COSTA, Keyla Soares da e SOUZA, Rose Keila Melo de. O aspecto sócio-afetivo no processo ensino-prendizagem na visão de Piaget, Vygotsky e Wallon. Retirado em 14/04/2006, de Educação on-line no Word Wide Web: http://www.educacaoonline.pro.br/art_o_aspecto_socio_afetivo.asp?f_id_artigo=549 O ASPECTO SÓCIO-AFETIVO NO PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM NA VISÃO DE PIAGET, VYGOTSKY E WALLON. Rose Keila Melo de Souza Keyla Soares da Costa1 RESUMO Admitindo-se que somos seres geneticamente sociais e, sobretudo afetivos, dotados de interesses e desejos próprios, o presente estudo focaliza a homogeneização de valores e diferenças sociais imposta pela lógica mercadológica do capitalismo às políticas públicas nacionais, tomadas aqui as que versam especificamente sobre o sistema educativo. E através de uma análise qualitativa de amplitude micro, ou seja, efetuada a partir da prática pedagógica de professores do ensino fundamental, chegou-se à premissa de que parte de nossas escolas não foge à regra, na ocasião que em legitima o ensino intelectualista e pragmático, desconsiderando significativamente o importante papel do conteúdo sócioafetivo discente enquanto recurso motivacional imprescindível para a construção do conhecimento significativo, cujas implicâncias ao se menosprezá-lo tem se manifestado na crescente apatia discente pela aquisição formal de conhecimento veiculado na escola. À idéia de se utilizar o conteúdo sócio-afetivo como mola propulsora do processo educativo, defendida neste artigo, convergem os postulados de teóricos clássicos como o psicólogo suíço Jean Piaget, o educador e também psicólogo russo Lev Vygotsky e o médico francês Henry Wallon. _____________________________________ 1 Graduadas em Pedagogia pela UFPA / 2002. 1 O ASPECT O SÓCIO- AFET IVO NO PROCESSO ENSI NO- APRENDI ZAGEM NA VI SÃO DE PIAGET , VYGOT SKY E WALLON. 1.1- CONCEPÇÕES DE INFÂNCIA VERSUS MODELOS PEDAGÓGICOS A pedagogia moderna, cuja existência se deve ao estabelecimento de um estatuto de indivíduo atribuído à criança por Montaigne e Rousseau, seus principais formuladores nos séculos XVI e XVIII, tem sua trajetória permeada por inúmeras transformações da noção de infância, acarretando conseqüentemente alterações no pensamento pedagógico no desenrolar de sua história; sendo que, essas noções se constituiriam e se constituem em consonância com os interesses do modelo político e econômico vigentes. Para Montaigne (1533 – 1592), filósofo francês, a criança não passa de um adulto em miniatura. Pensando assim, ele critica qualquer ação de agrado, de ludicidade com relação às crianças. E desta forma, desenvolve a gênese para a racionalização do processo educativo, através da supervalorização da razão, princípio este que perdura até hoje, e constitui-se neste momento, parte da nossa investigação. Assim, sob o imperativo de suas idéias, é nesta época que a escola vai se reorganizar para ocupar-se da função disciplinar e instrutiva contra a “paparicação” promovida no lar. No entanto, a esta função disciplinar e instrutiva apontada por Montaigne, contrapõe-se o pensamento de Rousseau (1712-1778), para o qual à Pedagogia caberia o cultivo da intimidade infantil, ou seja, a preservação de sua subjetividade. Isso o leva a classificar as funções pedagógicas, defendidas nas bases teóricas de Montaigne, como intromissões desastrosas a serem veementemente repudiadas em favor de uma pedagogia da autonomia, que prime pela relação íntima e pela disciplina interior. Embora ele tenha criticado essa racionalização, com o desdobramento da modernidade, do século XIX ao início do século XX, consubstanciada nas diretrizes da sociedade do trabalho e da sociedade científica e tecnológica, a pedagogia é “convidada” a rever os seus princípios, atrelando a noção de infância, e o seu estatuto de indivíduo adquirido, aos ditames do capitalismo, ou melhor, ao mundo do trabalho. A estreita relação “mundo da criança” e “mundo do trabalho”, trouxe para o cenário da pedagogia moderna, contribuições da Sociologia representada pelas idéias de Durkheim, da mesma forma a Filosofia da Educação, bem como a Psicologia de Dewey; para o bojo 2 das discussões pedagógicas concernentes às determinações preestabelecidas entre o vínculo escola, trabalho e infância. A escola que hoje possuímos, com regras, conteúdos programáticos, divisão por séries a partir de critérios cronológicos, etc., é assim, portanto, algo articulado ao surgimento do novo sentimento dos adultos em relação às crianças, onde se enfatiza sua capacidade intelectual em detrimento de sua autonomia afetiva. A noção de trabalho, ocupada pela Psicologia, no contexto educacional, ganhou contorno bem mais amplo que seu conceito usual, desvinculando-se de sua conotação econômica e passando a ser fator intrínseco à vida infantil na definição de “ocupações ativas”, ou seja, o interesse do aluno e a preocupação em propiciar -lhe a construção do conhecimento, em colocá-lo em permanente estado de ação com o meio; enfim, o objetivo de aprimorar a capacidade cognitiva da criança, tornou-se nesse momento o âmago do processo ensino-aprendizagem, e grande parte dos procedimentos pedagógico-didáticos centraram-se nesse propósito. O reconhecimento da individualidade da criança, de suas necessidades e vontade própria implicou necessariamente o repensar da prática educativa, da mesma maneira sua condição de ser psicológico propôs à Psicologia a superação do caráter dicotômico que por bastante tempo fundamentou sua base teórica. Visto que, por um longo período, a Psicologia tradicional preocupou-se em estudar o funcionamento psicológico, em especial o funcionamento cognitivo fragmentadamente; isolando deste o aspecto afetivo, negligenciando-o enquanto substrato da constituição humana. A separação do intelecto e do afetivo, diz,Vygotsky, “enquanto objeto de estudo, é uma das principais deficiências da Psicologia Tradicional, uma vez que esta apresenta o processo de pensamento como fluxo autônomo de “pensamentos que pensam a si próprios”, dissociados da plenitude da vida, das necessidades dos interesses pessoais, das inclinações e dos impulsos daquele que pensa.(Kohl: 1992, p. 76) Assim, Vygotsky, defende a tese de que diferentes culturas produzem modos diversos de funcionamento psicológico, e busca romper com as teses que relativizam o papel que a afetividade detém para a promoção do desenvolvimento psico-social do homem, colocando-a independentemente de especificidades culturais. Para ele, existe a necessidade do reconhecimento de que a afetividade possui um caráter de ação volitiva2, que norteia toda atividade humana. 3 Este postulado teórico, em que o desenvolvimento cognitivo pressupõe-se uma base afetivovolitiva, também estará presente nos princípios teóricos de diversos autores, como Henry Wallon e Jean Piaget, em maior ou menor intensidade. Desta forma, ao longo deste capítulo buscaremos considerar as diferentes matizes conceituais dadas por esses teóricos ao termo afetividade e à dimensão ocupada em suas teorias, enfatizando, ainda que implicitamente, o desvelamento das mentalidades tradicionalistas que co-relacionam a afetividade à “desorganização da vida racional”, e a racionalidade, o intelecto, à superação absoluta do nosso estado afetivo-emocional. Reconhecendo que isto evidentemente supõe o conhecimento íntimo do modo de funcionamento da inteligência, da afetividade, e da interligação existente entre si. 1.2 - AS RELAÇÕES SOCIAIS E A AFETIVIDADE NA TEORIA PIAGETIANA. Costuma-se atribuir críticas aos postulados piagetianos, pela suposta indolência com que tratam os aspectos sociais no desenvolvimento humano, porém, convém ressaltar que, apesar das atenções não convergirem exclusivamente sobre esses fatores, Piaget destaca com clareza as influências e determinações da interação social no desenvolvimento da inteligência, afirmando que “a intelig ência humana somente se desenvolve no indivíduo em função de interações sociais que são, em geral, demasiadamente negligenciadas” (PIAGET, 1967 apud LA TAILLE, 1992, p. 11). Nesse sentido, julgamos ser importante enfatizar previamente sua definição de homem como ser social, assim como sua visão, no que tange ao comprometimento dos fatores sociais para o desenvolvimento humano, já que, a nosso ver, as relações sociais são bastante complexas e compõem fundamentalmente o cenário contínuo da história, determinando desde o nascimento até a vida adulta do ser, conteúdos sócio-históricos anunciantes de valores, regras e signos, por certo definidores do desenvolvimento psicosocial. Segundo Piaget (ibidem, p. 14), “o ser social” de mais alto nível, é justamente aquele que consegue relacionar-se com seus semelhantes de forma equilibrada; isso significa afirmar que, a cada estágio de _____________________________________________________________ 2 Ação volitiva: ato que há determinação de vontade, segundo consulta ao dicionário Aurélio. 4 desenvolvimento do sujeito, definido por Piaget, compreende-se uma maneira de ser social, daí a forma como uma criança, no período préoperatório, interage socialmente diferente de uma pessoa que atingiu o nível das operações formais, haja vista esta conseguir estabelecer com coerência e equilíbrio trocas intelectuais. Assim, denota dizer que, o desenvolvimento das operações lógicas no indivíduo corresponde simultaneamente ao seu desenvolvimento social. Para tanto, é conveniente apresentarmos tal relação nas variadas etapas fixadas por este autor. Inicialmente, no período sensório-motor, o nível de socialização da inteligência mostra-se extremamente precário, pouco devendo às trocas sociais. Entretanto, no estágio pré-operatório, caracterizado pela presença da linguagem e da representação simbólica, esta socialização da inteligência, outrora pouco perceptível, ganha efetiva significância, embora alguns fatores ainda empeçam as consistentes trocas intelectuais equilibradas, tais como: a ausência de condições favoráveis na criança para enquadrar-se em uma categoria comum de referência, condição indispensável ao autêntico diálogo; a incapacidade circunstancial da criança para sustentar suas definições ou afirmações; além de não conseguir promover relações de reciprocidade, de ver-se a partir do ponto de vista do outro. Situações estas peculiares ao pensamento egocêntrico. Apesar, de nesta fase a criança designar seu ponto de vista como único ou verdade absoluta, demonstrando uma suposta autonomia, ela ainda não possui consciência do próprio eu, e, um exemplo prático, percebemos quando nas diversas situações do cotidiano a criança mostra-se facilmente influenciável pela opinião dos adultos, admitindo-a fervorosamente; muito comum na fase heterônoma do desenvolvimento do juízo moral na criança. Portanto, aceitar simplesmente tal fato como aspecto da formação autônoma é ignorar a falta de domínio do eu, ou melhor, sua heteronomia tanto nos modos de pensar como de agir. Todavia, a partir do estágio das operações concretas, as reais trocas intelectuais começam a ser permanentes e a reciprocidade nas relações constituídas, dando início à consolidação da personalidade, entendida por Piaget, desta maneira, não o eu enquanto diferente dos outros eus e refratário à socialização, mas é o indivíduo se submetendo voluntariamente às normas de reciprocidade e de universalidade. Como tal, longe de estar à margem da sociedade, a personalidade constitui o produto mais refinado da socialização. Com efeito, é na medida em que o eu renuncia a si mesmo para inserir seu ponto de vista próprio entre os outros e se curva assim às regras da reciprocidade, que o indivíduo torna-se personalidade(...). (...) a personalidade consiste em tomar consciência desta relatividade da perspectiva individual e a coloca-la em relação com o conjunto das outras perspectivas possíveis: a personalidade é, pois uma coordenação da individualidade com o universal (PIAGET, 1967, p.245 apud LA TAILLE, 1992, p.17). Diante disso, notamos dentre outros motivos, a importância das relações sociais na construção da noção do eu e do outro, num processo concomitante de diferenciação e socialização. Todas as 5 questões evocadas aqui levam-nos a refletir as diferentes dimensões do ser social e sua íntima relação com as etapas do desenvolvimento cognitivo; mas, vale daí pensarmos também a ampla influência das interações sociais sobre esse desenvolvimento; haja vista, os fatores interindividuais permitirem à inteligência atingir a coerência possível, sobretudo pelas necessidades oriundas da vida em sociedade. Mas, nesse sentido, cremos ser impreterível mencionar que Piaget não confia fielmente na argumentação de que toda e qualquer relação interindividual supõe desenvolvimento satisfatório; pois em seus estudos sobre estas, distingue dois tipos: a coação e a cooperação, compreendidas igualmente a partir de reflexões sobre o desenvolvimento do juízo moral na criança. Tecendo as devidas conceituações no âmbito do processo ensinoaprendizagem, apreciamos entre os demais elementos, o vínculo entre inteligência e afetividade. Tanto a coação quanto a cooperação, compõem o cenário do cotidiano escolar, seja no espaço próprio da sala de aula, quão na instituição como um todo. São relações que se estabelecem, muitas vezes, em lugares específicos inconscientemente, em apologia a uma educação de qualidade e formadora. Destarte, convém classificar coercitiva qualquer relação subsidiada pela unilateralidade, pela imposição ao outro da forma de pensar, de princípios e valores tidos como verdades absolutas. Assim, tal realidade aponta-se contraditória ao desenvolvimento intelectual, sócio-afetivo e moral, pois à medida que não promove a reciprocidade entre os sujeitos, lamentavelmente impede a construção de sua autonomia. No entanto, as relações de cooperação são opostas às já referidas, denotam o ponto de partida para o progresso moral, intelectual e afetivo, por garantir a reciprocidade entre os indivíduos, tornando-os capazes de aceitar o ponto de vista alheio e perceber-se nele. Como podemos deduzir, enquanto na coação os elementos afetivos seguem do medo ao sentimento de obrigatoriedade, na cooperação prevalece o respeito mútuo, a autonomia. Fatores decisivos a serem considerados na prática educativa intra e extraescolares, buscando respeitar e aproveitar as relações de cooperação que naturalmente emergem dos contatos entre as crianças. A propósito, os argumentos salientados dispõem evidenciar a função construtora das relações interindividuais cooperativas, destacar a dinamicidade de sua natureza na constituição humana e, trazer para o cerne das discussões pedagógicas no cotidiano, o reconhecimento de que o conjunto das atitudes realizadas é resultante de múltiplas determinações, conferindo à afetividade o devido lugar na promoção de uma educação mais recíproca com suas finalidades, já que o intuito desta é a formação plena do educando. Ao discorrer outrora, a respeito do conteúdo social determinante à formação humana, cabe evidenciar duas realidades diferenciadas, porém, complementares, igualmente responsáveis, à dimensão cognitiva enquanto fonte de transmissão educativa e lingüística das contribuições 6 culturais e à dimensão afetiva como fonte de sentimentos específicos, em especial, os sentimentos morais. Partindo deste princípio, torna-se indispensável darmos ênfase à evolução do aspecto cognitivo do sujeito, compreendido por meio de uma seqüência de estruturas que se formam através das experiências vivenciadas, superando os obstáculos reais e convergindo a partir destas novas estruturas à consolidação ulterior. Da mesma maneira, não poderia deixar de ser o desenvolvimento sócio-afetivo ao evoluir atendendo a mudanças qualitativas e graduais semelhantes no cognitivo. O desenvolvimento cognitivo, afetivo e social encontram-se tão imbricados um ao outro, a ponto da simples mudança circunstancial em um dos aspectos ocasionar a transformação nos demais, positiva ou negativamente, dependendo dos seus elementos constituidores. Enfim, considerando que “esses dois aspectos são ao mesmo tempo, irredutíveis, indissociáveis e complementares, não é, portanto, muito para admirar que se encontre um notável paralelismo entre suas respectivas evoluções”.(PIAGET e INHELDER, 1990, p.24). O processo contínuo e construtivo de socialização do sujeito se dá também, em primeira instância, no máximo de interações sócio-afetivas interdependentes, deste com o outro e com o meio – fator característico da primeira infância – na busca pela satisfação orgânica e psicológica, seguindo progressivamente em direção ao limite da individualidade e, conseqüentemente, da autonomia. Desse modo, a manifesta correspondência entre os aspectos afetivo e cognitivo, no tocante às respectivas evoluções, compete tornar explícito o papel da afetividade nos períodos do transcurso do desenvolvimento humano. No estágio sensório-motor do desenvolvimento cognitivo, notamos a princípio a passagem de um momento inicial, centrado na ação própria da criança, a posterior estruturação do mundo objetivo e descentrado; ao passo que, na afetividade instaura-se o estado de não-diferenciação entre o eu e os construtos físicos e humanos, para na etapa seguinte imprimir trocas entre o eu diferenciado e o alheio. Piaget, em parceria com Inhelder, no livro “A psicologia da criança”, recorre a J. M. Baldwin, ao complementar o momento referido sob a conceituação de “adualismo inicial”, termo já atribuído por Baldwin para explicar a não -consciência do eu, ou seja, a verticalidade no conjunto das relações exteriores como se fosse extensão do mundo particular. De fato, são as primeiras relações, as trocas interindividuais que a criança estabelece afetivamente que a permite distinguir as particularidades do mundo objetivo e subjetivo, substanciadas por uma série de influências do meio circundante, que correspondem às atividades espontâneas da criança, num estágio de satisfação de suas necessidades. Segundo Spitz e Wolf, autores referenciados por Piaget e Inhelder3, exprimem que na análise dos afetos observáveis, nessa etapa do desenvolvimento 7 psicosocial, há muito mais de trocas afetivas, contágios, do que verdadeiramente reconhecimento ou diferenciação das pessoas e das coisas. Nesse sentido o contato com as pessoas torna-se, destarte, cada vez mais importante e, anuncia uma passagem do contágio à comunicação (ESCALONA). De fato, antes que se construam de modo complementar o eu e o alheio, assim como as suas interações, assiste-se à elaboração de todo um sistema de trocas graças à imitação, à leitura dos indícios, dos gestos e das mímicas. A criança passa, desde então, a reagir às pessoas de modo diferente das coisas e age segundo esquemas que podem ser relacionados com os da ação própria. (ESCALONA, 1963 apud PIAGET, 1990, p.27) O processo seguinte da evolução afetivo-social é constatado no estágio préoperatório, quando a criança apresenta vantagens outrora não percebidas: mobilidade mental, jogo simbólico e a linguagem. Fatores estes responsáveis pela configuração de novos afetos, advindos sob formas de simpatias ou antipatias duradouras, concernentes à outrem; de consciência ou valorização em relação a si (ao eu); visto que agora essas manifestações não dependem primordialmente da presença direta do objeto afetivo designado pela criança. Uma vez que, no subseqüente estágio das operações concretas o sujeito adquire uma personalidade individualizada capaz de permiti-lo liberar-se em relação às interdependências iniciais. Nota-se agora, a configuração do processo de socialização nas ações interindividuais, enquanto que no nível pré-operatório encontrávamos ainda a condição pré-cooperativa, devido a presença marcante do egocentrismo infantil, ou seja, a dificuldade em falar e agir partindo do ponto de vista dos interlocutores, em descentrar-se. Vemos, então, por intermédio do exercício constante da criança, o alcance ao nível das operações concretas, constituidoras de novas relações interindividuais, de natureza cooperativa e, nesse limite, a promoção de trocas afetivas e cognitivas equilibradas, como aspectos indissociáveis da conduta humana. Segundo Piaget e Inhelder (1990, p.109), _______________________________________________________________________ 3 Bibliografia: PIAGET, J. e INHELDER, B. A psicologia da criança. 11 ed. ED. Bertrand Brasil S/ª 1990. Rio de Janeiro. a afetividade, a princípio centrada nos complexos familiais, amplia sua escala à proporção da multiplicação das relações sociais, e os sentimentos morais, a princípio ligados a uma autoridade sagrada mas que, por exterior, não chega a redundar senão em obediência relativa, evoluem no sentido de um respeito mútuo e de sua reciprocidade, cujos efeitos de descentração são em nossa sociedade, mais profundos e duráveis. 8 À vista disso, o último estágio, corresponde à adolescência, ocasião onde a estruturação do pensamento formal conduz, a partir do concreto, à projeção de planos futuros. As novidades afetivas do tipo, o interesse por teorias, mudança social, a solidificação de novos valores, ou seja, a inserção propriamente dita do adolescente no bojo dos ideais sociais, foram por muito tempo encaradas como dispositivos inatos do sujeito, negligenciando o inestimável papel das interações sociais, responsáveis primeiras pelo desenvolvimento global do ser humano. Este resgate da teoria piagetiana faz-se pelo esforço em deixar evidente o lugar ocupado pela afetividade no desenvolvimento humano, em caracterizá-la como instrumento propulsor das ações, estando a razão a seu serviço. De fato, o embate estabelecido entre a afetividade e inteligência pode ser resumido na seguinte citação, conforme as interpretações de La Taille, no que se refere à visão de Jean Piaget sobre a afetividade e razão. A afetividade seria a energia, o que move a ação, enquanto a razão seria o que possibilitaria ao sujeito identificar desejos, sentimentos variados, e obter êxito nas ações. Neste caso, não há conflito entre as duas partes. Porém, pensar a razão contra a afetividade é problemático porque então dever-se-ia, de alguma forma, dotar a razão de algum poder semelhante ao da afetividade, ou seja, reconhecer nela a característica de móvel, de energia.(LA TAILLE, 1992, p.65 e 66). 1.3- AFETIVIDADE NO PROCESSO DE FORMAÇÃO DE CONCEITOS, SEGUNDO VYGOTSKY. Um importante pesquisador do funcionamento intelectual humano, o psicólogo russo Lev Semenovich Vygotsky (1896-1934), cujas idéias são imprescindíveis ao embate teórico ao qual nos propomos neste capítulo, trata o assunto sob o enfoque de uma psicologia sócio-histórica, caracterizada fundamentalmente pela tentativa de se reunir dialeticamente, num mesmo modelo explicativo, tanto os mecanismos cerebrais subjacentes ao funcionamento psicológico, quanto o desenvolvimento do indivíduo e da espécie humana, ao longo de um processo sócio-histórico, de forma tal, a constituir-se de importância inegável à apreciação da temática em curso. Porém, para explicitar o pensamento vygotskiano acerca da relação entre as dimensões cognitiva e afetiva para o desenvolvimento humano, há que se retomar ao severo questionamento que inflige a sua tradicional divisão na Ciência Psicológica, pois [somente uma abordagem holística, promotora de uma análise totalizante e nãofragmentada] Demonstra a existência de um sistema dinâmico de significados em que o afetivo e o intelectual se 9 unem. Mostra que cada idéia contém uma atitude afetiva transmutada com relação ao fragmento de realidade ao qual se refere. Permite-nos ainda seguir a trajetória que vai das necessidades e impulsos de uma pessoa até à direção específica tomada por seus pensamentos, até o seu comportamento e a sua atividade.