Estudos Organizacionais Críticos: uma Jornada na Guerra das Estrelas Autoria: Jackeline Amantino de Andrade Resumo Este trabalho constitui-se num ensaio no sentido proposto por Tragtenberg (1974), isto é, “não é somente um universo articulado baseado em fontes primárias, porém, uma interpretação e associação de novas idéias, fundada em ‘antigos’ textos” com a proposta introduzir uma reflexão que possa contribuir para o debate nos estudos organizacionais críticos. Ele é organizado a partir da alegoria da ‘guerra nas estrelas’, no sentido proposto por Walter Benjamin, a fim de ampliar a força simbólica do que aqui se quer refletir e discutir. A primeira parte, referenciada alegoricamente a episódios dessa série cinematográfica, aborda criticamente a tradição da teoria crítica na sua necessidade de resgate da razão iluminista, questionando a perda de materialidade dada a uma excessiva abstração, no caso de Theodor Adorno, a uma “rebelião institual”, no caso de Herbert Marcuse e ao conformismo comunicativo, no caso de Jünger Habermas. A segunda parte, trata de resgatar pressupostos críticos materiais sob novas bases sociais e éticas a partir de István Mészáros e Enrique Dussel, evidenciando que essa materialidade é organizacional, e deve ser refletida e debatida por meio de autores clássicos nacionais como Fernando Cláudio Prestes Motta e Maurício Tragtenberg que, antes mesmo dos critical management studies, já nos indicavam bases materiais críticas e direcionamentos de uma agenda de pesquisa crítica para a atualidade. Intróito De modo geral, tem-se compreendido a introdução da crítica nos estudos organizacionais a partir do trabalho de Alvesson e Willmott (1992a) que, ao resgatar autores da escola de Frankfurt, Adorno, Horkheimer, Marcuse e Habermas, estabelecem um contraponto as teorias dominantes no campo sem recorrer a refúgios paradigmáticos como Burrell e Morgan (1979). Fundamentalmente, o que eles procuram evidenciar é que a administração, denominada de management, não é apenas um fenômeno técnico, mas também político. Todavia, a necessidade de reconhecer uma produção apropriada, como sugeriu Alberto Guerreiro Ramos na sua ‘redução sociológica’, faz lembrar que a discussão sobre uma teoria organizacional crítica, que trás o político devidamente atrelado à administração, foi desenvolvida por Fernando Cláudio Prestes Motta e Maurício Tragtenberg ainda nos anos 70 e 80 do século passado. Portanto, pelo menos uma década anterior a obra de Alvesson e Willmott. Nesse sentido, é complicado para nós estudiosos críticos brasileiros das organizações nos “submeter ao estrangeiro”, ainda recordando Ramos (1958), abrindo mão de nossa autonomia. Assim, para reconhecer a necessidade efetiva de sociedades e lugares de trabalho livres da dominação, conforme propõem Alvesson e Deetz (1999), é preciso antes de tudo fazer um aprofundamento crítico na compreensão da dominação como forma de poder, da administração como ideologia (MOTTA, 1979, 1984, 1986a, 1986b, 1986c e TRAGTENBERG, 1974, 1989), ou seja, como um fenômeno político, cultural e ideológico, posteriormente, destacado por (ALVESSON; WILLMOTT, 1992a, 1992b). Compreender que a dominação é fruto de um processo histórico específico e também que a escola de Frankfurt, apesar de propor uma teoria crítica da práxis dentro da materialidade da vida, não foi capaz de constituir um contraponto ao capitalismo e, não exclusivamente ao mainstream dos estudos organizacionais, como sugerem Alvesson e Willmott (1992a). Os autores de Frankfurt, não encontraram saídas concretas para a ‘gaiola da dominação’, que Weber apropriadamente narrou, tendo como base de reflexão a Alemanha no início do século XX, o mesmo tempo e espaço vivenciado pelos autores frankfurtianos. Efetivamente, a crítica é compreender processos históricos, os conflitos e lutas, e o domínio da racionalidade técnica (ALVESSON; DEETZ, 1999). Deve-se, no entanto, salientar que este último não é apenas imaginário, mas realmente concreto no mundo das organizações e, conseqüentemente, no mundo vida, pois não podemos separá-lo da materialidade da economia e do Estado apesar das pretensões de Jürgen Habermas. A crítica necessita, portanto, de gerar alternativas em termos teóricos e práticos concretos, como propõem Alvesson e Willmott (1992b). Mas devemos mais uma