Gita Sem

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IV Fórum Social Mundial, Mumbai, 16 a 21 de janeiro de 2004
Um projeto Ibase, em parceria com ActionAid Brasil, Attac Brasil e Fundação
Rosa Luxemburgo
O que é uma vida decente?
Síntese da palestra de Gita Sen,
Por Guacira Oliveira,
do Cfemea
A questão, hoje fundamental a partir de uma perspectiva de desenvolvimento
humano, já teve diferentes respostas. Os processos sociais e as disputas políticas
que levaram ao estabelecimento de contratos sociais, desde o século XIX,
delimitaram os parâmetros do que se reconheceu como uma vida decente.
Ao longo do século XX, firmaram-se contratos sociais que contemplavam
fundamentalmente três dimensões:

A primeira dimensão tem a ver com a natureza da relação entre
trabalhadores/empregados e empregadores, pela qual define-se o que seja
trabalho, as condições em que deve se realizar e os direitos dos
trabalhadores (salário mínimo, jornada de trabalho etc).

A segunda dimensão do contrato social tem a ver com o que se faz com as
pessoas que não estão empregadas. Esta, é claro, é a parte do contrato
que trata da seguridade social e dos serviços sociais.

A terceira dimensão do contrato social diz respeito às relações Norte-Sul no
que se refere à assistência para o desenvolvimento. Ainda que
implicitamente, depois da Segunda Guerra Mundial e do período de
descolonização, os países do Norte reconheceram, em alguma medida, a
necessidade dos países pobres viabilizarem certos projetos sociais e
programas de desenvolvimento no Sul e, evidentemente, algum tipo de
acumulação de capital, além de apoio para a mobilização de recursos para
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a criação de infra-estrutura. Alguns designam esta dimensão do contrato
como Bem-estar Social, outros preferem denominá-la de reparação pelo
colonialismo e para uma globalização inclusiva.
Gita Sen destaca que estas três dimensões do contrato social são gravemente
rebaixadas em termos de eqüidade de gênero. No que se refere à relação
empregado-empregador, o contrato com os trabalhadores nunca incluiu todos os
trabalhadores. Foi tipicamente um contrato que esteve dirigido aos trabalhadores
homens e somente àqueles que estivessem na situação principal de receber seu
salário e sustentar uma família, uma esposa “não trabalhadora” e seus filhos. Isto
significa que as mulheres foram colocadas em segundo plano e posição no
mercado de trabalho.
Analisando a dimensão da seguridade social no contrato, percebe-se que ela
alude a elementos críticos para a vida das mulheres: o cuidado com as crianças e
idosos, a assistência aos inválidos, a proteção aos que estão vivendo em
condições de altíssima vulnerabilidade. As possibilidades de realizar estes
cuidados chegaram muito mais tarde aos contratos sociais do século XX e não
tinham nenhuma pretensão universalizante. Na área da reprodução social os
direitos estão sub-reconhecidos, têm muito pouca relevância.
Neste ponto há que se enfrentar o fato de que tudo o que está estabelecido nos
contratos sociais é resultado de muitos esforços e lutas. Nada é dado pelo
Estado, mas sim conquistado. A natureza destes contratos está diretamente
vinculada às relações estabelecidas entre o Estado, o povo e as instituições como
os mercados. Portanto, se as pautas em discussão, se os termos da disputa entre
as partes não conferiram prioridade à reprodução da vida social, não se
orientaram pela eqüidade de gênero, tanto quanto pelo direito a um salário
mínimo decente, aqueles elementos, inevitavelmente, ficaram de fora do contrato,
ou presentes de maneira muito precária.
As duas últimas décadas demarcam um período de fraturas em diferentes
âmbitos do contrato social: em todo o mundo, os trabalhadores não têm mais os
direitos que tinham há vinte ou trinta anos; as garantias sociais também não são
mais as mesmas; e a assistência para o desenvolvimento está eivada de
condicionalidades.
O rompimento com direitos e a mudança nas regras de negociação sobre os
direitos e sobre a satisfação de necessidades básicas recolocam o debate sobre o
contrato social na ordem do dia. A questão do que seja uma vida decente se
renovou e exige novas respostas. Então, em que bases se poderia definir na
atualidade o que é uma vida decente?
Gita Sen vê no momento da fratura do velho contrato social a oportunidade de
construir novas propostas e caminhos para pensar o que seja uma vida decente.