(VYGOTSKY, 1989, p. 6-7 apud LA TAILLE, 1992, p. 77). Com essa citação, além da crítica à divisão entre as dimensões cognitiva e afetiva do funcionamento psicológico, podemos afirmar que, Vygotsky sugere uma aparente anterioridade da ação – ou seja, da experiência direta, onde se encontra o fluxo desenfreado de nossos anseios, necessidades, etc. – ao pensamento generalizante - função psicológica superior que ordena as representações mentais, dadas culturalmente, do mundo real -, que se desfaz ao advertir sobre a existência do processo inverso; ou seja, vê o afetivo como força volitiva para o cognitivo, e este como regulador do primeiro. Muito embora o léxico da psicologia soviética da sua época não dispusesse do termo cognitivo, Vygotsky estudou o processo de desenvolvimento cognitivo relacionando-o à estruturação dinâmica entre o que definiu como funções mentais e consciência. Assim, de acordo com sua definição, entendemos por funções mentais, ou funções psicológicas superiores (em contraposição às funções elementares, de caráter involuntário), processos voluntários, ações conscientemente controladas, mecanismos intencionais, tais como: o pensamento, memória, percepção e atenção; que dispõem de maior grau de autonomia em relação aos fatores biológicos, sendo antes resultado da inserção do indivíduo em um contexto sócio-histórico. No tocante à consciência, visando combater o reducionismo comportamentalista, por um lado, e o idealista, por outro, que respectivamente ora associa a consciência a processos elementares (como percepções sensoriais e reflexos), ora a um estado interior preexistente, Vygotsky concebe a partir de sua dimensão social, a qual a dimensão individual é derivada e secundária, como “organização objetivamente observável do comportamento, que é imposta aos seres humanos através da participação em práticas sócio-culturais”, por sucessivos processos de internalização que não se restringem à mera cópia da realidade externa num plano interior já existente. Grosso modo, a consciência passa a ser percebida como uma forma de organização dinâmica de nossas funções mentais superiores, de nosso comportamento, tal como expresso na citação anterior, onde é implicitamente definida como um sistema organizativo de significados em que o afetivo e o dinâmico se unem. Seu desenvolvimento, determinado culturalmente segundo Vygotsky, pode ser explicado na verdade, por possuir como elemento mediador entre indivíduo e influências do mundo exterior, a linguagem, as operações com signos, o sistema de representações que substitui o real, fornecidos por dada cultura aos indivíduos que a constituem. 10 Assim, a linguagem, esse sistema simbólico de mediação entre o sujeito e o objeto – que além do intercâmbio social, presta-se principalmente à função de contribuir para a construção do pensamento generalizante, que se dá a partir da generalização das experiências em categorias conceituais, ou seja, classes de objetos com atributos em comum, selecionados sob a óptica de um grupo cultural - , se consubstancia num instrumento de organização do conhecimento, de ordenação do mundo real e, assim sendo, torna-se um importante fator desencadeante da construção da própria consciência humana. Esta a qual Vygotsky confere papel central na concepção que possui das relações entre afeto e intelecto. Nessa perspectiva, a partir das investigações que efetivou dos processos internos relacionados à aquisição, organização e uso do conhecimento através da sua dimensão simbólica, Vygotsky chega a estabelecer um percurso genético do desenvolvimento do pensamento generalizante, chamado por ele de pensamento conceitual, dentro do qual busca explicitar de que maneira se corporifica a construção de significados, como se dá o processo de formação de conceitos. Vygotsky o subdivide em três grandes estágios: 01. O da formação de conjuntos sincréticos; 02. O do pensamento por complexos e; 03. O da formação de conceitos propriamente ditos. No primeiro estágio, a criança agrupa os objetos do mundo circundantes a partir de nexos subjetivos, baseada em fatores perceptuais; por isso, tais ligações são instáveis e não se relacionam necessariamente aos atributos relevantes dos objetos. Já no estágio do pensamento por complexos, essas ligações, descobertas por meio da experiência direta, estabelecem conexões concretas e factuais entre os objetos, porém, ainda carecendo de unidade lógica, uma vez que sofrem variações decorrentes do tipo de contato e relações existentes entre os elementos, e baseiam-se na combinação por similaridade, na unificação de impressões diversas. Por fim, no terceiro estágio, ocorre o agrupamento dos objetos com base num único atributo, abstraído de características isoladas da totalidade da experiência direta; é o estágio onde opera o pensamento lógico-abstrato. No entanto, todo esse percurso, vale ressaltar, não se trata de um processo linear, visto que discorre sobre a formação de conceitos cotidianos da vida infantil, impregnados de experiência, onde primordialmente parte-se do concreto para o abstrato, desenvolvendose também na direção contrária, quando se considera a formação de conceitos científicos no âmbito da instrução escolar – da representação abstrata, através de uma atitude mediada, metacognitiva (de consciência e controle de suas relações e conteúdo), sem confronto com uma situação direta, para a realidade concreta. Mas, adverte Vygotsky “é preciso que o desenvolvimento de um conceito espontâneo tenha alcançado um certo nível para que a criança possa absorver um conceito científico correlato”. Daí o importante papel que Vygotsky atribui à intervenção escolar promotora do agir coletivo 11 como alternativa pedagógica capaz de provocar aprendizagem e, conseqüentemente, gerar o desenvolvimento dos educandos. Contudo, a despeito do que explicitamos antes, há que se especificar agora o pensamento vygotskiano às questões relacionadas mais estreitamente à temática da afetividade. Tal como a percepção e a memória, as emoções compõem o quadro de nossas funções psicológicas e, assim como as primeiras, apresenta uma dimensão social que a determina. Sendo, pois, um fenômeno psico-social, as emoções dependem de uma consciência social fornecida pela cultura que dite as diretrizes para o sentimento, no tocante a quando, onde e o que sentir; e que estas estabeleçam, enfim, códigos legais, morais e sociais que as sustentem. Por outro lado, a violação dessas regras do sentimento, equivale a desenvolver uma nova ideologia social, um novo sistema social: vemos, por exemplo, segundo Ratner (1995, p. 67) as constantes revoluções emocionais trazidas pelo proliferar das reivindicações feministas. Em geral, “à medida que mudam as ideologias sociais e os sistemas sociais, eles trazem consigo novas normas de emoções” (RATNER, 1995, p.67). Podemos inferir, portanto que, muito embora haja correspondentes emocionais nos animais e bebês humanos, as emoções de um ser humano adulto, sendo, pois, mediadas pela consciência social, não mais possui uma base natural e espontânea comum aos primeiros. Como o próprio Carl Ratner enfatiza, embora algumas emoções possuam correspondentes naturais, a maior parte das emoções, entre as quais a vergonha, a gratidão, o dever, a raiva, a piedade, o remorso, a admiração, o ódio, o desprezo, a vingança, o amor e a culpa, não possuem. A falta de correspondentes naturais para essas emoções torna ainda mais evidente seu caráter social.(RATNER, 1995, p.68). Se a dimensão social das emoções é culturalmente determinada, por certo a existência, a qualidade e a intensidade delas são tão diversas quanto o universo de conceitos e práticas sociais específicas existentes. E ainda, sendo as emoções compreendidas como constructos inventados para servir aos propósitos humanos e que dependem da cognição, da interpretação e da percepção, as variações da emocionalidade parecerão bastante plausíveis.(...).A qualidade socialmente mediada das emoções reflete o fato de que as emoções servem a propósitos comunicativos, morais e culturais complexos. O significado complexo de cada emoção é resultado do 12 papel que as emoções desempenham em toda a gama de valores culturais, relações sociais e circunstâncias econômicas dos povos.(RATNER, 1995, p.68 – 73). Este autor desvela, assim, por completo, a idéia reificada de que as reações emocionais estariam intrinsecamente ligadas aos processos viscerais dos indivíduos. Estes, porém, desempenham papel muito mais indireto e débil, frente ao poder das influências da significação perceptiva da situação. Mesmo a secreção hormonal, que ativa certos estados emocionais, é causada por processos psicológicos, despertados anteriormente. Não se trata apenas da atividade autônoma do sistema nervoso, que influi somente na intensidade dessas reações emocionais; mas, da avaliação cognitiva, um processo de interpretação do estímulo externo que se estende até a compreensão sobre a origem da excitação interna, e influi na qualidade emocional. No entanto, tal avaliação cognitiva impregnada pelo conteúdo histórico-cultural de uma sociedade específica pode, por vezes, resultar em reações diversas, visto que são função antes de memórias culturalmente condicionadas do que subprodutos da experiência. Em suma, critica Ratner, a favor da autonomia relativa das emoções em relação aos processos viscerais: “atribuir emoções a hormônios por si sós cria a falsa impressão de que determinadas reações emocionais são produtos naturais, universais e inevitáveis.” 1.3-WALLON: A TEORIA DA EMOÇÃO. Embora a teoria vygotskiana estabeleça um claro embasamento sobre a temática da relação entre afetividade e desenvolvimento cognitivo, um encontro de paradigmas, ou seja, a apresentação de outro ponto de vista, como o do médico, filósofo e militante francês Henri Wallon (1879-1962) justifica-se pelo prolífico confronto teórico e aprofundamento analítico que, de fato, produziria. Portanto, contribuindo inestimavelmente para uma maior cobertura e compreensão dos múltiplos aspectos envolvidos; mediante a postulação da sua teoria da emoção, que o tornou destarte indispensável também a qualquer estudo sobre afetividade que se venha empreender. Apesar da dimensão afetiva ocupar lugar central na teoria walloniana, como em nenhuma outra, o seu grande eixo é a questão da motricidade, posto que, para ele, o ato mental se desenvolve necessariamente a partir do ato motor, intermediado por um processo cuja explicação desenvolver-se-á mais adiante. Deste modo, pondo-se a estudar a atividade muscular recorrendo aos órgãos que a constituem, como: a musculatura e estruturas cerebrais responsáveis por sua organização, Wallon estabelece uma tipologia do movimento, na qual identifica-lhe duas funções: a cinética e a postural. “A 13 primeira correspondendo ao movimento visível, à mudança de posição do corpo, ou de segmentos do corpo no espaço; a segunda, à manutenção da posição assumida (atitude) e à mímica”.(LA TAILLE, 1992, p. 37) Quando a sensório-motricidade incontinente lentamente se reduz, a partir do segundo ano de vida, com a progressiva inibição dos centros corticais da função cinética, ocorre o fortalecimento da função tônico postural. Notamos, portanto que, em contraposição aos movimentos instrumentais, os movimentos simbólicos contém idéias projetivas que geram novos atos refletidos: “imobilize -se uma criança de dois anos que fala e gesticula e atrofia-se seu fluxo mental”, diz Heloysa Dantas, a partir do pensamento de Wallon, (ibdem, p. 41). Todavia, acrescenta, “a transição do ato motor para o mental pode ser acompanhada na evolução das condutas imitativas” (ibidem, p. 41), porém, entendendo-se por estas a imitação simbólica, que aos poucos dará lugar à representação em si. Na verdade, a afetividade na teoria walloniana, de inspiração darwinista, segundo Heloysa Dantas, é vista como instrumento de sobrevivência na qual sua origem encontrarse- ia na função tônico-postural. Além disso, à afetividade compete a transição entre o estado orgânico do ser e sua etapa cognitiva, racional; “suprindo a insuficiência da articulação cognitiva nos primórdios da história do ser e da espécie.” Nesse sentido, a afetividade, que corresponde à primeira manifestação do psiquismo, propulsiona o desenvolvimento cognitivo ao instaurar vínculos imediatos com o meio social, abstraindo deste, o seu universo simbólico, culturalmente elaborado e historicamente acumulado pela humanidade. Por conseguinte, os instrumentos mediante os quais se desenvolverá o aprimoramento intelectual são, irremediavelmente, garantidos por estes vínculos, estabelecidos pela consciência afetiva. Por essa razão, que costumamos associar transtornos emocionais ao comprometimento do pensar reflexivo, bem como o inverso: a produção da emoção ao tocante poder dos grandes retóricos, onde o domínio no manuseio de meios puramente representacionais é fator decisivo para garantir a geração (muitas vezes manipulação ideológica) de variantes emocionais. Contudo, partimos da afirmação walloniana de que toda alteração emocional corresponde a uma flutuação tônica, acrescentando a esta uma terceira relação que, muito embora ainda constitua-se intuitivamente no plano científico, segundo Ajuriaguerra, autor referido por Dantas, discorre sobre a atuação mecânica, periférica, de excitação corporal, seja através de massagens, ou por meio de influências de atividades rítmicas intensas, para o desencadear de reações emocionais. Em suma, tais associações, segundo Wallon, correspondem a três diferentes naturezas assumidas pelas manifestações afetivo-emocionais: a primeira, de natureza química, central; outra de tipo 14 mecânico-muscular e, por fim, uma abstrata, representacional. E para além destas, Wallon identificou outras duas, a hipotônica e a hipertônica, classificando-as segundo variações no tônus muscular. Assim, as emoções de natureza hipotônica (tais como o susto e a depressão) são consideradas redutoras do tônus, visto que lhe conferem uma consistência flácida, de caráter relaxado; por outro lado, as de natureza hipertônica, geradoras do tônus, como a cólera e a ansiedade, resultam num tônus rijo, retesado, numa musculatura pétrea, cuja duração se torna extremamente penosa. É comum em várias teorias descrevê-las como desorganizadoras da “vida racional”, desconsiderando-se, no entanto, que o seu potencial explosivo e imprevisível surge apenas quando não conseguem transmutar-se em ação mental ou motora, quando permanecem emoção pura e, somente assim pode ser comparada como o próprio Wallon o fez à “uma forma somática, confusa, global da sensibilidade, que subindo como uma onda, apaga a percepção intelectual e analítica do exterior.” Porém, ao reconhecer sua origem na ontogênese e filogênese do homem, Wallon admite que, nesta perspectiva, a afetividade não é apenas uma das dimensões da pessoa : ela é também uma fase do desenvolvimento, a mais arcaica. O ser humano foi, logo que saiu da vida puramente orgânica, um ser afetivo. Da afetividade diferenciou-se, lentamente, a vida racional. Portanto, no início da vida, afetividade e inteligência estão sincreticamente misturadas, com predomínio da primeira.(ibdem, p.90) No entanto para Wallon, essa predominância é subjugada à intensa atividade cognitiva, porém, perdurando um longo estado de reciprocidade, de forma que as aquisições de cada uma repercutem sobre a outra decisiva e permanentemente. Para Wallon, a evolução afetiva está intrinsecamente ligada ao desenvolvimento cognitivo, visto que difere sobremaneira entre uma criança e um adulto, supondo-se a partir disto que há incorporação de construções da inteligência por ela, seguindo a tendência que possui para racionalizar-se. Assim, tal como os familiares estágios do desenvolvimento cognitivo, Wallon define etapas na evolução da afetividade, cuja fase inicial, a chamada afetividade emocional - centrípeta e anabólica de construção exclusiva do eu, e mencionada anteriormente como pura emoção estaria circunscrita a manifestações somáticas, inteiramente dependentes da presença concreta do outro para o estabelecimento de trocas afetivas. É o caso, por exemplo, do caráter comunicativo dos negligenciados movimentos impulsivos do recém-nascido, pois a manifestação de uma intencionalidade que os originam, qual seja, a da satisfação de necessidades básicas, pressupõe a 15 existência de uma mediação social subjacente, o que, num estudo sobre a comunicação gestual, Ajuriaguerra, consonante às idéias wallonianas, segundo Dantas, chamou de “diálogo tônico”, aquele efetivado entre mãe e filho. Porém - paralelamente ao desenvolvimento e maturação de competências necessárias ao posterior interesse pela exploração da realidade externa - com a gradual aquisição, pela inteligência, da função simbólica, através da utilização da linguagem, seja por via oral e depois escrita, dá-se a constituição de uma forma cognitiva de vinculação afetiva – a da afetividade simbólica, onde Wallon assinala que no início, o gesto gráfico precede a intenção: o projeto é uma resultante, antes de ser um controlador do gesto que realiza o desenho [isto é, uma criança só poderá dizer-nos sobre o que está desenhando após concluí-lo, pois também não saberá do que se trata seu desenho se já não o fez]. No discurso, a palavra disponível, seja em seu aspecto semântico, seja em seu nível puramente sensorial de ressonâncias e rimas, conduz à idéia. Só muito mais tarde, quando o processo pensante for mais sólido, a idéia presidirá à busca e à escolha da palavra. (ibdem, p.93) Mas, com a chegada, por fim, da puberdade, exigências racionais se impõem às relações afetivas, através da valorização de noções tais como: respeito recíproco, justiça, igualdade de direitos etc. E, por conseguinte, ao discorrer sobre o processo de construção do sujeito, Wallon (ibidem, p.90), ainda demonstra que, de acordo com as etapas evolutivas da afetividade que estabeleceu, a construção do eu (sujeito) se dá nos momentos dominantemente afetivos do desenvolvimento, na interação com outros sujeitos; enquanto nos de caráter predominantemente cognitivo se dá a construção do objeto, a modelação da realidade externa frente à constante aquisição das técnicas cuja elaboração se devem à cultura geral de sociedade, chegando até a transcender essa realidade, quando a sua gestualidade atinge o apogeu e inicia sua etapa regressiva, e como diz Dantas(ibidem, p.94): “o destino da evolução psicomotora é a economia, a especialização, a virtualização”. Ora, se à intensa atividade cognitiva concomitantemente se desenvolve a construção do si, ressalta Dantas, cabe à educação, em cada um desses momentos, a satisfação das necessidades orgânicas e afetivas, a oportunidade para a manipulação da realidade e a estimulação da função simbólica, depois a construção de si mesmo. Esta exige espaço para todo tipo de manifestação expressiva: plástica, verbal, dramática, escrita, direta, ou indireta, através de personagens susceptíveis de provocar identificação. (DANTAS,1992,p.95) Assim, é fácil inferirmos a partir dessa afirmação que um processo de ensinoaprendizagem limitado ao desenvolvimento de algumas poucas habilidades, exigidas socialmente, através de 16 atividades curriculares, onde predominam as de caráter lógicomatemático, intelectualistapragmático, estaria apenas obstruindo inestimavelmente o desenvolvimento dos educados ao qual estão submetidos. Observamos, portanto a inigualável importância dos aspectos afetivos para o desenvolvimento psicológico, e constatamos que limitá-los ao alcance de uma única teoria, ou seja, ao pensamento de um único pesquisador, seria considerá-los apenas parcialmente, o que significa comprometer substancialmente toda a rigorosidade das análises e reflexões a que buscamos empreender. Assim, os autores referenciados – Piaget, Vygotsky e Wallon – ao implementarem investigações acerca do desenvolvimento psicológico humano acabam por identificar na afetividade o seu caráter social, amplamente dinâmico e construtor da personalidade humana, além de estabelecer o elo de ligação entre o indivíduo e a busca do saber (por meio das interações sociais), convergindo os três para o postulado de que, embora considerada sob diversas matizes, à afetividade cabe a função de desencadeadora do agir e do pensar humanos, isto é, para a efetivação do desenvolvimento sócio-cognitivo. Visando por fim, classificar essas matizes conceituais da afetividade pelos autores escolhidos, resgatando destes os pontos teóricos aos quais tomamos como “faróis norteadores” de nossas investigações , partimos do pensamento piagetiano para o qual a afetividade está circunscrita ao âmbito das interações sociais, subdivididas por ele em dois tipos, a coação, inibidora da autonomia afetivo-intelectual e moral, visto sustentar-se por sentimentos de medo, de respeito unilateral e irrestrita subserviência; e a cooperação como condição propícia à recíproca verdadeira, ou seja a configuração do respeito mútuo, garantindo ao sujeito a autonomia suprema para acatar algumas determinações sociais e outras não. Já na psicologia de Vygotsky, as emoções, tidas como integrantes de nossas funções mentais superiores, são antes produto da inserção humana num dado contexto sócio-histórico do resultado da atividade independente do sistema nervoso central sobre os processos viscerais do corpo somático. Encontram-se, pois, sujeitas às interferências e determinismos do que chamou de consciência social, culturalmente produzidas e impostas, incutindo-lhe códigos legais reguladores de suas manifestações no tocante a como, quando e onde surgirem, tornando-se mais expressivos no comportamento afetivo do ser humano adulto. Porém, tal determinismo é relativizado pela constante e gradual ampliação do processo de avaliação cognitiva, no qual o indivíduo percebe e interpreta o papel das influências exteriores para o desencadear interno de suas reações emocionais, o que torna-o apto a compreende-las e posteriormente domina-las. Finalmente, na concepção walloniana de afetividade, destacamos a inspiração darwinista a qual vincula-se. Pois para Wallon, a afetividade é considerada um instrumento de sobrevivência do qual o bebê humano se utiliza para suprir a insuficiência da articulação cognitiva por meio da 17 significação de sua atividade motora; o que a torna a primeira manifestação do psiquismo em busca de abstrair, compreender e utilizar-se do universo simbólico que o cerca. 2- MOTIVAÇÃO E APRENDIZAGEM Sendo o aspecto afetivo constructo da natureza humana e elemento responsável pela definição das relações interindividuais, base para todo desenvolvimento sócio-cognitivo do ser humano, convém, destacarmos também a motivação como parte integrante desse aspecto e seus determinantes no processo ensino-aprendizagem, bem como, todas as ações da vida prática do indivíduo. No campo da Psicologia muitos estudos são desenvolvidos a fim de se compreender as variáveis motivacionais do comportamento humano. Hoje, contamos com um número significativo de pesquisas envolvendo esse assunto, porém não há ainda entre os autores que se preocupam com esse tema, usualmente, uma concepção universal aceita. Todavia, o que nos interessa nesse contexto é perceber a partir desses estudos, as contribuições trazidas, no tocante, ao lugar ocupado no âmbito educacional e as conseqüências do fator motivação4, no desenvolvimento das estruturas cognitivas do sujeito. No campo educativo, costumamos responsabilizar a motivação tanto à facilidade com que o educando aprende, quanto pela ausência de sua aprendizagem, no entanto, não podemos ser reducionistas a ponto de negarmos os inúmeros fatores que envolvem essas realidades, destarte, a motivação consiste apenas em mais um elemento considerável e imprescindível, seja para aprender ou realizar algo. Nesse sentido, vale ressaltar que todo comportamento pressupõe um motivo, seja no espaço específico de sala de aula, quão em todas as ações da vida humana, estas são movidas por uma força motivacional, embora não esteja explícita. Segundo Geraldina Witter, o conceito motivação, dependendo do autor, destaca um ou três tipos de variáveis: * determinantes ambientais; * forças internas (necessidade, desejo, emoção, impulso, instinto, vontade, propósito, interesse e etc.); * incentivo, alvo ou objeto que atrai ou repele o organismo. A concepção de motivação que mais ganhou destaque condiz à vinculada à teoria da evolução, por seu caráter utilitário-funcional para a sobrevivência e desenvolvimento filogênico e ontogênico. Partindo dessa ótica, todo comportamento é motivado e, sobretudo corresponde às necessidades do organismo, daí dizer que o comportamento configura-se em instrumento pelo qual a necessidade é satisfeita. 