia de que os preceitos legais sempre protegeriam as liberdades e os direitos fundamentais da pessoa humana 22, ainda que, na prática, isto nem sempre correspondesse à realidade. Contudo, este Estado legalista com predomínio do texto estrito da lei, paulatinamente, cedeu lugar ao Estado Democrático de Direito, também chamado de Estado Constitucionalista ou Estado Novo, no qual há uma ênfase à Constituição e ao reconhecimento da existência e da importância dos princípios. O Estado Constitucionalista caracteriza-se pelo culto à Constituição, enfatizando o princípio da constitucionalidade e o reconhecimento da normatividade dos princípios que consagram direitos fundamentais, sendo que estes preceitos supremos não são entendidos simplesmente como formas de 20 MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da constituição, p. 63. 21 LEAL, Rogério Gesta. Hermenêutica e direito: considerações sobre a teoria do direito e os operadores jurídicos. 2 ed., Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 1999, p. 95. 22 MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da constituição, p. 64. 10 conselhos ou diretrizes ao legislador, mas, principalmente, como normas vinculantes. 23 Esta nova visão, em consonância com o Estado Contemporâneo, tornou a Hermenêutica tradicional ultrapassada, uma vez que se destinava a uma outra realidade, surgindo, então, a necessidade de uma nova Hermenêutica. Para BONAVIDES, a busca de uma moderna interpretação da Constituição resulta de um certo inconformismo dos juristas com o positivismo lógico-formal que prevalecia até então.24 Esta perspectiva silogística tradicional de interpretar o Direito, passou a revelar-se debilitada em virtude da estrutura principiológica das normas constitucionais contemporâneas destinarem-se mais à garantia de determinados valores fundamentais do que apenas a disciplinar condutas diretamente através de mera subsunção.25 Principalmente, considerando-se que os modelos tradicionais de Hermenêutica existentes até então, surgiram para a interpretação de normas com estrutura de regras e, em especial, para interpretar normas de Direito Privado, entretanto, em virtude da ênfase social que o Direito tem recebido, voltada à Constituição, cujas normas são estruturadas sob a forma de princípios, tornou-se necessária uma nova metodologia. Este contexto desencadeou a busca do sentido mais profundo da Constituição como um verdadeiro instrumento responsável por estabelecer a necessária adequação do Direito com a sociedade.26 23 MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da constituição, p. 64. 24 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7 ed. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 434. 25 DINIZ, Márcio Augusto Vasconcelos. Constituição e Hermenêutica Constitucional, p. 240. 26 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 434. 11 Foi justamente esta nova perspectiva do Direito, com ênfase à supremacia e normatividade da Constituição, bem como aos princípios nela contidos, que desencadeou a necessidade do surgimento de uma nova concepção Hermenêutica. Neste sentido, MAGALHÃES FILHO destaca que Com o reconhecimento da supremacia e da normatividade plena da Constituição no Estado Moderno, os direitos fundamentais são considerados como limite não apenas da atividade administrativa, mas também, da legiferante. Não há, portanto, nenhuma dúvida mais sobre a juridicidade e aptidão de eficácia dos princípios estabelecidos no Estatuto Básico da Sociedade, e esse reposicionamento dos direitos fundamentais tornou necessário o surgimento de uma nova hermenêutica, porquanto as normas que os definem possuem estrutura diferente daquelas que têm as normas infraconstitucionais.27 Para BONAVIDES, a passagem para a Hermenêutica contemporânea ocorre efetivamente com a nova dimensão que passou a ser atribuída aos princípios constitucionais, os quais se transformaram de princípios gerais para princípios constitucionais e, ainda, da necessidade de dar efetivo sentido aos direitos fundamentais. Por meio deste novo enfoque, os princípios adquirem grande importância, de maneira que toda a norma e, em conseqüência, todas as demais questões jurídicas, devem observá -los e respeitá-los. 28 Verifica-se, assim, uma mudança na realidade Hermenêutica, uma vez que, anteriormente, o direito se restringia a mera aplicação da lei, com a subsunção da norma ao caso concreto, permitindo a realização apenas de uma interpretação gramatical da norma. A ênfase atribuída aos princípios e aos direitos fundamentais demonstraram a insuficiência da velha Hermenêutica, tornando-se necessária uma nova atividade de interpretação do Direito, consentânea com esta moderna realidade. 27 28 MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da constituição, p. 65. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 259 e 592. 12 Neste novo contexto, verifica-se a necessidade da vinculação da Hermenêutica com os princípios constitucionais, os quais são responsáveis por definir e traduzir a concepção acerca da realidade escolhida pela própria sociedade. 1.1.3 Princípios Hermenêuticos Com a superação da antiga concepção Hermenêutica e a conseqüente ascensão de uma nova Hermenêutica, verifica-se a ênfase a determinados Princípios Hermenêuticos que conferem a desejada importância à Carta Constitucional, dentre os quais, são destacados a seguir os de maior relevância para a presente pesquisa. 1.1.3.1 Princípio da supremacia da Constituição Este princípio enuncia que a interpretação constitucional se fundamenta no pressuposto da superioridade jurídica da Constituição sobre as demais normas no âmbito do Estado.29 Conseqüentemente, em decorrência deste princípio, nenhum ato jurídico pode contrariar as previsões constitucionais, sob pena de não subsistir validamente se for constatada a sua incompatibilidade com a Lei Fundamental. Infere-se que a legitimidade dos poderes do Estado e suas ações derivam da Constituição, que os habilita a atuar, de maneira que a atuação fora dos limites impostos na Constituição não pode ser considerada constitucional, pois estará ausente de justificação legal. 30 29 30 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 3 ed., São Paulo: Saraiva, 1999, p. 157. CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos do Direito Constitucional. Curitiba: Juruá, 2001, p. 79. 13 Neste sentido, destaca-se a necessidade das normas criadas pela atuação de todos os poderes públicos obedecer às diretrizes constitucionais. BARROSO assinala que a supremacia constitucional assume um caráter de superlegalidade formal e material. Nesta temática, assevera o citado autor que, A superlegalidade formal identifica a Constituição como a fonte primária da produção normativa, ditando competências e procedimentos para a elaboração dos atos normativos inferiores. E a superlegalidade material subordina o conteúdo de toda a atividade normativa estatal à conformidade com os princípios e regras da Constituição.31 Portanto, como se observa, este princípio enfatiza a superioridade da Constituição sobre as demais normas do ordenamento jurídico, condicionando o conteúdo das leis infraconstitucionais de acordo com a Constituição. 1.1.3.2 Princípio da unidade da Constituição O ordenamento estatal constitui um sistema cujos elementos são entre si coordenados, apoiando-se um ao outro e pressupondo-se reciprocamente, de maneira que o elo de ligação entre esses elementos é a Constituição, por ser a origem comum de todas as normas. Assim, como norma fundamental, a Constituição é responsável por conferir unidade e caráter sistemático ao ordenamento jurídico.32 Oportuno registrar que a idéia de unidade da ordem jurídica se irradia a partir da Constituição e sobre ela também se projeta. Neste sentido: 31 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição, p. 159. 32 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição, p. 188 14 Se a Constituição é norma fundamental que dá unidade e coerência à ordem jurídica, ela própria precisa ter unidade e coerência interna, ou seja, superação de contradições não através de uma lógica de exclusão de uma parte a favor de outra, mas através de uma lógica dialética de síntese, através de uma solução de compromisso. A interpretação constitucional deve garantir uma visão unitária e coerente do Estatuto Supremo e de toda a ordem jurídica. 33 A Constituição representa o instrumento harmonizador de uma sociedade pluralista em razão de sua unidade de sentido, o que decorre do fato de ser este estatuto jurídico que deve integrar todos os valores representativos das aspirações dos diversos segmentos sociais.34 Neste contexto destaca-se a importância da nova concepção da Hermenêutica Constitucional, a qual almeja conferir unidade à Constituição através de uma interpretação que busca a realização dos fins e dos valores prescritos no seu texto. Isto significa que a interpretação da Constituição deve ser realizada de forma a evitar contradições, devendo o intérprete considerar a Constituição na sua globalidade, procurando harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a serem concretizadas. Deste princípio resulta o fato importante de o intérprete não considerar as normas constitucionais como normas isoladas e dispersas, mas sim como preceitos integrados num sistema interno de regras e princípios. 35 Verifica-se a importância da Constituição, como instrumento necessário para conferir unidade a todo o ordenamento jurídico estatal, o que se cumpre através da unidade e coerência de seu próprio texto, propagando-se 33 MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da constituição, p. 79. 34 MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da Constituição, p. 97. 35 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6 ed., Coimbra: Almedina, 2002, p. 1211. 15 também para a necessidade de todas as demais leis infraconstitucionais apresentarem conteúdo conforme a constituição. 1.1.3.3 Princípio da interpretação conforme a Constituição Este princípio determina que a Constituição deve ser interpretada de acordo com os seus valores básicos e as normas infraconstitucionais devem ser compreendidas a partir da Constituição, preferindose uma interpretação que vá ao encontro de um valor constitucionalmente almejado.36 BARROSO destaca que este princípio está relacionado com a unidade do ordenamento jurídico e, dentro desta, com a supremacia da Constituição. Segundo o autor, “disso resulta que as leis editadas na vigência da Constituição, assim como as que procedam de momento anterior, devem curvarse aos comandos da Lei Fundamental e ser interpretadas em conformidade com ela”. 37 Infere-se que a nova concepção Hermenêutica, responsável por elucidar os métodos de interpretação constitucional, preceitua e enfatiza a necessidade de realização da leitura ou interpretação da legislação infraconstitucional sempre a partir e de acordo com a Constituição. Ressalta -se que esta concepção está em consonância com as exigências da atualidade, pois, somente desta forma, será possível viabilizar as exigências do direito contemporâneo, especialmente na área do direito de Família, conforme se demonstrará adiante. 36 37 MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da Constituição, p. 80. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, p. 184. 16 1.2 PRINCÍPIOS E REGRAS Tendo sido constatado nos tópicos antecedentes que a necessidade da evolução da Hermenêutica Constitucional decorreu da nova dimensão atribuída aos princípios, que adquiriram normatividade ao lado das regras jurídicas, necessária se torna a realização desta análise acerca da distinção entre Princípios e Regras. DWORKIN destaca, inicialmente, que a diferença entre os princípios jurídicos e as regras jurídicas é de natureza lógica. Neste sentido assinala o autor que os dois padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguemse quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis a maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão. 38 O princípio, por sua vez, “deve ser levado em conta pelas autoridades públicas, como [se fosse] uma razão que inclina numa ou noutra direção”.39 Outra distinção entre regras e princípios enfatizada por DWORKIN consiste na dimensão do peso ou importância característica dos princípios que as regras não possuem. Em decorrência desta característica, “quando os princípios se intercruzam [...], aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de cada um”. 40 38 DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 39. 39 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 42. 40 DWORKIN, Ronald. O império do Direito, p. 42. 17 Isto implica a necessidade de questionamento do peso ou importância que determinado princípio possui. Já as regras não possuem esta dimensão, de maneira que se duas regras entram em conflito, uma delas não pode ser válida.41 ALEXY defende que apesar de existirem inúmeros critérios para a distinção entre regras e princípios, o critério da generalidade é o utilizado com mais frequência. Segundo ele, “los princípios son normas de un grado de generalidad relativamente alto, y las regras normas con un nibel relativamente bajo de generalidad“. 42 O referido autor assinala que os princípios seriam mandatos de otimização e esta característica seria um critério decisivo para a sua distinção das regras. Isto implica que “los principios son normas que ordenan que algo sea realizado en la mayior medida possible, dentro de las possibilidades jurídicas y reales existentes“. 43 As regras, por sua vez, “son normas que sólo pueden ser cumplidas o no. Si una regla es válida, entonces de hacerse exactamente lo que ella exige, ni más ni menos“.44 Estas características dos princípios, que os diferenciam das regras, demonstram a sua grande importância no ordenamento jurídico. LEAL enfatiza que, sendo elevado a este importante patamar, os princípios demonstram uma superlegalidade material e se tornam fonte primária do ordenamento. Especialmente porque os princípios representam valores concretos eleitos pela sociedade política, e, neste sentido, tornam-se o critério de aferição dos conteúdos constitucionais em sua dimensão normativa mais elevada.45 41 DWORKIN, Ronald. O império do Direito, p. 46. 42 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales, p. 83. 43 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales, p. 86. 44 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales, p. 87. 45 LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas hermenêuticas dos direitos humanos e fundamentais no Brasil, p. 166. 18 Dentre os princípios que tem norteado o ordenamento jurídico e o próprio Direito, destaca-se a seguir o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana em virtude da sua relevância como valor fonte de todo o sistema jurídico e da sua importância para o desenvolvimento da presente pesquisa. 1.3 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O DIREITO FUNDAMENTAL À HERANÇA A Declaração Universal de Direitos Humanos, em seu artigo 1º prescreve: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”. A Constituição Federal do Brasil de 1988 consagra a Dignidade da Pessoa Humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito 46, com a seguinte previsão: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...]. III – a dignidade da pessoa humana;47 A partir desta previsão, o princípio da Dignidade da Pessoa Humana adquire enfoques e contornos que vão repercutir e influenciar todo o ordenamento jurídico, inclusive, em aspectos específicos concernentes ao direito de Família, merecendo, por isso, uma análise no presente trabalho. 46 47 MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da Constituição, p. 136. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 19 Conforme anteriormente assinalado, a Dignidade da Pessoa Humana foi erigida à categoria de fundamento do Estado Democrático de Direito. MARTINS destaca que [...] o princípio da dignidade da pessoa humana constitui a base, o alicerce, o fundamento da República e do Estado Democrático de Direito por ela instituído. A fórmula adotada implica, em linhas gerais, que a Constituição brasileira transformou a dignidade da pessoa humana em valor supremo da ordem jurídica política por ela instituída.48 Esta concepção da Dignidade da Pessoa Humana como fundamento de uma ordem democrática implica admitir que o próprio Estado se constrói e se fundamenta a partir da pessoa humana e para servi-la, de maneira que um dos fins do Estado deve ser viabilizar condições mínimas, tanto materiais quanto morais, para que as pessoas tenham dignidade. Além de fundamento do Estado Democrático de Direito, ao ser considerada como um valor fonte do sistema constitucional, a Dignidade da Pessoa Humana adquire o papel especial de ser elemento que confere unidade axiológica-normativa ao sistema constitucional.49 Neste sentido, este princípio é concebido como o elemento responsável por conferir unidade de sentido a ordem constitucional que o enuncia. Como decorrência do grau de importância atribuído a este princípio, “a dignidade da pessoa humana é a fonte ética dos direitos fundamentais, não sendo estes senão emanações do valor básico mencionado”.50 E prossegue o autor afirmando que “na realidade, os direitos fundamentais, bem 48 MARTINS, Flademir Jerônimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional fundamental. Curitiba: Juruá, 2003, p. 63. 49 MARTINS, Flademir Jerônimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional fundamental, p. 63. 50 MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da constituição, p. 136. 20 como toda a ordem jurídica, têm como assento material o valor da pessoa humana [...]”. 51 Desta forma, infere-se que este princípio assume uma função importantíssima ao delinear o conteúdo dos demais valores e normas jurídicas em consonância com a Dignidade da Pessoa Humana. SARLET assevera que “[...] dentre as funções exercidas pelo princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, destaca-se, pela sua magnitude, o fato de ser, simultaneamente, elemento que confere sentido e legitimidade a uma determinada ordem constitucional [...]”.52 Portanto, a legitimidade, a integridade e o verdadeiro sentido de uma ordem constitucional serão garantidos e preservados se possuírem como parâmetro e como fundamento o respeito ao princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Neste contexto, cumpre destacar a função instrumental integradora e hermenêutica deste princípio, uma vez que “serve de parâmetro para aplicação, interpretação e integração não apenas dos direitos fundamentais e das demais normas constitucionais, mas de todo ordenamento jurídico”. 53 Isto implica que a interpretação do ordenamento jurídico, tanto constitucional como infraconstitucional, deve pautar-se, levando em consideração, o conteúdo do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Nesta temática, MARTINS destaca que o reconhecimento de forma expressa da Dignidade da Pessoa Humana como princípio fundamental traduz, 51 MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da constituição, p. 136. 52 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição federal de 1988. 2 ed, Porto Alegre: Livraria do advogado, 2002, p. 81. 53 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição federal de 1988, p. 85. 21 em parte, a pretensão constitucional de transformá-lo em um parâmetro objetivo de harmonização dos diversos dispositivos constitucionais (e de todo o sistema jurídico), obrigando o intérprete a buscar uma concordância prática entre eles, na qual o valor acolhido no princípio, sem desprezar os demais valores constitucionais, seja efetivamente preservado. 54 Desta forma, para que haja uma harmonização das normas, incluídas as regras e os princípios de um sistema jurídico, não se pode desprezar o valor da Dignidade da Pessoa Humana, pois o respeito a este princípio consiste em uma prerrogativa para a preservação dos demais valores constitucionais. Para SARLET, “[...] a dignidade da pessoa humana tem sido reiteradamente considerada como o princípio (e valor) de maior hierarquia da nossa e de todas as ordens jurídicas que a reconheceram [...]”. 