vez nos tornar prisioneiros, apenas considerando as organizações e seus microprocessos como sugerem esses autores? Não estaríamos assim fazendo como os funcionalistas limitados por níveis de análise determinando onde pode ser inserida a crítica nos estudos organizacionais? De acordo com Dussel (2006), para se compreender a modernidade e seu futuro é preciso considerar de forma integrada três aspectos: globalização, organização e a ética de libertação. Trata-se da integração do indivíduo na produção da vida social, que não pode ser analisada separadamente, pois “um determinado modo de produção ou estágio de desenvolvimento se encontra permanentemente ligado a um modo de cooperação ou a um estado social determinado” (MARX; ENGELS, 1979, p. 35). Se os estudos organizacionais críticos não têm caminhos únicos a percorrer, no entanto, essa compreensão integrada deve ser unívoca. Como destacou Motta (1986a), uma teoria organizacional reflexiva deve aportar um conteúdo libertador sempre consciente de que é um contra-poder à ideologia repressiva cristalizada nas relações de produção e nas forças produtivas que convive. Logo, a teoria está num projeto que se traduz numa prática política na medida em que “a teoria jamais é a realidade, mas nossa teoria da realidade (MOTTA, 1986a, p.58). Refere-se também a uma realidade que ser quer transformar de modo que “essa redescoberta só passa, ao meu ver, pela questão dos movimentos sociais tendo como fulcro a questão do poder [...], isto é, a questão da autonomia [...]” (MOTTA, 1986a, p. 60). Segue Motta, uma teoria automista só é produzida por uma prática autônoma que representa as forças sociais na sua luta por hegemonia. Por isso, a necessidade de vincular a administração à política, esta produz a crítica e pode questionar a “permanência da burocracia” (MOTTA, 1986c) à medida que os estudos organizacionais difundem-se no tecido social a fim de reinventar a idéia de organização, “enquanto força inovadora e prenunciadora de um mundo novo, justo e igualitário” (MOTTA, 1986b, p. 14). Este trabalho constitui-se num ensaio no sentido proposto por Tragtenberg (1974), isto é, “não é somente um universo articulado baseado em fontes primárias, porém, uma interpretação e associação de novas idéias, fundada em ‘antigos’ textos” com a proposta introduzir uma reflexão que possa contribuir para o debate nos estudos organizacionais críticos. Ele é organizado a partir da alegoria da ‘guerra nas estrelas’, no sentido proposto por Walter Benjamin, a fim de ampliar a força simbólica do que aqui se quer refletir e discutir. A primeira parte, referenciada alegoricamente a episódios dessa série cinematográfica, aborda criticamente a tradição da teoria crítica na sua necessidade de resgate da razão iluminista, questionando a perda de materialidade dada a uma excessiva abstração, no caso de Theodor Adorno, a uma “rebelião institual”, no caso de Herbert Marcuse e ao conformismo comunicativo, no caso de Jünger Habermas. A segunda parte, trata de resgatar pressupostos críticos materiais sob novas bases sociais e éticas a partir de István Mészáros e Enrique Dussel, evidenciando que essa materialidade é organizacional, e deve ser refletida e debatida por meio de autores clássicos nacionais como Fernando Cláudio Prestes Motta e Maurício Tragtenberg que, antes mesmo dos critical management studies, já nos indicavam bases materiais críticas e direcionamentos de uma agenda de pesquisa crítica para a atualidade. 2 Teoria crítica e a necessidade de (re)encontro da razão humana Em termos gerais, compreende-se que o sentido da crítica é retomar a humanidade da razão inerente ao iluminismo que foi perdida. Uma razão humana que é substituída pelo domínio da razão técnica de modo a atender os interesses econômicos de desenvolvimento do capitalismo mesmo que valores humanos sejam deixados de lado. De modo que, o ritmo desenfreado e sustentado por técnicas de produção cria uma ideologia de vida em que a produtividade e o consumo são as máximas e o individualismo o princípio. Como ressalta Adorno (2002), todas as áreas da vida são invadidas pelas premissas da exploração dos negócios, até mesmo a arte, antes um meio de lazer que passa a ser manipulado como um bem de consumo. Através da indústria cultural, o homem ganha um coração-máquina, de acordo com