18 Sem dúvida, como podemos perceber, a motivação implica componente basilar de toda atividade humana a ser aprendida. Comporta inúmeras situações em que pressupõe _________________________________________________________________ 4 Segundo o dicionário Aurélio define: o conjunto de fatores os quais agem entre si, e determina a conduta de um indivíduo aprendizagem. Nesse sentido, é comum observarmos no meio educacional, em particular, no cotidiano de nossas escolas públicas, o incômodo de muitos educadores em compreender o desinteresse dos educandos, o pouco caso destes pelo que o professor ensina-lhes, ou seja, a busca por alternativas para solucionar ou senão amenizar os problemas advindos por não se possuir as condições motivacionais favoráveis à aprendizagem. Atribuídas na grande maioria das vezes somente ao mundo extra-escolar dos educandos. No entanto, vale destacar que tanto para a ação de aprender quanto de ensinar, fazse necessário uma força propulsora motivacional que determine ambas as situações, bem como, garanta a otimização do processo ensino-aprendizagem através da melhoria da motivação. Partindo dessa premissa, é de convir que o problema da falta de motivação, tão discutido no dia a dia da prática educativa, não se limita apenas ao alunado, apresenta proporção bem maior, capaz de ir desde a direção ao corpo docente, devido às condições que asseguram o desenvolvimento da educação brasileira serem precárias e desoladoras. As variáveis responsáveis pela falta de motivação dos professores sobremaneira justificáveis, como: a pouca disponibilidade de tempo para planejar, a baixa remuneração, condição material desfavorável, sobrecarga de trabalho, formação deficiente, desvalorização social, enfim, dentre outros elementos impeditivos e propícios à resistência a mudanças, ao avanço, à inovação, são aspectos fidedignos da realidade educacional brasileira, todavia, seria no mínimo ingenuidade falar sobre motivação sem refletir e mencionar a real situação de boa parte de nossas instituições escolares. Embora vítima dessa superestrutura que requer mudanças significativas, o educador será sempre o responsável primeiro pelo desenvolvimento sócio-cognitivo de seus educandos, o grande encarregado de promover as contingências reforçadoras que garantam a motivação e conseqüentemente levem à aprendizagem. E nesse caso, acaba tornando-se o elemento motivador por meio de seus estímulos antecedentes (decoração da sala, material didático, engenharia do ambiente e disposição dos alunos), também pelo modo como relaciona-se, sua postura, sua linguagem, etc. É inegável a relevância do fator motivação no desenrolar da prática pedagógica e, nesse sentido, não importa as estratégias motivacionais que o educador disponha e, sim, o seu compromisso em envolver o educando levando-o a perceber a aprendizagem adquirida também como conquista pessoal. 19 BIBLIOGRAFIA LA TAILLE, Yves de. – Piaget, Vygotsky e Wallon: teorias psicogenéticas em discussão / Yves de La Taille, Martha Kohl de Oliveira, Heloysa Dantas. – São Paulo: Summos, 1992. PIAGET, J. & INHALDER, B. A psicologia da criança. Ed. 11. – Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil S/A, 1990. RATNER, Carl. A psicologia sócio-histórica de Vygotsky: aplicações contemporâneas / trad. Lólio Lourenço de Oliveira. – Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. VYGOTSKY, L. A formação social da mente. – São Paulo: Martins Fontes, 1989. Educ@ação: Artigos A DIMENSÃO AFETIVA DA AÇÃO PEDAGÓGICA1 Valdete Maria Ruiz2 e Marli Jorge Vischi de Oliveira RESUMO O artigo trata da importância do desenvolvimento da afetividade paralelamente ao desenvolvimento cognitivo nas escolas mostrando, por meio das teorias de Piaget, Vygotsky e Wallon, como estão intimamente relacionados. Oferece contribuições para que o professor desenvolva a dimensão afetiva de seus alunos e discute a necessidade de atenção a essa dimensão na relação que estabelece com os educandos. Palavras-Chave: afetividade, desenvolvimento afetivo, relação professoraluno. 1 Artigo parcialmente baseado no Trabalho de Conclusão de Curso A Importância da afetividade para uma aprendizagem efetiva apresentado ao curso de Pedagogia do CREUPI em 2004 pela segunda autora, sob orientação da primeira. 2 Valdete Maria Ruiz é psicóloga pela USP-Ribeirão Preto, Mestra em Psicologia Escolar e Doutora em Psicologia como Ciência e Profissão pela PUC-Campinas. Docente nos cursos de Pedagogia e Letras do Centro Regional Universitário de Espírito Santo do Pinhal – UNIPINHAL e no de Psicologia do Centro Universitário das Faculdades Associadas de Ensino de São João da Boa Vista – UNIFAE. 20 Endereço para correspondência: Rua José Bonifácio, 220 – Mogi Mirim (SP), CEP 13800-060. Fones: (19) 3862-1874/ 3862-4517. Endereço eletrônico: [email protected] INTRODUÇÃO A educação moderna está em crise, porque não é humanizada, separa o pensador do conhecimento, o professor da matéria, o aluno da escola, enfim, separa o sujeito do objeto (CURY, 2003, p. 139). Afetividade é um termo utilizado para designar e resumir não só os afetos em sua acepção mais estrita, mas também os sentimentos ligeiros ou matizes de sentimentais de agrado ou desagrado, enquanto o afeto é definido como qualquer espécie de sentimento e (ou) emoção associada a idéias ou a complexos de idéias (CABRAL e NICK, 1999). Nas escolas em geral, alunos experimentam diversos afetos: o prazer de conseguir realizar algo pela primeira vez, tristeza ao saber da doença de um amigo, raiva ao discutir com colegas. Além disso, podem gostar ou não de seus professores, sentir-se felizes quando seus companheiros de sala os aceitam e culpados quando não estudam o suficiente. Em Psicologia os afetos costumam ser classificados em positivos e negativos. A afetividade positiva (AP) se refere ao tipo de emoções positivas tanto de alta energia (entusiasmo e excitação) como de baixa energia (calma e tranqüilidade) O prazer e a alegria também são exemplos da afetividade positiva. Já a afetividade negativa (AN) se refere a emoções negativas como a ansiedade, a raiva, a culpa e a tristeza. Note-se que é possível que um aluno apresente alta energia em ambas dimensões (AP e AN) ao mesmo tempo. Seria o caso de apresentar um alto nível de energia entusiasta e, ao mesmo tempo, estar irritado (SANTROCK, 2002). Os exemplos e descrições anteriores, por si só, demonstram como a afetividade faz parte do processo de ensino-aprendizagem, não se podendo desconsiderá-la. No entanto, a história da Educação mostra que, desde que a escola adquiriu seus contornos atuais, houve um prejuízo na dimensão afetiva da ação pedagógica – o que se tornou ainda mais acentuado na chamada era pós-moderna, como destaca o trecho em epígrafe. Na própria história da Psicologia, as dimensões cognitiva e afetiva da dinâmica da personalidade do indivíduo tenderam a ser tratadas de forma separada. Atualmente, entretanto, percebe-se uma tendência de reunião dessas duas dimensões, “numa tentativa de recomposição do ser humano completo” (SISTO, OLIVEIRA e FINI, 2000, p. 75). Diante de tudo isso, tem havido um apelo entre psicólogos e educadores no sentido de humanizar o conhecimento (e os próprios mestres) com o intuito de se desenvolver, paralelamente ao aspecto cognitivo, também o afetivo. Isto principalmente depois da publicação das obras Inteligências Múltiplas (GARDNER, 1995) e Inteligência Emocional (GOLEMAN, 1995). Vale dizer que os sentimentos e emoções do aluno precisam ser levados em conta, já que podem favorecer ou desfavorecer o desenvolvimento cognitivo – com o qual está intimamente relacionado desde que o bebê vem ao mundo, como é melhor discutido na seqüência. 21 O DESENVOLVIMENTO DA AFETIVIDADE DA CRIANÇA Desde que a criança nasce, o ambiente precisa satisfazer suas necessidades básicas de afeto, apego, desapego, segurança, disciplina e comunicação, pois é nele que se estrutura a mais importante forma de aprendizagem: a de estabelecer vínculos, isto é, a capacidade de se relacionar, tendo-se em conta que o ser humano é um ser social (BOSSA, 1998). Além disso, diversos psicólogos salientam que a evolução normal da atenção, memória, pensamento, juízo, percepção, linguagem, motricidade e afetividade depende, em boa parte, das condições externas do meio, mais especificamente da relação mãe-bebê, na qual se estabelece uma comunicação especial desde os primeiros momentos da vida do recém-nascido. O trabalho de Spitz foi o primeiro que chamou a atenção para a importância do afeto na relação mãe-filho no aparecimento e desenvolvimento da consciência do bebê e para a participação vital que a mãe tem ao criar um clima emocional favorável ao desenvolvimento da criança, sobre todos os aspectos. Segundo Spitz, são os sentimentos maternos que criam esse clima emocional que confere ao bebê uma variedade de experiências vitais muito importantes por estarem interligadas, enriquecidas e caracterizadas pelo afeto materno (BÖING e CREPALDI, 2004). Por outro lado, o trabalho de Spitz mostrou que bebês institucionalizados tendem a sofrer uma série de regressões ou falhas de desenvolvimento por sentirem a ausência da mãe ou de um substituto afetivo para ela, mesmo que tenha boas condições de materiais de higiene e cuidados. Nesse caso, a explicação para o atraso no desenvolvimento não pode ser dada simplesmente pela separação da figura materna, mas pelo ambiente físico e humano que é carente de estimulação e resulta num atraso no desenvolvimento de diversas funções como a fala, a coordenação motora e o controle dos esfíncteres (SILVA, 1997). Isto comprova que os diversos âmbitos do desenvolvimento, incluindo ao afetivo, se inter-relacionam. A abordagem etológica do estudo do recém-nascido propõe que a criança vem ao mundo com os equipamentos sensorial, motor e de comunicação perfeitamente adaptados para sua sobrevivência nas condições da espécie. Sua sobrevivência depende da proteção, atenção e cuidados prestados pelo adulto e, nesse sentido, a relação de apego desempenha a função de garantir o recebimento desses cuidados. Baseado nesta concepção, na teoria da evolução e na psicologia cognitiva, Bowlby (1988 e 1989) também demonstrou como o contato materno é necessário para a criança pequena. Em sua teoria do apego este autor postula a existência de uma organização psicológica interna situada no sistema nervoso central, responsável pela formação e manutenção de laços emocionais íntimos entre indivíduos. A propensão para estabelecer tais laços é considerada um componente básico da natureza humana, encontrando-se presente no recém-nascido em forma germinal e continuando na idade adulta e na velhice, quando os primeiros laços persistem e são complementados por outros. Assim, a vivência de uma relação calorosa, íntima e contínua com a mãe ou mãe substituta permanente, ou seja, uma pessoa que desempenha regular e constantemente esse papel mostra-se necessária à saúde mental do bebê. É essa relação complexa, rica e recompensadora com tal figura nos primeiros anos de vida, enriquecida de inúmeras maneiras pelas relações com o pai, familiares e professores – 22 entre outros agentes importantes de socialização – que a comunidade científica julga estar na base do desenvolvimento da personalidade e da saúde mental. Portanto, mais uma vez se tem como clara a necessidade de considerar de forma integrada o desenvolvimento da afetividade com os demais âmbitos da natureza humana – em especial com o cognitivo. Na Psicologia contemporânea, esta tendência de integração é particularmente observada em três teorias do desenvolvimento: na de Piaget, na de Vygotsky e na de Wallon. Na teoria de Piaget, a afetividade é caracterizada como instrumento propulsor das ações, estando a razão a seu serviço. Sobre este ponto, Taille, Dantas e Oliveira (1992, p.66) explicam que, para Piaget, a afetividade seria a energia, o que move a ação, enquanto a Razão seria o que possibilitaria ao sujeito identificar desejos, sentimentos variados, e obter êxito nas ações. Neste caso, não há conflito entre as duas partes. Porém, pensar a Razão contra a afetividade é problemático porque então dever-se-ia, de alguma forma, dotar a Razão de algum poder semelhante ao da afetividade, ou seja, reconhecer nela a característica de móvel, de energia. Vygotsky (1993) propõe uma visão de homem como um sujeito social e interativo, sendo que a criança, inserida num grupo, constrói seu conhecimento com a ajuda do adulto e de seus pares. Dessa forma, considera que a aprendizagem ocorre a partir de um intenso processo de interação social, através do qual o indivíduo vai internalizando os instrumentos culturais, ou seja, as experiências vivenciadas com outras pessoas é que vão possibilitar a re-significação individual do que foi internalizado. Remetendo-se a Vygotsky, Sisto, Oliveira e Fini (2000), afirmam que o pensamento tem sua origem na esfera da motivação, a qual inclui inclinações, necessidades, interesses, impulsos, afeto e emoção. Nesta esfera estaria a razão última do pensamento e, assim, uma compreensão completa do pensamento humano só é possível quando se compreende sua base afetivo-volitiva. Na teoria de Wallon a dimensão afetiva ocupa lugar central, como não acontece em nenhuma outra. Nela a afetividade constitui um domínio funcional tão importante quanto o da inteligência, desempenhando um papel fundamental na constituição e funcionamento dessa última e determinando os interesses e necessidades individuais. Afetividade e inteligência constituem, portanto, na sua concepção, um par inseparável na evolução psíquica, pois embora tenham funções bem definidas e diferenciadas entre si, são interdependentes em seu desenvolvimento, permitindo à criança atingir níveis de evolução cada vez maiores (TAILLE, DANTAS e OLIVEIRA, 1992; GALVÃO, 2003). Wallon (1989) acredita que a afetividade não é apenas uma das dimensões da pessoa, mas também uma fase do desenvolvimento, a mais arcaica. Segundo ele, o ser humano foi, logo que saiu da vida puramente orgânica, um ser afetivo. Da afetividade diferenciou-se, lentamente, a vida racional e, portanto, no início da vida, afetividade e inteligência estão sincreticamente misturadas, com predomínio da primeira. Desta forma, em sua teoria, o desenvolvimento da pessoa é visto como uma construção progressiva em que fases se sucedem com predominância alternadamente afetiva e cognitiva. No estágio impulsivo-emocional, que abrange o primeiro ano de vida, o atributo particular é dado pela emoção, instrumento privilegiado de interação da criança com o meio. A predominância da afetividade orienta as primeiras reações do bebê às pessoas, as quais intermediam sua relação com o mundo físico. No estágio sensório-motor e projetivo, que vai até o terceiro ano, o 23 interesse da criança se volta para a exploração sensório-motora do mundo físico. O pensamento precisa do auxílio dos gestos para se exteriorizar, o ato mental “projetase” em atos motores. Ao contrário do estágio anterior, neste predominam as relações cognitivas com o meio. No estágio do personalismo, dos três aos seis anos de idade, a tarefa central é o processo de formação da personalidade. A construção da consciência de si, que se dá por meio das interações sociais, reorienta o interesse da criança para as pessoas, definindo o retorno da predominância das relações afetivas. Por volta dos seis anos, inicia-se o estágio categorial. Os progressos intelectuais dirigem o interesse da criança para as coisas, para o conhecimento e conquista do mundo exterior, imprimindo preponderância do aspecto cognitivo às suas relações com o meio. Na adolescência, surge a necessidade de uma nova definição dos contornos da personalidade, desestruturados devido às modificações resultantes da ação hormonal, trazendo à tona questões pessoais, morais e existenciais, numa retomada da predominância da afetividade. Na verdade, a afetividade na teoria walloniana é vista como instrumento de sobrevivência e neste sentido, de acordo com Taille, Dantas e Oliveira (1992), a afetividade – que corresponde à primeira manifestação do psiquismo – impulsiona o desenvolvimento cognitivo ao instaurar vínculos imediatos com o meio social, abstraindo deste seu universo simbólico, culturalmente elaborado e historicamente acumulado pela humanidade. Por conseguinte, os instrumentos mediante os quais se desenvolverá o aprimoramento intelectual são irremediavelmente garantidos por estes vínculos estabelecidos pela consciência afetiva. Conhecer aspectos teóricos do desenvolvimento afetivo e cognitivo como os que foram aqui enfocados é fundamental para o educador preocupado com sua ação pedagógica. Entretanto, muitas vezes faltam-lhes outros elementos para subsidiar sua praxis, sobretudo para poder desenvolver a afetividade de seus alunos. Por isso, a seguir são discutidos alguns aspectos que poderão ajudá-lo nesse sentido. O DESENVOLVIMENTO DA AFETIVIDADE NA ESCOLA Consoante concepções contemporâneas do desenvolvimento humano (entre as quais as enfocadas no tópico anterior) e também nas idéias de Goleman (1995) e Gardner (1995), Ferreira (2001) explica que quando a criança atinge a idade escolar as funções neurossensório-motoras e as demais funções cerebrais (sensação, percepção e emoção) estão ainda confusas e, por isso, a discriminação entre seu eu e sua experiência não se realiza apenas na dimensão cognitiva. Para isso, segundo a autora, é necessária a ação mediadora da educação, que deve tomar como sua função promover a construção da afetividade e a organização dessas funções. Com este objetivo, Ferreira sugere que a educação deve, inicialmente, se concentrar na avaliação de quatro pontos: (1) como a criança procura resolver suas dificuldades, (2) seu nível de auto-estima, (3) características de seu humor e (4) posturas da criança diante do adulto resultantes de sua relação com a família, tais como nível de autonomia, relação com figuras de autoridade e relação com estruturas de poder. Além de indicar estratégias para avaliar estes pontos, a mesma autora, na obra citada, sugere atividades para desenvolver a afetividade no processo educacional, considerando três âmbitos que devem ser alvos de trabalho pedagógico: - no âmbito emocional – identificar os sentimentos, expressar os sentimentos, avaliar sua identidade, adiar a satisfação, controlar os impulsos, reduzir a tensão. - no âmbito cognitivo – saber a diferença entre sentimento e ação, ler e interpretar indícios sociais, 24 compreender a perspectiva dos outros, usar etapas para resolver problemas, criar expectativas realistas sobre si, compreender normas de comportamento. - no âmbito comportamental – comportamentos não verbais: comunicar-se com os olhos, com gestos, com expressão facial; comportamentos verbais: fazer pedidos claros, resistir a influências negativas, ouvir os outros, responder eficientemente a críticas (FERREIRA, 2001, p. 70). Taille, Dantas e Oliveira (1992) também destacam a importância do desenvolvimento da afetividade no processo educativo ao afirmarem que ele deve incluir a oportunidade para a manipulação da realidade e a estimulação da função simbólica, depois da construção de si mesmo – o que, segundo eles, exige espaço para todo tipo de manifestação expressiva, plástica, verbal, dramática, escrita, direta ou indireta mediante personagens susceptíveis de provocar identificação. Entre os personagens mencionados por estes autores estão os professores e, portanto, não se pode esquecer que a afetividade na própria relação professor/aluno é outro aspecto fundamental a ser considerado. Mesmo porque, é bom lembrar que ao conceptualizar a aprendizagem por observação (modelação), Bandura (apud COLL, PALACIOS e MARCHESI, 1996) lembra que, em todas as culturas, crianças adquirem e modificam padrões complexos de comportamentos, conhecimentos e atitudes por meio da observação dos adultos, inclusive de seus professores. Sobre a relação professor-aluno, Rey (apud SISTO, OLIVEIRA e FINI, 2000) destaca que esta não pode ser reduzida ao processo cognitivo de construção de conhecimento, mas envolve dimensões afetivas e de motivação de ambos (professor e aluno). Por sua vez, Antunes (1996) reforça que os professores precisam estar comprometidos com mudanças em suas idéias e posturas tradicionais, as quais trazem ranços de práticas escolares que apenas depositam informações nos alunos, desconsiderando a afetividade no processo ensino-aprendizagem. Entretanto, para Witter (apud SISTO, OLIVEIRA, FINI, 2000, p.160), a falta de motivação do professor geralmente se reflete em sua resistência em aceitar inovações tecnológicas e em assumir novos papéis. Para essa autora, a formação, ou a falta de formação adequada, os baixos salários, a desvalorização social do professor, as condições materiais em que se vê compelido a trabalhar, a falta de um sistema adequado de reforços pelo empenho em concretizar um bom trabalho, a diversidade dos alunos, a falta de uma boa administração do tempo, planejamentos deficientes, a sobrecarga de trabalho (em número de alunos, de turmas e até de escolas em que atua), a falta de envolvimento dos alunos entre outras variáveis a que estão sujeitos, conduzem à apresentação de respostas de manutenção da situação atual, de falta de iniciativa, de desinteresse pela mudança e não-engajamento efetivo em qualquer inovação. Com tudo isto posto e apesar das dificuldades mencionadas, espera-se que os educadores se sensibilizem para a necessidade de desenvolver a afetividade de seus alunos, ajudando-os, assim, a se tornarem seres humanos melhor formados em todos os sentidos. CONCLUSÃO O currículo das escolas atuais (pelo menos das ocidentais) prioriza o desenvolvimento cognitivo. A emoção humana nunca foi vista como um conhecimento a ser explorado e desenvolvido nas crianças e nos jovens. Por isso, reclama-se uma educação mais humanista. Para tanto, como diz Moreno (1999), é preciso que o professor se desprenda de velhas concepções sobre as quais os conteúdos são trabalhados na escola e vá em direção a uma concepção que possa construir uma sociedade mais justa, democrática e solidária. Sobre a mesma questão, Saltini (1999) acrescenta que as escolas deveriam entender mais de seres humanos e de amor do que de conteúdos 25 e técnicas educativas. Por isso, acredita ele, a educação deve ser pensada não através de suas diversas disciplinas mas, principalmente, como meio de promover a própria vida. Estas idéias, além das demais aqui apresentadas, reforçam a necessidade dos professores incrementarem a dimensão afetiva de sua ação pedagógica e, nesse sentido, o presente artigo pretendeu oferecer algumas contribuições para sua formação, sob o ponto de vista da Psicologia. Espera-se que possam ser úteis para subsidiar sua reflexão e sua prática docente. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANTUNES, C. Alfabetização emocional. São Paulo: Terra, 1996. BÖING, E.; CREPALDI, M. A . Os efeitos do abandono para o desenvolvimento psicológico de bebês e a maternagem como fator de proteção. Revista Estudos de Psicologia, v. 21, n. 3. Campinas: PUC-Campinas, 2004. Educ@ação: Artigos EDUC@ação - Rev. Ped. - UNIPINHAL – Esp. Sto. do Pinhal – SP, v. 01, n. 03, jan./dez. 2005 11 BOSSA, N. A. Do nascimento ao início da vida escolar. 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México, DF: McGraw-Hill Interamericana, 2002. 