55 O autor enfatiza que, cada vez mais, “[...] encontram-se decisões dos nossos Tribunais valendo-se da dignidade da pessoa como critério hermenêutico, isto é, como fundamento para solução das controvérsias, notadamente interpretando a normativa infraconstitucional à luz da dignidade da pessoa humana”.56 Quanto à função hermenêutica do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, SARLET assinala que, [...] poder-se-á afirmar a existência não apenas de um dever de interpretação conforme a Constituição e dos Direitos Fundamentais, mas acima de tudo [...] de uma hermenêutica que, para além do conhecido postulado do in dúbio pro libertate, tenha 54 MARTINS, Flademir Jerônimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional fundamental, p. 63. 55 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição federal de 1988, p. 87. 56 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição federal de 1988, p. 86. 22 sempre presente o imperativo segundo o qual em favor da dignidade não deve haver dúvida . 57 Verifica-se que o princípio da Dignidade da Pessoa Humana está intimamente relacionado com os Direitos Fundamentais, uma vez que “na verdade, quando a Constituição elencou um longo catálogo de direitos fundamentais e definiu os objetivos fundamentais do Estado, buscou essencialmente concretizar a dignidade da pessoa humana”.58 Isto ocorreu porque não teria validade ou resultados práticos a realização de simples menção ao princípio fundamental da Dignidade da Pessoa Humana, sem a garantia de um núcleo básico de direitos aos cidadãos pela Constituição Federal de 1988, o que vem a confirmar a necessária e direta ligação entre a Dignidade da Pessoa Humana e os Direitos Fundamentais. Nesta temática, MARTINS afirma que, Na atual quadratura histórica, uma Constituição que não institua um amplo catálogo de direitos fundamentais (ou sequer legitime a instituição pela ordem infraconstitucional), ainda que nela houvesse expressa menção ao princípio, não estaria positivando a dignidade da pessoa humana em fórmula capaz de normatividade, e tampouco, poderia ser considerada democrática. No rol de direitos fundamentais de uma Constituição se encontra a mais pura homenagem à dignidade da pessoa humana.59 Conforme se verifica, a Dignidade da Pessoa Humana é a fonte ética dos Direitos Fundamentais, sendo estes emanações do valor básico do referido princípio. Assim, pode-se afirmar que os direitos fundamentais constituem 57 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição federal de 1988, p. 88. 58 MARTINS, Flademir Jerônimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional fundamental, p. 65. 59 MARTINS, Flademir Jerônimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional fundamental, p. 65. 23 reflexos imediatos ou desdobramentos históricos da Dignidade da Pessoa Humana.60 Desta forma, o rol de direitos e garantias fundamentais consagrados no título II da Constituição Federal de 1988 traduz uma especificação e densificação do princípio fundamental da Dignidade da Pessoa Humana, ou seja, os direitos fundamentais constituem uma importante concretização do referido princípio, quer se trate dos direitos e deveres individuais e coletivos (art. 5º), dos direitos sociais (artS. 6º a 11) ou dos direitos políticos (arts. 14 a 17). 61 Cumpre destacar, em virtude da sua relação direta com o tema da presente pesquisa, a previsão do inciso XXX do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, o qual prevê o direito fundamental à herança, nos seguintes termos: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XXX – É garantido o direito de herança;”.62 Assim, constitucionalmente por assegurado, constituir o direito um à direito herança, fundamental, consiste em um desdobramento do princípio da Dignidade da Pessoa Humana, sendo a sua regulamentação e efetivação indispensável para a garantia de uma existência digna à pessoa humana. 60 MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da constituição, p. 136. 61 MARTINS, Flademir Jerônimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional fundamental, p. 66. 62 BRASIL, Constituição Federal de 1988. 24 Antes de encerrar este subcapítulo, oportuno registrar que o princípio da Dignidade da Pessoa Humana também é mencionado direta e indiretamente em outras passagens constitucionais. Especificamente, na área do direito de Família, em item que interessa para o presente estudo, o § 7º do artigo 226 da Constituição Federal de 1988 estabelece que o planejamento familiar é de livre decisão do casal e funda-se nos princípios da Dignidade da Pessoa Humana e da paternidade responsável. 63 Art. 226. A Família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. [...] §7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.64 (grifo nosso) Neste sentido, registra-se que a Dignidade da Pessoa Humana é um dos princípios do Direito de Família, de maneira que o seu respeito constitui a base da comunidade familiar e a garantia necessária para o pleno desenvolvimento e realização de todos os seus membros. Portanto, em síntese, destaca-se que o que se percebe, em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e 63 64 MARTINS, Flademir Jerônimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional fundamental, p. 52. BRASIL. Constituição Federal de 1988. 25 minimamente assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana e esta (a pessoa), por sua vez, poderá não passar de mero objeto de arbítrio e injustiças .65 Desta forma, infere-se que a plena garantia e efetividade dos direitos fundamentais constitui uma prerrogativa para a realização do princípio da Dignidade da Pessoa Humana, especialmente no que se refere ao Direito de Família, área na qual o respeito a este princípio representa a base de uma comunidade familiar saudável. 1.4 A GARANTIA INSTITUCIONAL DE ESPECIAL PROTEÇÃO À FAMÍLIA Para falar-se de garantia institucional, importante destacar uma definição para esta expressão, delimitando-se o seu alcance e âmbito de atuação. Neste sentido, BONAVIDES define garantia institucional como sendo “a proteção que a Constituição confere a algumas instituições, cuja importância reconhece fundamental para a sociedade, bem como a certos direitos fundamentais providos de um componente institucional que os caracteriza”.66 Segundo o autor, a garantia institucional visa a proteger a essência da instituição reconhecida, assegurando a sua permanência, dificultando eventual supressão e, principalmente, preservando o mínimo de substantividade ou essencialidade, ou seja, o cerne que não deve ser atingido, nem violado, uma vez que isto implicaria no próprio perecimento do ente protegido.67 65 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição federal de 1988, p. 61. 66 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 492. 67 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 493. 26 A Constituição Federal de 1988, reconhecendo a importância da Família para o desenvolvimento do indivíduo e do próprio Estado, tratou de estabelecer, de forma direta, a garantia constitucional a esta instituição, com a seguinte previsão do caput do artigo 226: Art. 226. A Família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.68 Ao afirmar a importância da Família, DIAS destaca que a Família sempre foi e sempre será a célula básica da sociedade, como um ponto de partida necessário para possibilitar o desenvolvimento das outras relações sociais.69 A Constituição Federal de 1988, através de importantes previsões, foi sensível à alteração dos valores que circundam esta instituição, não mais concebendo a Família como uma estrutura única, engessada pelos sagrados laços do matrimônio, mas ao contrário, reconheceu que o traço principal que a identifica são os laços de afetividade.70 Verifica-se, assim, a ocorrência de uma mudança no enfoque dado a Família, de maneira que atualmente a Família regulada e protegida constitucionalmente não é apenas aquela constituída pelo casamento, mas, especialmente encontra-se a sua identificação através da análise dos vínculos afetivos que originam e consolidam a sua formação. Neste contexto, enfatiza-se as relações de sentimentos entre os membros do grupo familiar, valorizando-se “as funções afetivas da Família que se torna o refúgio privilegiado das pessoas contra a agitação da vida nas grandes cidades e das pressões econômicas e sociais”. 71 68 69 70 71 BRASIL. Constituição Federal do Brasil de 1988. DIAS, Maria Berenice. Direito de Família e o novo código civil. 3 ed, Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. xiii. DIAS, Maria Berenice. Direito de Família e o novo código civil, p. ix. OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de. Curso de Direito de Família. 4 ed, Curitiba, Juruá, 2004, p. 13. 27 Esta nova perspectiva fez com que o artigo 226 da Carta Constitucional, trouxesse previsões específicas de que a entidade familiar é plural e não mais singular, tendo várias formas de constituição, voltando-se assim, para a realidade que engloba as várias possibilidades de representação social da Família.72 O artigo 226 da Constituição Federal de 1988, traz no seu conteúdo previsão que protege expressamente a União Estável e a Família Monoparental como entidades familiares, ao lado do casamento. Importante repetir o texto do seu caput, já citado, transcrevendo os parágrafos pertinentes ao tema: Art. 226. A Família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. [...] §3º Para efeito da proteção do Estado é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. §4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. Assim, com a previsão dos §3º e §4º do artigo 226 da Carta Constitucional foi alargado o conceito de Família, passando a proteger além da Família constituída pelo casamento civil, também a Família constituída pela União Estável entre o homem e a mulher e pela comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.73 DIAS enfatiza que esta nova ordem de valores, adotada pela Constituição Federal de 1988, ao proteger a Família de uma forma mais 72 DIAS, Maria Berenice. Direito de Família e o novo código civil, p.xv. 73 DIAS, Maria Berenice. Direito de Família e o novo código civil, p. 04. 28 ampla vem ao encontro do constitucionalismo moderno, que privilegia a Dignidade da Pessoa Humana.74 Este novo enfoque, fundamentado na efetividade do princípio da Dignidade da Pessoa Humana, demonstra a necessidade de alargarse a concepção de Família, visando proteger a pessoa humana de forma cada vez mais ampla. Para COSTA, a especial tutela constitucional reservada à Família “[...] é justamente no sentido de garantir que a Família seja um espaço de promoção, resguardo e efetivação da dignidade de cada um dos integrantes do grupo familiar”.75 Segundo a referida autora, este enfoque à Família [...] se coloca justamente na dimensão do reconhecimento do primado da pessoa, em que a Família se põe como instrumento e espaço para realização dessa dignidade, seja no relacionamento entre os cônjuges, seja na educação e formação da personalidade dos filhos. Seu caráter instrumental está posto, portanto, como instrumento de tutela da dignidade humana. 76 Neste contexto, destaca-se a importância da garantia institucional de especial proteção à Família em sentido amplo, abrangendo às Uniões Estáveis, dispensada pela Carta Constitucional, a fim de que o objetivo de concretização da Dignidade da Pessoa Humana através da Família possa ser efetivamente alcançado. 74 75 76 DIAS, Maria Berenice. Direito de Família e o novo código civil, p. xv. COSTA, Judith Martins. A reconstrução do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 459. COSTA, Judith Martins. A reconstrução do direito privado, p. 460. 29 1.5 A PROTEÇÃO À UNIÃO ESTÁVEL COMO FORMA DE CONSTITUIÇÃO DE FAMÍLIA Conforme expendido no item anterior, a Constituição Federal do Brasil de 1988, no §3º do seu artigo 226 77, reconheceu e legitimou a União Estável como uma das modalidades constitutivas de Família, ao lado do casamento e da família monoparental. Cumpre registrar que até chegar-se a esta recepção constitucional houve uma grande evolução doutrinária e jurisprudencial, no sentido de reconhecer efeitos jurídicos a relacionamentos não matrimoniais entre pessoas de sexo diferente, que impulsionaram o legislador constitucional a também adotar este entendimento. Sabendo-se que o direito é um fenômeno social, todas estas transformações foram impulsionadas e antecedidas por ingerência da própria sociedade que exigiu proteção jurídica a uma situação que, apesar de não possuir amparo legal, já existia na prática. A análise desta influência impulsionadora exercida pelos fenômenos sociais, bem como da evolução doutrinária e jurisprudencial ocorrida, até chegar-se à efetiva proteção da União Estável pela Constituição Federal de 1988 como uma das modalidades de Família, é de fundamental importância para o entendimento do tema. 1.5.1 O Direito como um fenômeno social A recepção da União Estável pela Constituição Federal de 1988 ocorreu em virtude das profundas mudanças havidas na sociedade, bem como em decorrência da evolução dos valores e princípios dos padrões 77 “Art. 226. §3º. Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. 30 comportamentais, que fizeram com que a sociedade, através de um clamor social, exigisse o reconhecimento de legitimidade familiar às relações concubinárias. KRELL destaca “a necessidade da conjugação da realidade social com a realidade jurídica, preferivelmente esta como reflexo daquela, e o enorme esforço na evo lução do Direito de Família Brasileiro foram conseqüência da evolução dos valores sociais que impulsionaram um redimensionamento das relações familiares e a humanização das mesmas.”78 Esta alteração evidenciada no Direito de Família, com o reconhecimento constitucional da União Estável como entidade familiar, decorre das importantes modificações ocorridas na própria sociedade, que, através da mudança de mentalidade/consciência jurídica dos indivíduos, quanto a uma realidade fática, tornam-se propulsoras de uma modificação também no mundo jurídico. Segundo CZAJKOWSKI, [...] não é difícil perceber que, no âmbito do Direito de Família, não há um sistema legislativo perfeito e acabado. É comum, até, que a aplicação do direito nessa área, se antecipe à confecção legislativa, atendendo aos anseios de uma sociedade em constante evolução de costumes, em contínuo processo de assimilação de novos valores e esquecimento de outros 79. E o Direito, no intuito de corresponder à consciência jurídica social, precisa acompanhar esta evolução dos fatos e dos valores através da evolução normativa, pois, conforme assevera KRELL, se a sociedade tende a organizar inovações, o Direito tem de evoluir na mesma direção e consagrar os princípios apropriados por essa evolução. Se considerarmos a sociedade como algo 78 79 KRELL, Olga Jubert Gouveia. União estável: Análise Sociológica. Curitiba: Juruá, 2003, p. 74. CZAJKOWSKI, Rainer. União Livre: à luz das Leis 8.871/94 e 9.278/96. 2ª ed, 3ª tir. Curitiba: Juruá, 2003, p. 33. 31 vivo, cuja dinâmica se impõe na evolução e no desenvolvimento dos seres humanos, não podemos deixar de considerar o grande papel desenvolvido pelo Direito enquanto instrumento a serviço do social.80 Neste contexto, verifica-se que a regulamentação da União Estável como entidade familiar na Constituição Federal de 1988 surgiu como resultado direto da sua aceitação e desejabilidade do próprio grupo social brasileiro81. Assim, a União Estável, como um padrão de comportamento genericamente aceito pelo grupo social, foi garantida constitucionalmente para retomar a correspondência entre a realidade fática e a realidade jurídiconormativa. 1.5.2 A evolução doutrinária, jurisprudencial e legislativa que antecedeu a recepção da União Estável na Constituição Federal de 1988 Oportuno registrar, que o reconhecimento da União Estável pela Constituição Federal de 1988, como forma de constituição de Família foi antecedido por um lento processo de conquistas e quebra de paradigmas, pois, mesmo quando reconhecida à existência do concubinato como um fato social inquestionável, o sistema jurídico sempre se mostrou resistente à concessão de efeitos jurídicos positivos à qualquer relação extramatrimonial, ou seja, que não fosse constituída através do casamento. 80 KRELL, Olga Jubert Gouveia. União estável: Análise Sociológica, p. 75. 81 KRELL, Olga Jubert Gouveia. União estável: Análise Sociológica, p. 76. 32 Esta resistência, segundo CAHALI82, era decorrente de uma orientação inspirada no Direito Canônico, insistente em prestigiar como base da sociedade unicamente o casamento segundo as normas vigentes, de maneira que apenas o matrimônio criava a Família legítima e apenas esta mereceria a proteção do Estado. Portanto, a influência dos valores religiosos, repudiando o concubinato como uma forma de constituição de Família foi, em grande parte, responsável pela resistência verificada em nosso sistema jurídico para acolher qualquer iniciativa dos Companheiros, que vivessem em União Estável, em regulamentar por escrito a sua relação. Desta forma, a regulamentação legislativa do concubinato sempre representou a necessidade de uma quebra de padrões e de valores, para a construção e o acolhimento de novos valores e princípios ansiados pela sociedade. A sociedade, na sua “[...] constante função criadora e recriadora de princípios e normas, motivadora das mudanças nas relações sociais, sensibilizando os estudiosos e operadores do Direito, não se furtava a provocar o Judiciário e o Legislativo apresentando esta realidade, que, mesmo não sendo nova, passou a ser cada vez mais constante [...]” 83. A provocação da sociedade, no sentido de exigir proteção do Estado a uma situação de fato existente, originou a ocorrência de uma evolução doutrinária, jurisprudencial e legislativa, tanto antes, como depois da vigente Constituição Federal, no intuito de trazer respostas aos anseios sociais ao conferir efeitos jurídicos decorrentes do concubinato. Importante registrar que o Código Civil de 1916 não reconhecia ou previa direitos à Família constituída fora dos padrões oficiais do casamento civil ou religioso com efeitos civis. OLIVEIRA assevera que as poucas 82 83 CAHALI, José Francisco. Contrato de Convivência na União Estável. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 02. CAHALI, José Francisco. Contrato de convivência na União Estável, p. 04. 33 referências do texto legal à vida em concubinato possuíam um caráter censóriorestritivo, principalmente no que se refere a uniões adulterinas, que ficavam à margem de qualquer proteção jurídica.84 De maneira paulatina, ocorreu um avanço nesta área, caracterizado pelo reconhecimento de determinados direitos às pessoas que se uniam através deste modo de convivência informal, tanto na esfera legislativa, quanto jurisprudencial. Na esfera legislativa, as uniões entre homem e mulher sem casamento, tiveram seus primeiros direitos reconhecidos na legislação esparsa. A área precursora na evolução legislativa está relacionada ao Direito Previdenciário, conforme assinala CAHALI, “na seara legislativa, em nosso ordenamento jurídico, o tratamento inicial foi no campo dos efeitos previdenciários decorrentes do concubinato, sendo nítida a preocupação assistencial, de cunho estritamente social, e não patrimonial, entre os conviventes”. 85 CAHALI registra também a [...] iniciativa apresentada por NELSON CARNEIRO, em 1947, buscando equiparar a companheira à esposa para os fins de pleitear alimentos, pensão, montepio e meio-soldo ou, do mesmo Parlamentar, já como Senador da República em 1966, com o objetivo, embora assim não identificado o projeto, de permitir a conversão da união estável em casamento86. Sem pretender esgotar o assunto, destacam-se os seguintes tópicos extraídos de dispositivos da legislação esparsa em favor do concubinato: reconhecimento de filhos, independente de sua origem 87 ; adoção de filhos por 84 OLIVEIRA, Euclides. Curso de direito de família. Coordenador: Douglas Philips Freitas. Florianópolis: Vox Legem, 2004, p. 103. 85 CAHALI, José Francisco. Contrato de convivência na União Estável, p. 05. 86 CAHALI, José Francisco. Contrato de convivência na união estável, p. 06. 87 Revogação do art. 358 do Código Civil de 1916, pela Lei n. 7.841/89, Lei n. 883/49, arts. 26 e 27 da Lei 7.250//84, 8.069/90, Lei n. 8.560/92. 