Adorno, ideologizado e identificado como consumidor lhe bastando a escolha de não pensar. Dessa forma, a autonomia de indivíduo em julgar e decidir conscientemente sobre sua vida é impedida não apenas no processo de trabalho, como já demonstrado por Marx (1980), mas em toda a sua existência. Por isso, Adorno afirma que “tudo se torna negócio”, e na sociedade de consumo há sempre o insaciável desejo do homem-máquina, em seu anseio de preenchimento existencial, de consumir tudo o que o ‘progresso técnico’ lhe prouver, na expectativa de encontrar assim um sentido para a vida. A cultura do ter afirma-se sobre a cultura do ser, como falou Eric Fromm, na medida em que há uma “domesticação civilizadora” para firmar um controle social total (Adorno, 1978, p 288). Essa domesticação da modernidade capitalista também é salientada por Benjamin ao analisar como as galerias parisienses tornaram-se as passagens e a expressão de um novo sentimento de vida; nossos antigos shopping centers. Uma condição fantasmagórica inerente a esse processo civilizatório em que o mundo é indubitavelmente marcado pelo fetiche da mercadoria. Para Benjamin (1985,1992), caminham, nesse mundo fetichizado da mercadoria, os flâneurs, aqueles de vida errante, tomados por uma embriaguez que o mundo lhes apresenta a procura de um despertar. Ou, como diz Adorno (2002), por um sentido de vida que antes lhes foi negado. De acordo com Adorno e Horkheimer (1985), essa é uma condição alienante em que até a diversão e o lazer representam um momento de catarse, de fuga da realidade, de modo que o indivíduo resigna-se à domesticação capitalista. Mas a afinidade original entre os negócios e a diversão mostra-se em seu próprio sentido: a apologia da sociedade. Divertir-se significa estar de acordo. Isso só é possível se isso se isola do processo social em seu todo, se idiotiza e abandona, desde o início, a pretensão inescapável de toda obra, mesmo da mais insignificante, de refletir em sua limitação o todo. Divertir significa sempre: não ter que pensar nisso, esquecer o sofrimento até mesmo onde ele é mostrado. A impotência é a sua própria base. É na verdade uma fuga, mas não, como afirma, uma fuga da realidade ruim, mas da última idéia de resistência que essa realidade ainda deixa subsistir. A liberação prometida pela diversão é a liberação do pensamento como negação.(ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p.135) Adorno (2002) afirma que a indústria cultural é uma conquista, uma sedução, um convencimento que doma os instintos emancipatórios. A cultura não é, portanto, proveniente do ‘povo’, mas um plano pré-estabelecido de produção dirigido ao consumo. Constitui-se numa mercantilização autoritária e homogenizadora de modo que as próprias classes sociais 3 são homogenizadas e massificadas por esse processo. Um processo de reificação da sociedade que coisifica a todos e todas as relações ao transformar tudo em mercadoria, como antes salientou Marx (1980), o fetichismo da mercadoria. É nesse sentido que a cultura de massa e a indústria cultura são para esses autores uma nova ‘gaiola de ferro’ imposta pela modernidade. Como ressalta Mészáros (2004), os frankfurtianos compartilham com Weber o seu desencantamento com a sociedade moderna em face dessa prisão trazida pela total burocratização da vida. Nesse processo as ações sociais referenciadas a fins se sobrepõem às ações com base na convicção de valores nas relações, cabendo questionar se, em face dessa tendência à burocratização, é ainda possível salvar a liberdade de movimento do indivíduo (Weber, 2004). Entretanto, Adorno (2002) tenta resgatar por meio do sentido da arte, baseado em Kant uma racionalidade para a liberdade, e, em Hegel, busca a razão através do jogo estético que provoca o prazer do ‘espírito’, a fim de traçar um possível um resgate do ‘ser’. Assim, a arte ao atuar na vida coletiva traria em si um sentido de transformação. Na e pela arte, o ser seria livre para sentir, pensar e agir e, conseqüentemente, poderia libertar-se das amarras que o capitalismo lhe impõe. E, ao ser autônomo reconquistaria a sua condição humana e retomaria a humanidade da razão explicitada pelo iluminismo. Benjamin (1985, 1992) não é tão pouco diferente ao tentar elucidar um caráter dialético na conquista da racionalidade. Há também a proeminência de