26 SILVA, M. C. Aprendizagem e problemas. São Paulo: Ícone, 1997. SISTO, F.F., OLIVEIRA, G.C.; FINI, L.D.T. (Orgs.). Leituras de psicologia para formação de professores. Petrópolis: Vozes, 2000. TAILLE, Y. de L .; DANTAS, H.; OLIVEIRA, M. K. Piaget, Vygotsky e Wallon. São Paulo: Summus, 1992. VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1993. WALLON, H. As origens do pensamento na criança. São Paulo: Manole, 1989. PARTE IV O DESENVOLVIMENTO AFETIVO SEGUNDO PIAGET E A EDUCAÇÃO PARA A AUTONOMIA Piaget, Experiências Básicas para utilização pelo professor – Ed. Vozes. Petrópolis, RJ – 1983. A partir da década de 40, os estudos piagetianos voltaram-se prioritariamente para a análise do desenvolvimento das estruturas cognitivas. Embora tenha crescido em profundidade de análise, a elaboração do grande teórico parece ter perdido em amplitude; por volta de 1932, ao analisar como se desenvolve o julgamento moral, Piaget utilizou um modelo psicogenético que levava em conta a estrutura cognitiva sem perder de vista a competência lingüística (capacidade de dialogar, utilizando idéias abstratas para compor argumentos) e a competência moral (consciência da arbitrariedade e do caráter consensual do mundo social). O acompanhamento do processo desde o nível de anomia (pré-moral) até o de autonomia permitia uma abordagem da competência lógica, sem perder de vista o social e o afetivo. Neste momento, parece-nos oportuno retornar às considerações piagetianas sobre o desenvolvimento afetivo, estreitamente relacionado com a elaboração do julgamento moral. É o próprio Piaget (1968) quem ressalta a importância deste aspecto do desenvolvimento: “O aspecto cognitivo das condutas consiste na sua estruturação e o aspecto afetivo na sua energética. Esses dois aspectos são, ao mesmo tempo, irredutíveis, indissociáveis e complementares; não é, portanto, muito para admirar que se encontre um notáve1 paralelisnio entre as suas respectivas evoluções”. O esquematismo cognitivo evolui de um estado inicial centrado na própria ação para a construção de um universo objetivo e descentrado; a afetividade, por sua vez, evolui de um estado de não-diferenciação entre o eu e o mundo para um processo diferenciado, no qual são comuns as trocas entre o eu e as pessoas (sentimentos interindividuais) e o eu e as coisas (interesses variados). 1. A EVOLUÇÃO DA AFETIVIDADE 27 O nível sensório-motor Nos subestádios I e II deste nível, a criança apresenta os afetos que J. M. Baldwin denominou adualismo inicial. Não existe, então, nenhuma consciência do eu, nenhuma fronteira entre o mundo interior ou vivido e o conjunto das realidades exteriores. Freud falou de narcisismo, mas sem perceber que se tratava de narcisismo sem Narciso. Anna Freud falou, mais tarde, de narcisismo primário”, no sentido de uma não diferenciação entre o eu e o alheio. Tratase, para Piaget, não de uma centração consciente num eu, mas de uma centração inconsciente por não diferenciação. O sorriso infantil, reforçado pelo sorriso do parceiro, torna-se instrumento de troca ou contagio e, logo, de diferenciação das pessoas e coisas. Nos subestádios III e IV do estádio sensório-motor, apresentam-se as reações intermediárias. Nesta oportunidade há, segundo Escalona, uma passagem do contágio à comunicação. A criança passa a reagir às pessoas de modo cada vez mais específico, porque elas agem segundo esquemas que podem ser relacionados com os da sua própria ação. Chega a estabelecer-se uma causalidade relativa às pessoas, na medida em que proporcionam prazer, conforto, sossego, segurança, etc. Surgem aqui sentimentos de inquietude em presença de estranhos, predileção por certas pessoas, reações de estranheza às situações, etc. Os subestádios V e VI são marcados pelas chamadas relações \ objetais; ocorre, então, o que Freud chamou “escolha do objeto” afetivo, o que de considerava ser transferência de libido do eu narcísico para a pessoa dos pais. Este período é marcado pela constituição de um eu diferenciado do alheio e de um alheio que se torna objeto de afetividade. A descentração afetiva é, pois, correlativa da ‘descentração cognitiva, não porque uma domine a outra, mas porque ambas se produzem em função do mesmo processo. Ao mesmo tempo que a criança apresenta condições (intelectuais) de centrar a atenção em um objeto fora dela mesma, distinguindo o eu-mundo, da adquire condições (afetivas) de amar este objeto exterior. Há uma correlação entre a constituição das relações objetais e o esquema do objeto permanente. Gradualmente, a criança deixa de relacionar tudo aos seus estados e à sua ação e substitui um mundo de quadros flutuantes, sem consistência espácio-temporal nem causalidade exterior, por um universo estruturado de objetos permanentes. Assim, sua afetividade se ligará aos seus objetos permanentes localizáveis e fontes de causalidade exterior em que se transformam as pessoas. O nível objetivo-simbólico O objeto afetivo, no nível sensório-motor, não passa de um objeto de contato direto, que não se pode evocar durante as separações. Com o advento da linguagem, da imagem mental, do jogo simbólico, o objeto afetivo está sempre presente e sempre atuante, até em sua ausência física. Assim é que surgem simpatias e antipatias duradouras e ainda a valorização ou consciência duradoura de si. A partir dessa valorização de si, a criança começa a opor-se à pessoa alheia, e surge o que Charlotte Bühler chamou crise de oposição. As relações objetais do nível sensório-motor são marcadas pela necessidade de segurança; a crise de oposição, contudo, é assinalada pela necessidade de afirmação e independência, assim como por todos os tipos de rivalidade, quer do tipo edipiano, quer em geral. Não se trata, ainda, de uma autonomia no sentido em que da deverá ocorrer ao nível da cooperação, por volta de 7-8 anos, em relação com o desenvolvimento das operações concretas. A autonomia que virá a ocorrer supõe uma submissão do eu a regras (nomia) que o indivIduo se dá a si mesmo (auto) ou que elabora em cooperação com seus semelhantes. Neste momento, trata-se apenas de independência (anomia e não autonomia) e precisamente de oposição, isto é, dessa situação complexa em que o eu quer, simultaneamente, 28 ser livre e estimado por outrem. É hoje plenamente aceito o caráter indissociável e paralelo dos desenvolvimentos cognitivo e afetivo ou social. Sendo assim, é provável que as trocas sociais peculiares ao nível préoperatório possam caracterizar-se como pré-cooperativas, isto é, ao mesmo tempo sociais, do ponto de Vista do sujeito e centradas na própria criança e em sua atividade própria, do ponto de vista do observador A isto se chama “egocentrjsmo infantil”. Já no nível das operações concretas se constituem novas relações interindividuais de natureza cooperativa e as trocas não se limitam ao cognitivo, mas também ao afetivo. Os fatos são clarificados em três domínios: jogos de regras, ações em comum e trocas verbais. Os logos de regras constituem instituições sociais na medida em que se transmitem de uma geração a outra e, além disso, as normas que os orientam independem da vontade dos Jogadores Alguns desses jogos transmitem-se com a participação do adulto, ‘nas outros permanecem especificamente infantis, corno o jogo das bolinhas de gude entre meninos. Isto os Coloca na dupla qualidade de lúdicos e exclusivamente infantis, para dar lugar ao desenvolvimento da vida social entre crianças. Depois dos 7 anos as partidas de bolinha são bem estruturadas com observação comum das regras conhecidas dos parceiros, com vigilância mútua sobre essa observação e, sobretud o, com espírito coletivo de competição honesta, de modo que uns ganham e outros perdem de acordo com as regras admitidas Entretanto, o logo de Crianças em fase pré-operacional apresenta Características inteiramente diversas. Em primeiro lugar, cada um aprendeu com os mais velhos regras mais ou menos diferentes, porque o seu conjunto é complexo e a criança começa por guardar apenas parte delas. Além disso, o que é mais significativo, não há controle, isto é, cada qual joga como bem entende, sem se preocupar demasiado com os outros. Enfim, e sobretudo ninguém perde e todo o mundo ganha ao mesmo tempo, pois o objetivo é distrair-se Ao mesmo tempo, a criança ioga para si, e é estimulada pelo grupo a participar de uma experiência coletiva Não há, pois, cooperações autênticas, mesmo no plano lúdico a conduta social, neste período não se impôs, ainda, à centração na própria ação. No tocante ao trabalho em comum, R. Froyland Nielsen(R.F. NIELSEN. Le divelopment de la sociabilite ebez I enfant. Delachaux & Nicastlé, 1951.) procedeu ora observando diretamente atividades espontâneas ora submetendo a criança a atividades que necessitam de um mínimo de organização: trabalhar aos pares, em mesas muito pequenas, dispor de um único para desenhar ou de lápis amarrados um ao outro, utilizar um material comum, etc. Obteve, assim, duas espécies de resultados De um lado, observou uma evolução, mais ou menos regular, do trabalho solitário à colaboração O trabalho solitário eventual das crianças de 7 anos ou mais não tem, contudo, a mesma significação não intencional e, por assim dizer, não consciente do que é feito por crianças menores. Estas, trabalham cada qual para si, se sentem em comunhão com os vizinhos, mas não se ocupam do que eles fazem em detalhe. Por outro lado, constatou uma dificuldade inicial, mais ou menos sistemática, de achar e até de procurar modos de colaboração, como se esta não constituísse um fim específico que se busca por si mesmo, com métodos apropriados. Quanto às funções da linguagem na troca entre crianças, Piaget observou que nos meios escolares em que as crianças trabalham, brincam e falam livremente, as expressões dos sujeitos de 4 a 6 anos não se destinam todas a fornecer informações ou a formular perguntas (linguagem socializada), mas consistem, geralmente, em monólogos ou “monólogos coletivos” em cujo transcurso cada um fala para si, sem escutar os outros (= linguagem egocêntrica). A observação mostra a dificuldade sistemática de crianças na fase pré-operatória de se colocarem no ponto de vista do parceiro, de fazê-lo compreender a informação desejada e de modificar-lhe a compreensão inicial. Não é senão depois de longo exercício que a criança chega (no nível operatório) a falar não mais para si, porém na perspectiva de outrem. Em sua critica da linguagem egocêntrica, R. Zazzo concluiu que, em tais situações, a criança não fala “para ela” mas segundo ela”, isto é, em função de suas limitações bem como de suas possibilidades. 2. OS SENTIMENTOS E JULGAMENTOS MORAIS 29 A formação da consciência e dos sentimentos morais é um dos resultados da relação afetiva entre a criança e os pais. Freud popularizou a noção de superego e Baldwin mostrou que, a partir de certa fronteira, o eu dos pais não pode ser imitado imediatamente e torna-se um eu ideal, fonte de’modelos coativos e portanto da consciência moral. Ao analisar a gênese do dever, P. Bovet considerou que o sentimento de obrigação está subordinado a duas condições: a primeira é a intervenção de instruções dadas do exterior (não mentir, não ferir o colega) e a segunda é a aceitação dessas instruções, o que supõe a existência de um sentimento sui generis da parte de quem recebe as instruções para a pessoa que as dá Ele define este sentimento como respeito, composto de afeição e temor. A afeição, sozinha, não bastaria para impor a obrigação e o temor, sozinho, provocaria uma submissão material ou interessada. O respeito que gera o sentimento de obrigação é, nesta perspectiva, unilateral, porque liga um inferior (a criança) a um superior (o pai) e por isto é distinto do respeito mútuo”, fundado na reciprocidade da estima. A criança não respeita o pai como representante da lei ou do grupo social, mas como indivíduo superior, fonte das coações e das leis. Neste sentido, a análise da psicologia da criança se opõe às de Kant e Durkheim, que vêm o respeito como um sentimento que nau se liga a uma pessoa como tal, mas a uma pessoa como encarnação ou representação da lei moral. Este respeito unilateral, embora seja a fonte do sentimento de dever, gera na criança pequena uma moral de obediência essencialmente caracterizada pela heteronomia, que depois se atenua, dando lugar à autonomia própria do respeito mútuo. As reações afetivas próprias do julgamento moral antes de 7-8 anos são caracterizadas pela heteronomia (hétero = de fora do sujeito e nomia = regra). Inicialmente, o poder das instruções está ligado à presença material de quem as deu; em sua ausência, a lei perde a ação e sua violação provoca apenas um mal-estar momentâneo. Aos poucos, contudo, este poder se torna duradouro e produz-se uma espécie de assimilação sistemática que os psicanalistas denominaram identificação com a imagem dos pais ou com a imagem de autoridade. A submissão não poderia ser total e os componentes do respeito se dissociam em afeição e hostilidade, simpatia e agressividade, ciúmes, etc., o que pode envolver um certo sentimento de culpa. A heteronomia conduz a uma estrutura pré-operatória que tem características próprias dos mecanismos cognitivos relacionais e dos processos de socialização: é o realismo moral, segundo o qual “as obrigações e valores são determinados pela lei ou pelas instruções em si mesmas, independentemente do contexto das intenções e relações” (PIAGET, 1968). Usando como exemplo a mentira, verifica-se que, na fase pré-operatória, à criança parece grave a mentira na medida cm que se afasta da verdade objetiva e não na medida em que a uma intenção de enganar. Perguntando-se a da, por exemplo, qual das duas mentiras abaixo é mais grave: a) o menino contar em casa que teve uma boa nota na escola e não teve; b) após ter tido medo -de um cachorro, o menino diz que o cachorro era do tamanho de uma vaca; a segunda mentira foi considerada mais grave e a criança argumentou que com freqüência se obtém boas notas e a mãe pode acreditar nisto, ao passo que não há cachorro do tamanho de vaca. Graças à cooperação, ao desenvolvimento operatório, a criança vai chegando a relações morais novas, fundadas no respeito mútuo e que conduzem a uma certa autonomia. Tivemos a oportunidade de relatar, neste trabalho, que, nos jogos de regras, as crianças de menos de 7 anos recebem as regras prontas dos mais velhos (mecanismo derivado dá respeito unilateral) e as consideram “sagradas”, intangíveis, de origem transcendente. As crianças mais velhas já vêm as regras como produto do ajuste entre contemporâneos e admitem que podem mudá-las desde que haja acordo unânime, ajuste democrático. O exemplo deixa claro o caráter consensual, carregado de reciprocidade, da elaboração de regras num momento mais adiantado 30 de desenvolvimento. Um produto essencial do respeito mútuo e da reciprocidade é o sentimento de justiça; por volta de 7.8 anos, a justiça sobreleva-se à própria obediência e torna-se norma central, equivalente, no terreno afetivo, às normas de coerência no terreno das operações cognitivas, a ponto de, no nível da cooperação e do respeito mútuo, haver um paralelismo entre as operações e a estruturação dos valores morais. Usando-se as escolhas sociométricas, no sentido de Moreno, verifica-se uma evolução dos motivos invocados para escolher os líderes: os pequenos invocam razões heterônomas (apreciação feita pelos professores, boas notas, etc.) e os grandes invocam critérios como ser justo, saber guardar segredo, não delatar, etc. Assim, a afetividade, a princípio centrada nos complexos familiais, amplia sua escala na medida em que se multiplicam as relações sociais. Os sentimentos morais, ligados no início, a uma autoridade sagrada, evoluem no sentido de um respeito mútuo e de uma reciprocidade. As trocas sociais que englobam as reações precedentes porque são todas, ao mesmo tempo, individuais e interindividuais, dão lugar a uma estruturação gradual ou socialização, que passa de um estado de não coordenação ou de indiferenciação relativa entre o ponto de vista próprio e o dos outros, a um estado de coordenação nas ações e informações. 3. UMA EDUCAÇÃO VOLTADA PARA A AUTONOMIA Voltamos a falar, nos últimos tempos, em desenvolver autonomia nas pessoas que educamos, em respeitar a liberdade do outro e deixar-lhes a chance de escolher. Isto não ocorre casualmente; é fruto de um processo sócio-político, no qual o papel da educação tem de ser alterado. Não é sem razão, também, que estamos colocando de lado o modelo comportantentista de ensino, abandonando urna disciplina centrada no controle exercido pelo professor e retomando os estudos piagetianos. No plano intelectual, é fácil justificar a opção por Piaget. Estamos acreditando na construção, pelo sujeito, de sua própria aprendizagem; estamos dando ênfase à resposta elaborada pelo aluno (se possível, urna resposta criativa) e tentando abandonar os modelos preestabelecidos de respostas definidas na formulação operacional de objetivos. No plano social, contudo, a opção não se apresenta de forma tão evidente. inicialmente, convém lembrar que, ao propor seu método de trabalho, Piaget fixou-se nos «erros” cometidos pelos sujeitos e não em seus “acertos”. isto significa centrar a atenção no aluno, na gama de seus interesses, ria estrutura mental que ele apresenta em dado momento e não mais no professor, antes considerado o único capaz de definir o que devia ser feito. Esta nova maneira de encarar a relação observador-observado, que nos remete a uma outra visão pedagógica, é altamente inovadora, pois elimina a verticalidade de uma relação, substituindo-a por uma igualdade, quando quem observa ou quem ensina não se posiciona acima de quem é observado ou de quem aprende. Durante muitos anos, o enfoque intelectualista da teoria piagetiana supervalorizou a “operação” como produto de uma etapa do desenvolvimento humano. Sem pretender negar a importância da maturação como determinante do processo, deve-se levar em conta o papel da cooperação. A teoria piagetiana não afirmou que o indivíduo isolado chega, em dado momento, a operar, construindo seu próprio conhecimento; Piaget realçou, isto sim, a interação com o ambiente e, quanto mais rica ela for do ponto de vista das tropas verbais e outras formas de comunicação, mais possibilidades tem o indivíduo de desenvolver o raciocínio lógico. O ponto mais importante, contudo, das inferências educacionais que estamos propondo se prende ao desenvolvimento moral da criança. A descrição deste desenvolvimento revela a passagem de uma fase de anomia, uma etapa pré-moral, para uma fase de heteronomia, a qual se faz seguir de semi-autonomia e depois de autonomia. Na etapa heterônoma do desenvolvimento moral da criança, as trocas sociais com o adulto 31 têm grande importância. É através da conversa (e, portanto, exercitando a função de representação) que a criança entra em contato com o que é permitido e o que é proibido. Parecenos adequado lembrar que da mesma forma que Freud realçou a fase de formação do ego como etapa para estruturação do superego, pode-se interpretar a referência piagetiana à etapa de heteronomia como subestrutura para o desenvolvimento da autonomia. A importância da relação com o adulto mais do que com a criança de sua idade é reforçada quando recordamos que, na perspectiva piagetiana, a linguagem nesta fase (pré-operatória) é essencialmente egocêntrica. Logo, o adulto, que desde a etapa das relações objetais ou mesmo antes dela tem a oportunidade de estabelecer com a criança uma relação afetiva bem estruturada, tem seu espaço assegurado na formação do sentimento de dever, como ficou claro anteriormente. Repetindo Piaget, lembramos que nem a afeição sozinha, nem o temor sozinho se prestam para impor o sentimento de obrigação. Esta referencia nos alerta para o comportamento de adultos que, em nome de uma pseudoliberdade, deixam de colocar limites à ação da criança, afirmando que, por si só, ela descobrirá o que é certo e desenvoIverá senso de moral. É necessário que pais e professores compreendam que colocar certas restrições à ação não faz com que a criança deixe de nos amar, se antes estabelecemos com ela uma relação afetiva bem segura. Por outro lado, é nas trocas com seus iguais que as crianças desenvolvem a autonomia. Através da linguagem no brinquedo e outras atividades, desde a fase pré-escolar elas exercitam a defesa dos seus direitos e vão aos poucos aprendendo a argumentar para defender seus pontos de vista. O trabalho em comum constitui excelente oportunidade para estás trocas interindividuais e o jogo com à medida que a criança vai sendo capaz de fazê-lo, se presta à opção do eu e do outro, fundamental para o desenvolvimento de autonomia. ----ando o desenvolvimento cognitivo da criança já lhe permite a relação entre a falta cometida e a sanção que ela deve me--- tem-se uma nova oportunidade para desenvolver a autonomia. --procedermos a uma análise da relação entre as faltas cometidas e o castigo imposto à criança, veremos a falta de coerência que preside nossas decisões. O aluno que conversa durante a aula obrigado a copiar n vezes urna frase do tipo «‘Devo ficar calado em sala de aula”. O “ficar calado” acaba por tornar-se aversivo e escrever não tem nenhuma relação com o ato por ele praticado. Se o professor tivesse lhe dado a oportunidade de ouvir os colegas como percebiam sua insubordinação, se tivesse permitido que ele optasse pelo que desejava fazer naquele momento (sair da sala por exemplo) responsabilizando-se pela conseqüência de sua ação, estudando, depois, a matéria) asseguraria, por certo, uma oportunidade para o exercício da autonomia. Nem sempre é fácil parar e discutir com a criança, numa relação dualitária, como administrar sua vida. É também difícil respeitar a criança o bastante para reservar a maior parte do tempo que lhe dedicamos às trocas com seus iguais, marcadas pela reciprocidade de relação. Entretanto, quando se aproxima a fase operacional, só essa discrição do adulto oferece o suporte para o desenvolvimento da ----- da criança moral e social e da estrutura cognitiva que fundamentam a autonomia. BIBLIOGRAFIA Este texto é basicamente, uma síntese das idéias de Jean Piaget sobre a afetividade e o julgamento moral na criança, tal como estão contidas em PIAGET, J. & INHELDER, B. Psicologia da criança. de Paulo, Difusão Européia do Livro, 1968. Adicionalmente, foram resultados: FREITTAG, Bárbara. Piaget, encontros e desencontros. Rio, Tempo Brasileiro, 1985. 