34 concubinos 88; dependência do companheiro para levantar certos valores do autor da herança 89 ; direito da mulher ao nome do companheiro 90 ; bem de família extensível a qualquer espécie de entidade familiar 91; sub -rogação do companheiro na locação de imóveis urbanos 92, em caso de dissolução da vida em comum com o locatário ou de seu falecimento.93 Esta evolução, visando ao reconhecimento de direitos aos Companheiros que vivessem como se casados fossem, embora não estivessem unidos pelo matrimônio, ocorreu também através da jurisprudência. O Supremo Tribunal Federal (STF) editou as Súmulas 35 e 380, que representavam a garantia de determinados direitos aos Companheiros. A Súmula 35 94 do STF concedeu à companheira o direito de ser indenizada pela morte do Companheiro em caso de acidente do trabalho ou de transporte, ainda que não fossem casados, desde que não houvesse entre eles impedimento para o matrimônio. A súmula 380 95 do STF, por sua vez, reconheceu a existência de sociedade de fato entre os Companheiros, autorizando a partilha de bens adquiridos pelo esforço comum, por ocasião da dissolução desta sociedade. A doutrina da época também caminhava no sentido de aceitação e proteção dos interesses e direitos dos Companheiros e, não obstante a proibição legislativa quanto à realização e registro em cartório de contratos particulares entre os Companheiros, a doutrina já passava a acolher estes pactos 88 Lei n. 8.069/90, art. 42, § 2º. 89 Art. 1.037 do CPC e Lei n. 6.858/80. 90 Lei n. 6.015/73, art. 57, §§ 2º a 6º. 91 Lei n. 8.009/90. 92 Lei n. 8.245/91, arts. 11 e 12. 93 OLIVEIRA, Euclides. Curso de direito de família, p. 104. 94 “Em caso de acidente do trabalho ou do transporte, a concubina tem direito de ser indenizada pela morte do amásio, se entre eles não havia impedimento para o matrimônio”. 95 “Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”. 35 entre os concubinos como instrumento apto a gerar efeitos entre as partes contratantes. Neste sentido, Márcio Moacyr Porto, citado por CAHALI afirma que “a união entre pessoas não proibidas de casar não constitui, reiteramos, uma situação ilícita, ou imoral, pelo que nada impede que os parceiros, de espontânea vontade, estabeleçam, por escrito, as regras aplicáveis às suas relações pessoais e patrimoniais, mas dos interesses recíprocos que resultam da vida em comum” 96. Pensava -se que estas uniões concubinárias eram conseqüência da impossibilidade de dissolução do vínculo matrimonial, o que impedia as pessoas que encerrassem o matrimônio de contrair nova união através do casamento, fazendo com que estabelecessem uniões sem as formalidades do matrimônio. Em 1977, com a promulgação da Lei do Divórcio, admitindo e regulamentando a possibilidade de dissolução do vínculo matrimonial, [...] acreditava-se na redução drástica, para números inexpressivos, de relações concubinárias, uma vez que não mais existiria o óbice da indissolubilidade do casamento. Entretanto, contrariando as expectativas, o concubinato continuou a ser socialmente uma forma de agrupamento familiar, e agora por opção entre seus partícipes, que, embora livres para o matrimônio, passaram a eleger este meio de constituição de Família até para fugir à arcaica e conservadora estruturação do casamento, exigindo, definitivamente, uma postura direta do legislador quanto a esta figura, agora jurídica, pela crescente proteção e efeitos proclamados pela jurisprudência e legislação esparsa.97 96 CAHALI, José Francisco. Contrato de convivência na união estável, p. 22. 97 CAHALI, José Francisco. Contrato de Convivência na União Estável, p. 25. 36 Portanto, em virtude destas mudanças de valores e de padrões culturais, ocasionando uma transformação social, que culminou com uma evolução doutrinária, jurisprudencial e legislativa, tornou-se de fundamental importância a tutela da União Estável pelo ordenamento constitucional brasileiro. 1.5.3 A tutela da União Estável na Constituição Federal de 1988 Em decorrência dos reclames sociais e do direcionamento tomado pela doutrina e pela jurisprudência pátrias no sentido de não deixar as relações concubinárias à margem do sistema legal, a Constituição Federal de 1988 deu um grande avanço ao ampliar o conceito de Família, em consonância com o constitucionalismo moderno, abrangendo também sob a proteção do Estado, as relações concubinárias. AZEVEDO destaca a necessidade e a importância de o legislador efetivamente considerar o concubinato, não adulterino e não incestuoso, como um fato social que existe e é merecedor de proteção do Estado “[...] para que não pereça grande parte da família, que vive com os mesmos anseios da legítima, com o mesmo senso de moralidade, mas tolhida pela ausência de tratamento jurídico, até que se editasse a Constituição Federal de 1988”.98 Esta proteção ocorreu através do §3º do artigo 226 da Constituição Federal de 1988, que institucionalizou o Concubinato, atribuindo-lhe uma nova nomenclatura, qual seja, União Estável. O artigo 226 e seu parágrafo 3º, já citados, apresentam a seguinte redação na Carta Constitucional: 98 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato. São Paulo: Atlas, 2002, p. 230. 37 Art. 226. A Família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...) § 3º. Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.99 Oportuno ressaltar que a expressão Concubinato era utilizada em um sentido amplo, “abrangendo tanto as situações de vida em comum de pessoas desimpedidas, isto é, solteiras, separadas, divorciadas ou viúvas, como as uniões paralelas ao casamento, ou adulterinas (triângulo amoroso)”. 100 Inclusive, alguns autores adotam denominações específicas de concubinato puro e concubinato impuro para distinguir as duas situações de vida em comum, sendo que o concubinato puro corresponde à convivência duradoura de homem e mulher sem impedimentos decorrentes de outra união, vivendo como uma Família de fato. Já o concubinato impuro corresponde à relação adulterina, que envolva pessoa casada em ligação amorosa com terceiro ou com outros impedimentos matrimoniais absolutos. EUCLIDES DE OLIVEIRA destaca que o concubinato puro é que se igualou à União Estável, a qual veio a ser reconhecida pela Constituição Federal de 1988 como entidade familiar. Segundo o referido autor, deve-se tratar de maneira diferente, situações jurídicas distintas, portanto, “melhor se reserve [...] a denominação oficial de “união estável” para a união entre homem e mulher segundo o figurino legal, e se deixe o termo “concubinato” para as demais espécies de união fora desse modelo”. 101 99 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 100 OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do novo código civil. 6 ed. São Paulo: Método, 2003, p 73. 101 OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do novo código civil, p 74. 38 Desta forma, depreende-se que a situação jurídica abrangida e tutelada pela Constituição Federal de 1988 consiste apenas no concubinato puro, sendo denominado, a partir de sua proteção constitucional, de União Estável, reservando-se o termo concubinato para tratar as relações não protegidas constitucionalmente, por apresentarem algum impedimento legal. Neste sentido, o Código Civil previu especificamente que as relações dotadas de impedimento são denominadas de concubinato: Art. 1727. As relações não eventuais entre homem e mulher, impedidos de casar, constituem concubinato. 102 Verifica-se que a existência de União Estável com a conseqüente proteção do Estado está subordinada a inexistência de impedimentos na relação, uma vez que caso exista algum impedimento trata-se de Concubinato, instituto não alcançado pela proteção constitucional. Oportuno destacar, que a previsão da Constituição Federal de 1988, referente à proteção da União estável como uma forma de entidade familiar, ensejou uma grande mudança no que se refere aos direitos dos Companheiros, “[...] autorizando, definitivamente, que as questões relativas a essa outra forma de família fossem tratadas no campo do Direito de Família e não mais no campo do Direito Obrigacional”.103 Neste contexto, referida previsão constitucional, além de garantir proteção jurídica à União Estável, garantiu, ainda, a própria moralização do instituto, que, conforme anteriormente expendido, recebeu a qualificação de entidade familiar, ao lado do matrimônio legítimo. 102 103 Código Civil Brasileiro de 2002. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de Família e o novo código civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 221. 39 CAHALI registra que “[...] a institucionalização da união estável trouxe consigo a preservação moral da relação, impondo fosse afastada qualquer espécie de discriminação, até mesmo pela sociedade, a este núcleo familiar”. 104 Destaca-se que “atualmente as uniões estáveis passaram a ser consideradas uma forma socialmente aceita de constituição da Família, dela derivando direitos e obrigações, com ampla proteção patrimonial tanto para os conviventes como para os filhos”.105 Assim, verifica-se a importância da proteçã da União Estável pela Constituição Federal de 1988, concebendo status jurídico a uma situação de fato já existente, bem como garantindo a moralização do instituto e o conseqüente respeito àqueles que optarem por esta forma de constituição de Família. Após a apresentação da proteção específica garantida à União Estável, pretende-se enfatizar, na presente pesquisa, os Direitos Sucessórios dos Companheiros, análise que será objeto do próximo capítulo. 104 105 CAHALI, José Francisco. Contrat o de Convivência na União Estável, p. 27. DAL COL, Helder Martinez. A família à luz do concubinato e da união estável. Rio de Janeiro: forense, 2002, p. 94. 40 CAPÍTULO 2 DIREITOS SUCESSÓRIOS DECORRENTES DA UNIÃO ESTÁVEL 2.1 A REGULAMENTAÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL PELA LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL APÓS A SUA PROTEÇÃO PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 Após a proteção, de forma explícita, aos Companheiros conferida pelo §3º do art. 226 da Constituição Federal de 1988, surgiu entre os doutrinadores uma discussão acerca da repercussão da norma constitucional quanto aos direitos decorrentes da União Estável. CAHALI sustenta que, não obstante o respeito a doutrinadores de escolas que sustentam a equiparação da união estável ao casamento, ou ao menos uma igualdade de tratamento entre os dois institutos, pelo só texto constitucional, acabamos por concluir [...] que a nova Carta identificou as duas formas de constituição de Família apenas e exclusivamente para efeito de proteção do Estado, deixando para a legislação infraconstitucional, sede própria para tanto, a fixação dos efeitos da união entre os seus partícipes, e a sua conversão em casamento.106 A União Estável foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988 a fim de garantir a sua proteção pelo Estado como uma das formas de constituição de Família, contudo a regulamentação das conseqüências jurídicas e dos direitos inerentes a esta modalidade de entidade familiar consiste em uma atribuição da legislação infraconstitucional. 106 CAHALI, José Francisco. Contrato de Convivência na União Estável, p. 26 41 Justamente visando a atender esta necessidade, buscouse a sua regulamentação a fim de determinar de maneira específica os direitos e as conseqüências jurídicas desta forma de constituição de Família. Assim, com o intuito de cumprir o mandamento constitucional de proteção à União Estável como entidade familiar, previsto no §3º do artigo 226 da Constituição Federal de 1988, foram editadas duas Leis especiais sobre a matéria visando regulamentá-la: a Lei de nº 8.971/94 e a Lei de nº 9.278/96. A Lei nº 8.971, de 29.12.1994, dispôs acerca dos direitos dos Companheiros a alimentos, sucessão e meação em caso de morte, sendo que permaneceu vigente desde a sua publicação em 30.12.1994 até ser parcialmente revogada pela Lei nº 9.278/96. A Lei nº 9.278/96, de 10.05.1996, em vigor desde 13.05.1996, traz uma nova definição para União Estável, estabelece os direitos e deveres dos Companheiros, trata dos alimentos em caso de dissolução da União estável, garante o direito à meação dos bens adquiridos na constância da união e a título oneroso, acrescenta o direito de habitação no que se refere aos Direitos Sucessórios, estabelece a possibilidade de conversão da União estável em Casamento, bem como remete à competência da Vara da Família toda a matéria relativa a este tema. Por ser objeto principal do presente trabalho restringe-se a análise a seguir de forma específica à regulamentação referente aos Direitos Sucessórios atribuídos e garantidos aos Companheiros através das referidas leis especiais, enfatizando-se, inicialmente, quais eram os Direitos Sucessórios gozados pelos Companheiros antes da regulamentação da União Estável. 42 2.2 OS DIREITOS SUCESSÓRIOS DOS COMPANHEIROS REGULAMENTAÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL ANTES PELAS DA LEIS INFRACONSTITUCIONAIS O Direito Sucessório trata das regras de transmissão de bens em razão da morte de um titular. 107 Segundo Clóvis Beviláqua, citado por LIPPIMAN, o “direito das sucessões ou hereditário é o complexo dos princípios segundo os quais se realiza a transmissão do patrimônio de alguém que deixa de existir. Essa transmissão constitui a sucessão, o patrimônio transmitido, a herança”. 108 A terminologia Direito Sucessório na presente pesquisa, assim como para a maioria dos juristas, tem o alcance certo acima referido, não se confundindo com as sucessões feitas em vida, pelos titulares dos direitos, reservando-se o disciplinamento destas para o direito das obrigações.109 Antes da promulgação das Leis nº 8.971/94 e 9.276/96 não havia uma garantia, através de previsão legal, de Direitos Sucessórios entre Companheiros, inclusive, nem mesmo o Código Civil de 1916, previa a existência de qualquer direito à herança entre Companheiros. Neste sentido, OLIVEIRA assinala que antes da regulamentação legal da união estável não havia direito à herança entre companheiros. Na ordem de vocação hereditária, prevista no art. 1603 do Código Civil de 1916, aparece apenas o cônjuge sobrevivente, para haver a herança depois dos descendentes e dos ascendentes. Na falta do cônjuge, sucediam 107 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direito das sucessões. 3 ed, São Paulo: Atlas, 2003, p. 16. 108 LIPPMAN, Ernesto. Os direitos fundamentaisda constituição de 1988: com anotações e jurisprudência dos tribunais. São Paulo: LTr, 1999, p. 105. 109 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direito das sucessões, p. 16. 43 os colaterais, sem lugar, portanto, para chamamento de companheiro supérsite.110 Apesar da falta de proteção legal, era reconhecido pela jurisprudência pátria, através da Súmula 380 do STF, o direito de partilha de bens adquiridos por esforço comum dos Companheiros em sociedade de fato configurada à luz do direito obrigacional. Segundo OLIVEIRA, o direito reconhecido através desta Súmula 380 do STF “não se tratava de reconhecimento de direito à herança, mas de participação equiparáve l à meação patrimonial [...]”.111 Assim, no que se refere ao Direito Sucessório, vislumbravase a possibilidade de favorecimento do Companheiro apenas através de disposição testamentária. Contudo, esta modalidade ainda encontrava a vedação do artigo 1.719, inciso III do Código Civil de 1916 112, que proibia a outorga de homem casado à sua Companheiro, pois, neste caso, tratava-se de concubina. Existia, ainda, uma previsão na Lei nº 6.858/80 quanto à possibilidade de o Companheiro efetuar o levantamento de certos valores da herança, como saldo de salários, FGTS, PIS/PASEP, restituição de tributos e depósitos de pequeno valor, desde que constasse como dependente do falecido.113 Verifica-se, desta forma, a existência de uma situação de instabilidade e insegurança geradas pela ausência de amparo legal, que somente se modificou com a promulgação das leis que regulamentaram a União Estável, e, admitiu expressamente a sucessão causa mortis entre Companheiros. 110 OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do novo código civil, p 201. 111 OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do novo código civil, p 201. 112 BRASIL. Código Civil. “Art. 1719. Não podem também ser nomeados herdeiros, nem legatários: [...] III- a concubina do testador casado”. 113 OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do novo código civil, p 202. 44 2.3 O CONCEITO DE UNIÃO ESTÁVEL NA LEI 8.971/94 E SUA PREVISÃO REFERENTE AO DIREITO SUCESSÓRIO Ao regulamentar a União Estável, a Lei nº 8.971/94, inicialmente, estabeleceu o seu conceito para, na seqüência, prever os Direitos Sucessórios dos Companheiros. O conceito de União Estável com a previsão de alguns requisitos para a sua configuração resta estabelecido no artigo 1º da referida Lei nos seguintes termos: Art 1º. A companheira comprovada de um homem solteiro, separado judicialmente, divorciado ou viúvo, que com ele viva há mais de cinco anos, ou dele tenha prole, poderá valer-se do disposto na Lei 5.478, de 25 de julho de 1.968, enquanto não constituir nova união e desde que prove a necessidade. Parágrafo único. Igual direito e nas mesmas condições é reconhecido ao companheiro de mulher solteira, separada judicialmente , divorciada ou viúva. 114 Os elementos conceituais caracterizadores da União Estável, estabelecidos por esta regra jurídica são: a convivência entre homem e mulher, não impedidos de casarem-se ou separados judicialmente; que esta convivência tenha duração superior a cinco anos, ou tenha resultado no nascimento de filho; bem como os direitos dela decorrentes perduram enquanto os Companheiros não constituírem nova união115. Quanto à previsão específica dos Direitos Hereditários garantidos aos Companheiros que preencherem as condições do artigo 1º supra mencionado, a Lei nº 8.971/94 estabelece que o Companheiro sobrevivente participará da sucessão do falecido nos seguintes termos: 114 Artigo 1º da Lei nº 8.971/94. 115 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato, p. 434. 45 Art. 2º - As pessoas referidas no artigo anterior participarão da sucessão do(a) companheiro(a) nas seguintes condições: I – o (a) companheiro (a) sobrevivente terá direito enquanto não constituir nova união, ao usufruto de quarta parte dos bens do de cujus, se houver filhos destes ou comuns; II – o (a) companheiro (a) sobrevivente terá direito, enquanto não constituir nova união, ao usufruto de metade dos bens do de cujus, se não houver filhos, embora sobrevivam ascendentes; III – na falta de descendentes e de ascendentes, o (a) companheiro (a) sobrevivente terá direito à totalidade da herança.116 Infere-se que os incisos I e II, do art. 2º da Lei nº 8.971/94 supra citado, atribuíram o direito ao usufruto legal, e o inciso III, do mesmo artigo, estabelece o direito à propriedade da herança. Para um melhor entendimento é necessária a análise em separado dos Direitos Sucessórios que foram conferidos pela referida lei aos Companheiros. 2.3.1 Do Usufruto Legal O usufruto consiste no direito de fruir as utilidades e frutos dos bens, destacando-se da nua propriedade reservada aos herdeiros117. NERY JUNIOR afirma que 116 117 Lei 8.971/94 OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do novo código civil, p 207. 46 o usufruto é um dos chamados direitos reais sobre coisa alheia (ius in re aliena). O direito real de usufruto significa destaque da propriedade. O exercício do usar e do fruir, enquanto propriedade plena, é direito reflexo do domínio (direito de disposição) e, conseqüentemente, seu titular é o proprietário. Com o usufruto, o exercício passa a ser exclusivamente do usufrutuário, destituído o proprietário deste direito. 118 O instituto do usufruto legal tem um caráter protetivo, e, LOPES DE OLIVEIRA relembra que “[...] deve visar a garantir o convivente sobrevivente que, por ter se unido em regime de separação de bens ou de comunhão parcial de bens, não seja contemplado com bens do de cujus, pois, como visto, este pode afastar o convivente sobrevivente de sua sucessão causa mortis, através de testamento”.119 O direito ao usufruto legal foi concedido ao Companheiro sobrevivente, entretanto, importante destacar a ressalva estabelecida na lei de que o direito ao usufruto sobre os bens deixados pelo falecido Companheiro é assegurado ao sobrevivente apenas enquanto este não constituir nova união, ou seja, enquanto permanecer o estado de viuvez. 120 A análise conjunta dos incisos I e II, do artigo 2º da lei em análise, leva à conclusão de que o usufruto será parcial sobre ¼ dos bens, se houver herdeiro descendente, e, sobre ½ dos bens, no caso de haver herdeiro ascendente. Conforme se verifica, no inciso I do aludido art. 2º da Lei 8.971/94, o texto legal utiliza a palavra filhos e não descendentes, mas EUCLIDES OLIVEIRA adverte que “a lei menciona ‘filhos’ impropriamente, pois é 118 NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Novo código civil e legislação extravagante anotados. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 486. 119 OLIVEIRA, J. M. Leoni Lopes. Alimentos e sucessão no casamento e na união estável. 7 ed, Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2002, p. 246. 120 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato, p. 335. 47 possível a subsistência de outros herdeiros, na linha descendente (netos), em face da pré-moriência de filho do autor da herança” 121. Os incisos I e II do art. 2º, ainda esclarecem que os filhos, entenda-se descendentes, podem ser do de cujus, ou seja, havidos de outra união, ou comuns, o que implica ser resultante da união com o Companheiro supérstite 122. Nas hipóteses previstas nestes incisos, por não ter direito à herança, o Companheiro é assistido com o direito de usufruto sobre parte dos bens, através de fração ideal ou sobre bens determinados, conforme reste estabelecido na partilha.123 A concessão deste direito de usufruto legal ao Companheiro sobrevivente equipara-se ao direito de usufruto concedido ao cônjuge sobrevivente previsto no artigo 1.611, § 1º do Código Civil de 1916 124. Neste sentido CZAJKOWSKI afirma que nos incisos I e II do art. 2º supra transcrito, estendeu-se o chamado usufruto vidual, estabelecido para o cônjuge viúvo no art. 1.611, §1º, do Código Civil, também para o companheiro sobrevivente de uma união estável. Aqui, há uma equiparação bastante significativa da condição jurídica do companheiro e do cônjuge viúvo, desde que este último não tenha sido casado com o falecido em regime de comunhão universal de bens.125 121 OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do novo código civil, p 207. 122 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato, p. 335. 123 OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do novo código civil, p 207. 124 BRASIL. Código Civil de 1916. “Art 1.611. [...] §1º- O cônjuge viúvo, se o regime de bens do casamento não era o da comunhão universal, terá direito, enquanto durar a viuvez, ao usufruto da quarta parte dos bens do cônjuge falecido, se houver filhos, deste ou do casal, e à metade, se não houver filhos embora sobrevivam ascendentes do de cujus”. 125 CZAJKOWSKI, Rainer. União Livre: à luz das Leis 8.871/94 e 9.278/96, p. 172. 48 Assim, restou garantido o direito de usufruto ao Companheiro sobrevivente, nos moldes previstos para o cônjuge viúvo, ampliando-se os Direitos Sucessórios decorrentes da União Estável. 2.3.2 Do Direito de Propriedade à Herança O inciso III 126 do artigo 2º da Lei 8.971/94 ora analisada, concede ao Companheiro sobrevivente direito sobre a totalidade da herança do Companheiro falecido, quando este não deixar descendentes e ascendentes. EUCLIDES DE OLIVEIRA assinala que a situação prevista neste dispositivo implica na alteração da ordem de vocação hereditária definida no artigo 1.603 do Código Civil de 1916127. O artigo 1.603 do Código Civil de 1916, vigente à época da promulgação da Lei em comento, 8.971/94, e seus incisos, apresentavam a seguinte redação: A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I – aos descendentes; II – aos ascendentes; III – ao cônjuge sobrevivente; IV – aos colaterais; V – aos Municípios, ao Distrito Federal ou à União. 128 126 “III – na falta de descendentes e de ascendentes, o (a) companheiro (a) terá direito à totalidade da herança”. 127 OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do novo código civil, p 204. 49 Assim, com a previsão do inciso III do artigo 2º da Lei nº 8.971/94, segundo EUCLIDES DE OLIVEIRA, “no inciso III, onde consta o deferimento da herança ”ao cônjuge sobrevivente”, leia-se, também, “ou ao companheiro sobrevivente”. Significa dizer que os colaterais somente recebem a herança se o extinto não foi casado nem deixou companheira em situação de união estável”. 129 Oportuno registrar a advertência de que referida disposição legal não pretende tornar o Companheiro um herdeiro necessário, privando o autor da herança de testar seus bens da maneira que lhe aprouver. Na realidade, segundo LOPES DE OLIVEIRA, o legislador simplesmente desejou incluir o Companheiro na ordem de vocação hereditária, inserindo-o entre os herdeiros facultativos, juntamente com o cônjuge e os colaterais130. Quanto a alteração da ordem de vocação hereditária prevista no Código Civil de 1.916, João Roberto Parizatto, citado por LOPES DE OLIVEIRA, afirma que no caso em apreço, igualou-se para fins sucessórios a (o) concubina (o) ao cônjuge, prevendo-se que, na hipótese de inexistirem descendentes ou ascendentes do de cujus, a(o) concubina(o) receberá a totalidade da herança, o que ocorre, na mesma hipótese, ao cônjuge sobrevivente que aparece em terceiro lugar na ordem de vocação hereditária prevista no artigo 1.603 do Código Civil.131 Quanto ao alcance e relevância do inciso III do artigo 2º ora analisado, VENOSA enfatiza que referido dispositivo veio proporcionar uma equiparação entre o Companheiro sobrevivente e o cônjuge supérstite na ordem 128 BRASIL. Código Civil de 1916, art. 1603. 129 OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do novo código civi, p 204. 130 OLIVEIRA, J. M. Leoni Lopes. Alimentos e sucessão no casamento e na união estável, p. 236 e 237. 131 OLIVEIRA, J. M. Leoni Lopes. Alimentos e sucessão no casamento e na união estável, p. 238. 50 de vocação hereditária expressa no artigo 1.603 do Código Civil de 1916. Esta previsão implica que, na inexistência de ascendentes ou descendentes, o Companheiro será herdeiro da totalidade dos bens do de cujus. 132 Nesta hipótese, deduz-se que, conseqüentemente, ocorrerá a exclusão dos colaterais e do Estado em obter a herança. Neste contexto, assim como o é para o Direito Sucessório do cônjuge, também é irrelevante para o Companheiro o regime de bens adotado, sendo da mesma forma irrelevante o fato de ter, ou não, havido conjugação de esforços para a obtenção do patrimônio comum pelos Companheiros. O importante nesta situação, para o Direito Sucessório é que realmente tenha havido uma União Estável, cujo exame dos requisitos deve ser feito no caso concreto 133. Importante destacar que os requisitos necessários para o direito à sucessão, de início, eram os mesmos previstos no artigo 1º da Lei nº 8.971/94, que eram exigidos para caracterização da qualidade de Companheiros, quais sejam: união comprovada de homem e mulher solteiros, separados judicialmente, divorciados ou viúvos, por mais de cinco anos, salvo se com prole. Contudo, com a edição da Lei nº 9.278/96, houve uma alteração na conceituação de União Estável, com a dispensa de certos requisitos pessoais, como o estado civil das partes e do prazo de cinco anos de vida em comum. Assim, seria inviável a permanência da existência de dois conceitos para União Estável, pois esta dualidade conceitual contraria a regra de proteção legal devida ao ente familiar 134. Desta forma, a partir da edição da Lei nº 9.278/96, para a caracterização do direito à herança (direito de propriedade) previsto na Lei nº 132 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direito das sucessões, p. 114. 133 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: direito das sucessões, p. 115. 134 OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do novo código civil, p 205. 51 8.971/94, basta a configuração da União Estável nos termos previstos por esta lei, a qual exige a convivência duradoura, pública e contínua com o propósito de constituir Família, além do atendimento de outras condições específicas necessárias aos pleitos sucessórios 135. VARJÃO assevera que para reconhecimento do Direito Sucessório exige-se que a união tenha perdurado até a data da abertura da sucessão, ou seja, até a morte do ex-Companheiro, sendo que, se ao tempo da morte já estava dissolvida a União Estável, desaparece o direito à sucessão do Companheiro sobrevivente. 136 Assim, não há que se falar em Direito Hereditário, se a dissolução da vida em comum ocorreu antes da morte de um dos Companheiros, assemelhando-se à situação prevista para os cônjuges, no caso de separação judicial. Da mesma forma, não se admite a pretensão de herança de ex- Companheiro que tenha constituído nova união, uma vez que a extinção da vida em comum dos Companheiros também faz cessar o Direito Sucessório por ocasião do óbito de um deles. AZEVEDO ressalta o fato importante de que o direito à herança previsto neste inciso III, do art. 2º, da Lei nº 8.971/94, independe se os bens adquiridos pelo falecido Companheiro ocorreram a título gratuito ou oneroso, mas simplesmente o fato de tais bens terem sido reconhecidamente adquiridos durante a união estável137. 135 OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do novo código civil, p 205. 136 VARJÃO, Luiz Augusto Gomes. União estável: requisitos e efeitos. São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999, p. 139. 137 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato, p. 339. 52 Art. 3º - Quando os bens deixados pelo (a) autor (a) da herança resultarem de atividade em que haja colaboração do companheiro (a), terá o sobrevivente direito à metade dos bens 138. Este artigo, por sua vez, estabelece que em caso de sucessão por morte, o Companheiro sobrevivente terá direito à metade dos bens adquiridos pelos Companheiros quando este patrimônio resultar de atividade em que haja colaboração daquele. AZEVEDO destaca tratar-se, neste caso, de meação e não de herança139. Portanto, verifica-se que a Lei nº 8.971/94, que regulamentou a União Estável, garantiu os direitos sucessórios aos Companheiros de uma maneira benéfica e ampla, visando atribuir segurança e estabilidade aos que optarem por esta forma de constituição de Família. 2.4 O CONCEITO DE UNIÃO ESTÁVEL NA LEI 9.278/96 E SUA PREVISÃO REFERENTE AO DIREITO SUCESSÓRIO O artigo 1º da Lei nº 9.278/96 estabelece o conceito e os elementos necessários para a caracterização da União Estável, elevando-a à categoria de entidade familiar, da seguinte forma: Art. 1º. É reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de Família 140. 138 Lei 8.971/94 139 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato, p. 342. 140 Artigo 1º da Lei 9.278/96. 53 Inicialmente, já se verifica a necessidade de a convivência ser entre pessoas do sexo diferente, pois a previsão do artigo 1º, ora analisado, não reconhece a união entre pessoas do mesmo sexo como apta a receber a proteção do Estado, uma vez ter deixado clara a necessidade da união ser entre homem e mulher 141. Da leitura do artigo supra citado se depreendem algumas alterações quanto ao conceito de União Estável em comparação com o estabelecido pela Lei nº 8.971/94. Resta evidenciado que este artigo não estabelece prazo certo para a existência da União Estável, devendo-se, em cada caso, observar-se a efetiva configuração desta união através da posse recíproca dos Companheiros com intenção de formação do lar, desde que a convivência seja duradoura, e capaz de demonstrar a existência de Família.142 Esta característica se diferencia da previsão constante na lei anterior, a qual exigia o preenchimento do decurso do prazo de 5 (cinco) anos ou a existência de filhos para que se configurasse a União Estável. PEREIRA destaca a importância do conteúdo do artigo 5º143 da lei em comento, ao prever a existência de uma presunção do esforço comum entre os Companheiros, no que se refere aos bens adquiridos onerosamente na constância da relação.144 Portanto, se até o advento da referida lei, o esforço comum deveria ser provado, a partir da sua previsão, prevalece a presunção do esforço 141 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato, p. 435. 142 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato, p. 339. 143 Lei 9.278/96. Art. 5º. Os bens móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos os conviventes, na constância da união estável e a título oneroso, são considerados fruto do trabalho e da colaboração comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes iguais, salvo estipulação contrária em contrato escrito. 144 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família e o novo código civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p 221. 54 comum 145 . Esta regulamentação apresenta um caráter muito importante, especialmente por repercutir nos Direitos Sucessórios já garantidos aos Companheiros. A Lei nº 9.278/96 trouxe apenas uma previsão referente ao Direito Sucessório, atribuindo ao Companheiro o direito real de habitação, contido no parágrafo único do artigo 7º que traz a seguinte redação: Art. 7º Dissolvida a união estável por rescisão, a assistência material prevista nesta Lei será prestada por um dos conviventes ao que dela necessitar, a título de alimentos. Parágrafo único. Dissolvida a união estável por morte de um dos conviventes, o sobrevivente terá direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da Família.146 AZEVEDO explica que “o direito real de habitação consiste na utilização gratuita de imóvel alheio. O titular desse direito deverá residir, com sua Família, nesse imóvel, não podendo alugá-lo, emprestá-lo”147. Oportuno destacar que o direito à habitação distingue-se de usufruto, pois tem um caráter mais restrito. Conforme EUCLIDES DE OLIVEIRA a habitação consiste em uso para moradia, não abrangente da percepção dos frutos, pois somente confere direito de habitar, gratuitamente, imóvel residencial alheio. Quem habita não pode alugar, nem emprestar a coisa, mas somente ocupá-la com sua Família. 148 145 Oportuno registrar que esta presunção não é absoluta, podendo ser contestada. Entretanto, a Lei nº 9.278/96 contribui por inverter o ônus da prova, uma vez que o esforço comum a princípio existe, dependendo de prova da parte interessada em sentido contrário para ser derrubado. 146 Artigo 7º da Lei 9.278/96 147 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato, p. 339. 148 OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do novo código civil, p 209. 55 A previsão do direito real de habitação na legislação especial constitui mais uma conquista dos Companheiros em termos sucessórios, pois, não haveria sentido a Lei nº 8.971/94 ter conferido o direito de propriedade e o direito de usufruto ao Companheiro e ter silenciado acerca do direito real de habitação.149 Trata-se de um instituto paralelo ao estabelecido para o cônjuge viúvo no artigo 1.611, §2º do Código Civil de 1916150, e mantido no artigo 1831 do Código Civil de 2002151. LOPES DE OLIVEIRA destaca que a partir da vigência Lei nº 9.278/96, o Direito Sucessório do Companheiro sobrevivente se tornou igual ao Direito Sucessório do cônjuge sobrevivente.152 Do dispositivo citado, que confere o direito real de habitação ao Companheiro sobrevivente, se verifica a exigência do cumprimento de dois requisitos importantes: a destinação do imóvel objeto do direito real de habitação e a ausência de nova união ou casamento. Quanto ao primeiro requisito, exige a lei que o imóvel objeto do direito real de habitação seja destinado à residência da Família. Apesar de o parágrafo único do art. 7º da Lei 9.278/96 não conter exigência semelhante à contida no §2º do art. 1611 do Código Civil, no sentido de que o imóvel objeto do direito real de habitação “seja o único bem 149 OLIVEIRA, J. M. Leoni Lopes. Alimentos e sucessão no casamento e na união estável, p. 251. 150 “Ao cônjuge sobrevivente, casado sob regime de comunhão universal, enquanto viver e permanecer viúvo, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da Família, desde que seja o único bem daquela natureza a inventariar”. 151 “Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da Família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar”. 152 OLIVEIRA, J. M. Leoni Lopes. Alimentos e sucessão no casamento e na união estável, p. 251. 56 daquela natureza a inventariar”, também aqui entendemos deva ser feita a mesma exigência, a fim de conferir ao convivente o direito real de habitação. 153 O parágrafo único do artigo 7º da Lei nº 9.278/96 determina, ainda, que o Companheiro terá este direito real de habitação enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento. Desta forma, o segundo requisito exigido para a concessão do direito real de habitação é a permanência do estado de viuvez, sem casar ou constituir nova união. LOPES DE OLIVEIRA considera, mais claro e preciso, esse dispositivo, do que o § 2º do art. 1.611 do Código Civil, pois prevê, como hipóteses de extinção do direito real de habitação, tanto o novo casamento, como a constituição de nova união estável, por parte do convivente sobrevivente. Como já tivemos oportunidade de afirmar, entendemos que, também em relação ao cônjuge sobrevivente, é causa de extinção do direito real de habitação a constituição de união estável. 154 O direito real de habitação ao Companheiro foi, inclusive, objeto de manifestação do Superior Tribunal de Justiça, nos seguintes termos: “A companheira tem, por direito próprio e não decorrente do testamento, o direito de habitação sobre o imóvel destinado a moradia da família, nos termos da Lei 9.278/96, 7º par. ún.”. 155 153 OLIVEIRA, J. M. Leoni Lopes. Alimentos e sucessão no casamento e na união estável, p. 253. 154 OLIVEIRA, J. M. Leoni Lopes. Alimentos e sucessão no casamento e na união estável, p. 255. 155 STJ, 4ª T, Resp 175862-ES, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, v. u., j. 16.8.2001, DJU 24.9.2001, p. 308) 57 Com a edição da Lei nº 9.278/96, que concedeu o direito real de habitação aos Companheiros, surgiu a discussão na doutrina se houve ou não a revogação da Lei nº 8.971/94 que regulava a União Estável anteriormente. Acerca da matéria, AZEVEDO defende que não houve revogação total da lei anterior, mas apenas a sua revogação tácita parcial, naquilo que for conflitante com a lei posterior. 156 Portanto, permaneceu vigente a Lei nº 8.971/94, no que se refere ao conteúdo não regulado pela Lei 9.278/96, ocorrendo apenas a derrogação parcial da lei anterior quanto à matéria que foi objeto de nova regulamentação pela lei editada posteriormente. Especificamente quanto ao Direito Sucessório dos Companheiros, regulado pelas referidas leis, destaca-se a permanência em vigor das disposições do art. 2º da Lei nº 8.971/94, relativas ao direito de propriedade à herança do Companheiro sobrevivente, e ao direito de usufruto, haja vista não terem sido revogadas pela Lei nº 9.278/96, que se limitou a reconhecer mais o direito real de habitação aos Companheiros. 157 Desta forma, não havendo menção de forma expressa à revogação da lei anterior, a concessão pela Lei nº 9.278/96 do direito real de habitação, não exclui os demais Direitos Sucessórios já garantidos aos Companheiros pela lei anterior. Portanto, os direitos previstos na Lei nº 8.971/94 acrescidos dos direitos previstos nesta Lei nº 9.278/96, ampliaram as garantias dos Companheiros, tornando os seus Direitos Sucessórios amplamente protegidos. 156 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato, p. 368. 157 OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento, p. 98. 58 2.5 RECEPÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL PELO ATUAL CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO E A SUA PREVISÃO DOS DIREITOS SUCESSÓRIOS No atual Código Civil, a União Estável encontra-se prevista no Livro IV, Título III, em um capítulo dedicado unicamente à União Estável, que compreende os arts. 1.723 a 1.726, e prevê sua conceituação, impedimentos, direitos e deveres dos Companheiros, regime de bens e conversão em casamento, mais o art. 1.727, que apresenta a definição de concubinato. Existem, ainda, disposições esparsas em outros capítulos do Código Civil que regulamentam efeitos patrimoniais da União Estável, como nos casos de obrigação alimentar, prevista no art. 1.694 e, especificamente, previsão relativa ao Direito Sucessório do Companheiro no art. 1.790. OLIVEIRA assinala a “impropriedade em destacar como título a união estável, quando deveria ser um dos subtítulos do “Direito Pessoal”, pois constitui forma acrescida de entidade familiar, em parelha ao casamento”.158 Portanto, logo de início, já se verifica uma impropriedade legislativa, em virtude da forma com que foi abordada e regulamentada a União Estável na legislação substantiva civil. Segundo o referido autor, esse tratamento diferenciado talvez possa ser explicado, embora não justificado, pelo fato de a União Estável não estar prevista no projeto original do Código Civil, vindo a ser acolhida apenas posteriormente, motivo pelo qual foi colocada na parte final do texto anteriormente elaborado.159 O conceito de União Estável trazido pelo Código Civil Brasileiro de 2002 permanece o mesmo já estabelecido pela Lei nº 9.278/96 no 158 OLIVEIRA, Euclides. Curso de direito de família. Coordenador Douglas Philips Freitas, p. 105. 