Para avançar neste sentido, destaca um elemento estratégico: que a afirmação
dos direitos humanos universais ocupem um lugar central na discussão sobre o
que seja uma vida decente. Tendo este marco ético e político, no seu
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entendimento, será possível levantar questões que nunca puderam ser suscitadas
antes, sob a vigência dos contratos sociais prévios. Questões sobre a justiça de
gênero, sobre os direitos das pessoas que foram marginalizadas e que tiveram
seus direitos negados sob os contratos anteriores têm de ser considerados
direitos fundamentais na nova definição do que seja uma vida decente.
Neste sentido, Gita Sen destaca especialmente dois aspectos: o primeiro deles
trata do papel decisivo das alianças políticas para a redefinição do que seja uma
vida decente, sobre bases mais abrangentes e fundadas no respeito aos direitos
humanos universais. A forma como se constituem e os princípios que orientam as
alianças políticas nesta disputa em torno da resignificação do que seja uma vida
decente são de fundamental importância. O tipo de amálgama político capaz de
promover mudanças paradigmáticas é qualitativamente diferente daquele que se
produz em conjunturas específicas para o apoio a uma ou outra causa. Por
exemplo, os atores políticos envolvidos em determinadas ações de combate à
pobreza ou esforços pelo cancelamento da dívida não necessariamente
reconhecem a eqüidade de gênero ou os direitos das minorias sexuais. Ou seja,
aqueles que em determinadas circunstâncias podem estar do mesmo lado numa
arena política, podem ser incapazes de promover juntos mudanças estruturais,
porque neste ponto se trata de ter mais do que questões em comum: é preciso
comungar dos mesmos princípios.
O segundo aspecto que Gita destaca em torno da definição do que seja uma vida
decente é, em verdade, uma crítica ao marco teórico de atendimento das
necessidades básicas de consumo como elemento definidor do que seja uma vida
decente. O problema da fome na Índia, por exemplo, implica a violação de vários
direitos humanos além do direito à comida. O atendimento desta necessidade
básica não se dará pela simples garantia de uma cesta de alimentos. Há muito
mais envolvido. A fome vem acompanhada de humilhação, muitas vezes de
violência doméstica, de cerceamento do direito à educação, de violação dos
direitos da criança, entre várias outras privações. Visto por outro lado, o simples
direito à comida, a não passar fome, contem inúmeros ingredientes: questões de
subordinação de gênero, hierarquia de castas, de pobreza, entre outros
elementos que são fundamentais e que devem ser compreendidos e
reconhecidos. Não se pode falar de necessidades básicas e serviços básicos que
desconsiderem estas dimensões, como dimensões prioritárias.
Além do problema da fome, Gita apresenta um outro exemplo: de 10 a 15% das
mortes por aborto inseguro na Índia são entre adolescentes. Trata-se da
necessidade básica de serviços de saúde. Quando não se garante o serviço de
interrupção da gravidez às adolescentes, os direitos delas, incluindo o aborto
quando necessário, não está sendo satisfeito. O problema destas mortes
desnecessárias não está sendo atacado. As necessidades básicas não estão
sendo atendidas.
Um exemplo final: vários estudos realizados na Índia indicam que uma das causas
de mobilidade social descendente, que leva famílias inteiras a situações
gravíssimas de pobreza, deve-se a enfermidade de algum membro da família. O
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fenômeno decorre dos elevados custos da saúde, em especial dos
medicamentos. Mais do que a atenção médica, neste caso, a possibilidade de não
empobrecer e de levar uma vida decente vincula-se a uma ordem internacional
mais justa, ou seja, regras justas para o comércio internacional de medicamentos.
Gita alerta para a necessidade de se olhar para a questão da provisão de serviços
a partir de um marco mais amplo. Não se trata de um marco pluralístico, mas sim
holístico, que permita ver todas estas questões, suas conexões e como elas
funcionam.
Gita encerra reafirmando a importância de aproveitar a oportunidade de
reabertura dos diálogos perante a fratura dos contratos sociais, não apenas para
nos remetermos aos contratos sociais anteriores, mas para expandir o nosso
pensamento com vistas a um marco mais inclusivo e apropriado à afirmação dos
direitos humanos.
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