32 PIAGET, J. Seis estudos de Psicologia. Trad. M. Alice Magalhães d!Amorim & Paulo Sérgio L. Silva. Rio, Forense, 1972. _________ O Julgamento moral na criança. Trad. Elzon Lenardon, São Paulo Mestre Jou, 1977. Olhando com o coração sentindo com o corpo inteiro no cotidiano escolar Azoilda Loretto da Trindade (Doutoranda em Educação pela PUC/RJ. Professora do ensino fundamental e Supervisora da Rede Municipal de Ensino/RJ.) Aos povos de ontem e hoje que alguns tentam confinar nas senzalas. Um convite ao sentir Antes de começarmos a nossa parceria, este diálogo, convido você educador-leitor a fazer umm pausa e observar as pessoas à sua volta: seus rostos, seus olhos, suas peles, seus cabelos, suas peles, seus cabelos, suas expressões, seus jeitos... Agora imagine suas salas de aula, seus alunos e alunas e traga-os à sua memória lembrando-lhes os jeitos, os cheiros, os sorrisos, as implicâncias,_as angústias os medos as vestes e, adereços, as peles, as palavras, as belezas... Tente lembrar deles com paixão, com o envolvimento de quem sabe na pele, no corpo e na alma, o que é o cotidiano escolar e guarde aquecidamente esta imagem durante o percurso deste texto. Reflexões a) Histórias, preconceitos e diferenças Vou contar uma história, uma pequena história: Um dia, uma professora de primeira série de ensino fundamental resolveu tirar fotos das 33 crianças da sua classe. Poses, euforia, sorrisos, brilhos nos olhos, exibicionismos, timidez... uma série de comportamentos e sentimentos se apresentaram. Fotos tiradas, fotos reveladas, mais sorrisos, muita curiosidade em serem vistos e se reverem e certa alegria com o produto final: suas imagens fotografadas. Crianças felizes e professora também,, e mais uma descoberta: a professora eufórica com as conseqüências das fotografias resolve mostrá-las às colegas, à diretora e à supervisora. E uma delas, que como num efeito dominó foi respaldada pelas outras, disse: — Nossa como eles estão bonitos aqui! Tal exclamação causou um profundo impacto na professora. Percebeu que as crianças fotografadas, que cotidianamente estavam na escola em movimento, não eram vistas na sua beleza de crianças pelas colegas docentes. Elas nunca tinham parado para ver de fato aquelas crianças e só ali, diante da imagem fixa/parada, foi percebido o que no cotidiano era invisibilizado: a beleza das crianças. Naquele dia algo daquelas crianças tinha sido finalmente apresentado às professoras! Este acontecimento tornou-se emblemático de um ciclo que acredito ser respaldador de preconceitos: a gente olha mas não vê, a gente vê mas não percebe, a gente percebe, mas não sente, a gente sente, mas não ama e, se a gente não ama a criança, a vida que ela representa, as infinitas possibilidades de manifestação dessa vida que ela traz, a gente não investe nessa vida, e se a gente não investe nessa vida, a gente não educa e se a gente não educa no espaço/ tempo de educar, a gente mata, ou melhor, agente não educa para a vida; a gente educa para a morte das infinitas possibilidades. A gente educa (se é que se pode dizer assim) para uma morte em vida: a invisibilidade. A nossa formação docente muitas vezes é marcada por urna inculcação de preconceitos que, certamente, corroboram para a produção de maiorias invisíveis e silenciadas, e isto é tão forte que nem percebemos. Exitem situações mais críticas, mais impactantes e outras mais sutis. Veja-se: A maioria dos cartazes para o “Dia das Mães” que são afixados nos murais, ou estão nas matrizes para a reprodução, são confeccionados pelas professoras. Muitas das figuras de mulheres estão longe de referir-se às mães reais dos alunos e das alunas e às próprias professoras, obedecem a um modelo idealizado e internaliza do que idealizado e internalizado que acaba por invisibilizar um grupo em detrimento de outro, de uma idealização. Neste sentido, vou contar outra historinha: Uma professora fazia seu mural de Natal com muitos anjinhos, todos lourinhos. Quando alertada e indagada em relação aos anjos morenos, negros, ruivos... ela riu e disse que daquele jeito era mais fácil, só precisava recortar uma cartolina, a amarela. Muitos exemplos, muitas histórias podem ser citadas em relação a situações de preconceitos e/ou invisibilização. Vou relatar mais uma bem significativa: Numa festinha da escola, foi “proibido” pela diretora, com apoio da maioria das professoras, que se tocasse o CD de determinado grupo musical bem popular. Uma professora num tom irônico, diz: “Agora a ordem não é preparar para o trabalho? Então, não tem problema tocar esse CD, pois a maioria delas vai ser isso mesmo. Dois esclarecimentos se fazem necessários para o entendimento da história. Primeiro, “isso mesmo” significava prostituta: o segundo, as crianças tinham entre quatro e cinco anos de idade. E vocês leitores e educadores, quais são suas expectativas em relação às crianças sob sua responsabilidade profissional? Aprendemos nos livros, nos meios de comunicação, na grande mídia, nos filmes, revistas, outdoors, jornais... a idealizar algumas características humanas como as representantes legítimas e naturais do que seja ser humano. Normalmente homens, brancos, padrão euro-norte-americano de vestir e agir. É só observarmos as grandes reuniões internacionais, o ministério do presidente do Brasil, comitivas presidenciais etc. Apreendemos este preconceito relativo ao que seja um ser humano ideal e quando nos deparamos com nossos alunos reais ou abrimos mão dessa idealização ou passamos a exercer o 34 nosso racismo, machismo; passamos a estigmatizar e invisibilizar nossa realidade. “Apreendemos” o que é uma criança ideal, o que é uma criança bonita, educada, como é família ideal, a classe social ideal... Mas, quando nos deparamos com nossa realidade, sobretudo ao trabalharmos com crianças de classe popular (mas não só), nos colocamos diante de uma bifurcação: hierarquizamos aquela realidade em relação ao ideal, negando-a, ou lutamos para romper com aquele ideal apreendido; e, com paixão pela nossa realidade concreta nos predispomos a aprender e a trabalhar com ela. Desafio árduo, duro, mas que carrega em si um alto teor de gratificação diante da vida que, corno educadores, estamos ajudando a potencializar. b) Dimensão, vida, escola pública e educadores E explícito que neste texto se propõe urna aliança com a dimensão vida de nós educadores e com a escola pública. Com a escola pública, por ser nosso espaço preferencial de atuação profissional, na medida em que, além de ser um espaço onde as diferenças se encontram, as culturas se cruzam, os excluídos podem ter a vivência da igualdade de acesso e de vivência de aprendizagem escolar. Eu teria inúmeros exemplos de situações de acesso e aprendizagem de crianças das mais diversas situações como aquelas com HIV, com câncer, crianças filhas de prostitutas, de presidiários, de garis, com deficiência mental, auditiva, física, crianças filhas de professoras, advogadas, funcionários públicos, de camelôs, de traficantes... crianças ali tendo a oportunidade de ser criança num espaço como a escola, publica. Aliança com a dimensão vida, porque esta dimensão nos fortalece a continuar, a querer aprender, criar, descobrir o trabalho com as diferenças, com a diversidade, a olhar os nossos alunos, não com o olhar que os vê como incapazes, incompetentes, doentes, sem perspectivas, olhar esse que pode destruir, impedir qualquer possibilidade, mas com o olhar da fé, da confiança. Se olharmos o(a) aluno(a) como incapaz, menor, nossa ação vai se dirigir a ele de modo a subestimá-lo(a), de, modo a desinvesti-lo(a) das suas múltiplas possibilidades, e esse olhar/ação pode, junto com outros fatores ajudar para que ele/ela se acredite assim, incapaz. O olhar/ação do(a) professor(a) é fundamental para o crescimento do(a) aluno(a), e ele não pode ser falso, porque implica outras sensibilidades; o(a) outro(a) sente, percebe, é influenciado por nós. Afinal, o(a) outro(a) e nós sentimos com todo o nosso corpo, com todos os nossos sentidos, com a pele, com o toque, com o olhar, todos(as) temos muitas formas de captar o mundo a nossa volta, o nosso papel é muito importante. E só ativarmos a nossa memória e encontraremos na nossa vida professores e/ou professoras que nos influenciaram, nos tocaram no mais profundo do nosso coração, nos estimularam. Encontraremos também aqueles(as) mais insignificantes ou ainda os/as que simplesmente nos prejudicaram. O que importa deixar bem explícito é que qualquer aprendiz precisa ser estimulado incentivado, encorajado; afinal, aprender é aproximar-se de novo do desconhecido, e é muito importante nesse caminho ter alguém em quem confiar, alguém que nos diga: “vai/vá”; alguém que nos diga: “vem”; ou alguém que seja capaz de dizer: “vamos”. Mas, para isto, nós educadores(as), professores(as), temos que ter uma confiança inabalável na potência de vida dos nossos (as) alunos(as), olhá-los e sermos capazes de nos fascinar com a vida e as múltiplas possibilidades que ela nos apresenta. Histórias submersas Entra ano e sai ano, e assistimos ao triste quadro no período de matrícula escolar; centenas de pessoas, na maioria mulheres, e na maioria negras e mestiças e, certamente, de classes trabalhadoras de baixa renda, esperando e lutando para conseguir uma vaga para seus filhos na escola pública. Esse movimento anual nos faz pensar que a escola pública; além de ser um espaço plural, é um veículo (talvez o único), um espaço fundamental de educação para uma faixa/camada da população, um veículo que acena para uma possibilidade de inclusão social, de instrumentalização da apropriação de saberes que possam contribuir para o usufruir dos direitos conferidos àqueles considerados cidadãos(ãs) melhoria de condição de vida. 35 Isso nos faz refletir: se há uma demanda tão grande, a escola pública tem um papel social a desempenhar e a população reconhece e exige isso. Se, apesar do sucatearnento da escola pública, pessoas se aglomeram, dormem nas filas na esperança de uma escola, histórias submersas estão sendo escritas e contadas pelos usuários e profissionais da educação. Histórias que contrariam a impõem sublirninarmente propagada de que profissionais da educação o pública e seus/suas usuário(as) são incompetentes. Histórias que mostram uma possibilidade de aliança forte de contato produtivo é positivo entre usuários e profissionais. Histórias de força e insurreição, histórias de vidas que são desconhecidas e/ou desqualificadas. Histórias que tornam visíveis a proliferação de cursos de educação (extensão, pós-graduação lato sensu, mestrado, doutorado…) como conseqüência, creio, de uma demanda de profissionais de educação ávidos por aprender, por se qualificarem mais. Existe sim, acomodação, a rotina alienante e a reprodução de desigualdades na escola, mas existe, também, um fluxo fascinante promovido pela pluralidade de vidas, interesses, desejos presentes no cotidiano escolar. Existe, sim, o sucateamento da escola pública, em função do “cronificado” quadro, no nosso país, de produção e manutenção de desigualdades sociais, raciais, culturais, de gênero etc. Mas há. também histórias de lutas contra esse quadro. Tem e sempre teve muita gente querendo romper com o quadro de exclusão e legitimação da exclusão que alguns querem colar à escola. Histórias submersas porque não ganharam a mídia, os cenários oficiais e legitimados positivamente, e não foram fixadas na nossa memória coletiva, mas que precisam ser contadas, ouvidas, lidas, sentidas, tocadas, recriadas, pois elas nos fazem orgulhosos da nossa condição de profissionais de educação, não como aliados à exclusão social, à reprodução das desigualdades étnicas, culturais, de gênero, sociais... — aliás, limiar ao qual estamos cotidianamente sujeitos, mas não sujeitados —mas orgulhosos da nossa condição de educadores(as) guerreiros, de uma pedagogia libertadora, promotora da vida, do ser humano, da natureza. Vamos fazer emergir essas histórias, as nossas histórias tantas vezes mencionadas. Vamos.fazer emergir a nossa história com gestos, cantos, contos e encantos de liberdade. Visibilidade, audibilidade das diferenças de gênero, cultura, cor, etnia, orientação sexual, deficiências; emergir as histórias submersas de educadores(as), de alunos(as), da nossa população, que nos diz de sujeição, mas também de insurreição, lutas, criatividade, busca de alternativas. Tudo isso nos aponta para a construção e fortalecimento de uma certa prática docente, não alienada do nosso- contexto sócio-histórico. Urna prática docente que valoriza não só a razão, a linearidade da escrita, a letra, a tecnologia, mas outras fontes de saber, o coração, a pele, o olfato etc. Uma prática docente que valorize uma aprendizagem que nos promova por inteiro e que seja coletivamente insurgente. Coletiva porque não isolada, mas que mantenha com outros um diálogo compartilhando as angústias, os erros, os acertos, as construções, as teorizações e reflexões, os sonhos. Uma prática docente que seja voltada para a diversidade étnica e cultural da nossa população, sobretudo dessa população que, ao longo da história do Brasil, vem sendo alijada dos direitos civis, sociais e humanos, dessa população que dorme nas filas por uma vaga na escola pública. Uma prática docente política, ideológica e humanamente comprometida com nosso povo mestiço, belo, forte, que luta, que surpreende, que ri, que chora, que cria que cotidianamente saberes e estratégias, práticas que possibilite viver/sobreviver, num tempo em que a exclusão social é vista como um valor positivo e como inevitável. Uma prática docente que tenha como palavras-chave o diálogo, o estudo, a criação, o desejo e o compromisso com a transformação social, com a construção mesmo de uma amorosa cidadania. APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO INTELECTUAL NA IDADE ESCOLAR 36 L. S. Vygotsky As teorias mais importantes referentes à relação entre desenvolvimento e aprendizagem na criança podem agrupar-se esquematicamente em três categorias fundamentais, que examinaremos separadamente para definir claramente os seus conceitos básicos. O primeiro tipo de soluções propostas, parte do suposto da independência do processo de desenvolvimento e do processo de aprendizagem. Segundo estas teorias, a aprendizagem é um processo puramente exterior, paralelo em certa medida ao processo de desenvolvimento da criança, mas que não participa ativamente neste e não o modifica em absoluto: a aprendizagem utiliza os resultados do desenvolvimento, em vez de se adiantar ao seu curso e de mudar a sua direção. Um típico exemplo desta teoria é a concepção — extremamente completa e interessante — de Piaget, que estuda o desenvolvimento do pensamento da criança de forma completamente independente do processo de aprendizagem. Um fato surpreendente, e até hoje desprezado, é que as investigações sobre o desenvolvimento do pensamento no estudante costumam partir justamente do princípio fundamental desta teoria, ou seja, de que este processo de desenvolvimento é independente daquele que a criança aprende realmente na escola. A capacidade de raciocínio e a inteligência da criança, as suas idéias sobre o que a rodeia, as suas interpretações das causas físicas, o seu domínio das formas lógicas do pensamento e da lógica abstrata são considerados pelos eruditos como processos autônomos que não são influenciados de modo algum pela aprendizagem escolar. Para Piaget, trata-se de uma questão de método, e não de uma questão referente às técnicas que se devem usar para estudar o desenvolvimento mental da criança. O seu método consiste em atribuir tarefas que não apenas são completamente alheias à atividade escolar, mas que excluem também toda a possibilidade de a criança ser capaz de dar a resposta exata. Um exemplo típico que ilustra os aspectos positivos e negativos deste método são as perguntas utilizadas por Piaget nas entrevistas clínicas com as crianças. Quando se pergunta a uma criança de cinco anos porque não cai o sol, não só evidente que não pode conhecer a resposta certa, ou seria um gênio, mas também não poderia imaginar uma respostas que se aproximasse da correta. Na realidade, a finalidade de perguntas tão inacessíveis é precisamente excluir a possibilidade de recorrer as experiências ou conhecimentos precedentes, ou seja, a de obrigar o espírito da criança a trabalhar sobre problemas completamente novos e inacessíveis, para poder estudar as tendências do seu pensamento de uma forma pura, absolutamente independente dos seus conhecimentos, da sua experiência e da sua cultura. É claro que esta teoria implica uma completa independência do processo de desenvolvimento e do de aprendizagem, e chega até a postular uma nítida separação de ambos os processos no tempo. O desenvolvimento deve atingir uma determinada etapa, com a conseqüente maturação de determinadas funções, antes de a escola fazer adquirir à criança determinados conhecimentos e hábitos. O curso do desenvolvimento precede sempre o da aprendizagem. A aprendizagem segue sempre o desenvolvimento. Semelhante concepção não permite sequer colocar o problema do papel que podem desempenhar no desenvolvimento a aprendizagem e a maturação das funções ativadas no curso da aprendizagem: O desenvolvimento e a maturação destas funções representam um suposto, e não um resultado da aprendizagem. A aprendizagem é uma superestrutura do desenvolvimento, e essencialmente não existem intercâmbios entre os dois momentos. A segunda categoria de soluções propostas para o problema das relações entre aprendizagem e desenvolvimento afirma, pelo contrário, que a aprendizagem é desenvolvimento. Trata-se, como se vê, de uma tese inteiramente oposta à anterior. Esta fórmula expressa a substância deste grupo de teorias, apesar de cada urna delas partir de premissas diferentes. À primeira vista, esta teoria pode parecer mais avançada do que a precedente (baseada na nítida separação dos dois processos), já que atribui à aprendizagem um valor de primeiro plano no desenvolvimento da criança. Mas um exame mais profundo deste segundo grupo de soluções demonstra que, apesar das suas aparentes contradições, os dois pontos de vista têm em comum 37 muitos conceitos fundamentais e na realidade assemelham-se muito. Segundo James, “a educação pode ser definida como a organização de hábitos de comportamento e de inclinações para a ação”. Também o desenvolvimento se vê reduzido a urna simples acumulação de reações. Toda a reação adquirida — diz James — é quase sempre uma forma mais completa da reação inata que determinado objeto tendia inicialmente para suscitar, ou então é um substituto desta reação inata. Segundo James, este é um princípio em que se baseiam todos os processos de aquisição, ou seja, de desenvolvimento, e que orienta toda a atividade do docente. Para James, o indivíduo é simplesmente um conjunto vivo de hábitos. Para entender melhor este tipo de teoria é preciso ter em conta que ele considera as leis do desenvolvimento como leis naturais que o ensino deve ter em conta, exatamente como a tecnologia deve ter presentes as leis da física; o ensino não pode mudar estas leis, do mesmo modo que a tecnologia não pode mudar as leis gerais da natureza. Apesar das numerosas semelhanças entre esta teoria e a precedente, há uma diferença essencial que diz respeito às relações temporais entre o processo de aprendizagem e o de desenvolvi mento. Como vimos, os adeptos da primeira teoria afirmam que o curso de desenvolvimento precede o da aprendizagem, que a maturação precede a aprendizagem, que o processo educativo pode apenas limitar-se a seguir a formação mental. A segunda teoria considera, em contrapartida, que existe um desenvolvimento paralelo dos dois processos, de modo que a cada etapa da aprendizagem corresponda urna etapa do desenvolvimento. O desenvolvi mento está para a aprendizagem como a sombra para o objeto que a projeta. Também esta comparação não é exata, porque esta segunda teoria parte de uma total identificação entre desenvolvimento e aprendizagem e, portanto, levada ao extremo, não os deferência em absoluto. O desenvolvimento e a aprendizagem sobrepõem-se constantemente, como duas figuras geométricas perfeitamente iguais. O problema de saber qual é o processo que precede e qual é o que segue carece de significado para esta teoria. O seu princípio fundamental é a simultaneidade, a sincronização entre os dois processos. O terceiro grupo de teorias tenta conciliar os extremos dos dois primeiros pontos de vista, fazendo com que coexistam. Por um lado, o processo de desenvolvimento está concebido como um processo independente do de aprendizagem, mas por outro lado esta mesma aprendizagem — no decurso da qual a criança adquire toda uma nova série de formas de comportamento — considera-se coincidente com o desenvolvimento. Isto implica urna teoria dualista do desenvolvimento. Um claro exemplo constitui a teoria de Koffka, segundo a qual o desenvolvimento mental da criança se caracteriza por dois processos que, ainda que conexos, são de natureza diferente e condicionam-se reciprocamente. Por um lado está a maturação, que depende diretamente do desenvolvimento do sistema nervoso, e por outro a aprendizagem que, segundo Koffka, é em si mesma o processo de desenvolvimento. A novidade desta teoria pode resumir-se em três pontos. Antes de tudo, como dissemos, conciliam-se nela dois pontos de vista anteriormente considerados contraditórios; os dois pontos de vista não se excluem mutuamente, mas têm muito em comum. Em segundo lugar, considerase a questão da interdependência, quer dizer a tese segundo a qual o desenvolvimento é produto da interação de dois processos fundamentais. É certo que o caráter desta interação não aparece com clareza nas publicações de Koffka, onde apenas se encontram observações gerais sobre a existência de uma conexão entre estes dois processos; mas estas observações sugerem que o processo de maturação prepara e possibilita um determinado processo de aprendizagem, enquanto o processo de aprendizagem estimula, por assim dizer, o processo de maturação e o faz avançar até certo grau. Por ultimo, o terceiro aspecto novo — e também o mais importante desta teoria — consiste numa ampliação do papel da aprendizagem no desenvolvimento da criança. Este aspecto especial deve ser examinado com mais atenção. Remete-nos diretamente a um velho problema pedagógico, hoje manos atual, chamado tradicionalmente o problema da disciplina formal. Como se sabe, o conceito de disciplina formal, que encontra a sua expressão mais clara no sistema de Herbart, liga-se à idéia de que cada matéria ensinada tem uma concreta importância no desenvolvimento mental geral da criança, e que as diversas matérias diferem no valor que 38 representam para este desenvolvimento geral. Se se aceita este ponto de vista, a escola terá que ensinar matemática: pelo fato de que contêm uma disciplina de grande valor matérias tais como as línguas clássicas, a história antiga, as matemáticas, pelo fato de que contem uma disciplina de grande valor para o desenvolvimento mental geral, e isso prescindindo do seu valor real. Como se sabe, a concepção da disciplina formal provocou uma orientação muito conservadora na práxis educativa. Justamente como reação contra esta concepção surgiu o segundo grupo de teorias que examinamos, as quais pretendem devolver à aprendizagem o seu significado autônomo, em vez de o considerar simplesmente como um meio para o desenvolvimento da criança, ou seja, como se o exercício e a disciplina formal fossem necessários para o desenvolvimento das aptidões mentais. O fracasso da teoria da disciplina formal foi demonstrado em diversas investigações que revelaram que a aprendizagem em determinado campo tem urna influência mínima sobre o desenvolvimento geral. Por exemplo, Woddworth e Thorndike demonstraram que os adultos, depois de determinado período de exercício, podem de linhas breves, mas que é difícil que isso aumente a sua capacidade de avaliação quando as linhas são maiores. Outros adultos, que aprendem a definir com exatidão a área de determinada figura geométrica, enganam-se depois mais de dois terços das vezes quando muda a figura geométrica. Gilbert, Fracker e Martín demonstraram que aprender a reagir rapidamente perante determinado tipo de sinal influi pouquíssimo sobre a capacidade de reagir rapidamente perante outro tipo de sinal. Muitos estudos deste tipo conduziram a resultados idênticos, demonstrando que a aprendizagem de uma forma particular de atividade tem muito pouco a ver com outras formas de atividade, ainda que estas sejam muito semelhantes à primeira. Como afirma Thomdike, o grau em que determinada reação, demonstrada todos os dias pelos estudantes, desenvolve as suas faculdades mentais de conjunto dependeria do significado educativo geral das disciplinas ensinadas ou, em poucas palavras, da disciplina formal. A resposta que os psicólogos ou os pedagogos puramente teóricos costumam dar é que cada aquisição particular, cada forma especifica de desenvolvimento, aumenta direta e uniformemente as capacidades gerais. O docente deve pensar e agir na base da teoria de que o espírito é um conjunto de capacidades — capacidade de observação, atenção, memória, raciocínio, etc. — e que cada melhoramento de qualquer destas capacidades significa o melhoramento de todas as capacidades ~em geral. Segundo esta teoria, concentrar a capacidade de atenção na gramática latina significa melhorar a capacidade de atenção sobre qualquer outro tema. A idéia é que as palavras “precisão”, “vivacidade”, “raciocínio”, “memória”, “observação”, “atenção”, “concentração”, etc., significam faculdades reais e fundamentais que mudam segundo o material sobre que trabalham, que as mudanças persistem quando estas faculdades se aplicam a outros campos, e que portanto, se um homem aprende a fazer bem determinada coisa, em virtude de uma misteriosa conexão, conseguirá fazer bem outras coisas que carecem de todo o nexo com a primeira. As faculdades intelectuais atuariam independentemente da matéria sobre a qual operam e o desenvolvimento de uma destas faculdades levaria necessariamente ao desenvolvimento das outras. Thorndike opôs-se a esta concepção baseando-se nas inumeráveis investigações que demonstram que ela é insustentável. Sublinhou a dependência das diversas formas de atividade a respeito do material específico sobre o qual se desenvolve a afetividade. O desenvolvimento de uma faculdade particular raramente origina um análogo desenvolvimento