159 OLIVEIRA, Euclides. Curso de direito de família. Coordenador Douglas Philips Freitas, p. 105. 59 seu art. 1º já citado, apresentando apenas uma pequena mudança na redação, o que não lhe altera a essência do conteúdo. O artigo 1.723 prevê o conceito do instituto em apreço, nos seguintes termos: Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de Família. 160 Conforme se verifica, o conceito de União Estável no atual Código Civil, não fixa um período de tempo específico para a caracterização da União Estável, mas exige as características de a convivência ser pública, contínua e duradoura. Inicialmente, destaca-se novamente, que a União Estável não abrange a união homossexual, pois este dispositivo prevê e protege apenas a união entre homem e mulher. PEREIRA assevera que o verdadeiro delineamento para chegar-se ao atual conceito de União Estável deve levar em consideração os elementos caracterizadores de um núcleo familiar. Estes elementos consistem na durabilidade, estabilidade, convivência sob o mesmo teto, prole, relação de dependência econômica.161 Contudo, ressalta o mesmo autor, que a simples falta de um dos elementos acima referidos, não implica na descaracterização da União Estável, pois, segundo ele, “é o conjunto de determinados elementos que ajuda a objetivar e a formatar o conceito de família. O essencial é que se tenha formado com aquela relação afetiva e amorosa uma família, repita-se”.162 160 BRASIL. Código Civil de 2002, art. 1723. 161 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família e o novo código civil, p. 208. 162 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família e o novo código civil, p. 209. 60 Portanto, este entendimento vem ao encontro da moderna concepção de Família, segundo a qual, para a sua caracterização, prevalece a importância dos laços de afeti vidade que uniram os membros que a compõe. Destaca-se, a seguir, uma abordagem acerca dos requisitos estabelecidos pelo Código Civil ao estabelecer o conceito de União Estável. Quanto ao requisito da publicidade, AZEVEDO esclarece que “[...] como um fato social, a união estável é tão exposta ao público como o casamento, em que os companheiros são conhecidos, no local em que vivem, nos meios sociais, principalmente de sua comunidade, pelos fornecedores de produtos e serviços, apresentando-se, enfim, como se casados fossem”. 163 Portanto, o fato de a convivência ser pública, pressupõe o seu conhecimento no meio social em que vivem os Companheiros, o que impede a configuração de união estável com caráter familiar aos encontros realizados às escondidas, em segredo, de maneira clandestina, por ser incompatível com a idéia de verdadeira Família no meio social. Da mesma forma que no casamento, a continuidade da União Estável também é necessária, sem a existência de interrupções que lhe retirem a característica de permanência, especialmente, porque o vai e vem de encontros e desencontros, demonstra uma instabilidade na união.164 Esta característica pressupõe que os Companheiros não apenas se visitem, mas efetivamente vivam juntos, participando um da vida do outro, sem a existência período certo para a duração da convivência ou de tempo marcado para se separarem. 163 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato, p. 437. 164 OLIVEIRA, Euclides. Curso de direito de família. Coordenador Douglas Philips Freitas, p. 107. 61 No que se refere ao prazo para atestar-se à eficácia da União Estável, no atual Código Civil, novamente optou o legislador por não fixá-lo, afirmando que esta união existe quando for duradoura.165 O requisito de ser uma união duradoura tem o mesmo sentido de estável, o que significa a permanência por um tempo razoável, que seja suficiente para caracterizar o intuito de constituir Família. LISBOA enfatiza que “o período de tempo anteriormente fixado em ao menos cinco anos não foi adotado pelo novo Código, bastando que se demonstre que houve tempo suficiente para a prova da estabilidade, o que deve ser analisado casuisticamente pelo julgador”. 166 Isto decorre em virtude do fato de que a União Estável nasce com o afeto entre os Companheiros, não possuindo prazo certo para existir ou para terminar, devendo o juiz, em cada caso, auferir se houve ou não duração suficiente para configuração da existência de União Estável. 167 Além dos requisitos de caráter objetivo acima expendidos, cumpre registrar que a União Estável exige o elemento subjetivo, intencional, que consiste no propósito de formação da Família. Nesta temática, ressalta-se que [...] é no intuito de constituição de Família que está o fundamento da união estável. Esse estado de espírito de viver no lar pode não existir, por exemplo, no companheirismo, que objetive, além da companhia esporádica, relações sexuais ou sociais, com ampla liberdade de que tenham outras convivências ou companheiros, não encarando os afazeres domésticos com seriedade. Nessa situação, pode um casal viver mais de dez anos sem que se 165 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato, p. 438. 166 LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil, volume 5: direito de Família e das sucessões. 3 ed, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 427. 167 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato, p. 438. 62 vislumbre união estável. Os tribunais chamam esse estado de mero companheirismo, de união aberta ou de relação aberta. 168 Portanto, não é qualquer tipo de convivência que se enquadra no modelo de entidade familiar, mas apenas e especificamente a União Estável entre homem e mulher com a intenção de efetivamente constituir uma Família. O Código Civil, além de regulamentar os direitos inerentes a União Estável, estabelece, ainda, alguns deveres a serem respeitados pelos Companheiros, nos seguintes termos: Art. 1724. As relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres de lealdade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos.169 Desta forma, verifica-se que, além de estabelecer os requisitos a serem cumpridos para a configuração da União Estável, bem como os direitos concedidos aos Companheiros, a legislação civil prevê também deveres a serem observados, fortalecendo ainda mais os seus vínculos. Os deveres pessoais entre os Companheiros estabelecidos na referida disposição legal, são os mesmos previstos para os cônjuges, com exceção da coabitação, conforme se verifica no art. 1.566 170 do código civil, demonstrando a aproximação dos citados institutos, e a importância atribuída à União Estável como forma de entidade familiar, colocada ao lado do casamento. 168 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato, p. 438. 169 BRASIL, Código Civil de 2002. 170 BRASIL, Código civil. Art. 1566. São deveres dos cônjuges: I – fidelidade recíproca; II – vida em comum, no domicílio conjugal; III – mútua assistência; IV – sustento, guarda e educação dos filhos. 63 O Código Civil trouxe um novo disciplinamento no que se refere aos Direitos Sucessórios dos Companheiros, sendo que, em decorrência desta previsão, a posição do Companheiro altera-se substancialmente se comparada com os direitos que lhe eram anteriormente garantidos pelas leis especiais. O Código Civil trata do direito do Companheiro sobrevivente no âmbito sucessório em um único artigo, o 1.790, que se encontra no capítulo das Disposições Gerais do Direito das Sucessões. OLIVEIRA registra que “merece reparo essa colocação da matéria fora do rol dos sucessores legítimos”. Segundo o autor, o artigo que regulamenta o Direito Sucessório dos Companheiros deveria estar no Título da Sucessão Legítima, no Capítulo da Ordem de Vocação Hereditária, que abrange os descendentes, ascendentes, cônjuges e colaterais. 171 Neste sentido, não poderia o Companheiro ser excluído da qualidade de sucessor legítimo. A redação do art. 1.790, que prevê os Direitos Sucessórios dos Companheiros, é a seguinte: Art. 1790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes: I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho; II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles; 171 OLIVEIRA, Euclides. Curso de direito de família. Coordenador Douglas Philips Freitas, p. 110. 64 III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança; IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança. 172 Antes de iniciar a abordagem acerca dos Direitos Sucessórios do Companheiro sobrevivente, cumpre destacar que “o patrimônio hereditário do Companheiro morto será inventariado após exclusão da parte devida ao companheiro sobrevivente a título de meação, nos termos do que convencionaram ou sob os regramentos do regime de comunhão parcial de bens”. 173 Portanto, os Direitos Sucessórios previstos neste artigo, referem-se apenas à parte concernente à meação do Companheiro falecido. Realiza -se esta abordagem dos Direitos Sucessórios dos Companheiros, analisando separadamente e de forma específica os três aspectos que já lhe haviam sido garantidos pela legislação infraconstitucional: direito de propriedade à herança, direito de usufruto vidual e direito real de habitação. 2.5.1 Do Direito de Propriedade à Herança O Companheiro sobrevivente terá direito à herança, em concorrência com os demais herdeiros sucessíveis, recebendo um quinhão nas condições previstas nos incisos I ao IV do artigo 1.790 do Código Civil, da seguinte forma: 172 173 Artigo 1790 do Código Civil de 2002. NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Novo Código Civil e Legislação Extravagante Anotados, p. 599 65 a) se o Companheiro sobrevivente tem filhos comuns com o autor da herança: têm direito de suceder o Companheiro falecido para receber uma quota equivalente a que foi atribuída ao filho quanto aos bens que o falecido adquiriu onerosamente; b) se o Companheiro sobrevivente não tem filhos comuns com o autor da herança: têm direito de suceder o Companheiro morto para receber uma quota equivalente à metade da que foi atribuída ao filho quanto aos bens adquiridos onerosamente pelo falecido; c) se o de cujus não deixou descendentes, mas ascendentes ou colaterais: o Companheiro sobrevivente tem direito a um terço daquilo que foi adquirido onerosamente pelo falecido; d) na hipótese de o de cujus não ter deixado parentes sucessíveis, o Companheiro sobrevivente tem direito a totalidade da herança.174 Verifica-se uma diferença de tratamento quanto ao regime estabelecido pela Lei nº 8.971/94 e mantido tacitamente com a edição da Lei nº 9.278/96, na qual o Companheiro sobrevivente recebia a totalidade da herança na falta de descendentes ou ascendentes, uma vez que, no atual Código Civil, o Companheiro se sujeita à concorrer com os demais parentes sucessíveis, quais sejam os colaterais até o quarto grau. Isto ocorre em virtude do inciso III, do artigo 1.790, do Código Civil, estabelecer que, havendo colaterais sucessíveis, o Companheiro terá direito apenas a um terço da herança. Portanto, o Companheiro somente terá direito à totalidade da herança se não houver parentes sucessíveis, o que não ocorria no sistema vigente antes do Código Civil, pois a lei especial que regulamentava a matéria estabelecia que na falta de descendentes e ascendentes o Companheiro recolheria a totalidade da herança. 174 NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Novo código civil e legislação extravagante anotados, p. 600. 66 Este tratamento, de recolher toda a herança na falta de descendentes e ascendentes, é o que estabelece o Código Civil vigente ao cônjuge, colocando-o em terceiro lugar na ordem de vocação hereditária.175 EUCLIDES entende injustificável tamanha discrepância no tratamento dispensado ao Companheiro, atribuindo-lhe o concurso minoritário com parentes colaterais. Para o autor, “melhor seria manter o sistema da legislação revogada para, em similitude ao disposto com relação ao cônjuge, reservar ao companheiro a totalidade dos bens da herança como efetivo terceiro na ordem de vocação hereditária”. 176 Assim verifica-se a impropriedade do tratamento legislativo, ao atribuir ao cônjuge a terceira colocação na ordem de vocação hereditária, logo após descendentes e ascendentes e, dispensar ao Companheiro um tratamento que enseja a sua concorrência com parentes colaterais. Ao abordar acerca da concorrência do Companheiro supérstite com os colaterais até o quarto grau, HIRONAKA expõe o tratamento injustificado de uma forma prática: [...] morto alguém que vivia em união estável, os primeiros a herdar serão os descendentes em conc orrência com o companheiro supérstite. Na falta de descendentes, serão chamados os ascendentes em concorrência com o companheiro sobrevivo. Na falta também destes e inexistindo, como é óbvio, cônjuge que amealhe todo o acervo, serão chamados os colaterais até o quarto grau ainda em concorrência com o companheiro, uma vez que, afinal, são também os colaterais parentes sucessíveis. E só na falta desses será chamado o companheiro remanescente para, aí sim, adquirir a totalidade do acervo. È flagrante a discrepância.177 175 Brasil. Código Civil, art. 1829, inc. III, c/c art. 1.838. 176 OLIVEIRA, Euclides. Curso de direito de família. Coordenador Douglas Philipis Freitas, p. 118. 177 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Afeto, ética, família e o novo código civil. Coordenador Rodrigo da Cunha Pereira. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 229. 67 Desta forma, segundo o tratamento dispensado pelo atual Código Civil, o Companheiro só irá adquirir a totalidade da herança, no caso de não haver parentes sucessíveis. Ademais, EUCLIDES DE OLIVEIRA traz à discussão “[...] a hipótese de o falecido ter deixado apenas bens adquiridos antes da união estável, ou havidos por doação ou herança. Então, o Convivente nada herdará, mesmo que não haja parentes sucessíveis, ficando a herança vacante para o ente público beneficiário [...]”. 178 Esta situação se torna controvertida e discutida na doutrina, pois, conforme NELSON NERY, “não está claro na lei como se dá a sucessão dos bens adquiridos a título gratuito pelo falecido na hipótese de ele não ter deixado parentes sucessíveis”. 179 Esta discussão ocorre porque o caput do artigo 1790 supra transcrito dispõe que a participação do Companheiro sobrevivente à sucessão do outro se dará apenas quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável. Isto implica em dizer que não terá qualquer participação na herança relativa a outros bens, que tenham sido adquiridos antes ou havidos graciosamente, através de herança ou doação, pelo autor da herança.180 Segundo OLIVEIRA, esta discussão é resultante da má redação do artigo 1.790, uma vez que, enquanto o caput do artigo concebe direito de herança somente sobre os bens adquiridos onerosamente durante a convivência, o seu inciso IV, estabelece que na falta de parentes sucessíveis o Companheiro recebe a totalidade da herança.181 178 OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do novo código civil, p 211. 179 NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Novo código civil e legislação extravagante anotados, p. 600. 180 OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do novo código civil, p. 211. 181 OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do novo código civil, p. 212. 68 NELSON NERY argumentando acerca do assunto, crítica a falta de técnica legislativa, asseverando que o CC 1790 caput, sob cujos limites os incisos que lhe seguem devem ser interpretados, somente confere direito de sucessão ao companheiro com relação aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nada dispondo sobre os bens adquiridos gratuitamente durante esse mesmo período. É de se indagar se, em face da limitação do CC1790 caput, o legislador ordinário quis excluir o companheiro da sucessão desses bens, fazendo com que a sucessão deles fosse deferida à Fazenda. 182 Buscando solucionar o problema, o mesmo autor sugere a realização de uma interpretação que favoreça os interesses do Companheiro, visando extrair a real intenção do legislador. Neste sentido, defende que a herança não deve ser deferida à Fazenda Pública por três motivos: a) o CC 1844 manda que a herança seja devolvida ao ente público, apenas na hipótese de o de cujus não ter deixado cônjuge, companheiro ou parente sucessível; b) quando o companheiro não concorre com parente sucessível, a lei se apressa em mencionar que o companheiro terá direito à totalidade da herança (CC 1790 IV), fugindo do comando do caput, ainda que sem muita técnica legislativa; c) a abertura de herança jacente dá-se quando não há herdeiro legítimo (CC 1819) e, apesar de não contar do rol do CC 1829, a qualidade sucessória do companheiro é de sucessor legítimo e não de testamentário. 183 182 NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Novo código civil e legislação extravagante anotados, p. 600. 183 NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Novo código civil e legislação extravagante anotados, p. 600. 69 GOMES também entende que apesar de o inciso IV se referir ao caput do artigo, o qual trata apenas dos bens adquiridos a título oneroso, cabe ao Companheiro sobrevivente a totalidade dos bens, havidos a qualquer título, na constância ou não da União Estável, caso não haja parentes com direito à sucessão.184 Segundo o referido autor “essa interpretação se coaduna com o disposto no artigo 1.844, inserido no capítulo da ordem de vocação hereditária, que estatui que a herança somente é devolvida ao Estado se não houver cônjuge, companheiro, nem parente algum sucessível”.185 Contudo, parte dos doutrinadores defende uma interpretação literal da lei, segundo a qual o Companheiro deve ter direito à herança somente sobre os bens adquiridos onerosamente, na constância da União Estável. Neste sentido, LISBOA afirma que “a sucessão apenas beneficia o convivente sobre os bens adquiridos onerosamente durante a vigência da união estável”. 186 Acerca deste assunto é necessário aguardar-se uma manifestação da jurisprudência, para verificar qual o posicionamento será adotado, uma vez que o fato de se adotar uma ou outra posição traz conseqüências jurídicas totalmente diferentes. Ao adotar-se o entendimento da realização de uma interpretação literal do caput, atribuindo ao Companheiro sobrevivente direito somente sobre os bens adquiridos onerosamente, na hipótese do inciso IV, mesmo não havendo parentes sucessíveis, este não terá direito sobre os bens adquiridos a título gratuito, os quais ficarão para o ente público. 184 GOMES, Orlando. Sucessões. 12 ed, Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 68. 185 GOMES, Orlando. Sucessões, p. 68. 186 LISBOA, Roberto Senise. Manual de Direito Civil, p. 427. 70 2.5.2 Do Direito ao Usufruto Legal No que se refere ao direito de usufruto, garantido pelas Leis infraconstitucionais de 1994 e 1996, que regulavam a matéria anteriormente, a questão torna-se prejudicada com o advento do Código Civil de 2002, uma vez que este não mais prevê o Direito Sucessório de usufruto. Quanto à falta de garantia do direito ao usufruto, por não ser mais previsto no novo ordenamento civil, EUCLIDES DE OLIVEIRA entende ser justificável em decorrência da participação do Companheiro, assim como do cônjuge, na herança atribuída aos descendentes e ascendentes. 187 2.5.3 Do Direito Real de Habitação Com relação ao direito real de habitação, garantido ao Companheiro sobrevivente através da Lei nº 9.278/96, também não houve previsão deste direito no atual Código Civil, que o manteve apenas para o cônjuge sobrevivente. EUCLIDES DE OLIVEIRA destaca que o Código Civil de 2002 conserva apenas o direito de habitação no imóvel que servia de residência ao casal, mas somente em favor do cônjuge sobrevivente. Não estende o mesmo direito, de elevado cunho social, ao companheiro sobrevivente, que assim, é deixado inteiramente à míngua, nem mesmo podendo continuar a residir no imóvel que lhe servia de residência na união estável, quando não tenha direito à meação ou a participação na herança.188 187 OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do novo código civil, p. 213. 