Quebrem meus ossos, mas não me deixem morrer! Os médicos devem fornecer RCP “fúteis”? 1 Dominic Wilkinson2 Tradução: Alexandra Oliveira3 Dois casos recentes em Toronto ilustram um dilema que médicos de hospitais enfrentam frequentemente. O que eles deveriam fazer se pacientes ou seus representantes insistem em tratamentos que os doutores crêem serem fúteis? Deveriam simplesmente fazer a vontade do paciente apesar de seus receios? Alternativamente, deveriam unilateralmente negar o tratamento se sentem que seria inapropriado fornecê-lo? No caso mais recente, Mann Kee Li, de 41 anos, com câncer avançado apesar da quimioterapia, deixou instruções específicas quando entrou no hospital. Ele queria que sua vida continuasse ainda que estivesse em coma, propenso a nunca mais recuperar consciência. Se seu coração parasse, ele queria que os médicos tentassem fazer ressuscitação cardiopulmonar (RCP), mesmo se isso fosse dolorido, quebrasse suas costelas ou perfurasse seus pulmões. No entanto, os médicos responsáveis por Mann Kee, decidiram não seguir suas instruções. Eles fizeram uma nota em seu prontuário de que não seria feito ressuscitação em caso de parada cardíaca. A família de Mann Kee procurou a Corte para compelir o hospital a seguir suas vontades. Um funcionário do hospital expressou o ponto de vista médico sobre o caso: “Quando equipes clínicas determinam que intervenções mais profundas não trariam benefícios aos pacientes...eticamente e legalmente, os profissionais da saúde não estão obrigados a proporcionar intervenções que jazem fora dos cuidados comuns e que seriam de nenhum benefício, e, ainda, podem até trazer malefícios ao paciente” Este caso veio apenas um mês depois de que uma família ajuizou um processo contra o mesmo hospital por terem falhado em promover ressuscitação em Douglas DeGuerre, paciente de 88 anos, que morreu no hospital após passar por uma cirurgia na qual amputou as pernas. Disputas sobre decisões de ressuscitação como estas fez crescer o número de casos jurídicos, e centenas de artigos acadêmicos sobre futilidade médica. Geralmente, o que está em jogo, é a definição de tratamento “fútil”, e se um tratamento para um determinado paciente seria ou não fútil. Mas debates sobre definição de futilidade esquecem um ponto ético crucial. Há apenas duas razões últimas para que os médicos declinem em fornecer tratamento que um paciente acredite que lhe beneficie. A primeira é um julgamento paternalístico de que o tratamento seria contrário aos interesses do paciente e que lhe traria malefícios. A segunda tem como base os recursos insuficientes. 1 http://blog.practicalethics.ox.ac.uk/2010/10/break-my-bones-but-don%e2%80%99t-let-me-die-should-doctorsprovide-%e2%80%98futile%e2%80%99-cpr/ acesso em 08.02.2011 2 DPhil Student, Oxford Uehiro Centre for Practical Ethics, University of Oxford 3 Graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e bolsista do projeto Ética e realidade atual: o que podemos saber, o que devemos fazer (www.era.org.br). A declaração do funcionário do Hospital Sunnybrook parece estar baseada na primeira razão. O que os médicos estão dizendo, com efeito, é “nós sabemos que você quer este tratamento, e você pensa que isto lhe beneficiaria, mas nós sabemos melhor”. Um julgamento deste tipo, de que uma ressuscitação não deveria ser proporcionada, se isso vai apenas permitir que o paciente viva por um período muito curto, ou que tenha poucas chances de sucesso, é necessariamente baseado em um julgamento sobre o valor da sobrevivência, e frequentemente sobre o que constitui uma boa morte. Mas o problema é que se priorizam os valores dos médicos sobre os do paciente. Muitas pessoas podem acreditar que a vida não valeria a pena se ficasse em um estado permanente de inconsciência, mas outros têm um ponto de vista diferente. Eu pessoalmente não escolheria ter um RCP nos meus últimos momentos se tivesse uma chance mínima ou nula de recuperar uma vida que considero valiosa de ser vivida. Porém outros parecem considerar a massagem cardíaca quase como um último rito secular – prova de que os médicos fizeram tudo