uma retomada da ‘aura’ da arte que foi subvertida e a necessidade da busca por uma autenticidade que se oponha às forças e técnicas introduzidas para reprodução capitalismo. Para ele, essas mesmas técnicas inseridas na ‘aura’ da arte deveriam ser utilizadas para a crítica social de modo a iluminar essas prisões construídas pelo capitalismo na modernidade. Limites à crítica sobre a mercantilização da vida: episódio um – a ameaça fantasmai Todavia, a melancolia de Weber não abriu alternativas à burocratização da vida, apesar de sua profunda convicção na liberdade humana. Nem tão pouco os frankfurtianos vislumbraram alternativas para a mercantilização do mundo condenando-o a sua condição fantasmagórica. Como descata Slater (1978), a teoria crítica acaba por não assumir um papel de ação para mudanças, a partir de seu pressuposto básico que relaciona teoria e práxis. Assim, não encontra também respostas de como, no processo dialético entre espontaneidade e organização, a burocratização e a mercantilização da vida poderiam ser evitadas. Nesse mesmo sentido, Mészáros (2004) ressalta que para Adorno a mediação entre práxis intelectual e práxis política é algo completamente vago e abstrato. E, a sua negação universal abstrata distanciou-se de indicar ‘soluções’ em termos dos desenvolvimentos sóciohistóricos reais, como também não identificou “um sujeito histórico genuíno que indicasse uma saída para as condições denunciadas” (p. 166). Sem um agente concreto de transformação também é difícil inferir-se implicações estratégicas práticas de ação nesse contexto sócio-histórico de modo que a busca de Adorno pela liberdade torna-se uma contemplação aterradora do avanço da reificação absoluta que a tudo negar não se confronta “com nada em particular no quadro estratégico de um modo de ação historicamente definido e organizado” (MÉSZÁROS, 2004, 171). Mészaros (2004) observa que a categoria ‘massas’ utilizada por Adorno acaba por destituir o conceito de ‘classe’ em favor de um discurso vago sobre a racionalidade instrumental na sua crítica à sociedade industrial avançadaii. Dessa forma, Adorno acaba por rejeitar também o conceito de luta de classes mais focado numa ‘mitologia’ que busca ‘materialidades’ para uma possível ação histórica na ‘música’, na ‘arte’, na ‘tradição’, etc. 4 Para Slater (1978), mesmo que a teoria crítica não seja uma resolução final, ela é (ou deveria ser) “uma premissa da ação correta” e sua crítica ideológica “torna-se o estudo da história do que é”, isto é, a história do homem no mundo, mas também como conseqüência do mundo (p. 57). O acréscimo dessa segunda condição explicita as bases do materialismo histórico numa superação da primeira, fenomenológica, que dá conta apenas do ‘ser no mundo’iii Portanto, a teoria crítica é (ou deveria ser) “um ato prático de reconstrução social; a ligação mediadora nesse processo é uma teoria vinculada à luta de classes” (p. 52) que se postula como luta ideológica ao expressar as “contradições reais da sociedade, junto com a transcendência prática dessas contradições” (p. 86). No entanto, ainda como destaca Slater (1978, p. 99), antes mesmo de Mészáros, ao longo dos anos, para os teóricos frakfurtianos, a práxis tornou-se “uma categoria teórica e metodológica, ao invés de uma noção concreta de luta de classes sócio-histórica.” Desse modo, a teoria crítica sofreu uma profunda transformação quando não se relacionou aos sujeitos concretos da mudança, não identificou aquilo que deveria ser transformado e não desenvolveu uma teoria da organização e da ação política, pois lhe faltou uma metacrítica que ligasse a crítica ideológica a bases efetivas de transformação (SLATER, 1978). Como diz Mészáros (2004), Adorno fica preso a uma crítica abstrata da razão instrumental e da racionalidade utilitarista que lhe impõe uma ignorância política-econômica de tal forma que [...] se identificou com a mistificação keynesiana que mistura lucro com utilidade [...] denunciando algo que a ‘espécie humana’ (acusada ou não pela arte) jamais poderia dispensar, independentemente de quão refinado se tornasse seu apetite ‘selvagem’. A simples existência dos seres humanos, mesmo numa sociedade altamente avançada e emancipada, depende de um relacionamento significativo e realmente econômico com a ‘racionalidade utilitarista’, para além