188 OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do novo código civil, p 208. 71 Portanto, verifica-se um tratamento incompreensível dispensado ao Companheiro pelo atual Código Civil quanto ao direito real de habitação, diferenciando-o do cônjuge sobrevivente, bem como retirando um direito que havia sido concedido-lhe pela Lei nº 9.278/96, de maneira que com a nova regulamentação dispensada pelo Código Civil, o Companheiro sobrevivente não é mais contemplado pelo benefício de utilização da moradia que servia ao casal. Após a realização desta análise sobre a previsão das Leis nº 8.971/94, 9.278/96 e do Código Civil vigente acerca dos Direitos Sucessórios dos Companheiros, torna -se importante verificar se, efetivamente, ocorreu um retrocesso nestes direitos, bem como relaciona-los com a Hermenêutica Constitucional. Tema que será objeto do capítulo seguinte. 72 CAPÍTULO 3 OS DIREITOS SUCESSÓRIOS DOS COMPANHEIROS À LUZ DA HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL: UMA PROPOSTA POLÍTICO JURÍDICA 3.1 A POSSIBILIDADE DA OCORRÊNCIA DE UM RETROCESSO NOS DIREITOS SUCESSÓRIOS VIRTUDE DAS GARANTIDOS ALTERAÇÕES AOS COMPANHEIROS OCASIONADAS PELA EM MUDANÇA LEGISLATIVA A partir da análise retrospectiva do instituto da União Estável desde a sua proteção pela Constituição Federal de 1988 e regulamentação pelas Leis Infraconstitucionais de nº 8.971/94 e 9.276/96, verifica-se que os Direitos Sucessórios garantidos aos Companheiros restaram amplamente protegidos. Conforme ficou demonstrado, este reconhecimento da União Estável como Entidade Familiar e a proteção legislativa dos seus Direitos Sucessórios ocorreu pela necessidade de o legislador acompanhar os fatos sociais, devendo criar normas consentâneas com a realidade.189 Desta forma, ao regulamentar a União Estável, garantindolhe amplos Direitos Sucessórios, cumpriram-se preceitos e fundamentos constitucionais que determinam o amparo legal a esta forma de constituição de Família, inclusive, colocando-a ao lado do matrimônio ao considerá-la como Entidade Familiar. De acordo com o expendido no capítulo anterior, após a recepção do instituto da União Estável pela Constituição Federal de 1988, foram 189 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato. 2 ed., São Paulo: Atlas, 2002, p. 237. 73 editadas leis infraconstitucionais com o intuito de regulamentar as conseqüê ncias jurídicas advindas desta forma de convivência familiar. Assim, as Leis 8.971/94 e 9.278/96 ao regulamentarem a União Estável garantiram e protegeram, de uma forma extremamente ampla, os Direitos Sucessórios dos Companheiros. Destaca-se a ocorrência de uma importante cadeia evolutiva, pois, antes da tutela da União Estável pela Constituição Federal de 1988, não havia previsão legal quanto aos Direitos Sucessórios dos Companheiros, sendo que após a garantia oferecida a esta forma de Entidade Familiar pela Carta Constitucional verificou-se uma proteção estabelecida pela jurisprudência e legitimada pela doutrina. Já com a edição da Lei 8.971/94, depreende-se uma proteção garantida pela própria legislação infraconstitucional ao prever Direitos Sucessórios específicos, como o direito à herança a título de propriedade e o direito de usufruto. A Lei 9.278/96, editada posteriormente, além de manter a previsão referente ao Direito Sucessório previsto na legislação anterior, ainda acrescentou aos Companheiros o direito real de habitação. Quanto à ocorrência desta evolução legislativa, culminando na ampla garantia dos Direitos Sucessórios dos Companheiros, importante a lição trazida por EUCLIDES DE OLIVEIRA: Como visto, o direito à sucessão hereditária, nas leis da união estável, é assegurado de forma ampla ao companheiro sobrevivente, em prática equiparação ao direito do cônjuge viúvo. Somam-se aos direitos de herança e de usufruto do companheiro, previstos na Lei 8.971/94, o direito real de habitação cuidado na Lei 9.278/96 [...]. 190 190 OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do novo código civil. 6 ed. São Paulo: Método, 2003, p 208. 74 Contudo, contrariando esta evolução, o Código Civil de 2002 surpreendeu a muitos ao regulamentar os Direitos Sucessórios dos Companheiros de maneira menos favorável do que era antes da sua promulgação. Isto porque, ao invés de manter os Direitos Hereditários já conquistados pelos Companheiros nas leis infraconstitucionais que o antecederam, o atual Código Civil retirou determinados direitos no âmbito sucessório dos quais os Companheiros já haviam sido contemplados, deixandoos em situação desvantajosa se comparados ao tratamento dispensado ao cônjuge sobrevivente. Assim, a atual regulamentação do Direito Sucessório mostra-se prejudicial aos Companheiros em dois aspectos: primeiro, em virtude de a previsão do Código Civil vigente implicar um visível retrocesso aos Direitos Sucessórios anteriormente conquistados e gozados pelos Companheiros; segundo, destaca-se o fato de o tratamento dispensado ao Companheiro, no que se refere aos Direitos Sucessórios, ter implicado um descompasso com o tratamento mais benéfico dispensado ao cônjuge viúvo. Ao abordar o retrocesso ocorrido nos Direitos Sucessórios dos Companheiros EUCLIDES DE OLIVEIRA destaca que O NOVO CÓDIGO sequer inclui o companheiro na ordem de vocação hereditária, limitando-se a tratar de seus direitos nas disposições gerais do Direito das Sucessões. Pelo teor de seu art. 1.790, o companheiro terá direito a participar da sucessão do outro apenas quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável. Essa participação dá-se em concurso com os demais herdeiros, ou seja: concorrendo com descendentes do falecido, uma cota-parte igual à dos filhos comuns, ou metade do que receber cada um dos filhos; concorrendo com outros parentes sucessíveis (ascendentes ou colaterais), um terço da herança.191 191 OLIVEIRA, Euclides. União estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do novo código civil, p. 203. 75 VENOSA também enfatiza a ocorrência de um retrocesso na amplitude dos Direitos Sucessórios dos Companheiros, pois, segundo a previsão da Lei 8.971/94, que antecedeu o Código Civil de 2002 e foi revogada por este, não havendo herdeiros descendentes ou ascendentes do de cujus, o Companheiro sobrevivente recolheria toda a herança.192 Contudo, a partir do sistema implantado pelo Código Civil, havendo colaterais sucessíveis, o Companheiro herdará apenas um terço da herança, sendo que só terá direito à totalidade da herança se não houver parentes sucessíveis. Isto significa que o Companheiro concorrerá na herança com o tio-avô ou com o primo-irmão de seu companheiro, o que, segundo o autor, “[...] não é uma posição que denote um alcance social sociológico e jurídico digno de encômios”.193 Desta forma, em virtude da atual previsão no Código Civil de 2002 acerca dos Direitos Sucessórios dos Companheiros, depreende-se que o direito à totalidade da herança somente é reconhecido em favor do Companheiro sobrevivente se não houver herdeiros sucessíveis. Verifica-se, assim, que a sucessão legítima do Companheiro, a partir do regramento estabelecido no Código Civil de 2002, ocorre de forma distinta e mais desvantajosa do que a previsão reservada ao cônjuge sobrevivente, pois na ordem de vocação hereditária atualmente estabelecida, o Companheiro sobrevivente não prefere nenhum parente sucessível, nem mesmo os colaterais.194 Ainda, com a agravante do disposto no caput do artigo 1.790 do Código Civil, segundo o qual a sucessão do Companheiro restringe-se aos bens adquiridos onerosamente durante a convivência, gerando a discussão, já expendida no capítulo anterior, se esta disposição aplica-se ao inciso IV ou se, 192 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: direito das sucessões. 3 ed, São Paulo: Atlas, 2003, p. 120. 193 194 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: direito das sucessões, p. 120. NERY JUNIOR, Nelson. Novo Código Civil e legislação extravagante anotados, p. 600. 76 neste caso, o Companheiro será beneficiado também com os bens adquiridos a título gratuito. Admitindo-se que a participação do Companheiro na herança tenha sido limitada, incidindo apenas sobre os bens adquiridos onerosamente durante a convivência, verificar-se-á uma inadmissível restrição ao Companheiro pela vedação do seu acesso aos demais bens, ainda que faltem herdeiros sucessíveis. 195 O direito ao usufruto garantido aos Companheiros pela Lei 8.971/94, também foi extinto pelo Código Civil, tanto aos Companheiros como aos cônjuges, posição que se justifica em virtude de ter sido substituído pela concorrência na sucessão com os parentes do falecido.196 O Direito real de habitação concedido aos Companheiros por previsão da Lei 9.278/96, também foi extinto pelo atual Código Civil, evidenciando-se a ocorrência de mais um retrocesso nos Direitos Hereditários que eram garantidos aos Companheiros, e, que foi suprimido após a entrada em vigor do Código Civil de 2002. O fato de o atual Código Civil ter suprimido o direito real de habitação ao Companheiro sobrevivente, mantendo este direito apenas ao cônjuge sobrevivente, traduz, para OLIVEIRA, “inadmissível disparidade no trato jurídico entre referidas pessoas”. 197 Portanto, referido tratamento do Código Civil, ao beneficiar apenas o cônjuge sobrevivente com o direito real de habitação, mostra-se injustificado. Registra-se, ainda, a circunstância de o Companheiro ter sido excluído da qualidade de sucessor legítimo, encontrando-se em posição desvantajosa em relação ao casado, uma vez que o Código Civil reserva apenas 195 OLIVEIRA, Euclides. Curso de direito de família. Coordenador Douglas Philips Freitas, p. 111. 196 OLIVEIRA, Euclides. Curso de direito de família. Coordenador Douglas Philips Freitas, p. 111. 197 OLIVEIRA, Euclides. Curso de direito de família. Coordenador Douglas Philips Freitas, p. 111. 77 ao cônjuge sobrevivente a qualificação de herdeiro necessário, juntamente com descendentes e ascendentes.198 Assim, se antes da promulgação do Código Civil os Direitos Sucessórios dos Companheiros estavam amplamente protegidos, inclusive, igualando-os aos direitos dos cônjuges no âmbito sucessório, com a entrada em vigor da legislação civil em 2002, os Direitos Hereditários dos Companheiros sofreram um profundo retrocesso em decorrência da supressão de direitos anteriormente conquistados, bem como a diminuição de sua condição no plano sucessório. Com relação ao tratamento diferenciado dispensado ao Companheiro e ao cônjuge no atual Código Civil, destaca-se que não se verificou o mesmo posicionamento distinto ao se tratar de outras áreas de proteção jurídica, tornando esta disparidade de tratamento ainda mais injustificável. Nesta temática OLIVEIRA assevera que, num exame abrangente da proteção jurídica dispensada à união estável, tenha-se em mente que, no campo dos direitos relativos a alimentos (art. 1.694) e à meação (art. 1.725), o companheiro é tratado em posição de igualdade com a pessoa casada. Mas, não assim, na esfera do direito sucessório, onde as disposições do novo ordenamento são bem diversas das que constavam da legislação pretérita. 199 Portanto, demonstrada a real ocorrência de um retrocesso nos Direitos Sucessórios atribuídos aos Companheiros, deixando-os em situação desvantajosa em relação aos mesmos direitos concedidos aos cônjuges, entendese injustificado o tratamento diferenciado, especialmente levando-se em conta a atual concepção de família e a proteção constitucional garantida à União Estável como forma de Entidade Familiar. 198 OLIVEIRA, Euclides. Curso de direito de família. Coordenador Douglas Philips Freitas, p. 111 199 OLIVEIRA, Euclides. Curso de direito de família. Coordenador Douglas Philips Freitas, p. 111. 78 Concernente a este atraso verificado, ao comparar os direitos anteriormente garantidos aos Companheiros através das leis especiais, com o tratamento agora dispensado aos Companheiros no âmbito sucessório, OLIVEIRA registra que “[...] o Código Civil de 2002 dá um salto para trás em face dessa redução de direitos”. 200 Oportuno destacar que a discussão anteriormente realizada fundamenta-se no fato de o Companheiro sobrevivente ter ficado em posição menos vantajosa do que o cônjuge sobrevivente, bem como e, principalmente, em decorrência do retrocedimento verificado nos Direitos Sucessórios dos Companheiros após a edição do Código Civil de 2002, ao suprimir direitos anteriormente previstos pela legislação infraconstitucional. 3.2 O RETROCESSO NOS DIREITOS SUCESSÓRIOS DOS COMPANHEIROS EM COLISÃO COM O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA A atual concepção do Direito, surgida com a nova Hermenê utica, enfatiza a importância do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, uma vez que a atividade estatal deve ser dirigida ao próprio ser humano e não mais ao ente público. Em virtude desta nova concepção, um regime democrático deve ter como finalidade a realização concreta de políticas públicas que preservem e, especialmente, promovam a Dignidade da Pessoa Humana. Isto porque, conforme enfatizado, a própria razão de existência do Estado Contemporâneo é o ser humano, o qual é o titular da noção de Dignidade, haja vista que a Dignidade constitui-se como qualidade inerente de cada pessoa humana, o que a torna destinatária do respeito e proteção, tanto do Estado quanto das demais pessoas. 200 OLIVEIRA, Euclides. Curso de direito de família. Coordenador Douglas Philips Freitas, p. 111. 79 Para que efetivamente se cumpra o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é necessário o respeito pela vida e pela integridade física e psíquica do ser humano, com a garantia de condições mínimas de sobrevivência através do reconhecimento e proteção de direitos fundamentais.201 Verifica-se, neste contexto, que a concretização do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana pressupõe o respeito e a proteção tanto de ordem física quanto de ordem moral do indivíduo. Cumpre também registrar que o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana constitui a base, o alicerce, ou seja, o próprio fundamento do Estado Democrático de Direito. Isto implica que referido princípio representa o valor supremo não somente da ordem jurídica, mas também da ordem política, social e econômica. Em virtude desta importância, ao ser incorporado ao sistema jurídico sob a forma de princípio pela Constituição Federal de 1988, a Dignidade da Pessoa Humana determina uma inversão na prioridade política, social, econômica e jurídica até então existente no Estado Constitucional Brasileiro. A partir do texto de 1988, adquire-se a consciência constitucional de que a prioridade do Estado, em todas as suas áreas de atuação, deve ser o homem, considerado como fonte de sua inspiração e fim último de seus objetivos.202 Assim, infere-se que conceber a Dignidade da Pessoa Humana como o fundamento do Estado Democrático de Direito, implica admitir que o próprio Estado se constrói a partir da pessoa humana e para servi-la, sendo esta a prioridade que justifica a atuação do Estado. A partir desta compreensão decorre o fato de que o ser humano está protegido de qualquer humilhação ou desrespeito à sua integridade não só física, mas também psíquica. 201 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre, 2002, p. 61. 202 MARTINS, Flademir Jerônimo Belinati. Dignidade da Pessoa Humana: princípio constitucional fundamental. Curitiba: Juruá, 2003, p. 72. 80 Demonstrada a amplitude e a abrangência do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana atuando como valor e fundamento de toda a ordem jurídico-política, oportuno registrar que a Dignidade exerce importante influência no Direito de Família, principalmente nas relações afetivas, uma vez que a Família é a base para a garantia de uma vida digna e feliz para todos os seus membros. Para FARIAS a Família, na visão contemporânea, consiste em um meio para a realização da felicidade do homem e afirmação de sua dignidade. Deste contexto, decorre a necessidade de buscar-se uma visão essencialmente funcionalizada da Família, considerando-a como o “[...] locus privilegiado para o desenvolvimento da personalidade e afirmação da dignidade de seus membros“. 203 Portanto, depreende-se que a proteção do ser humano, com a finalidade de preservar-se a Dignidade da Pessoa Humana, pressupõe a necessidade de proteção do ente familiar. Foi justamente com o intuito de cumprir este objetivo, protegendo o ente familiar no seu sentido mais amplo, que a Constituição Federal de 1988 dispensou tutela específica à União Estável como uma forma de constituição de Família, ao lado do Casamento e da Família Monoparental. Contudo, a maneira com que foi disciplinado o Direito Sucessório dos que vivem em União Estável, provocando o demonstrado retrocesso nestes direitos, bem como relegando aos Companheiros uma posição de inferioridade em relação ao cônjuge, mostra-se injustificável e violadora do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. VELOSO assevera que as Famílias constituídas através de União Estável possuem a mesma Dignidade, a mesma importância e, conseqüentemente, merecem igual respeito, consideração e proteção. Segundo o citado autor, “acabou-se o tempo em que, com base em preconceitos 203 FARIAS, Cristiano Chaves. Revista Brasileira de direito de família. Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, v. 5, n. 18, jun/jul, 2003, p. 67. 81 aristocráticos, concepções reacionárias, passadistas e argumentos repletos de hipocrisia, as famílias eram classificadas [...] em famílias de primeira classe, de segunda classe e, até, de classe nenhuma“. 204 Portanto, o tratamento inferiorizado, em virtude da retirada de direitos já conquistados pelos Companheiros pela legislação infraconstitucional, relega à União Estável uma posição secundária, ferindo, desta forma, o princípio da Dignidade da Pessoa Humana, principalmente, por saber-se que a concretização do referido princípio ocorre através dos direitos fundamentais, os quais constituem explicitações ou exteriorizações da Dignidade Humana, o que, conseqüentemente, traz o entendimento de que em cada direito fundamental faz-se presente um conteúdo ou alguma projeção da Dignidade da Pessoa.205 Neste sentido, registra-se que a Constituição Federal de 1988 ao instituir e elencar um amplo rol de direitos fundamentais pretendeu não apenas preservar, mas, principalmente, promover a Dignidade da Pessoa Humana.206 Assim, a concretização da Dignidade da Pessoa Humana exige e pressupõe o reconhecimento dos direitos fundamentais constitucionalmente assegurados, de maneira que a violação dos direitos fundamentais representa a negação da própria Dignidade.207 Do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana “[...] decorrem, simultaneamente, obrigações de respeito e consideração (isto é, de 204 VELOSO, Zeno. Direito de família e o novo código civil. Coordenadores: Maria Berenice Dias e Rodrigo da Cunha Pereira. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 235. 205 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição federal de 1988, p. 89. 206 MARTINS, Flademir Jerônimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional fundamental, p. 52. 207 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição federal de 1988, p. 90. 82 sua não-violação), mas também um dever de sua promoção e proteção (por meio de medidas positivas) [...]”. 208 Em virtude do citado valor supremo atribuído à Dignidade da Pessoa Humana, este princípio constitui um limite à atividade restritiva do legislador, principalmente no que se refere aos Direitos Fundamentais. Neste sentido, SARLET destaca que “[...] a dignidade da pessoa atua simultaneamente como limite dos direitos e limite dos limites, isto é, barreira última contra a atividade restritiva dos direitos fundamentais”.209 Portanto, por ser parte integrante do conteúdo dos direitos fundamentais, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana atua como importante elemento de proteção dos direitos contra medidas restritivas. A análise desta questão remete ao Princípio da Proibição de Retrocesso, sendo que, para CANOTILHO, este princípio deve ser entendido da seguinte maneira: o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efetivado através de medidas legislativas deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática numa ‘anulação’, ‘revogação’ ou ‘aniquilação‘ pura e simples desse núcleo essencial.210 Este princípio, apesar de não desconsiderar totalmente a existência de uma certa liberdade da qual dispõe o legislador inserido em uma ordem democrática, possui, a função de impedir que o legislador venha a simplesmente desconstituir o grau de concretização que ele próprio havia dado às normas da Constituição. 