que foi possível. Um destes julgamentos é certo e outro errado? Por que é dada primazia à visão de mundo do douto? Uma razão para que os pedidos dos pacientes sejam desconsiderados é de que os médicos talvez acreditem que o enfermo não sabia realmente o que estava requerendo à época em que pediu “ressuscitação total”. O presente caso é distinto, pois Mann Kee parecia saber exatamente o que seu pedido de RCP poderia envolver. Paternalismo pode ser às vezes justificado. Algumas escolhas podem ser suficientemente irracionais de modo que não devem ser respeitadas. Imagine, por exemplo, que um paciente quis que o tratamento fosse continuado, mesmo que isso significasse que ele estaria em constante e prolongada agonia? Fica claro que neste caso não há razão racional para tal escolha, e que aquiescer a ela iria prejudicar o paciente. Mas promover a RCP nas circunstâncias dos Sr. Li ou Sr. DeGuerre, não seria bem assim. A mais provável resposta da ressuscitação deles seria a de que morreriam ainda que todos os esforços médicos tenham sido empregados para adiar a morte. Se nós estivéssemos realmente preocupados com eles sofrendo dores com as compressões no peito, nós sempre poderíamos providenciar anestesia intravenosa ou intramuscular no início da ressuscitação. Na verdade, a segunda justificativa em negar tratamentos fúteis é muito mais forte – porém é muito menos discutida. Se proporcionar o tratamento pode trazer prejuízos a outros pacientes, há uma justificativa mais clara e menos ambígua na recusa em fornecê-lo. Fazer a RCP em um paciente que tem 0,5% de chance de ter sucesso pode ou não ser suficiente para compensar sua indignidade e a potencial dor da ressuscitação. Mas fazer a RCP neste paciente pode significar que a equipe de ressuscitação não estará disponível para outros pacientes (que têm uma chance maior de recuperação). Mais significativamente, se a ressuscitação resultasse no retorno da circulação no paciente como o Sr. Li ou Sr. DeGuerre, ele precisaria ser admitido em tratamento intensivo para poder sobreviver. E os aposentos da unidade de tratamento intensivo são altamente caros e escassos. Quando a unidade de tratamento intensivo está cheia (o que não é incomum) outros pacientes que poderiam ter benefícios se admitidos deverão ser transferidos para outro hospital, ou cuidados sem o tratamento intensivo. Pacientes que são recusados no centro de tratamento intensivo têm uma significativa maior taxa de mortalidade do que aqueles que foram admitidos. Uma última justificativa que às vezes é dada para declinar tratamentos inúteis, é a de que isso poderia violar a integridade profissional do médico ou ab-rogar sua responsabilidade profissional. Mas não é claro o que isto significa. Se o tratamento não é danoso nem para o paciente nem aos outros pacientes (impedindo-os de terem acesso aos recursos escassos), por que a integridade profissional estaria sob ameaça? Se esta é uma das razões que levam ao discurso de integridade, então não há razão para discutir a integridade profissional. No caso de Mann Kee Li, mencionado no início deste post, membros da família retiraram seu pedido de RCP apenas horas depois de iniciado o procedimento na Corte. Sua deterioração física levou-os a acreditar que ele não desejaria mais que fossem providenciadas medidas de ressuscitação. Embora os casos de desacordos intratáveis (cf. Golubchuk, Betancourt) recebam comumente maior atenção do público, a maioria das disputas fúteis são resolvidas com tempo e boa comunicação. Entretanto, os médicos devem promover tratamentos que considerem “fúteis” – quando o tratamento causar pouca ou nenhuma dor ao paciente, e não privar outros pacientes de terem acesso a este recurso. Em outros casos, os médicos estão corretos em negar tratamento que reputem como inapropriados. No entanto, a razão mais forte para fazê-lo tem como base a justiça distributiva e o impacto na promoção do tratamento dos demais. * Em uma pesquisa sobre a visão dos pacientes acerca da ressuscitação, 10% dos pacientes indicou que gostaria da ressuscitação mesmo se estivesse permanentemente inconsciente.