dos imperativos materiais alienantes e das restrições do lucro capitalista. (MÉSZÁROS, 2004, p. 176) Algo ressaltado por Marx (1982) em sua discussão com Proudhon sobre o valor de utilidade e o valor de troca. As contradições trazidas pelo capitalismo monopolista em formação já eram debatidas a fim de indicar que a sua superação dar-se-á quando “o uso não será mais determinado pelo mínimo tempo de produção; o tempo de produção consagrado aos diferentes produtos será determinado pelo seu grau de utilidade social” (MARX, 1982, p. 65). Essa dissociação da materialidade resulta numa teoria crítica que em sua proposta de des-ideologizar a realidade não consegue se constituir numa força crítico-prática na condução de uma práxis transformadora à medida que “nunca chegou às últimas conseqüências em termos de uma teoria materialista prática” (SLATER, 1978, p.207). Esse também é o entendimento de Mészáros (2004), ao afirmar que a falta de mediação com a verdadeira dimensão histórica, não permitiu a criação de uma visão alternativa de transformação, a partir de uma compreensão dialética do mundo pela constante inter-relação dinâmica entre ser social e consciência social, para dar consistência material ao “poder emancipatório das necessidades humanas” (p. 184). Limites à crítica sobre a mercantilização da vida: episódio dois – o ataque dos clones Como visto, as alternativas sobre a mercatilização da vida demandam por uma práxis, ou melhor, por uma teoria materialista prática baseada no contexto sócio-histórico, identificada a sujeitos concretos e a bases de organização e ação política-econômica. No entanto, a ‘negação absoluta’ de Adorno acaba por apresentar “um conhecimento trágico que 5 percebe todas as necessidades como irredutíveis e tornando-se uma transfiguração metafísica do sofrimento e da infelicidade” (MENKE, 1996, p. 71). Mas, a ‘massa’ ocidental quer se por em luta, talvez, relembrando a conclamação de Brecht de que os oprimidos se insurjam contra os opressores em nome da humanidade. É o tempo da contracultura dos anos 60 em que a luta não adquire propriamente os contornos de classe. O que é contestado são costumes, valores, uma moral congelada nas instituições sociais modernas que reprime a liberdade de expressão daqueles que conhecemos hoje como ‘minorias’: mulheres, negros, homossexuais. Os jovens da década de 60 constituem-se então em ‘doces bárbaros’, pois à época não encontram eco para as palavras de ordem de Rosa de Luxemburgo expressas no início do século XX: “socialismo ou barbárie”. Sua luta é direcionada para mudanças nas regras e instituições sociais; no processo civilizatório. Uma luta ideológica, e de certa forma política, mais próxima à desobediência civil, que tem como palavra de ordem, “é proibido proibir”, visando uma alteração das relações na reprodução social da vida. É o tempo das ‘sociedades alternativas’ por meio de um ‘política anti-disciplinariv’ que rejeita categoricamente a burocratização, suas hierarquias, como também o consumismo. Trata-se de uma busca pelo ‘humano, demasiadamente humano’ não se constituindo propriamente em um movimento político, mas numa luta contra o modo de viver perpetuado pela cultura capitalista estabelecida. O frankfurtiano Herbert Marcuse é a referência dessa ‘juventude transviada’ que propõem uma ‘revolução’ com base ‘na paz e no amor’. Eles procuram fugir do “homem unidimensional” aquele que só vê as aparências e não as essências, tornando-se um consumista, acrítico e conformista. Prisioneiro da “sociedade unidimensional”, ele deve conformar-se “a aceitação dos seus princípios e instituições e reduzir a oposição à discussão e promoção de alternativas dentro do status quo” (MARCUSE, 1967, p. 24). Também é prisioneiro da “sociedade do desempenho” e “sob o seu domínio, a sociedade é estratificada de acordo com os desempenhos econômicos concorrentes dos seus membros” (MARCUSE, 1972, p. 58) de modo que O novo padrão histórico da revolução vindoura talvez esteja melhor refletido no papel desempenhado por uma nova sensibilidade na mudança radical do ‘estilo’ da oposição. [...] A transformação radical da natureza torna-se uma parte integrante da transformação radical da sociedade. Longe de ser um mero fenômeno ‘psicológico’ em grupos ou indivíduos, a nova sensibilidade é o meio em que a mudança social