das outras. Um exame mais profundo demonstra — afirma — que a especialização das capacidade é maior do que parece à primeira vista. Por exemplo, se entre uma centena de indivíduos se escolherem dez especialmente hábeis em reconhecer erros ortográficos ou na avaliação de um comprimento, estes dez não demonstram análoga aptidão para avaliar corretamente o peso de um objeto. Nem tampouco a velocidade e a precisão ao fazer somas são acompanhadas por uma velocidade e uma precisão análogas, quando se trata de encontrar os contrários de determinada série de vocábulos. Estes estudos demonstram que o intelecto não é precisamente a reunião de determinado número de capacidades gerais — observação, atenção, memória, juízo, etc. — mas sim a soma 39 de muitas capacidades diferentes, cada uma das quais, em certa medida, é independente das outras e portanto tem de ser desenvolvida independentemente mediante um exercício adequado. A tarefa do docente consiste em desenvolver não uma única capacidade de pensar, mas muitas capacidades particulares de pensar em campos deferentes; não em reforçar a nossa capacidade geral de prestar atenção, mas em desenvolver diferentes faculdades de concentrar a atenção sobre diferentes matérias. Os métodos que permitem que a aprendizagem especializada influa sobre o desenvolvimento geral funcionam apenas porque existem elementos comuns, materiais e processos comuns. Somos governados pelos hábitos. Daqui resulta que desenvolver o intelecto significa desenvolver muitas capacidades específicas e independentes e formar muitos hábitos específicos, já que a atividade de cada capacidade depende do material sobre o qual essa capacidade opera. O aperfeiçoamento de uma função ou de uma atividade especifica do intelecto influi sobre o desenvolvimento das outras funções e atividades só quando estas têm elementos comuns. Como já dissemos, o terceiro grupo de teorias examinadas opõe-se a esta concepção. As teorias baseadas na psicologia estrutural hoje dominante — que afirma que o processo de aprendizagem nunca pode atuar apenas para formar hábitos, mas que compreende uma atividade de natureza intelectual que permite a transferência de princípios estruturais implícitos na execução de uma tarefa para uma série de tarefas diversas — afirmam que a influencia da aprendizagem nunca é específica. Ao aprender qualquer operação particular, o aluno adquire a capacidade de constituir certa estrutura, independentemente da variação da matéria com que trabalha e independentemente dos diferentes elementos que constituem essa estrutura. Esta teoria considera, portanto, um momento novo e essencial, um novo modo de enfrentar o problema da disciplina formal. Koffka adota a velha fórmula segundo a qual a aprendizagem é desenvolvimento, mas ao mesmo tempo não considera a aprendizagem como um puro e simples processo de aquisição de capacidades e hábitos específicos e não considera que aprendizagem e desenvolvimento sejam processos idênticos; postula, pelo contrario, uma interação mais completa. Se, para Thorndikc, aprendizagem e desenvolvimento se sobrepõem permanentemente, como duas figuras geométricas que estejam uma sobre a outra, para Koffka o desenvolvimento continua referindo-se a um âmbito mais amplo do que a aprendizagem. A relação entre ambos os processos pode representar-se esquematicamente por maio de dois círculos concêntricos; o mais pequeno representa o processo de aprendizagem e o maior, o do desenvolvimento, que se estende para além da aprendizagem. A criança aprende a realizar uma operação de determinado gênero, mas ao mesmo tempo apodera-se de um princípio estrutural cuja esfera de ampliação é maior do que a da operação de partida. Por conseguinte, ao dar um passo em frente no campo da aprendizagem, a criança dá dois no campo do desenvolvimento; e por isso aprendizagem e desenvolvimento não são coincidentes. Dado que as três teorias que examinamos interpretam de maneira tão diferente as relações entre aprendizagem e desenvolvimento, deixemo-las de lado e procuremos uma nova e melhor solução para o problema. Tomamos como ponto de partida o fato de que a aprendizagem da criança começa muito antes da aprendizagem escolar. A aprendizagem escolar nunca parte do zero. Toda a aprendizagem da criança na escola tem uma pré-história. Por exemplo, a criança começa a estudar aritmética, mas já muito antes de ir à escola adquiriu determinada experiência referente à quantidade, encontrou já várias operações de divisão e adição, complexas e simples; portanto a criança teve uma pré-escola de aritmética, e o psicólogo que ignorasse este fato estaria cego. Um exame atento demonstra que esta aritmética pré-escolar é extremamente complexa, que a criança já passou por uma aprendizagem aritmética própria muito antes de se entregar na escola à aprendizagem da aritmética. Mas a existência desta pré-história da aprendizagem escolar não implica uma direta continuidade entre as duas etapas do desenvolvimento aritmético da criança. O curso da aprendizagem escolar da criança não é continuação direta do desenvolvimento pré-escolar em todos os campos; o curso da aprendizagem pré-escolar pode ser desviado, de determinada maneira, e a aprendizagem escolar pode também tomar uma direção contrária. Mas 40 tanto se a escola continua a pré-escola como se a impugna, não podemos negar que a aprendizagem escolar nunca começa no vácuo, mas é precedida sempre de uma etapa perfeitamente definida de desenvolvimento, alcançado pela criança antes de entrar para a escola. Os argumentos de investigadores como Stumpf e Koffka, que pretendem eliminar o salto entre a aprendizagem na escola e a aprendizagem na idade pré-escolar, parecem-nos extremamente convincentes. Pode demonstrar-se facilmente que a aprendizagem não começa na idade escolar. Koffka, ao explicar ao doente as leis de aprendizagem infantil e a sua relação com o desenvolvimento psicointelectual da criança, concentra toda a sua atenção nos processos mais simples e primitivos de aprendizagem que aparecem precisamente na idade pré-escolar. Mas ainda que saliente a semelhança entre aprendizagem escolar e pré-escolar, não consegue identificar as diferenças existentes nem distinguir o que é especialmente novo na aprendizagem escolar; tem tendência, na seqüência de Stumpf, para considerar que a única diferença entre os dois processos reside no fato de que o primeiro não é sistemático, enquanto o segundo é uma aprendizagem sistemática por parte da criança. Não é apenas uma questão de sistematicidade; a aprendizagem escolar dá algo de completamente novo ao curso do desenvolvimento da criança. Mas estes autores têm razão quando chamam a atenção para o fato, até agora desprezado, de que a aprendizagem se produz antes da idade escolar. Acaso a criança não aprende a língua dos adultos. Ao fazer perguntas e receber respostas, não adquire um conjunto de noções e informações dadas pelos adultos? Através do adestramento que recebe dos adultos, aceitando a sua condução nas suas ações, a própria criança adquire determinada gama de hábitos. Pela sua importância este processo de aprendizagem, que se produz antes que a criança entre na escola, difere de modo essencial do domínio de noções que se adquirem durante o ensino escalar. Todavia, quando a criança, com as suas perguntas, consegue apoderar-se dos nomes dos objetos que a rodeiam, já está inserida numa etapa especifica de aprendizagem. Aprendizagem e desenvolvimento não entram em contato pela primeira vez na idade escolar, portanto, mas estão ligados entre si desde os primeiros dias de vida da criança. O problema que se nos apresenta é, por isso, duplamente complexo, e divide-se em dois problemas separados. Antes de mais nada, devemos compreender a relação entre aprendizagem e desenvolvimento em geral e depois as características espec(ficas desta inter-relação na idade escolar. Podemos começar com o segundo problema, dado que nos ajuda a esclarecer o primeiro. Para o resolver, teremos que levar em consideração os resultados de algumas investigações que, em nossa opinião, são de importância básica e que permitiram o desenvolvimento de uma nova teoria, fundamental para a solução correta dos problemas examinados: a teoria da área de desenvolvimento potencial(Zona blizliaisnego razvitiya.). É uma comprovação empírica, freqüentemente verificada e indiscutível, que a aprendizagem deve ser coerente com o nível de desenvolvimento da criança. Não é necessário, em absoluto, proceder a provas para demonstrar que só em determinada idade se pode começar a ensinar a gramática, que só em determinada idade o aluno é capaz de aprender álgebra. Portanto, podemos tomar tranqüilamente como ponto de partida o fato fundamental e incontroverso de que existe uma relação entre determinado nível de desenvolvimento e a capacidade potencial de aprendizagem. Todavia, recentemente a atenção concentrou-se no fato de que quando se pretende definir a efetiva relação entre processo de desenvolvimento e capacidade potencial de aprendizagem, não podemos limitar-nos a um único nível de desenvolvimento. Tem de se determinar pelo manos dota níveis de desenvolvimento de uma criança, já que, senão, não se conseguirá encontrar a relação entre desenvolvimento e capacidade potencial de aprendizagem em cada caso específico. Ao primeiro destes níveis chamamos nível do desenvolvimento efetivo da criança. Entendemos por isso o nível de desenvolvimento das funções psicointelectuais da criança que se conseguiu como resultado de um específico processo de desenvolvimento, já realizado. Quando se estabelece a idade mental da criança com o auxílio de testes, referimo-nos sempre ao nível de desenvolvimento afetivo. Mas um simples controle demonstra que este nível de desenvolvimento efetivo não indica completamente o estado de desenvolvimento da criança. Suponhamos que submetemos a um teste duas crianças, e que estabelecemos para ambas uma 41 idade mental de sete anos. Mas quando submetemos as crianças a provas posteriores, sobressaem diferenças substanciais entre elas. Com o auxílio de perguntas-guia, exemplos e demonstrações, uma criança resolve facilmente os testes, superando em dois anos o seu nível de desenvolvimento efetivo, enquanto a outra criança resolve testes que apenas superam em maio ano o seu nível de desenvolvimento efetivo. Neste momento, entram diretamente em jogo os conceitos fundamentais necessários para avaliar o âmbito de desenvolvimento potencial. Isto, por sua vez, está ligado a uma reavaliação do problema da imitação na psicologia contemporânea. O ponto de vista tradicional dá como certo que a única indicação possível do grau de desenvolvimento psicointelectual da criança é a sua atividade independente, e não a imitação, entendida de qualquer maneira. Todos os atuais métodos de medição refletem esta concepção. As únicas provas tomadas em consideração para indicar o desenvolvimento psicointelectual são as que a criança supera por si só, sem ajuda dos outros e sem perguntas-guia ou demonstrações. Várias investigações demonstraram que este ponto de vista é insustentável. Experiências realizadas com animais mostraram que um animal pode imitar ações que entram no campo da sua efetiva capacidade potencial. Isto significa que um animal pode imitar apenas ações que, de uma maneira ou de outra, se lhe tomam acessíveis; de modo que, como demonstraram as investigações de Kõhler, a capacidade potencial de imitação do animal dificilmente supera os limites da sua capacidade potencial de ação. Se um animal é capaz de imitar uma ação intelectual, isso significa que, em determinadas condições, é capaz de realizar uma ação análogana sua atividade independente. Por isso, a imitação está extremamente ligada à capacidade de compreensão e só é possível no âmbito das ações acessíveis à compreensão do animal. A diferença substancial no caso da criança é que esta pode imitar um grande número de ações — senão um número ilimitado —que superam os limites da sua capacidade atual. Com o auxílio da imitação na atividade coletiva guiada pelos adultos, a criança pode fazer muito mais do que com a sua capacidade de compreensão de modo independente. A diferença entre o nível das tarefas realizáveis com o auxílio dos adultos e o nível das tarefas que podem desenvolver-se com uma atividade independente define a área de desenvolvimento potencial da criança. Voltemos por um momento ao exemplo dado antes. Estamos perante duas crianças com uma idade mental de sete anos, mas uma, com um pouco de auxílio, pode superar testes até um nível mental de nove anos e a outra apenas até um nível mental de sete anos e meio. O desenvolvimento mental destas crianças é equivalente? A sua atividade independente é equivalente, mas, sob o ponto de vista das futuras potencialidades de desenvolvimento, as duas crianças são radicalmente diferentes. O que uma criança é capaz de fazer com o auxílio dos adultos chama-se zona do seu desenvolvimento potencial. Isto significa que com o auxilio deste método podemos medir não só o processo de desenvolvimento até ao momento presente e os processos de maturação que já se produziram, mas também os processos que estio ocorrendo ainda, que só agora estão amadurecendo e desenvolvendo-se. O que a criança pode fazer hoje com o auxílio dos adultos, poderá fazê-lo amanhã por si só. A área de desenvolvimento potencial permite-nos, pois, determinar os futuros passos da criança e a dinâmica do seu desenvolvimento, e examinar não só o que o desenvolvimento já produziu, mas também o que produzirá no processo de maturação. As duas crianças que tomamos como exemplo demonstram uma idade mental equivalente a respeito do desenvolvimento já realizado, mas a dinâmica do seu desenvolvimento é inteiramente diferente. Portanto, o estado do desenvolvimento mental da criança só pode ser determinado referindo-se pelo manos a dois níveis: o nível de desenvolvimento efetivo e a área de desenvolvimento potencial. Este fato, que em si mesmo pode parecer pouco significativo, tem na realidade enorme importância e põe em dúvida todas as teorias sobre a relação entre processos de aprendizagem e desenvolvimento na criança. Em especial, altera a tradicional concepção da orientação pedagógica desejável, uma vez diagnosticado o desenvolvimento. Até agora, a questão tinha se apresentado do seguinte modo: com o auxílio dos testes pretendemos determinar o nível de desenvolvimento psicointelectual da criança, que o educador deve considerar como um limite não superável pela criança. Precisamente, este modo de apresentar o problema contém a idéia de 42 que o ensino deve orientar-se baseando-se no desenvolvimento já produzido, na etapa já superada. A parte negativa deste ponto de vista foi reconhecida na prática muito antes de se ter compreendido claramente na teoria; pode demonstrar-se em relação ao ensino ministrado às crianças mentalmente atrasadas. Como se sabe, a investigação estabeleceu que estas crianças têm pouca capacidade de pensamento abstrato. Portanto, os docentes das escolas especiais, ao adotarem o que parecia uma orientação correta, decidiram limitar todo o seu ensino aos meios visuais. Depois de muitas experiências, esta orientação resultou profundamente insatisfatória. Provou-se que um sistema de ensino baseado exclusivamente em meios visuais, e que excluísse tudo quando respeita ao pensamento abstrato, não só não ajuda a criança a superar uma capacidade natural, mas na realidade consolida tal incapacidade, dado que ao insistir sobre o pensamento visual elimina os germes do pensamento abstrato nestas crianças. A criança atrasada, abandonada a si mesma, não pode atingir nenhuma forma evolucionada de pensamento abstrato; e precisamente por isso a tarefa concreta da escola consiste em fazer todos os esforços para encaminhar a criança nesta direção, para desenvolver o que lhe falta. Nos atuais métodos das escolas especiais pode se observar uma benéfica mudança a respeito do passado, que se caracterizava por um emprego exclusivo de meios visuais no ensino. Acentuar os aspectos visuais é necessário, e não acarreta nenhum risco se se considerar apenas como etapa do desenvolvimento do pensamento abstrato, como meio e não como um fim em si. Considerações análogas são igualmente válidas para o desenvolvimento da criança normal. Um ensino orientado até uma etapa de desenvolvimento já realizado é ineficaz sob o ponto de vista do desenvolvimento geral da criança, não é capaz de dirigir o processo de desenvolvimento, mas vai atrás dele. A teoria do âmbito do desenvolvimento potencial origina uma fórmula que contradiz exatamente a orientação tradicional: o único bom ensino é o que se adianta ao desenvolvimento. Sabemos por urna grande quantidade de investigações — a que apenas podemos aludir por falta de espaço — que o desenvolvimento das funções psicointelectuais superiores na criança, dessas funções especificamente humanas formadas no decurso da história do gênero humano, é um processo absolutamente único. De outro modo formulamos a lei fundamental deste desenvolvimento da seguinte maneira: Todas as funções psicointelectuais superiores aparecem duas vezes no decurso do desenvolvimento da criança: a primeira vez nas atividades coletivas, nas atividades sociais, ou seja, como funções interpsiquicas; a segunda, nas atividades individuais, como propriedades internas do pensamento da criança, ou seja, como funções intrapsiquicas. O desenvolvimento da linguagem serve como paradigma de todo o problema examinado. A linguagem origina-se em primeiro lugar como maio de comunicação entre a criança e as pessoas que a rodeiam. Só depois, convertido em linguagem interna, se transforma em função mental interna que fornece os meios fundamentais ao pensamento da criança. As investigações de Bolduina, Rignano e Piaget demonstraram que a necessidade de verificar o pensamento nasce pela primeira vez quando há uma discussão entre crianças, e só depois disso o pensamento se apresenta na criança como atividade interna, cuja característica é o fato de a criança começar a conhecer e a verificar os fundamento do seu próprio pensamento. Cremos facilmente na palavra — diz Piaget —mas só no processo de comunicação surge a possibilidade de verificar e confirmar o pensamento. Como a linguagem interior e o pensamento nascem do complexo de inter-relações entre a criança e as pessoas que a rodeiam, assim estas inter-relações são também a origem dos processo volitivos da criança. No seu último trabalho, Piaget demonstrou que a cooperação favorece o desenvolvimento do sentido moral na criança. Investigações precedentes estabeleceram que a capacidade da criança para controlar o seu próprio comportamento surge antes de tudo no jogo coletivo, e que só depois se desenvolve como força interna o controle voluntário do comportamento. Os exemplos diferentes que apresentamos aqui indicam um esquema de regulação geral no desenvolvimento das funções psico-intelectuais superiores na infância, que, sob nosso ponto de 43 vista, se referem ao processo de aprendizagem da criança no seu conjunto. Assim, não é necessário sublinhar que a característica essencial da aprendizagem é que engedra a área de desenvolvimento potencial, ou seja, que faz nascer, estimula e ativa na criança um grupo de processos internos de desenvolvimento dentro do âmbito das inter-relações com outros, que na continuação são absorvidos pelo curso interior de desenvolvimento e se convertem em aquisições internas da criança. Considerada sob este ponto de vista, a aprendizagem não é em si mesma desenvolvimento, mas uma correta organização da aprendizagem da criança conduz ao desenvolvimento mental, ativa todo um grupo de processos de desenvolvimento, e esta ativação não poderia produzir-se sem a aprendizagem. Por isso, a aprendizagem é um momento intrinsecamente necessário e universal para que se desenvolvam na criança essas características humanas não naturais, mas formadas historicamente. Tal como um filho de surdos-mudos, que não ouve falar à sua volta, continua mudo apesar de todos os requisitos inatos precisos para o desenvolvimento da linguagem, e não desenvolve as funções mentais superiores ligadas à linguagem, assim todo o processo de aprendizagem 6 uma fonte de desenvolvimento que ativa numerosos processos, que não poderiam desenvolver-se por si mesmos sem a aprendizagem. O papel da aprendizagem como fonte de desenvolvimento —zona de desenvolvimento potencial — pode ilustrar-se ainda mais comparando os processos de aprendizagem da criança e do adulto. Até agora se atribuiu pouco relevo às diferenças entre a aprendizagem da criança e do adulto. Os adultos, como bem se sabe, dispõem de uma grande capacidade de aprendizagem. Recentes investigações experimentais contradizem a afirmação de James de que os adultos não podem adquirir conceitos novos depois dos vinte e cinco anos. Mas até agora não se descreveu adequadamente o que diferencia de forma substancial a aprendizagem do adulto da aprendizagem da criança. À luz das teorias de Thorndike, James e outros, a que se aludiu antes — teorias que reduzem o processo de aprendizagem à formação de hábitos — não pode haver diferença essencial entre a aprendizagem do adulto e a da criança. Á afirmação é superficial. Segundo esta concepção, um mesmo mecanismo caracteriza a formação de hábitos tanto no adulto como na criança; no primeiro, o processo ocorre mais veloz e facilmente do que na segunda, e reside aí toda a diferença. Coloca-se um problema: o que diferencia aprender a escrever à máquina, a andar de bicicleta, a jogar tênis em idade adulta, do processo que se dá na idade escolar quando se aprendem a língua escrita, a aritmética e as ciências naturais? Cremos que a diferença essencial consiste nas diversas relações destas aprendizagens com o processo de desenvolvimento. Aprender a usar uma máquina de escrever significa, na realidade, estabelecer um certo número de hábitos que por si só não alteram em absoluto as características psicointelectuais do homem. Uma aprendizagem deste gênero aproveita um desenvolvimento já elaborado e completo, e justamente por isso contribui cm muito pouco para o desenvolvimento geral. O processo de aprender a escrever é muito diferente. Algumas investigações demonstraram que este processo ativa uma fase de desenvolvimento dos processos psicointelectuais inteiramente nova e muito complexa, e que o aparecimento destes processos origina uma mudança radical das características gerais, psicointelectuais da criança; da mesma forma, aprender a falar marca uma etapa fundamental na passagem da infância para a puberdade. Podemos agora resumir o que dissemos e fazer uma formulação geral da relação entre os processos de aprendizagem e desenvolvimento. Antes de o fazer, salientaremos que todas as investigações experimentais sobre a natureza psicológica dos processos de aprendizagem da aritmética, da escrita, das ciências naturais e de outras matérias na escola elementar, demonstram que o seu fundamento, o eixo em torno do qual se montam, é uma nova formação que se produz em idade escolar. Estes processos estio todos ligados, ao desenvolvimento do sistema nervoso central. A aprendizagem escolar orienta e estimula processos internos de desenvolvimento. A tarefa real de uma análise do processo educativo consiste em descobrir o aparecimento e o desaparecimento destas linhas internas de desenvolvimento no momento em que se verificam, 44 durante a aprendizagem escolar. Esta hipótese pressupõe necessariamente que o processo de desenvolvimento quando coincide com o da aprendizagem, o processo de desenvolvimento segue o da aprendizagem, que cria a área de desenvolvimento potencial. O segundo momento essencial desta hipótese é a afirmação de que aprendizagem e desenvolvimento da criança, ainda que diretamente ligados, nunca se produzem de modo simétrico e paralelo. O desenvolvimento da criança não acompanha nunca a aprendizagem escolar, como uma sombra acompanha o objeto que a projeta. Os testes que comprovam os progressos escolares não podem, portanto, refletir o curso real do desenvolvimento da criança. Existe uma dependência recíproca, extremamente complexa e dinâmica, entre