208 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição federal de 1988, p. 99. 209 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição federal de 1988, p. 123. 210 CANOTILHO, ob. cit. p. 321. 83 Principalmente, enfatiza-se a questão de se tratar de normas constitucionais que, em maior ou menor grau, dependem de normas infraconstitucionais para atingirem sua plena efetividade, ou seja, para serem aplicadas e cumpridas pelos entes públicos e pelos particulares. Verifica-se que com base no Princípio da Proibição de Retrocesso, principalmente no que se refere a direitos fundamentais, o que se pretende é evitar que o legislador venha a revogar (no todo ou em parte essencial) uma ou mais normas infraconstitucionais que concretizaram um direito fundamental constitucionalmente consagrado. Mesmo que não se esteja referindo a uma alteração da própria Constituição, ainda assim se estaria diante da hipótese de um verdadeiro golpe contra a nossa Lei Fundamental. 211 O Direito à Herança representa um Direito Fundamental constitucionalmente assegurado, previsto no inciso XXX do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, e visando dar efetividade ao direito fundamental a Herança aos Companheiros, o legislador havia garantido um grau de concretização a este direito através das Leis 8.971/94 e 9.278/96. Contudo, conforme sustentado e demonstrado no item precedente, os Direitos Sucessórios dos Companheiros sofreram um profundo retrocesso com a edição do Código Civil de 2002. Este fato resta devidamente evidenciado em decorrência da diminuição de determinados direitos que eram garantidos aos Companheiros pela legislação infraconstitucional que regulava a matéria antes da entrada em vigência do Código Civil atual. 211 SANTIAGO, Leonardo Ayres. O perfil dos direitos sociais na atualidade e os aspectos decorrentes de sua concretização. Disponível em www.mundojuridico.adv.br/html/artigos/documentos/texto. Acesso em 25/05/2005. 84 A retirada ou diminuição destes Direitos Sucessórios, já assegurados e gozados pelos Companheiros, representa uma violação ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, uma vez que este representa um importante elemento de proteção dos direitos contra medidas restritivas. Mormente, porque o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana concretiza-se através da efetividade dos direitos fundamentais e a restrição do direito fundamental à herança constitucionalmente assegurado aos Companheiros atinge diretamente um aspecto da Dignidade Humana. Desta forma, sabendo-se que os direitos assegurados aos Companheiros são oriundos de uma aspiração da própria sociedade, contemplados através de um lento processo de conquistas e adequação à realidade, é necessário que se resguardem direitos já consagrados e assumidos pelo legislador em detrimento de outros interesses que não estão relacionados à vontade coletiva. FARIAS enfatiza que “[...] o reconhecimento da fundamentalidade da dignidade humana impõe uma nova postura aos civilistas modernos (especialmente aqueles que laboram com o Direito de Família), devendo, na interpretação e aplicação das normas e conceitos jurídicos, assegurar a vida humana de forma integral e prioritária”.212 A inobservância deste entendimento está fadada ao desrespeito e ao tratamento indigno àqueles que optarem por viver em União Estável, a qual representa uma forma de constituição de Família constitucionalmente assegurada. 212 FARIAS, Cristiano Chaves. Revista brasileira de direito de família. Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, v. 5, n. 18, juh/jul, 2003, p. 66. 85 3.3 O RETROCESSO NOS DIREITOS SUCESSÓRIOS DOS COMPANHEIROS EM COLISÃO COM AS GARANTIAS INSTITUCIONAIS DE PROTEÇÃO À FAMÍLIA E À UNIÃO ESTÁVEL O Estado possui interesse em preservar a vida familiar com segurança jurídica, uma vez que a Família representa a sua base, seu sustentáculo, sua própria vida, ou seja, a menor porção da sociedade. A Família, por sua vez, é fortalecida através de uma convivência pacífica e segura de seus membros, unidos pelos laços do amor.213 Assim, em virtude da importância da instituição familiar, o caput do art. 226 da Constituição Federal de 1988 prevê expressamente que a Família constitui a base da sociedade e possui especial proteção do Estado. Segundo FREITAS, esta proteção garantida à Família pelo Estado constitui um direito subjetivo público, sendo oponível à sociedade e ao próprio Estado.214 A concepção de Família sofreu alterações ao longo dos tempos, sendo que a moderna concepção de Família é àquela que privilegia os laços de afetividade entre os membros que a compõem. Neste sentido DAL COL enfatiza que “por família não se pode entender somente aquela constituída sob os auspícios da legislação civil atinente ao casamento, mas toda forma de agregação de pessoas num núcleo doméstico, regido pelo amor e pelo respeito mútuos”. 215 Este entendimento expressa a nova concepção de Família, baseada nos laços afetivos, na compreensão e no amor, a qual modificou profundamente as bases do Direito. 213 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato, p. 241. 214 FREITAS, Douglas Phillips. Curso de Direito de Família. Florianópolis: Vox Legem, 2004, p. 01. 215 DAL COL, Helder Martinez. À família à luz do concubinato e da união estável. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 37. 86 Para atender esta evolução ocorrida na concepção de Família, o Direito modificou-se a fim de abranger um novo estado de comportamento, representativo de uma nova forma de constituir Família, qual seja, a União Estável. Assim, conforme já restou expendido, atendendo às aspirações sociais e regulamentando uma situação de fato já existente, a Constituição Federal de 1988 garantiu de forma expressa a proteção do Estado à União Estável, inc lusive, qualificando-a como Entidade Familiar. Oportuno destacar o status de Entidade Familiar atribuído à União Estável pela Constituição Federal de 1988, colocando-a ao lado do Casamento e da Família Monoparental. 216 Portanto, o Estado reconheceu e legitimou a União Estável como uma forma de constituir Família também merecedora da ampla proteção estatal e da regulamentação dos direitos a ela inerentes. Verificou-se que, após esta proteção constitucional, os direitos decorrentes desta forma de convivência restaram amplamente protegidos, especialmente no que se refere ao âmbito sucessório. Contudo, a atual regulamentação do Direito Sucessório dos Companheiros, retirando direitos anteriormente protegidos, bem como o colocando em posição menos vantajosa do que o cônjuge sobrevivente, viola frontalmente a garantia institucional dispensada pelo Estado à União Estável como forma de Entidade Familiar. Pois, ao erigir a União Estável, por ser uma forma de constituir Família, à categoria de instituição protegida e garantida constitucionalmente, o Estado pretendia preservar o mínimo de substantividade a esta instituição, assegurando a sua permanência e impedindo eventual supressão no seu alcance.217 216 AMIM, Andréa Rodrigues. O Novo código civil: livro IV do direito de família. Coord. Heloísa Maria Dalto Leite. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2002, p. 429. 217 Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7 ed, São Paulo: Malheiros, 1997, p. 497. 87 O retrocesso verificado no âmbito sucessório colide com a garantia institucional dispensada à União Estável, uma vez que o atual disciplinamento representa um tratamento indigno aos Companheiros e distante da realidade social vivenciada, a qual alargou a concepção de Família a fim de abranger a União Estável também como forma de Entidade Familiar. A ocorrência deste recuo dos Direitos Sucessórios dos Companheiros no Código Civil torna -se ainda mais injustificada em virtude do tratamento diferenciado, por certo, mais desvantajoso, atribuído ao Companheiro em relação ao cônjuge nas mesmas condições. VELOSO registra que, se o princípio da igualdade, vigente em nossa ordem constitucional, determina que se coloque no mesmo plano, tanto a Família constituída pelo Casamento, como a que decorre da convivência pública, contínua e duradoura, não se pode admitir tamanha discriminação no tratamento conferido aos Companheiros no que se refere ao Direito Sucessório pelo atual código civil.218 Principalmente, em virtude de estar assentada de forma pacífica a posição do Companheiro sobrevivente similar à do cônjuge supérstite. Segundo o citado autor, “salvo a necessidade de alguns ajustes, não se via na doutrina pátria nenhuma objeção mais profunda sobre a forma como a matéria foi disciplinada pelas legislações especiais. Não há, portanto, razão jurídica, motivo histórico, causa sociológica que justifique mudança tão intensa e radical”. 219 Desta forma, se a União Estável foi equiparada à Família constituída pelo matrimônio como forma de Entidade Familiar, verifica-se que este tratamento atribuído ao Companheiro na esfera do Direito Sucessório pelo atual Código Civil colide diretamente com a previsão constitucional de especial proteção à Família e, especificamente, à União Estável, por ser uma forma de vida familiar constitucionalmente assegurada. 218 VELOSO, Zeno. Direito de família e o novo código civil. Coordenadores: Maria Berenice Dias e Rodrigo da Cunha Pereira, p. 235 219 VELOSO, Zeno. Direito de família e o novo código civil. Coordenadores: Maria Berenice Dias e Rodrigo da Cunha Pereira, p. 235. 88 Especialmente, ante a inexistência de justificativas jurídicas, históricas ou mesmo sociais, que autorizassem este disciplinamento diferenciado entre as Famílias matrimonializadas e as Famílias formadas por União Estável. Neste contexto, FACHIN enfatiza a importância de as disposições do Código Civil de 2002, especialmente as referentes ao Direito de Família, serem lidas e aplicadas à luz dos princípios constitucionais. 220 Assinala VELOSO que se a Família possui especial proteção do Estado por representar a base da sociedade; se a União Estável, por sua vez, é reconhecida como entidade familiar; se estão praticamente equiparadas as Famílias formadas pelo matrimônio e as Famílias criadas de maneira informal, através da convivência pública, contínua e duradoura entre o homem e a mulher, a discrepância existente entre a posição sucessória do cônjuge e do Companheiro sobrevivente, além de ser totalmente contrária ao sentimento e as aspirações sociais, efetivamente, fere e maltrata, tanto na letra, quanto no espírito, os preceitos e fundamentos constitucionais. 221 Portanto, demonstradas as disparidades existentes, importante realizar-se uma reflexão crítica acerca da legislação que regulamenta os Direitos Sucessórios dos Companheiros, com a realização de uma proposta à luz da política jurídica, a fim de que o seu conteúdo se mostre, efetivamente, coerente com o paradigma da Família contemporânea, bem como respeite ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, nos moldes previstos pela Constituição Federal de 1988. 220 FACHIN, Luiz Edson. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre; Síntese, IBDFAM, v. 5, n. 17, abr/mai, 2003, p. 34. 221 VELOSO, Zeno. Direito de família e o novo código civil. Coordenadores: Maria Berenice Dias e Rodrigo da Cunha Pereira, p.237. 89 3.4 UMA PROPOSTA LEGISLATIVA À LUZ DA POLÍTICA JURÍDICA Conforme se observou nos itens precedentes, a proteção legal da União Estável foi sendo concretizada como resposta a um clamor da própria sociedade, demonstrando que o Direito é dinâmico e deve evoluir a fim de atender aos anseios sociais, uma vez que “se a sociedade tende a organizar inovações, o Direito tem de evoluir na mesma direção e consagrar os princípios apropriados por essa evolução”.222 Neste sentido, KRELL assinala que a realidade social é dinâmica e o Direito também, devendo ser estudado como algo mutável para evitar a ocorrência de um descompasso entre uma realidade em constante evolução e um direito estático, 223 principalmente, considerando-se que as sociedades contemporâneas, que apresentam como característica a democracia, não aceitam um direito positivo que permaneça alheio às mudanças culturais e às conquistas sociais, refletindo apenas o voluntarismo do legislador ou do juiz. 224 Busca-se, assim, a elaboração de um Direito que corresponda aos anseios sociais, à realidade vivenciada, e, principalmente, atenda aos valores de justiça. Se o direito é representado ou exteriorizado através das normas jurídicas, o conteúdo destas deve concretizar o valor justiça, bem como oferecer respostas compatíveis com a realidade social. Nesta temática, cumpre registrar a existência e a importância da Política Jurídica, como disciplina específica que tem como objetivo “buscar o direito adequado a cada época, tendo como balizamento de suas proposições os padrões éticos vigentes, e a história cultural do respectivo povo”. 225 222 KRELL, Olga Jubert Gouveia. União estável: análise sociológica. Curitiba: Juruá, 2003, p. 75. 223 KRELL, Olga Jubert Gouveia, União estável: análise sociológica, p. 75. 224 MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1994, p. 17. 225 MELO, Osvaldo Ferreira de. Temas atuais de política do direito. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1998, p. 80. 90 Portanto, verificada a importância da Política Jurídica como disciplina própria, destinada a buscar o direito que deve ser, compatível com cada época, neste capítulo apresentar-se-á, inicialmente, algumas considerações acerca da Política Jurídica, para, posteriormente, analisar-se a sua aplicação específica nos Direitos Sucessórios dos Companheiros. 3.4.1 Considerações Preliminares sobre a Política Jurídica Enfatiza-se a grande importância da Política Jurídica, pois esta é uma disciplina que prioriza, em sua dimensão prática, “[...] alcançar a norma que responda tão bem quanto possível às necessidades gerais, garantindo o bem estar social pelo justo, pelo verdadeiro e pelo útil, sem descurar da necessária segurança jurídica e sem por em risco o Estado de Direito”. 226 Neste sentido, infere-se que a Política Jurídica preocupa-se com que a norma traduza um efetivo instrumento de justiça e, por isso, sempre se posiciona além do direito positivo com o objetivo de orientá -lo para as necessárias alterações e reformas. Desta forma, aos políticos jurídicos incumbe a realização de um estudo crítico perceptivo do ordenamento jurídico positivo, assumindo a responsabilidade de aperfeiçoar o sistema normativo vigente.227 Para cumprir seu propósito, e atingir a justiça através da norma, a Política Jurídica é uma disciplina que se preocupa, entre outros aspectos, com a Consciência Jurídica da Sociedade e com a Validade Material da Norma. 226 227 MELO, Osvaldo Ferreira de. Temas atuais de política do direito, p. 20. OLIVEIRA, Gilberto Callado de. Filosofia da Política Jurídica: propostas epstemológicas para a pol´tica do direito. Itajaí: Univali, 2001, p. 125. 91 A Consciência Jurídica representa os valores prevalecentes em uma sociedade, de maneira que a Política Jurídica preocupa-se em verificar quais seriam estes valores, descobrindo, assim, o que deseja a maioria das pessoas sobre questões de interesse comum.228 Apesar das dificuldades em estabelecer consensos em decorrência da existência de conflitos de interesses, bem como pensamentos ideológicos distintos dentro de uma mesma sociedade, a Política Jurídica pretende descobrir e fazer com que a norma jurídica efetivamente represente a vontade e os interesses da maioria. Neste sentido, OLIVEIRA assevera a importância de a Política Jurídica atentar para os interesses legítimos da sociedade, ou seja, para a consciência jurídica dos indivíduos, [...] “às suas raízes éticas, aos valores que oscilam em razão de novos costumes, às múltiplas tradições regionais, ao sentir comum das pessoas, à opinião pública e a tantas outras manifestações que formam todo um realismo axiológico”. 229 Portanto, a constatação da consciência jurídica de uma sociedade pela Política Jurídica, representa a aferição dos valores e anseios dominantes, com o objetivo de que se possam encontrar os meios adequados para o fim proposto de bem ordenar esta sociedade, através da elaboração de normas que alcancem efetivamente a realização da justiça. Este enfoque reflete mais um alcance da Política Jurídica, o qual representa a preocupação com a validade material da norma. Esta, segundo MELO, é obtida através do respeito aos critérios de justiça e utilidade social, pois estes valores representariam as qualidades de uma norma perfeita.230 228 MELO, Osvaldo Ferreira de. Temas atuais de política do direito, p. 23. 229 OLIVEIRA, Gilberto Callado de. Filosofia da Política Jurídica: propostas epstemológicas para a política do direito, p. 141. 230 MELO, Osvaldo Ferreira de. Temas atuais de política do direito, p. 32. 92 Assim, a validade da norma, enfatizada pela Política Jurídica, distingue-se da idéia de validade defendida pela ciência jurídica de natureza eminentemente positivista, para a qual a norma é válida quando compatível com a norma superior, através de uma relação hierárquica, bem como quando o seu processo de formação obedeceu ao procedimento previsto para a sua constituição.231 Neste caso, a verificação de validade da norma possui um critério estritamente formal, sem levar em consideração a integração normativa da consciência jurídica da sociedade, ou seja, a sua conformidade com a realidade vivenciada e desejada. A Política Jurídica, por sua vez, defende que “a validade de uma norma não pode ser extraída apenas de seus aspectos formais. mas deve considerar também a legitimidade ética de seu conteúdo e de seus fins”, primando, desta forma, pela validade material da norma que deve ser buscada nas idéias do justo e do socialmente útil. 232 O critério de utilidade apresenta -se legítimo e adequado para definir a validade material de uma norma, quando esta tratar de questões técnicas, organizacionais e pragmáticas, que não envolvam direitos individuais e sociais.233 Por isso, a fim de atender aos objetivos da presente pesquisa, aborda-se, com maior ênfase, o critério de justiça. Apesar da dificuldade dos doutrinadores em conceituar Justiça, MELO apresenta uma contribuição ao estabelecer a possibilidade de se alcançar um conceito racional para esta categoria. Segundo o autor, a Política Jurídica entende e examina a “[...] Justiça como categoria cultural ou seja como um valor que a Consciência Jurídica da sociedade atribui à norma posta ou à 231 OLIVEIRA, Gilberto Callado de. Filosofia da Política Jurídica: propostas epstemológicas para a política do direito, p. 227. 232 MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica, p. 88. 233 MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica, p. 120,121. 93 norma proposta pois, afinal, todo valor designa o grau de aptidão de um objeto para satisfazer necessidades”. 234 Abordando justiça neste sentido, segundo o autor, é possível estabelecer critérios objetivos de justiça, os quais orientam, na Consciência Jurídica, o arbitramento da norma como justa ou injusta: 1 – Justiça como ideal político de liberdade e igualdade: A norma que obstaculizar ou fraudar as aspirações de coparticipação e compartilhamento será considerada injusta. 2 – Justiça como relação entre as reivindicações da sociedade e a resposta que lhes dê a norma: Se houver inadequação nessa relação, o sentimento resultante será de que se trata de norma injusta. 3 – Justiça como a correspondência entre o conhecimento científico sobre o fato (conhecimento empírico da realidade) e a norma em questão: A norma cujo sentido não corresponda a verdade empiricamente demonstrada e socialmente aceita será norma injusta. 4 – Justiça como legitimidade ética. A norma do direito que conflitar com a norma de moral poderá ser considerada injusta.235 Para a Política Jurídica, a legitimidade da norma depende da observância destes critérios, sendo necessária a identificação da norma com as aspirações sociais, afastando-se do conceito de legalidade para aproximar-se do conceito de justiça social.236 Neste sentido, surge a importante função que a Política Jurídica exerce sobre o Direito, orientando-o para as necessárias transformações, quando constatada a desconformidade da norma com a realidade almejada pela sociedade. OLIVEIRA assevera que a Política Jurídica penetra no Direito inicialmente com uma postura crítica, para, 234 MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica, p. 108. 