se converte numa necessidade individual, a mediação entre prática política de ‘transformar o mundo’ e o impulso de libertação pessoal. (MARCUSE, 1973, p. 63) O traço característico dessa ‘revolução’ é a transgressão que busca atravessar os limites estabelecidos e também dar um novo sentido à espontaneidade e à organização identificada como uma cultura de revolta, mesmo que haja um vazio de poder e de projeto (CARDOSO, 2005). Ou seja, mais uma vez distanciando-se de uma ação estratégica política e economicamente organizada para transformar o contexto sócio-histórico de que fala Mészáros (2004). Como destaca Mészáros (2004), o pós-segunda guerra mundial foi um tempo de “resignação universal” porque a “ordem estabelecida se tornou a ideologia dominante precisamente por demonstrar a sua capacidade de defender os interesses materiais e políticosv [...] essenciais do metabolismo social” (p.232). Sob essas condições é difícil organizar uma contraconsciência gerando alternativas materiais que questionem a ordem institucional sem ser acusada de “impulsos do individualismo anarquista”, pois, 6 não é possível articular o conteúdo de uma crítica social radical em termos dos complexos institucionais e instrumentais necessários – isto é, com uma indicação bem precisa de sua praticabilidade na escala de tempo histórico adequada – sem a identificação de uma força social capaz de se tornar a alternativa hegemônica [de modo que] as ideologias críticas e as formas de “contraconsciência” não podem deixar de ser parciais e unilateralmente negativas em sua autodefinição, a menos que possam oferecer um alternativa hegemônica viável às práticas predominantes nessa formação estatal, em todos os planos da vida social. (MÉSZÁROS, 2004, p. 234) Marcuse e sua idealização da “rebelião instintual” sustentou uma “luta contra o impossível” numa “revolução permanente” que não conseguia identificar concretamente os agentes de transformação e na qual a práxis social instala-se como “possibilidade utópica”. Dessa forma, “a concepção implícita de uma superação não é concretizada por Marcuse” que acaba optando por uma transcendência total e perde a dimensão materialista (SLATER, 1978, p. 209). Limites à crítica sobre a mercantilização da vida: episódio três – a vingança dos sith A ‘resignação universal’ ao espírito do capitalismo, o rompimento com um agente concreto de emancipação social e o transcendentalismo de ‘possibilidades utópicas’ será ainda mais marcante em Habermas. Apesar de criticar o Estado de bem estar social desenvolvido no após o pós-guerra por estabelecer uma sociabilidade apolítica e passiva sustentando uma cultura de consumo, Habermas não encontra alternativas para as condições políticoeconômicas estabelecidas. Sob os preceitos de uma crítica que busca a humanidade na razão e o resgate dos princípios iluministas, ele propõe um (re)encontro da sociabilidade por meio da idealização da esfera público-social burguesa vivenciada ainda no século XVIII (HABERMAS, 1984). Nela, a opinião e o debate público se expressam através de uma livre comunicação de tal modo a idealizar essa esfera como separada da esfera político-econômica, sendo a primeira compreendida como o ‘mundo da vida’ e a última como o ‘mundo do sistema’ (HABERMAS, 1987, 1990). Sociedade de um lado, Estado e mercado de outro. Como observa Mészáros (2004, p.202), Habermas toma o “sistema social moderno”, baseado no desenvolvimento científico e tecnológico em grande escala, como algo legitimado de forma que um “projeto emancipatório de libertar a vida social das determinações desumanizadoras e destrutivas da ciência e da tecnologia de base capitalista teve de ser rejeitado”. A esfera pública como o ‘mundo da vida’ possibilita a participação pública de iguais deixando de lado aquilo que é inerente ao ‘mundo privado’, torna-se um órgãovi de automediação e um modo de por o ‘poder estatal’ em contato com suas necessidades (HABERMAS, 1984, 1987). No primeiro mundo, um poder é gerado pela ação comunicativa a partir de ideal de um diálogo livre e ilimitado de indivíduos para atingir a razão, enquanto que no segundo, ele se dá administrativamente (HABERMAS, 1987, 1990). Com a plenitude da comunicação, pretende-se que o debate e a predominância do melhor argumento estabeleçam as bases do bem comum. Esse pressuposto