o processo de desenvolvimento e o da aprendizagem, dependência que não pode ser explicada por uma única fórmula especulativa apriorística. Cada matéria escolar tem uma relação própria com o curso do desenvolvimento da criança, relação que muda com a passagem da criança de uma etapa para outra. Isto obriga a examinar de novo todo o problema das disciplinas formais, ou seja, do papel e da importância de cada matéria no posterior desenvolvimento psico-intelectual geral da criança. Semelhante questão não pode esquematizar-se numa fórmula única, mas permite compreender melhor como são vastos os objetivos de uma investigação experimental extensiva e variada. ALGUNS ASPECTOS DA RELAÇÃO RECÍPROCA ENTRE EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE G. S. Kostiuk A exposição inicia-se salientando a urgência de esclarecer as relações recíprocas entre ação educativa e desenvolvimento da personalidade numa época de rápido progresso educativo. A psicologia soviética reconheceu há tempo a decisiva influência da educação sobre o desenvolvimento psicointelectual. Todavia, não se explicitaram todas as implicações desta influência, como salientou a imprensa especializada e também a imprensa em geral. Investigouse pouco sobre a influência da educação no desenvolvimento da personalidade ou sobre os modos mais eficazes para conduzir o desenvolvimento da criança. Trata-se de um problema amplo e complexo; esta exposição se limitará em considerar os resultados das investigações experimentais mais recentes, com a finalidade de apresentar alguns dos problemas relacionados com o assunto e de chamar a atenção para a necessidade de sucessivas investigações. O desenvolvimento psicointelectual da criança realiza-se no processo de interação com o ambiente natural e social. Conduzir o desenvolvimento através da educação significa organizar esta interação, dirigir a atividade da criança para o conhecimento da realidade e para o domínio — por meio da palavra — do saber e da cultura da humanidade, desenvolver concepções sociais, convicções e normas de comportamento moral. O problema mais importante a este respeito é o da relação recíproca entre aprendizagem, educação e desenvolvimento psicointelectual. Sabe-se que os psicólogos de outros países tiveram e têm opiniões diferentes sobre este problema. Para alguns, desenvolvimento e aprendizagem são processos independentes e não têm conexões internas; para outros, os dois processos identificam-se. Um exemplo do primeiro ponto de vista é o da posição de A. Gesell; este autor afirma que as formas fundamentais do comportamento da criança, as suas recíprocas conexões e as conseqüentes mudanças são determinadas pelo processo de maturação do organismo. Pelo contrario, o ponto de vista característico dos bebaviounistas baseia-se na identificação do desenvolvimento e aprendizagem; a passagem do primeiro para o segundo produzir-se-ia 45 mediante um processo de formação de hábitos. L. S. Vygotsky opôs-se a ambas as concepções, tentando demonstrar a unidade e a diversidade entre aprendizagem e desenvolvimento, bem como de salientar o papel fundamental da ação educativa neste processo. S. L. Rubinstein afirmou que a criança se desenvolve enquanto recebe educação e intuição. Ainda que existam pouquíssimas investigações experimentais dedicadas em particular ao esclarecimento das relações recíprocas entre desenvolvimento e aprendizagem, da análise e da generalização de numerosas investigações recentes sobre a psicologia da aprendizagem (aquisição e domínio de variados tipos de noções, aptidões e hábitos) podem-se tirar algumas conclusões que se referem às recíprocas relações e às características particulares dos processos de aprendizagem e desenvolvimento. Estes dados descrevem a aquisição de experiências sociais pelas crianças, o papel essencial desempenhado neste processo pela condução que a educação exerce sobre a atividade autônoma da criança, sobre as modalidades de elaboração de novas ações e sobre as conexões entre o primeiro e o segundo sistema de sinais subjacentes a elas. Tudo isto possibilita uma explicação mais pontual de como o processo de aprendizagem estabelece as condições necessárias para o desenvolvimento psicointelectual da criança; permite uma compreensão mais profunda da sua condicíonabilidade social; ajuda-nos a entender como, no decorrer do processo de interação da criança com o ambiente, o objetivo — ou seja, o social — se converte em subjetivo — ou seja, individual —; como aquele que a criança adquire nas relações com os adultos e com os seus contemporâneos o leva sucessivamente à organização da sua própria atividade, ao aparecimento de novas características psicointelectuais. A este respeito oferecem especial interesse as observações sobre o efeito que o domínio da linguagem tem no desenvolvimento psico-intelectual da primeira infância. Como demonstraram e as investigações, os processos verbais adquiridos e dominados primeiro pela criança como atos sociais imediatamente tendentes à satisfação de determinada necessidade se convertem, com a continuação, na sua forma interior e exterior, em fatores importantes do desenvolvimento da percepção e imaginação, em instrumentos do seu pensamento e de toda a organização e regulação do seu comportamento. Outras observações experimentais permitem compreender que as ações mentais, formadas na criança de idade pré-escolar como atos “interindividuais” da atividade cognoscitiva derivada de comunicações verbais com os adultos (pergunta e resposta, agrupamento de objetos e determinação da igualdade quantitativa de grupos, a sua composição, enumeração, etc.), se convertem depois em atos “intra-individuais” que a criança realiza até à margem de uma especifica situação de ensino. Enquanto na idade pré-escolar há uma assimilação espontânea, não voluntária, de conhecimentos, as crianças em idade escoar estão incluídas em várias formas de atividade educativa intencional As investigações demonstram que a aquisição da leitura, da escrita, do léxico da língua nativa, da gramática, da aritmética, da física, da geometria não deve considerarse como uma simples aquisição, mas sim como um aperfeiçoamento da atividade cognoscitiva dos discípulos e da sua capacidade para assimilar conhecimento. O domínio de um vocabulário novo e de outros aspectos da língua melhora a expressão verbal das crianças, faz surgir nelas necessidades novas, novas atitudes perante os processos verbais. Ao assimilar o conteúdo dos textos, os alunos aprendem ao mesmo tempo a usar formas de análise e de síntese (descoberta das idéias mais importantes, a sua coordenação, estrutura da obra, etc.). Os métodos para a elaboração de material verbal, e em espacial de textos escritos, desenvolvidos sob a condução do professor, generalizam-se posteriormente, com a passagem a uma nova etapa de atividade escolar, e convertem-se para o aluno em um instrumento de pensamento, de memória voluntária e de recvocação. O domínio de conceitos cada vez mais complexos favorece o desenvolvimento da abstração e da generalização, conduz à formação e ao 46 aperfeiçoamento de operações lógicas, ao desenvolvimento da curiosidade, à iniciativa e à independência na assimilação de conhecimentos. Este não é o lugar para uma análise detalhada dos resultados destas experiências; pode salientar-se apenas que, consideradas em conjunto, revelam com clareza a dependência do ensino a respeito do desenvolvimento psicointelectual da criança, e dão um conteúdo novo à idéia de que o ensino exerce um papel ativo no desenvolvimento. Ao colocar os alunos perante tarefas de caráter cognoscitivo, o professor não se limita a organizar as ações encaminhadas para a execução destas tarefas, mas proporciona aos alunos os métodos necessários, cujo domínio leva ao aparecimento de novas atividades e ao desenvolvimento das potencialidades mentais. Sob o ponto de vista fisiológico, Pavlov observou que “toda a aprendizagem consiste na formação de conexões temporais”. O desenvolvimento produz-se mediante a formação destas conexões. Sem a formação de conexões nervosas temporais não pode nascer nem nasce nada novo no comportamento da criança, nas suas ações, na sua atitude perante a realidade que a rodem, e, portanto, não pode haver desenvolvimento. As conexões formadas no processo de aprendizagem constituem — como observou A. N. Leontiev— laços entre os complexos mecanismos fisiológicos em que se baseia a formação das qualidades mentais da criança. Os dados experimentais referentes ao melhoramento dos processos mentais que se produzem durante a aprendizagem permitem-nos estabelecer de modo definitivo que o desenvolvimento mental não consiste na diferenciação de formas complexas de atividade psíquica inatas na criança; estas formas de atividade são elaboradas, pelo contrário, no decorrer do processo de assimilação da experiência social. À falta desta assimilação não pode existir aquela “humana, história individual do desenvolvimento da sensação, imaginação, pensamento, sensibilidade, etc.”, cujo estudo Sechenov considerava como tarefa fundamental da psicologia. Estas observações confirmam, além disso, que a passagem da aquisição para o desenvolvimento não E um processo simples, mas complexo. Em primeiro lugar o processo pelo qual de fato as crianças conseguem dominar conhecimentos, capacidades ou hábitos específicos, não se produz de repente, como demonstraram muitas experiências; passa através de unia série de etapas cujo caráter depende da complexidade do conteúdo que tem de ser dominado, e da receptividade do estudante. Em segundo lugar, o domínio de um material perfeitamente determinado não leva sempre e imediatamente a um progresso no desenvolvimento mental do aluno, ao aparecimento de novas características qualitativas, ou seja, a um desenvolvimento real. Tudo isto depende do que se adquire e de como se adquire. Entram aqui em jogo as características individuais dos alunos, ou seja, as características da atividade nervosa superior. Em terceiro lugar., a passagem da aquisição ao desenvolvimento daí-se de diferentes modos, segundo os diversos aspectos do processo de desenvolvimento. Deve ter-se presente que existem, no desenvolvimento, aspectos diferentes, ainda que ligados: desenvolvimento do conhecimento, da atividade cognoscitiva, desenvolvimento das qualidades mentais (simples e compostas, particulares e gerais) que entram neste processo, e das propriedades funcionais do cérebro que subexistem nelas. Os dados experimentais demonstram, por exemplo, que o domínio pela criança pequena destas ou daquelas palavras da linguagem dos adultos não traz mudanças imediatas à sua atividade nem lhe confere uma nova capacidade para organizar as suas próprias ações. A criança adquire esta função progressivamente, através de uma série de microintervalos cuja soma provoca mudanças qualitativas mais evidentes. Existem investigações que demonstram que quando uma criança em idade pré-escolar adquire uma nova palavra de um texto literário ou cientifico, esta não faz de imediato parte do seu vocabulário ativo; freqüentemente o aluno, ao escrever ou conversar, esquece-a e utiliza outros vocábulos conhecidos anteriormente, mais “familiares” e de significação mais geral. Averiguou-se, além disso, que os alunos que já alcançaram a capacidade de preparar um esquema expositivo não recorrem a ele para organizar a sua própria exposição, mas, pelo contrário, preparam um esquema só depois de terem realizado a tarefa (fixada pelo mestre); em vez de utilizarem essa capacidade para escrever os temas, preferem fazer um esquema depois de 47 os terem escrito. As investigações demonstraram que é necessário um período de tempo considerável, um adequado nível de domínio dos métodos de análise e de síntese e da sua generalização, para que os alunos desenvolvam a capacidade de melhorar a compreensão, a memorização voluntária e a repetição do conteúdo de um texto. Isto também é válido no que diz respeito à aquisição de conceitos novos das diversas disciplinas, à mudança qualitativa do pensamento do aluno sobre a explicação dos diversos fenômenos da realidade, à solução de problemas práticos que exigem a aplicação destes conceitos. O ensino nas nossas escolas não pode limitar-se apenas a transmitir ao discípulo determinados conhecimentos, a formar um mínimo de aptidões e de hábitos. A sua tarefa é desenvolver o pensamento dos alunos, a sua capacidade de analisar e generalizar os fenômenos da realidade, de raciocinar corretamente; numa palavra, desenvolver “no todo” as suas faculdades mentais. Se se pretende alcançar esta meta, tem de se encontrar uma solução satisfatória para os problemas mais urgentes do ensino. O desenvolvimento do pensamento lógico é um dos fatores mais importantes do sucesso escolar. Todavia, isto não significa que qualquer ensino contribua para garantir esse desenvolvimento. P. N. Gruzdev sublinhou que “freqüentemente o ensino está a tal nível que, em vez de contribuir para o desenvolvimento das capacidades intelectuais, na realidade sufoca-as”. Isto ocorre quando se aplicam métodos de ensino errados, quando prevalecem o dogmatismo e o formalismo. As afirmações tranqüilizadoras sobre a capacidade educativa do ensino em geral são, portanto, insatisfatórias; devemos estudar as condições em que o ensino assume efetivamente essa capacidade e devemos tratar de ajudar os professores a criar estas conclusões na prática. Isto conduz-nos à necessidade de esclarece como influi o ensino sobre o desenvolvimento intelectual e sobre o desenvolvimento das características psíquicas, e à necessidade de encontrai maneiras de valorizar a eficácia dos diversos métodos de ensino sob o ponto de vista da sua influencia no desenvolvimento do pensamento, da memória e dos demais processos mentais. Tem havido poucas investigações deste tipo; limitamo-nos a analisar a aquisição de conhecimentos particulares, aptidões e hábitos. No máximo, verificaram-se melhoramentos elementares atividade cognoscitiva, mas não se seguiu a dinâmica sucessiva destes progressos, que são o resultado do domínio dos conhecimentos transmitidos. A verdade é que o processo de desenvolvimento se inicia apenas com o domínio do material escolar. Os processos de aprendizagem e desenvolvimento diferenciam-se em todas as suas variadas conexões, como justamente observou Vygotsky e posteriormente outros autores. Isto coloca o problema das relações recíprocas entre aprendizagem, aquisição e desenvolvimento. Os índices significativos destes processos são diferentes. São, por exemplo, no que diz respeito ao desenvolvimento, as mudanças na atividade intelectual dos alunos, mudanças que assumem formas novas com a passagem de uma etapa inferior da atividade do pensamento para uma superior, de métodos de raciocínio menos evoluídos para métodos mais desenvolvidos. Certamente, quando se escolhe o material educativo e se consegue assegurar resultados de bom nível, conduz-se com ele o desenvolvimento das capacidades de pensamento dos estudantes. Mas não terminam aí as tarefas de uma correta orientação do desenvolvimento. Esta deve ter muito em conta as metas especificas e as vias a seguir para as alcançar. Se o professor as esquece e centra a sua atenção apenas no que os alunos assimilam, não será capaz de lhes garantir um efetivo domínio do saber. Se se pretendem encontrar métodos corretos para uma condução efetiva do desenvolvimento mental, é necessário estudar as relações recíprocas especificas entre aprendizagem e desenvolvimento nas diversas etapas do trabalho escolar sobro as diferentes matérias. Os resultados de recentes experiências de psicologia do ensino demonstram que esse estudo tem fundamental importância não só no que diz respeito ao conteúdo, mas também para a utilização de métodos de ensino que garantam o caráter ativo da aquisição de conhecimentos e a efetiva formação das necessárias ações mentais. Condição necessária para a passagem da aquisição ao desenvolvimento é uma programação 48 do ensino, uma sistematização dos conhecimentos que se tem de adquirir, que sirva de base à formação de sistemas de conexões temporais. O ensino pode conduzir a um verdadeiro desenvolvimento mental só quando está encaminhado para a formação destes sistemas. A sistematização das conexões é essencial não só para uma aquisição de conhecimentos duradoura e profunda, mas também para o desenvolvimento da atividade cognoscitiva, para a formação de novas operações lógicas e de novas características mentais. Como sublinhou juntamente Piaget, uma operação lógica generalizada existe e funciona apenas como parte de um sistema de operações. Demonstrou-se o papel da sistematização na formação de aptidões mentais, e umas investigações experimentais realizadas em Leningrado demonstram que os sistemas formados no processo de aprendizagem das diversas matérias escolares têm razoável importância para explicar as relações entre aprendizagem e desenvolvimento. Na base destas investigações é preciso chegar a uma definição de “sistematização”; esta definição pode alcançar-se obviamente baseando-se apenas numa generalização dos resultados experimentais. Por vezes, quando este conceito se emprega para esclarecer a relação entre aprendizagem e desenvolvimento, sistematização entende-se apenas no sentido de estereótipo. Este último conceito tem, sem dúvida, muita importância no desenvolvimento mental, dado que a formação do novo se produz sempre na base do velho, de quanto já se completou e reforçou. Mas o estereotipo por si só não é um conceito adequado para compreender o aparecimento dessas novas formações que caracterizam o verdadeiro desenvolvimento. Para compreender, por exemplo, o aparecimento de novos modos de raciocínio abstrato e generalizado no processo de aprendizagem, é necessário estudar as mudanças que se produzem em sistemas já estruturados quando se formam sistemas novos, de que modo se reorganizam, incluídos em uma nova totalidade mais ampla; é preciso estudar, além disso, o seu agrupamento, a sua generalização e a sua coordenação; é preciso estudar a formação de uma hierarquia específica e a dinâmica da organização. Além disso, é necessário estudar as forças sob cuja influência se produz a passagem de níveis inferiores de organização a outros superiores. Tudo isto coloca importantes problemas, cujo estudo experimental apenas se iniciou. Para esclarecer o problema das relações recíprocas entre educação e desenvolvimento é necessário também estudar as componentes motivacionais da atividade mental. O desenvolvimento das características intelectuais do aluno não poderá discutir-se de modo adequado se se prescindir do desenvolvimento das outras características (emotivas, volitivas, do caráter), quer dizer, da formação unitária da personalidade em desenvolvimento. Este processo é unitário, e não simplesmente a soma de mudanças parciais que se produzem em conseqüência de ações educativas separadas. Entre as demais condições, há de se ter em conta as atitudes até do ambiente circunstante, recentemente estudadas com êxito por V. N. Miasishchev, atitudes que caracterizam tanto a posição individual de cada personalidade como as condições internas das ações. Outras investigações demonstraram o importante papel que assumem as motivações subjetivas do aluno, para o trabalho escolar na assimilação de conhecimentos. Algumas destas atitudes formam-se no decurso do próprio processo de aprendizagem. São elas, por exemplo, os interesses cognoscitivos e escolares dos alunos, o seu interesse pelo conhecimento, etc. Os resultados de algumas experiências mostram que estas atitudes são o resultado de uma atividade cognoscitiva ativa dos alunos, organizada de um modo perfeitamente determinado que lhes permite resolver por si só problemas acessíveis, e capaz de conduzir ao conhecimento e à realização dos resultados obtidos. Outras atitudes subjetivas são conseqüência não tanto de métodos como de ações educativas “ambientais” que conduzem a uma mudança nas relações entre personalidade e ambiente social; a uma mudança do comportamento prático e dos modos de vida. Aprendizagem e educação têm, obviamente, muito em comum. Por um lado, instruindo os alunos, dando-lhes conhecimentos, exercemos sobre eles uma notável ação educativa; por outro, durante todo o curso da educação, dá-se sempre no educando a aquisição de determinados elementos da experiência social (opiniões, juízos de valor, normas, regras de comportamento 49 moral, etc.). Além destes aspectos comuns, estes processos têm, todavia, particularidades especificas que é necessário ter em conta quando se examina o problema da recíproca conexão entre ação educativa (nas suas diversas formas) e desenvolvimento mental. Recentes experiências no campo da psicopedagogia demonstraram que no decorrer do processo educativo se desenvolvem as atitudes das crianças perante a realidade circunstante; que se formam novas atitudes sob a influência das tarefas propostas, e quais são os métodos educativos mais eficazes — e quais os menos eficazes — para este fim. Já na idade pré-escolar se definem algumas destas atitudes, sob a influência de formas especiais de educação. Assim, já na idade pré-escolar começam a formarse na criança tendências gerais de comportamento em formas simples (por exemplo, o desejo de fazer algo útil às pessoas próximas, uma altitude positiva perante o trabalho, etc.). Na formação destas tendências desempenha um importante papel não só a consciência que as crianças têm do significado das tarefas fixadas, mas também a organização das suas atividades coletivas, no sentido de satisfazer as necessidades da coletividade e de unia análise coletiva dos resultados. Como demonstram os resultados de algumas experiências, a formação de uma atitude positiva perante o trabalho escolar passa por uma série de etapas. Ao princípio, esta atitude desenvolve-se como conseqüência das instruções do professor e das exigências da coletividade; depois, como resultado da experiência acumulada, a criança começa a realizar os seus deveres sem ajuda. Desenvolveu-se assim uma atitude interior positiva perante o trabalho, que se manifesta ao princípio dentro de limites muito restritos e que adquire com a continuação um caráter de generalidade. Os resultados de outra série de experiências definem as condições e os métodos da formação no aluno de outros valores e altitudes: gosto pelo trabalho, comportamento auto-regulado, responsabilidade, etc. Estes resultados indicam que as normas morais que regulam o comportamento se formam — como observa V. N. Miasishchev — sob a influência de determinadas exigências saciais externas aceitas e assimiladas, que depois se transformam em exigências internas que o mesmo aluno faz suas. A consciência destas exigências por parte da criança não se converte de i.mediato em um elemento regulador do comportamento, mas adquire esta função apenas por graus. A norma de regulação (valor) começa a desenvolver-se em colaboração direta com os adultos e com as outras crianças e é reforçada continuamente por estas. Com a continuação, transforma-se em regulador interno do comportamento e atua mesmo sem estímulo e reforço dos outros, sem auxílio alheio, por própria iniciativa do aluno. Outras investigações demonstraram que este processo produz de modo diferente, segundo os indivíduos. Depende dos impulsos causais da ação, da situação subjetiva, das características das atitudes desenvolvidas pelo estudante nas etapas precedentes perante o docente, a escola e o trabalho escolar, a família. Perante um terreno subjetivo favorável, estas exigências são absorvidas imediatamente e dão logo um resultado ativo. Pelo contrário, se entram em conflito com atitudes subjetivas já formadas e mais ou menos estabilizadas perante o mundo circunstante, são compreendidas apenas formalmente, não “se fixam” por inteiro e, portanto, não assumem nenhuma função reguladora. Ocorre com freqüência que um estudante compreende estas exigências no que diz respeito aos outros, mas não as relaciona com o seu próprio comportamento. Os fatos demonstram que as exigências feitas ao estudante, e compreendidas por este, não produzem o efeito desejado se entram