Grávida vítima de Zika deve ter direito ao aborto

Propaganda
E
m 2012, o Supremo Tribunal
Federal (STF) determinou, por
8 votos a 2, que não é crime o
aborto de fetos anencéfalos (com máformação do cérebro e do córtex, que
leva o bebê à morte logo após o parto).
Agora, a disparada de casos suspeitos de
microcefalia relacionada ao vírus zika
reacende o debate: grávidas vítimas do
zika também têm direito de abortar?
Bebês com microcefalia (condição em
que o cérebro não cresce o suficiente durante a gestação) são diferentes de bebês
anencéfalos. A literatura médica aponta
que 91 o/o dos anencéfalos morrem até
uma semana após o parto e apenas 1%
sobrevive mais de três meses. Uma criança
portadora de microcefalia tem melhores
perspectivas de sobrevivência, mas apresentará variados níveis de deficiência, física ou mental. Há um complicador caso
se decida pelo aborto: a microcefalia só
pode ser detectada com segurança quando a gestação já se aproxima do sexto mês,
ou após 24 semanas. Nessa fase, o bebê
já está formado, a ponto de poder sobreviver fora da barriga da mãe. Há casos
de sobrevivência de bebês nascidos após
apenas 21 semanas de gestação. Mesmo os
países com legislação mais liberal, como
a Espanha, só autorizam aborto até a 14ª
semana. "Propor o aborto como solução a
uma grávida quando se faz o diagnóstico
de microcefalia é negar a ela o o amparo
de que realmente necessita': afirma Lenise
Garcia, coordenadora do curso de biologia da Universidade de Brasília (UnB).
Professora da mesma universidade e
pesquisadora de bioética, Debora Diniz faz
parte de um grupo que pretende pedir ao
STF a extensão às mulheres contaminadas
com o vírus zika do direito de interromper
Foto: Thinkstook
a gravidez sem correr o risco de pegar até
três anos de reclusão, previstos no Código
Penal. Ao impedir a interrupção da gravidez, afirma Debora, o Estado as lança "em
situação de extremo desamparo''. "Manter
a gestação pode ser uma tortura psicológica, uma situação na qual ela não sabe o
que virá pela frente. Há uma situação de
estado de necessidade, na qual a mulher
passa por um intenso sofrimento': diz (leia
o artigo de Debora Diniz na página 56). Debora pedirá que mulheres que apresentam
sintomas de zika tenham assegurado o direito ao PCR, exame de sangue que pode
detectar a presença do vírus. A partir do
resultado, poderiam decidir o que fazer.
Mas estudos mostram que o PCR só é eficaz quando feito na primeira semana da
doença (leia mais na página 48).
Grupos contra o aborto se articulam para a lei ficar como está. No site de
campanhas on-line Citizen Go, a petição
"OMS: não instrumentalize o zika vírus
para promover o aborto" obteve mais de
30 mil assinaturas de apoio nos três primeiros dias. ''A criança com microcefalia tem uma patologia gravíssima, é um
APÓS LIBERAR O ABORTO
DE ANENCÉFALOS,
O STF DEVE SER
CHAMADO A DECIDIR
SOBRE CASOS DE
MICROCEFALIA
peso terrível para a família, mas me parece que peso maior é matar essa criança'',
diz Paulo Silveira Martins Leão Junim;
procurador do Estado do Rio de Janeiro e
presidente da União dos Juristas Católicos
da Arquidiocese do Rio (leia o artigo de
Lenise Garcia na página 57).
O Artigo 24 do Código Penal prevê
três situações em que alguém acusado
de crime escapa de sofrer sanções: legítima defesa, cumprimento do dever legal
e "estado de necessidade". Considera-se
em "estado de necessidade" a pessoa que
comete um crime "para salvar de perigo
atual, que não provocou por sua vontade,
nem podia de outro modo evitar, direito
próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se".
Esse argumento tem sido usado para a
obtenção de autorização judicial para
aborto ou a anulação de sanções em
países com legislação mais conservadora
como as Filipinas e o Chile.
Na Grã-Bretanha, nas décadas de 1940
e 1950, uma epidemia de rubéqla levou
muitas mulheres a abortar ilegalmente,
temerosas de uma série de sequelas no
bebê, entre elas a microcefalia. "Não havia como prever se o vírus atingiriâ o
feto, nem a magnitude dos problemas
que podiam ser causados" , diz a bióloga
Ilana Lowy, pesquisadora do Cermes3,
um centro de pesquisa na França. "Médicos britânicos se arriscaram à prisão
por achar que a mulher devia decidir o
futuro de sua gestação:' Uma década depois, o aborto foi legalizado. No Brasil, a
discussão se anuncia longa - a ação dos
anencéfalos tramitou durante oito anos
-, delicada e dolorosa para as famílias. +
Com Helena Fonseca
8 de fevereiro de 2016 1 ÉPOCA 155
DEBATES E PROVOCAÇÕES
Debora Diniz
O
escândalo não deve ser o direito ao
aborto em caso de zika, mas a negligência do Estado brasileiro em enfrentar a epidemia. A conversa precisa ganhar
contornos justos, e o mais importante deles é
reconhecer que as mulheres estão desampara das pela incapacidade do Estado de eliminar o
mosquito. Não podemos nos confundir agora,
pois falar em direito ao aborto parece provocar
um novo pânico. Direito ao aborto é só uma das
formas de proteger as necessidades de saúde das
mulheres em uma tragédia epidêmica. E não há
nada de eugenia aqui, uma palavra que perturba pelo passado de terror e pelo prenúncio de
discriminação injusta.
.