associacional por meio de uma ação comunicativa desloca a promessa emancipatória para um outro universo em que interesses, estratégias e poder não estão presentes. Por isso mesmo, as críticas de que a categoria do poder não é contemplada efetivamente por Habermas nessa esfera de comunicação intersubjetiva parecem ser evidentes e por ele reconhecidas quando indica a polarização entre poder administrativo e comunicativo, sem, no entanto, estabelecer 7 mediações. Para Habermas (1990), o fundamental é o poder gerado pelo intercâmbio discursivo-intersubjetivo de modo a formar a vontade pela razão distanciando-se assim da racionalidade instrumental inerente ao sistema. Muitos salientam a importância da razão discursiva-crítica definida por Habermas no contexto das democracias modernas à medida que relaciona uma teoria crítica à teoria da democracia. Como salienta Bohman (1996), essa proposta tem um caráter reformista da democracia em que o papel da teoria crítica é mostrar os potenciais e limites do uso da autonomia e do público da razão prática. [Assim], a razão pública não é exercida pelo estado, mas pela esfera pública e cidadãos iguais e livres. O movimento de direitos civis, por exemplo, cidadãos coletivamente mudando todo o caráter da interpretação da política de igualdade. (BOHMAN, 1996, p. 211) Entretanto, cabem antes críticas até mesmo dos próprios habermasianos. Por exemplo, Fraser (1992) critica essa formação da vontade entre iguais pelo ‘bem comum’ num ‘espaço idealizado da vida’ como se as diferenças econômicas, sociais e culturais pudessem ser deixadas de lado. Por outro lado, Calhoun (1992) não compreende como um ‘bem comum’, baseado em direitos políticos e sociais, pode ser concretizado num espaço onde o poder não é exercido para gerar decisões e compromissos, mas apenas consensos. Avritzer e Costa (2004) observam que o conceito de esfera pública habermasiano tem relevância na integração de grupos, associações e movimentos com intuito de preservar a perda de autonomia do campo cultural já indicada por Adorno e Horkheimer (1985), na década de 40 do século passado. Destarte, essa fixação no ‘cultural’ e uma “ênfase nas atividades não comerciais dos públicos culturais, rompe com a possibilidade de conectar o avanço da modernidade com uma tensão crescente entre o mercado e a esfera pública” (AVRITZER; COSTA, 2004, p. 706). Além disso, há uma insistência de que os movimentos espontâneos da sociedade não se organizem lhes afastando do poder administrativo contraposto ao poder comunicativo a fim de evitar o risco de burocratização (p.710). Os autores também criticam um posicionamento de Habermas apegado à teoria de Parsons. Através dela subestima questões relativas à participação e à vivência do poder de modo que não existem referências sobre uma horizontalização dos processos decisórios (AVRITZER; COSTA, 2004, p. 713). Essa mesma crítica lhe faz Mészáros (2004) em substituir categorias marxianas “forças e relações de produção” por a díade abstrata de Parsons “trabalho e interação”. Segue o autor, há assim uma negação dos conflitos e a procura ingênua por consensos numa “comunidade ideal de comunicação”. O discurso teórico distancia-se, portanto, da realidade concreta e, ao expressar seus “dissabores com a modernidade” desconsidera a reificação, outra categoria marxiana, privilegiando a “racionalização” e a crítica à racionalidade instrumental, que sob inspiração weberiana, contrapõe-se à racionalidade comunicativa. Como relembra Mészáros (2004), isto, porém, não preenche os vazios naquilo que é mais apropriadamente abordado por Lukács em História e consciência de classe de forma a situar o problema da racionalização em seu contexto social adequado e historicamente específico, enfocando tanto os antagonismo tangíveis da sociedade de consumo quanto os pontos de vistas diametralmente opostos dos principais agentes sociais, que apresentam perspectivas teóricas alternativas a partir das quais se pode vislumbrar uma solução para as contradições identificadas. (MÉSZÁROS, 2004, p.77) 8 A oposição entre tipos de racionalidade deixa mais vazios do que alternativas que não (re)encontram bases para pavimentar um caminho em que há a primazia do ideal substantivo de vida. Permanece ainda a necessidade de se reavivar um quadro teórico integrado à prática. Somente