em conflito com os impulsos causais da sua atividade; isto acontece quando o estudante descobre nessas exigências um atentado contra os seus esforços feitos na direção da independência, da auto-afirmação, da satisfação dos seus próprios interesses, quando as considera uma ameaça para a sua própria dignidade (freqüentemente mal entendida) ou para a sua própria posição no coletivo, etc. Perante tais condições subjetivas, as influências educativas não podem determinar uma resposta adequada, as tarefas propostas ao aluno não representam para este uma necessidade real. Os alunos, de maneira evidente ou oculta, opõem uma resistência. É costume acontecer que exortações e advertências infinitas não dão um resultado determinado e estável, não estimulam na criança a devida atitude perante a situação em questão, não mudam o seu comportamento real. 50 O que foi dito é Importante para descobrir as condições para uma atitude educativa eficaz no desenvolvimento da personalidade; e em particular no desenvolvimento das tendências do comportamento, das atitudes perante outras pessoas e determinadas obrigações. A eficácia desta condução depende do grau de correspondência entre métodos e tarefas da educação, da identidade e constância das diferentes exigências educativas (por parte da escola e do ambiente doméstico), da unidade de palavra e ação na educação, de como na realidade está organizada e conduzida a vida do aluno. A educação influi de maneira diferente (com um ritmo deferente e um resultado variável) nas tendências de comportamento de uma personalidade e nas suas maneiras de regulação interna, ao ponto de tomar em consideração, utilizar e mudar na direção necessária, tanto as atitudes subjetivas que se formaram durante o desenvolvimento precedente, como as tendências de comportamento realmente operantes. A educação alcança o seu objetivo imediato (particular) e definitivo (geral) quando põem em ação as capacidades potenciais do aluno, e, em conformidade, dirige a sua utilização. A interação dos diferentes aspectos da educação (intelectual, moral, estética, prática e física) desempenha aqui um papel importante, assegurando a participação da criança nas diversas atividades necessárias para um desenvolvimento das suas potencialidades em todas as direções. Toda a educação determina, de uma maneira ou de outra, o desenvolvimento da personalidade da criança, deixando nela um vestígio. Todavia, nem toda a educação dirige ativamente o desenvolvimento para fins específicos. Existem casos (bastante freqüentes, na nossa opinião) em que o resultado da educação é exatamente o contrário do desejado. Por isso é impossível contentarmo-nos com afirmações acomodatícias sobre o papel proeminente da educação no desenvolvimento da personalidade; é necessário descobrir em que condições a educação satisfaz realmente estes objetivos e contribuir por este meio, praticamente, para a previsão dos fenômenos negativos no desenvolvimento dessas qualidades (morais e outras) da personalidade adolescente, que interessam diretamente à nossa sociedade. A educação que separa as palavras dos atos é um fracasso; a instrução pedagógica verbal, que a criança não põe em prática, não traz nenhuma mudança real à sua vida, à sua posição no coletivo. A educação fracassa se não toma em consideração as deveras interconexões da criança com o ambiente, se está alienada da sua vida real, das condições subjetivas (apenas através das quais pode atuar), da precedente história do desenvolvimento de cada aluno, da sua idade e das suas características individuais, das suas capacidades, interesses, exigências e outras atitudes perante a realidade. Se a educação considera a criança “apenas como um objeto e não como um ser vivo” (Makaxenko), ignora a sua atividade autônoma e mina a sua independência, não efetua o que se propõe (apesar das muitas e importantes “medidas” educativas exteriores), de modo que o trabalho resulta, na realidade, absolutamente estéril. Tudo o que se disse leva a concluir que há uma inter-relação complexa entre educação e desenvolvimento. Por outro lado, o desenvolvimento da personalidade depende da educação, que cria as condições necessárias para que aquele se realize; o desenvolvimento é determinado pela educação. O processo educativo, ao colocar a criança perante novos fins e novas tarefas, ao colocar novas perguntas e procurar os meios necessários, conduz o desenvolvimento. Por outro lado, a própria educação depende do desenvolvimento da criança, da sua idade e das suas características individuais. Não pode haver desenvolvimento da personalidade sem que estejam presentes as exigências da sociedade; mas estas exigências só são realistas quando se criam no decurso do desenvolvimento da criança as capacidades para as satisfazer. O desenvolvimento produz-se através daquilo que a criança se faz no seu processo de aprendizagem e educação, mas freqüentemente os seus resultados vão mais longe, em certos aspectos, daquilo que aprendeu diretamente. Durante a vida e a atividade da criança, organizada pela educação, apresentam-se não só novos conhecimentos que refletem a realidade objetiva, mas também novas necessidades, exigências, interesses, aspirações (em especial a aspiração a aperfeiçoar-se), meios gerais para as ações intelectuais e práticas, novas formas de pensamento, novas sensações, novos aspectos de caráter, novas aptidões. Estas qualidades não se afirmam imediatamente, mas desenvolvem-se no decorrer da atividade da criança (na escola, no trabalho, 51 etc.), sob a condução da educação. A sua formação está ligada ao desenvolvimento global da vida, no qual entra em jogo a maturação do organismo. Portanto, do desenvolvimento surgem novas possibilidades de educação. Atualmente, a inter-relação destes processos costuma simplificar-se e explicar-se de modo unilateral. Determinadas afirmações sobre este problema costumam insistir apenas sobre o fato de que o desenvolvimento depende da educação. O desenvolvimento psíquico do aluno é representado como uma simples secessão de diferentes influências educativas, como se as qualidades próprias da criança não exercessem a menor influência sobre o processo educativo. Interpretações deste gênero devem-se à confusão entre aprendizagem, educação e desenvolvimento. Estes processos, ainda que estreitamente ligados entre si, na realidade são diferentes; do que se disse anteriormente, deriva que as diferenças não são absolutas, mas relativas, mas apesar de tudo existem. Reconhecer estas diferenças, estudar as características especificas da aprendizagem, da educação e do desenvolvimento, é de enorme importância para esclarecer depois as interconexões entre esses processos e preparar uma sólida base psicológicas para uma eficaz condução educativa do desenvolvimento da personalidade; assumir uma atitude negativa perante este periblema e não fazer o menor esforço para o estudar, equivale a simplificar excessivamente a tarefa de conduzir o desenvolvimento da criança. Esta simplificação tem um efeito nocivo na prática: ao pôr em relevo apenas as ilimitadas possibilidades da educação, de fato limita, porque restringe e desarma a pedagogia. A história do desenvolvimento psíquico da criança, da for-inação da consciência e da autoconsciência realiza-se através do processo de aprendizagem e de ensino. Mas este desenvolvimento tem características próprias, leis próprias ligadas a leis que regulam a aprendizagem e a educação, mas que não se identificam com estas; além disso, dispõem de uma força motriz própria. O desenvolvimento psíquico não é uma simples réplica das influências educativas a que uma criança está sujeita, não é uma simples acumulação quantitativa estratificada daquilo que a criança adquire nos diferentes atos da atividade escolar ou de outro gênero. Há uma seleção, uma transformação interna, uma reorganização, uma amálgama, uma interação, em conseqüência do que uma característica pode desaparecer quando aparece e se desenvolve outra. Este processo é determinado durante toda a vida da criança pela sociedade, que, com a sua influência, inibe ou extingue um sistema de conexões, faz surgir outro e consolida-o, e assim sucessivamente. Assim pode entrar em ação as leis que regem a passagem do desenvolvimento de uma etapa inferior a uma superior. Na sua forma geral, as leis que regulam o desenvolvimento refletem as conexões e as relações em que se baseia a constituição da personalidade consciente, a formação de diversas qualidades, a passagem de formas inferiores de reflexão sobre a realidade para outras superiores, de formas inferiores a formas superiores de relação com o ambiente, a formas superiores de autoregulação. Como sublinhou Lênin, “condição para o conhecimento de todos os processos do mundo no seu “automovimento”, no seu desenvolvimento espontâneo, na sua vida real, é o seu conhecimento como unidade dos opostos”, das tendências contraditórias no seu interior. Isto é igualmente válido para a psicologia do desenvolvimento da criança. A força motriz deste desenvolvimento ver-se-á antes de tudo nas contradições internas entre as novas exigências feitas à criança e a sua satisfação; nas contradições entre os seus problemas, as suas aspirações e os objetivos reais e o nível de desenvolvimento por ela alcançado; entre novas tarefas e modos de pensamento e de comportamento já estereotipados; entre as possibilidades desenvolvidas internamente, subjetivamente, e as relações objetivas com o ambiente. Tarefa nossa é descobrir estas contradições e as condições em que nascem, descobrir como se desenvolvem nos diversos níveis de idade e de que modo podem resolver-se; o mesmo é dizer, chegar a compreenda o desenvolvimento da personalidade como um “movimento espontâneo internamente necessário”. Pensou-se por vezes que a aceitação do caráter espontâneo do desenvolvimento mental 6 incompatível com o principio determinista, segundo o qual o desenvolvimento está condicionado socialmente e a educação desempenha um papel importante. Esta concepção apóia-se por um 52 lado em interpretações idealistas da espontaneidade do desenvolvimento, e por outro em uma confederação simplista e mecanicista da forma como está condicionado o desenvolvimento. Observam-se aqui as repercussões daquela concepção “epigenética” que considerava o desenvolvimento mental da criança como uma conseqüência passiva da educação; no desenvolvimento faltava todo o “automovimento”, toda a lei especifica. Quando se parte deste ponto de vista, ignora-se a importância destas leis na prática educativa. Isto é tanto demonstrado pela escassa atenção prestada ao estudo da idade e das características individuais no desenvolvimento psíquico, como pela aplicação dos resultados experimentais na prática educativa das escolas. A consideração materialista dialética, que na realidade deriva do determinismo, vê pelo contrário o caráter “espontâneo” do desenvolvimento como conseqüência do seu automovimento. O desenvolvimento de todo o ser, incluindo a criança, o seu “próprio movimento”, a sua “própria vida”, é condicionado pela “tonalidade das múltiplas relações” com a realidade circundante. Como se observou em outra situação, uma concepção do desenvolvimento como “automovimento” não limita em absoluto a tarefa de uma condução pedagógica, mas indica melhor como empreendê-la com êxito. E a chave para compreender como nasce o novo na vida da criança, como esta se torna independente, como desenvolve a iniciativa, a atividade criadora, a capacidade consciente de regular o seu próprio comportamento; e, portanto, serve para descobrir as direções em que podem ser melhorados os métodos educativos. Só uma educação eficiente leva ao desenvolvimento da personalidade da criança, e a educação apenas é eficiente quando toma em consideração as leis e as características do processo de desenvolvimento. Quanto mais conduzida por estas leis é a educação, quanto mais consciente está delas, mais capaz será de guiar com êxito o desenvolvimento da personalidade de acordo com as metas educativas. É necessário reconhecer a natureza específica do desenvolvimento mental, a fim de que os psicólogos dediquem grande atenção ao estudo deste processo, consigam que a pedagogia conheça as suas características, e proporcionem assim os fundamentos psicológicos de métodos ativos para conduzir a educação das novas gerações de modo que assegurem o desenvolvimento global da personalidade. INTELIGÊNCIAS MÚLTIPLAS Segundo Gardner, existem distintas formas de inteligência que cada indivíduo possui em graus variados. As sete formas primárias Palavras – poetas, roteiristas, Novelistas e oradores Figuras & imagens – pintores, Escultores, designers-gráficos 53 Números & lógica – matemáticos, advogados, banqueiros e programadores de computador Todo o corpo & as mãos – Atletas, mímicos, dançarinos, cantores e inventores Compreensão social – conselheiros, consultores, professores, terapeutas, ministros Tom & ritmo – compositores, instrumentalistas, maestros, arranjadores musicais e professores de música Auto-conhecimento – psiquiatras, filósofos e gurus Inteligências Múltiplas Segundo o dicionário enciclopédico inteligência é a faculdade de conhecer de compreender: a inteligência distingue o homem do animal. / Compreensão; conhecimento profundo: ter inteligência para os negócios./ Destreza, habilidade: cumprir com inteligência uma missão./ Boa convivência, união de sentimentos: viver em perfeita inteligência com...! Ajuste, conluio, relações secretas: ter inteligência com os inimigos. Aqui trataremos da inteligência como faculdade de compreender e conhecer. Alguns psicólogos vêem a inteligência como uma capacidade geral para a compreensão e raciocínio que se manifesta de variadas maneiras. Disse Binet, “Parece-nos que, na inteligência, existe uma faculdade fundamental, cuja alteração ou ausência é da mais extrema importância para a vida prática. Esta faculdade é o julgamento, também chamado de bom senso, iniciativa, faculdade de 54 adaptação de si mesmo às circunstâncias. Para o bom julgamento, a boa compreensão e bom raciocínio, essas são atividades essenciais da inteligência”. (Binet & Simon, 1905) David Wechsler define inteligência como “uma capacidade agregada ou global do indivíduo para agir objetivamente, para pensar racionalmente, e para lidar efetivamente com seu ambiente”. (Wechsler, 1958) A partir de todas estas definições, uma nova teoria vem surgindo, a Teoria das Inteligências Múltiplas. Esta foi elaborada a partir dos anos 80 por pesquisadores da Universidade norteamericana de Harvard, liderados pelo psicólogo Howard Gardner. A origem da teoria é interessante. Acompanhando o desempenho de alunos fracos, Gardner se surpreendeu com o sucesso obtido por eles. O pesquisador passou então a questionar a avaliação escolar, cujos critérios não incluem a análise de capacidades que, no entanto, são importantes na vida das pessoas. Concluiu que as formas convencionais de avaliação apenas traduzem a concepção de inteligência vigente na escola, limitada à valorização da competência lógico-matemática e lingüística. Gardner demonstrou, porem, que as demais faculdades também são produtos de processos mentais e que não há motivo para diferenciá-las do que geralmente se considera inteligência. Assim, ele ampliou o conceito de inteligência única para o de um feixe de capacidades e conceituou inteligência como “a capacidade de resolver problemas ou elaborar produtos valorizados em um ambiente cultural ou comunitário”. Assim, percebemos que foi observando crianças que o psicólogo americano Howard Gardner percebeu o que hoje parece óbvio: nossa inteligência é complexa de mais para que os testes escolares comuns sejam capazes de medi-la. Diziam-se que a base desses teste é uma só e varia de nível de pessoa para pessoa. Gardner se contrapõe a isso. Em 1983, no livro Estruturas da Mente, ele definiu sete inteligência: a lógico-matemática, a lingüística, a espacial, a corporal-cinestésica, a interpessoal, a intrapessoal e a musical. Atualmente o psicólogo americano descobriu mais uma, a naturalista. A inteligência lógico-matemática é a inteligência que determina a habilidade para o raciocínio dedutivo, para a compreensão de cadeias de raciocínios, além da capacidade para solucionar problemas envolvendo números e demais elementos matemáticos E a competência mais diretamente associada ao pensamento científico e à idéia tradicional de inteligência. O inglês Stephen Hawking, 55 anos, é um gênio do tipo lógico-matemático. Doutor em Cosmologia ocupa a cadeira de lsaac Newton como professor de Matemática da Universidade de Cambridge. Preso a uma cadeira de rodas por causa de uma doença degenerativa, é considerado o mais brilhante astrofísica desde Albert Einstein. A inteligência musical permite a alguém organizar sons de maneira criativa, a partir da discriminação de elementos como tons, timbres e temas. As pessoas dotadas desse tipo de inteligência geralmente não precisam de aprendizado formal para exercê-la, como é o caso de muitos famosos da música popular brasileira. Aos 49 anos, a paulista Rita Lee é um exemplo de fértil inteligência musical: além de cantora e compositora, toca guitarra, flauta e harpa. Aos 18 anos formou um conjunto só de garotas. Pouco depois, integrou o grupo Os Mutantes, e, a partir daí a partir dos anos 70, lançou-se com grande sucesso na carreira solo. A lingüística manifesta-se na habilidade para lidar com as palavras nos diferentes níveis da linguagem (semântica, sintaxe), tanto na forma oral como na escrita, no caso de sociedades letradas. Particularmente notável nos poetas e escritores, é desenvolvida também por oradores, jornalistas, publicitários e vendedores, por exemplo. O romancista baiano Jorge Amado, 78 anos, é dotado de excepcional inteligência lingüística. Cria textos de valor artístico universal. E o mais traduzido dos escritores brasileiros. 55 A inteligência espacial é representada como a capacidade de formar um modelo mental preciso de uma situação espacial e utilizar esse modelo para orientar-se entre objetos ou transformar características de um determinado espaço. Ela é especialmente desenvolvida, por exemplo, em arquitetos, navegadores, pilotos, cirurgiões, engenheiros e escultores. Imagina como o arquiteto carioca Oscar Niemeyer, 80 anos, projetou Brasília. Onde nada havia, ele “viu” construções com formas e volumes variados, definindo uma nova percepção do espaço urbano. Sua inteligência espacial tornou-o capaz de prever e solucionar problemas, liberando seu potencial criativo. A corporal-cinestésica é uma inteligência que se revela como uma especial habilidade para utilizar o próprio corpo de diversas maneiras. Envolve tanto o autocontrole corporal quanto a destreza para manipular objetos (cinestesia é o sentido pelo qual percebemos os movimentos musculares, o peso e a posição dos membros). Atletas, dançarmos, malabaristas e mímicos têm essa inteligência altamente desenvolvida. Pense no quanto o cérebro de Paula Silva, a Paula do basquete, trabalha para que os músculos e nervos realizem movimentos precisos e com força necessária às suas jogadas. Não é à toa que, aos 34 anos, campeã mundial e medalha de prata nas Olimpíadas de Atlanta, a jogadora paulista é considerada uma das melhores atletas do mundo. Ter empatia, é ter sensibilidade para perceber as emoções do outro e colocar-se no lugar dele. Esse sentimento, básico nas manifestações de solidariedade, relaciona-se com comportamentos de fundo ético. A empatia deixa claro o quanto é doloroso ser injustiçado ou agredido. Assim, as pessoas compreendem que os outros têm sentimentos semelhantes aos seus e se esforçam para não cometer injustiças ou agressões. Capacidade de se relacionar é a habilidade de lidar com as emoções dos outros de maneira adequada. Em qualquer relacionamento, as pessoas enviam sinais verbais e não verbais que afetam os demais. O controle adequado dessa sinalização permite elevar o grau de bem estar que se causa aos outros. Essa bagagem humana é básica nos líderes e nas chamadas “estrelas sociais”, pessoas que todos consideram encantadoras. Um outro teórico defende a idéia de que o estudante deve ser visto como um indivíduo pleno, e não apenas como um intelecto vestido de uniforme escolar. E o professor Celso Antunes, que há mais de vinte anos desenvolve experiências semelhantes à de Daniel Goleman. Consultor de escolas paulistas que estão criando projetos pedagógicos a partir da tese da Inteligência Emocional, Antunes é também autor do livro Alfabetização Emocional. Na publicação, ele defende uma escola mais atenta aos aspectos emocionais dos alunos e alinha sugestões de como desenvolver esse objetivo pedagogicamente. Para ele, tanto a preparação do professor quanto o planejamento das atividades e da avaliação são essenciais ao desenvolvimento de um curso de inteligência emocional. Dentre seus alertas, estão quanto à metodologia de ensino, sistema de avaliação, conteúdo e preparação do professor. Quanto à metodologia de ensino, esqueça as aulas expositivas convencionais. Se o objetivo é levas as crianças a refletir sobre si mesmas e sobre suas relações com os outros, elas não vão funcionar. Pense em técnicas que estimulem debates, como teatros, jogos e brincadeiras. O interesse do aluno deve ser respeitado num tal nível que ele possa compreender o problema e se expressar sobre o que está sendo discutido. No sistema de avaliação, deve-se abandonar o modelo de avaliações tradicionais baseadas em notas. Não há uma nota mínima ou média que o aluno deva alcançar. A avaliação precisa levar em conta qual o grau “ótimo” de cada um. Começar a falar mais em grupo é ótimo para uma criança muito tímida, mas faz pouca diferença para outra já extrovertida. Observe como os alunos se desenvolvem e adapte as estratégias aos seus objetivos. Quanto ao conteúdo, o programa de um curso desse tipo deve corresponder às cinco habilidades que compõem a inteligência emocional: autoconsciência, lidar com emoções, automotivação, 56 empatia e capacidade de se relacionar. O que muda é a forma de abordagem, que precisa se adequar à faixa etária ou ao grau de amadurecimento das crianças. Alunos que freqüentam a segunda série, por exemplo, terão perspectivas bem diferentes sobre suas emoções se comparados a adolescentes prestes a concluir o primeiro grau. E, quanto à preparação do professor, para trabalhar com inteligência emocional, deve-se estar preparado para aceitar inovações e sentir-se à vontade para falar de seus sentimentos e dos demais, O ideal de cada professor é que receba treinamento específico envolvendo técnicas de sensibilização de grupo e mediação de discussões. Seja observador para avaliar o que se passa com os alunos e flexível para buscar as adequações necessárias. Assim, como pudemos perceber, todos os autores relatados entram no mesmo ponto, de que existem diferentes formas de inteligência e de que deve-se ver o indivíduo como um todo, uma pessoa que tem habilidades diferentes que podem ser estimuladas, desenvolvidas, dotadas de carga genética para habilidades específicas, pessoas estas que possuem mais de uma habilidade, mas uma que predomina. E dotada também de uma carga emocional que influi diretamente em toda sua vida. Portanto, o mundo deve se preparar para esta nova realidade, e entender que o ensino deve mudar, que os professores devem ser reciclados, que os alunos devem ser melhor preparados, para que gostem daquilo que está sendo ensinado, e sintam prazer de estudar. O mercado hoje é uma guerra, e as pessoas devem estar preparadas para enfrentá-la, e entendendo o indivíduo como um todo e aproveitando suas habilidades, todos podem enfrentar o mercado de trabalho com segurança e melhorar, assim, toda a nossa sociedade. Bibliografia: - LAROUSSE, Koogan. Pequeno Dicionário Enciclopédico. (1985) São Paulo: Editora Antônio Houaiss. -Reportagem Ria das Inteligências Múltiplas. Revista Nova Escola. Abril/1997. - Reportagem Lidar com as Emoções é Sinal de Inteligência. Revista Nova Escola. Março11 998. Reportagem O Guru das Inteligências Múltiplas: uma Entrevista com Howard Gardner. Revista Nova Escola. Setembro / 1997. <fim do trabalho> 57