235 MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica, p. 108 236 MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica, p. 83. 94 [...] a partir daí observar as tendências indesejáveis e contrárias aos interesses mais elevados da coletividade e da sua própria razão de existir, e propor as mudanças de rumo, quer mediante correções adequadas, quer mediante a introdução de uma nova estrutura legal. São correções e acrescimentos inspirados pela conveniência e utilidade dos meios, tendo em vista o cotidiano progresso da sociedade e a contínua transformação do direito com o elevado objetivo de ajusta-los a uma verdadeira ordem social”. 237 MELO enfatiza que “a Política Jurídica é crucial quando se trate de escolhas, de juízos e de respostas concretas visando a correção de norma imperfeita, à criação da norma nova ou a exclusão de norma indesejável, por uma questão de legitimação”.238 Portanto, infere-se a relevante preocupação da Política Jurídica, a qual não se limita simplesmente ao direito posto, ou ao direito vigente, mas especialmente ao direito desejado, visando a consecução dos anseios sociais e dos valores de justiça através da norma. Sendo que, para cumprir sua tarefa, esta disciplina propõe a realização de análises críticas ao ordenamento vigente, para a efetivação das medidas necessárias de transformação e readequação das normas indesejadas. Após esta breve abordagem acerca dos fundamentos da Política Jurídica, realiza-se a análise dos principais aspectos dos Direitos Sucessórios dos Companheiros, estabelecendo-se propostas de correção legislativa à luz da Política Jurídica. 237 OLIVEIRA, Gilberto Callado de. Filosofia da Política Jurídica: propostas epstemológicas para a política do direito, p. 46. 238 MELO, Osvaldo Ferreira de. Temas atuais de política do direito, p. 21. 95 3.4.2 A aplicação da Política Jurídica na legislação referente aos Direitos Sucessórios dos Companheiros A partir da abordagem realizada acerca dos Direitos Sucessórios dos Companheiros nos capítulos antecedentes, ficou demonstrada a ocorrência de um retrocesso nestes direitos após a sua regulamentação pelo Código Civil. A atual previsão dos Direitos Sucessórios dos Companheiros demonstra uma inadequação da norma vigente com o direito efetivamente almejado pela Sociedade, bem como se distancia da realidade vivenciada pela União Estável ao confrontar-se a prática com a legislação que a regulamenta. Ademais, a partir da análise realizada, infere-se, ainda, a desconformidade do Código Civil, na matéria referente aos Direitos Sucessórios dos Companheiros, com o princípio da Dignidade da Pessoa Humana e com as garantias constitucionais de especial proteção à Família. Portanto, alguns itens específicos dos Direitos Sucessórios dos Companheiros, no atual Código Civil, merecem uma análise à luz da Política Jurídica, com o objetivo de estabelecer-se propostas de alteração das normas vigentes a fim de torná -las mais consentâneas com a realidade, bem como mais aptas a atingir o valor Justiça, tão almejado pelo Direito. Referidas propostas são apresentadas neste trabalho, não com a pretensão de que sejam efetivamente acatadas como alterações legislativas, mas, especialmente, de contribuir para a discussão do tema e o aperfeiçoamento do direito vigente. Ainda que não se concretizem referidas propostas de modificação legislativa, a reflexão sobre o assunto por si só já cumpre o objetivo de alertar a comunidade jurídica acerca de imperfeições legislativas que merecem atenção. 96 Inicialmente cumpre registrar a impropriedade do retrocesso ocorrido na legislação no que se refere aos Direitos Sucessórios dos Companheiros, uma vez que se já havia sido garantido um grau de concretização dos Direitos concedidos à União Estável, bem como ao Direito fundamental à herança aos Companheiros, é injustificável que uma norma editada posteriormente venha a retirar direitos que já havi am sido gozados pelos destinatários das normas. Especialmente, porque referido grau de concretização e amplitude dos direitos tutelados, foi alcançado através de um lento processo de conquistas, implicando resposta aos anseios e reivindicações da própria sociedade. Também não se justifica o tratamento diferenciado dispensado ao Companheiro em relação ao Cônjuge sobrevivente, privilegiando este em detrimento daquele no que se refere aos Direitos Sucessórios, pois a própria Constituição Federal de 1988 havi a garantido especial proteção à Família, reconhecendo como forma de constituição de Família a União Estável, ao lado do casamento e da família monoparental. Esta igualdade de tratamento constitucional, garantindo igual proteção a estas formas de constituir Família, torna injustificável o tratamento menos benéfico atribuído ao Companheiro sobrevivente. Em virtude destas injustificadas impropriedades da lei, é que se realiza uma breve abordagem sobre novas propostas legislativas do texto normativo do Código Civil Brasileiro, à luz da Política Jurídica, a fim de se corrigirem as inadequações existentes. 97 3.4.2.1 Supressão do artigo 1.790 do Código Civil Conforme se verifica, o Código Civil traz a previsão referente aos Direitos Sucessórios dos Companheiros no art. 1.790, que está inserido no Livro V que trata do direito das sucessões, no Título I que aborda aspectos da sucessão em geral, especificamente no capítulo I que prevê disposições gerais. Esta posição do art. 1.790, que prevê os Direitos Sucessórios dos Companheiros, mostra-se injustificável, sendo que tal previsão deveria ter sido inserida no Título II, do livro V, que trata da sucessão legítima. Neste sentido, HIRONAKA afirma que, “não obstante sua importância, parece, todavia, que a regra está topicamente mal colocada. Trata-se de verdadeira regra de vocação hereditária para as hipóteses de união estável, motivo pelo qual deveria estar situada no capítulo referente à ordem de vocação hereditária”. 239 Assim, visando a uma maior adequação da norma, o art. 1.790 do Código Civil poderia ser suprimido, inserindo-se o Companheiro, ao lado do cônjuge, na ordem de vocação hereditária prevista pelo art. 1.829, em seu inciso III. Esta alteração implicaria na seguinte redação do art. 1.829 do Código Civil: Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na seguinte ordem: [...] III – ao cônjuge ou ao Companheiro sobrevivente. 239 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Afeto, ética, família e o novo código civil. Coordenador: Rodrigo da Cunha Pereira. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 225. 98 Esta inserção implicaria, ainda, a necessidade de alterar-se também os incisos I e II do artigo 1.829, a fim de coadunar-se com a modificação realizada no inciso III, o que os deixaria com a seguinte redação: I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime de comunhão universal ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único), ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares; ou em concorrência com o Companheiro sobrevivente, acerca dos bens que fossem exclusivos do falecido, não pertencentes ao acervo comum adquirido na constância da união estável. II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge ou com o Companheiro sobrevivente. Esta alteração, com a supressão do art. 1.790, implicaria ainda a correção da previsão do seu caput 240 , cujo conteúdo se mostra injustificável ao atribuir a participação de um Companheiro na sucessão do outro apenas quanto aos bens adquiridos onerosamente. BARROS afirma ser inconstitucional o caput do art. 1.790 do Código Civil, ao excluir um Companheiro do direito de participar da sucessão do outro, exceto, estritamente, quanto aos bens adquiridos de forma onerosa durante a União Estável. Segundo o autor: Se a Constituição equipara a união estável ao casamento ao incluí-la entre as formas de entidade familiar que igualmente aceita como válidas, resulta inconstitucional qualquer exclusão aplicada aos companheiros por união estável, que os discrimine in pejus, em cotejo com os cônjuges por casamento. Tal dispositivo 240 Código Civil. Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará na sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes: [...]. 99 do art. 1.790 do Código Civil recém-posto em vigor fere a isonomia entre as entidades familiares assegurada pela Constituição nas disposições do seu art. 226. É fulminante e irreparável a sua inconstitucionalidade. 241 Portanto, não se justifica a participação de um Companheiro na sucessão do outro apenas com relação aos bens que foram adquiridos de forma onerosa, sendo de extrema importância a supressão deste artigo. Esta alteração, suprimindo-se o art. 1.790 do Código Civil, acarretaria, ainda, a correção do tratamento injustificado previsto nos incisos deste artigo, ao atribuir ao Companheiro a concorrência com os colaterais, de maneira que só seria beneficiado com a totalidade da herança se não houvessem parentes sucessíveis. 3.4.2.2 Alteração do art. 1.831 do Código Civil Tendo restado demonstrado ser injustificável a concessão do direito real de habitação apenas ao Cônjuge sobrevivente, excluindo este direito ao Companheiro nas mesmas condições, é necessária a alteração do art. 1.831 do Código Civil. Mormente, ante o fato de que as legislações especiais que regulamentavam a União Estável, antes da entrada em vigência do Código Civil, terem concedido o direito real de habitação ao Companheiro sobrevivente242, o qual foi suprimido pela legislação civil. 241 BARROS, Sérgio Resende de. Afeto, ética, família e o novo código civil, p. 619. 242 Art. 7º, parágrafo único da Lei nº 9.278/96. 100 Desta forma, a fim de se corrigir a inadequação existente, a redação do art. 1.831 poderia ser a seguinte: Art. 1.831. Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, ou ao Companheiro sobrevivente, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar. Portanto, esta modificação é importante para corrigir tanto o retrocesso provocado pelo atual Código Civil, ao suprimir este direito ao Companheiro, quanto o tratamento desvantajoso dispensado ao Companheiro se comparado ao cônjuge. 3.4.2.3 Alteração do art. 1.832 do Código Civil A alteração deste artigo, inserindo-se o Companheiro, ao lado do cônjuge, é necessária para se coadunar com as demais propostas de alterações nos dispositivos legais antecedentes. A referida alteração, manteria a redação do artigo na sua forma atual, incluindo apenas o Companheiro juntamente com o Cônjuge, o que implicaria na seguinte previsão: Art. 1.832. Em concorrência com os ascendentes (art. 1829, inciso I) caberá ao cônjuge ou ao Companheiro, quinhão igual ao dos que sucederem por cabeça, não podendo a sua quota ser inferior à quarta parte da herança, se for ascendente dos herdeiros com que concorrer. 101 3.4.2.4 Alteração do caput do art. 1.836 do Código Civil Esta alteração é necessária a fim de manter-se a igualdade de tratamento entre o cônjuge e o Companheiro dispensada pela Constituição Federal de 1988, ao considerar tanto o casamento, quanto a União Estável, como formas de entidade familiar. Art. 1.836. Na falta de descendentes, são chamados à sucessão os ascendentes, em concorrência com o cônjuge ou Companheiro sobrevivente. [...]. Desta forma, a modificação realizada implicaria na inserção do Companheiro, ao lado do cônjuge, para concorrer juntamente com os ascendentes. 3.4.2.5 Alteração do art. 1.838 do Código Civil Neste artigo sugere-se apenas a inserção do Companheiro ao lado do cônjuge, deixando referido artigo com a seguinte redação: Art. 1.838. Em falta de descendentes e ascendentes, será deferida a sucessão por inteiro ao cônjuge ou Companheiro sobrevivente. A modificação deste artigo, colocando-se o Companheiro juntamente com o cônjuge no terceiro lugar da ordem de vocação hereditária, é imprescindível para buscar-se a efetiva justiça no alcance desta norma jurídica. Primeiramente, esta alteração corrigiria o retrocesso provocado pela legislação atual, que prevê a concorrência do Companheiro com 102 outros parentes sucessíveis, recebendo apenas um terço da herança, no caso de não haverem descendentes e ascendentes.243 Registra-se que a legislação anterior ao Código Civil, que regulamentava a matéria, já previa o terceiro lugar para o Companheiro na ordem de vocação hereditária, deferindo a ele a totalidade da herança se não houvessem descendentes e ascendentes. 244 Além disso, manteria-se a igualdade de tratamento entre cônjuge e Companheiro sobreviventes, corrigindo o tratamento desvantajoso dispensado a este pelo atual Código Civil, que prevê a concorrência do Companheiro com outros parentes sucessíveis, para apenas, na falta destes, herdar a totalidade da herança. 3.4.2.6 Alteração do art. 1.839 do Código Civil A alteração do art. 1.838 do Código Civil tornaria também necessária a alteração do art. 1.839 para manter a correspondência legislativa bem como a concordância entre os artigos, deixando-o com a seguinte redação: Art. 1.839. Se não houver cônjuge ou Companheiro sobrevivente, nas condições estabelecidas no art. 1.830, serão chamados a suceder os colaterais até o quarto grau. 3.4.2.7 Alteração do art. 1.845 do Código Civil A modificação deste artigo, incluindo-se o Companheiro na classe dos herdeiros necessários, é imprescindível para harmonizar-se este dispositivo com todos os demais analisados. 243 Art. 1.790, inciso III do Código Civil. 244 Artigo 2º, inciso III da Lei 8.971/94. 103 Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge ou Companheiro. HIRONAKA, defendendo a realização desta modificação, inserindo-se o Companheiro como herdeiro necessário, assevera que não se vislumbra “motivo para que as condições do cônjuge e do companheiro não se equiparassem também na proteção da legítima, como aliás, seria de bom alvitre em face das disposições constitucionais a respeito da equivalência entre o casamento e a união estável”.245 Estas alterações não esgotariam as mudanças necessárias, bem como não traduziriam a perfeição legislativa, contudo, contribuiriam para o aperfeiçoamento da previsão normativa acerca dos Direitos Sucessórios dos Companheiros, visando ao efetivo cumprimento de preceitos e princípios constitucionais. Em especial, destaca-se a necessidade desta reforma legislativa, a fim de preservar-se o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e da garantia constitucional de especial proteção à Família. Para a realização desta tarefa destaca-se a importância da Política Jurídica, disciplina que fornece uma base teórica para a elaboração de estratégias e direcionamentos metodológicos visando às necessárias adequações entre os avanços sociais e a proteção da Dignidade da Pessoa Humana.246 Portanto, aos operadores jurídicos, munidos da fundamentação teórica específica, incumbe a missão de não se conformar com o direito como está, mas buscar, incessantemente, através da pesquisa e análise crítica, as necessárias adaptações e melhorias com vistas ao aperfeiçoamento do direito vigente. 245 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Afeto, ética, família e o novo código civil. Coordenador: Rodrigo da Cunha Pereira, p. 225. 246 MELO, Osvaldo Ferreira de. Temas atuais de política do direito, p. 85. 104 CONSIDERAÇÕES FINAIS Com a realização do presente trabalho, através da exposição do assunto pesquisado, acredita-se que foram confirmadas as hipóteses inicialmente assumidas e alcançados os objetivos propostos, chegandose às seguintes considerações: No capítulo 1 verificou-se a concepção atual da Hermenêutica Constitucional, segundo a qual, prevalecendo a supremacia da Constituição, toda ordem jurídica e política deve coadunar-se com os princípios e garantias constitucionalmente assegurados. Através deste novo enfoque hermenêutico, constatou-se a importância dos princípios e dos direitos fundamentais como elementos indispensáveis na atividade de interpretação do Direito em um Estado Democrático, superando-se a aplicação da lei como mera subsunção da norma ao fato. Neste contexto, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana revela uma importante função, tendo sido transformado pela Constituição Federal em valor supremo da ordem jurídico-política por ela instituída, servindo como parâmetro e delineando o conteúdo dos demais valores e normas do ordenamento jurídico brasileiro. Constatou-se, sobretudo, a importante influência do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana no Direito de Família, juntamente com o respeito às garantias constitucionais de especial proteção à Família e à União Estável, como circunstância necessária para o pleno desenvolvimento e realização de todos os membros da comunidade familiar. No capítulo 2 realizou-se uma análise específica dos Direitos Sucessórios decorrentes da União Estável, verificando-se a importância da 105 proteção da União Estável pela Constituição Federal de 1988, e a sua posterior regulamentação pelas Leis nº 8.971/94, nº 9.278/96 e pela Lei nº 10.406/02 (Código Civil). Verificou-se a relevância da proteção dispensada a União Estável pela Carta Constitucional, que a coloca ao lado do casamento por considerá-la também como entidade familiar, seguindo-se a sua regulamentação pela legislação infraconstitucional a fim de proteger os direitos dos Companheiros. A abordagem específica dos Direitos Sucessórios decorrentes da União Estável demonstrou que as Leis 8.971/94 e 9.278/96, cumprindo preceitos constitucionais, protegeram estes direitos de uma forma bastante ampla, em prática equiparação ao direito do cônjuge viúvo, garantindo aos Companheiros o direito à herança, de maneira que não havendo herdeiros descendentes ou ascendentes o Companheiro sobrevivente recolheria toda a herança, o direito de usufruto e o direito real de habitação. Contudo, contrariando a evolução ocorrida nos Direitos Sucessórios garantidos aos Companheiros, o Código Civil trouxe uma regulamentação destes direitos de maneira menos favorável do que a existente antes da sua promulgação. No capítulo 3 verificou-se que o disciplinamento referente aos Direitos Sucessórios decorrentes da União Estável representa um profundo retrocesso, pois, além de retirar determinados direitos no âmbito sucessório, dos quais os Companheiros já haviam sido contemplados pela legislação infraconstitucional anterior, ainda, com o atual regramento deixou-os em situação desvantajosa se comparado ao tratamento dispensado ao cônjuge sobrevivente. Esta realidade representa uma violação ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, bem como as garantias institucionais de especial proteção á Família, pois a União Estável foi erigida pela Constituição Federal de 106 1988 como entidade familiar, merecendo igual respeito dispensado ao casamento, sendo injustificada a situação de inferioridade com que o Companheiro foi tratado. Além disso, a retirada de direitos dos quais os Companheiros já haviam sido contemplados, especialmente por tratar-se de direito fundamental, como o direito à herança, também implica violação à Dignidade Humana, em sua dimensão no Princípio da Proibição de Retrocesso, pois desconstitui o grau de concretização deste direito que o legislador já havia outorgado. Demonstradas as discrepâncias existentes na legislação que regulamenta os Direitos Sucessórios dos Companheiros, realizou-se uma reflexão crítica acerca desta legislação á luz da Política Jurídica, verificando-se a necessidade de uma proposta de alteração do texto da lei, a fim de que seu conteúdo venha a mostrar-se coerente com o contemporâneo paradigma de Família e com os princípios e garantias constitucionais. 107 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. 1 ed., Madrid: Centro de Estudios políticos y constitucionales, 1993, 607 p. AMIM, Andréa Rodrigues. O Novo código civil: livro IV do direito de família. Coord. Heloísa Maria Dalto Leite. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2002, 576 p. AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da Família de fato: de acordo com o novo código civil, Lei nº 10.406, de 10-01-2002. 2 ed., São Paulo: Atlas, 2002, p. 661. BARROS, Sérgio Resende de. Afeto, ética, família e o novo código civil. BARROSO, Luís Roberto. 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