Segundo a OMS, "o nível de alarme é extremamente alto" para os riscos de má-formação
no feto causada pelo zil<a. O conjunto de variações etiológicas do feto é descrito como "microcefalia", mas estamos diante de um novo quadro
clínico ainda a ser descrito. Para cuidar dessa
metamorfose epidêmica, é preciso um pacote
amplo de proteções aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres: a) acesso irrestrito aos
métodos contraceptivos; b) teste para o zilza em
rotina de pré-natal; c) possibilidade do aborto legal em caso de testagem positiva aci zilza.
Para as mulheres infectadas pelo zil<a que não
desejarem o aborto, deve haver pré-natal com
cuidados específicos. Repito: sabemos pouco
sobre os efeitos do zil<a em mulheres grávidas.
Não há nada que se assemelhe à eugenia aqui.
O Estado não impõe às mulheres o aborto. Ao
56 1 ÉPOCA i 8 de fevereiro de 2016
contrário, há uma grave violação à saúde pela
vivência da gravidez em tempo de epidemia:
direito ao aborto ou cuidados precoces são duas
maneiras de amparar as mulheres grávidas. Um
estado democrático de direito reconhecerá essa
diversidade de escolhas: as mulheres nem serão
forçadas a manter-se grávidas sob riscos ainda desconhecidos a sua saúde e a de seu futuro
filho, tampouco serão forçadas a abortar. Um
Estado eugênico não reconhece o direito à autonomia da vontade, pois é um regime político
totalitário de gestão da vida.
Mas há outra razão para afugentarmos o fantasma da eugenia desta conversa. A epidemia fez
crescer o número de crianças com deficiência
em regiões pobres do Brasil - por isso, medidas
de proteção social que respeitem o novo marco
constitucional da pessoa portadora de deficiência devem ser urgentemente adotadas. Não há
isso de "geração de sequelados'~ como disse o
ministro da Saúde. Menos ainda a solução de
um salário mínimo para as famílias com crianças
afetadas pelo zilza: um Estado social forte não
se resume à transferência de renda no limite da
pobreza. A verdade é que não há incompatibilidade de agendas para o enfrentamento da epidemia: movimentos de mulheres e de pessoas
com deficiência devem andar lado a lado. São
as mulheres as principais vítimas da epidemia, e
são as mulheres as cuidadoras das crianças com
deficiência. Cabe a elas a escolha sobre seu projeto de vida e de família, especialmente em um
momento dramático como uma epidemia.
Debora Dlniz
é doutora em
antropologia, professora
de Direito da UnB e
pesquisadora da Anis
- Instituto de Bioétioa
Lenise Garcia
M
ães e pais de crianças com deficiência
passam por momentos duros e difíceis, por grandes desafios, e também
por alegrias talvez não percebidas por outros
pais, a cada pequeno progresso, a cada passo, a
cada vitória diante de um objetivo cotidiano. A
jornalista Ana Carolina Cáceres, portadora de
microcefalia, relata de forma emocionante seus
primeiros passos, para ir atrás de um cachorro.
O que terá passado pela mente e pelo coração
de seu pai, quando testemunhou o fato? Ele
tinha ouvido os médicos. dizerem que ela não
sobreviveria.
Por outro lado, mulheres que fizeram aborto,
especialmente nos casos de alguma má-formação, vivem na dúvida: como seria agora meu
filho? Como teria se desenvolvido? Sim, porque
essa mulher tem um filho. Morto, mas filho.
A meu ver, este é um dos grandes equívocos
nos argumentos para a liberação do aborto:
tratar o filho abortado como se ele fosse inexistente, como se fosse possível "cancelar" uma
gravidez. Toda mulher que tenha perdido um
filho em um aborto espontâneo conhece a dor
dessa perda, e precisa trabalhá-la, como fazemos
diante de todos os nossos seres queridos que se
foram. Não se pode considerar que seja diferente
quando o aborto é induzido, provocado pela
própria mãe ou por sua solicitação. Nesse caso,
há o agravante da culpa, da responsabilidade
pela morte do próprio filho. O aborto pode tirar
a criança do útero de sua mãe, mas não a tira da
sua mente nem do coração.
Fotos: Agência Brasil e Breno Fortes/OS/D.A Press
No caso da microcefalia, há o agravante de
que o diagnóstico é tardio, a partir do sexto mês
da gestação. Ou seja, estamos falando de uma
criança já capaz de sobreviver fora do útero, em
muitos casos.
O argumento da "liberdade de escolha" também é equivocado. A maior interessada, que é
a criança, não é dada a liberdade de escolher
entre sua vida e sua morte. A vida é o primeiro
de todos os direitos, e nenhum outro pode existir sem ele. Não pode caber a outrem a decisão
sobre a vida de cada um de nós. Além disso, à
escolha da mãe também faltam elementos para
que possa ser considerada verdadeiramente livre. Na maior parte das vezes, o aborto é um ato
de desespero, de aflição, de alguém que "não vê
outra saídà'. São inúmeros os exemplos de mulheres que pensam em abortar, mas que desistem
quando são ouvidas, ajudadas, acolhidas. Propor
o aborto como solução a uma grávida quando se
faz o diagnóstico de microcefalia é negar a ela o
amparo de que realmente necessita.
Um aspecto particularmente nefasto do aborto eugênico - aquele que ocorre porque o filho
em gestação não é "perfeito" - é a carga de preconceito que o fundamenta. Estaríamos negando a dignidade da vida de crianças deficientes,
vistas como alguém que não deveria estar vivo
p9rque representa um peso para sua família e
para a sociedade. Crianças com deficiência merecem ser acolhidas, cuidadas, amad.as. Fazem a
diferença em suas famílias, contribuindo para
que tenhamos um mundo melhor.
Lenise Garcia
é doutora em
microbiologia e
coordenadora do curso
de biologia da UnB
8 de fevereiro de 20161 ÉPOCA 167
Download