assim, uma intervenção ideológica ativa e abrangente pode articular aquilo que espontaneamente se movimenta na sociedade, tornando possível uma organização estratégica capaz de gerar mediações que não fiquem limitadas ao imediato, mas potencializem forças libertadoras. A emancipação no seu sentido lato. No ‘mundo de comunicação intersubjetiva’ habermasiano, no entanto, a busca pelo (re)encantamento da vida é isolada em grupos, associações e movimentos. Nessa délivrance autônoma, coletiva, comunicativa, o imperativo da razão não resgata por si o humano como agente numa alternativa contra-hegemônica. Pelo contrário, nesses tempos, o mercado acaba por ser naturalizado como o centro das relações associativas (BOURDIEU, 2001) e, ainda se demanda por uma ‘teoria crítica material’ para responder as necessidades de transformação sócio-históricas contemporâneas na busca de soluções para a mercantilização da vida. Crítica a mercantilização da vida: episódio original – uma nova esperança Como ressalta Canclini (2001), é preciso repensar e rediscutir interconexões entre o cultural, o político e o econômico diante da complexidade de interações globais, repensando os significados e o próprio sentido moderno. Aqui se colocam os movimentos de resistência, mas também a necessidade de negar tanto teórica como praticamente essa onipotência ‘mercantil’. Essa negação não pode, no entanto, ficar restrita ao campo das idéias. Precisa também estar focada na emancipação econômica à medida que são os sujeitos em sua totalidade aqueles que fazem uma diferença prática. A ‘organização’ desses ‘sujeitos’ é o meio para atingir-se os fins da emancipação. Uma instrumentalidade presente em que a organização inerentemente política é básica para o exercício da autodeterminação capaz de uma transformação histórica em face da persistência de misérias e desigualdades. Um pressuposto crítico-material, também ético no sentido de criar “uma base material de solidariedade” que é universal, ou melhor, internacional (MÉSZÁROS, 2004). Este é o desafio; esta é a esperança. ‘Global e ‘local’ ligados sob novas bases solidárias, uma vez que os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade – o refrão iluminista – não se concretizaram na materialidade do capitalismo dos últimos séculos. Da resistência à ação de transformação. Desse modo, a crítica não assume o ‘absoluto do sofrimento’ como para Adorno em sua “Dialética Negativa”, nem tão pouco se torna amplamente pluralista a ponto de impossibilitar concretamente a construção material como muitas proposições pós-modernistas. Trata-se de um posicionamento de sujeitos no mundo ‘em si’ e ‘para si’ à medida que a consciência é exteriorizada no mundo que é material para transformá-lo e não apenas o ser ‘no mundo’ e ‘do mundo’ da consciência fenomenológica. Assim a negação do sofrimento não se expande num pluralismo extremo que ao desafiar e tentar subverter sistemas de valores dominantes o faz apenas na teoria, pois na prática o seu pluralismo é o que fundamenta o próprio sistema, isto é, A lógica do mercado é de prazer e pluralidade, do efêmero e do descontínuo, de uma grande rede descentrada de desejo da qual os indivíduos surgem como meros reflexos passageiros. Mas manter em ação toda essa anarquia potencial requer bases sólidas e uma estrutura política sólida. Quanto mais as forças do mercado ameaçam subverter toda a 9 estabilidade, mais teremos de insistir nos valores tradicionais. [...] Todavia, quanto mais esse sistema apela para valores metafísicos para se legitimar, mais suas atividades racionalizantes, secularizantes ameaçam esvazia-los. Esses regimes não podem nem abandonar o metafísico nem acomodá-lo de modo adequado, e por isso estão sempre potencialmente desconstruindo a si próprios. (EAGLETON, 1998, p. 128) Mesmo no campo exclusivo da consciência num sentido heiddegeriano, pode-se compreender que a totalidade que pertence à humanidade atualmente e determina sua visão de mundo é de uma irracionalidade na sua instrumentalidade de meios e fins. A necessidade de crescimento econômico levando a extinção de recursos ambientais e comprometendo a vida no planeta. A capacidade desse mesmo crescimento eliminar os perigos da escassez de alimentos, que tanto assustaram civilizações, e ao mesmo tempo a incapacidade de distribuilos adequadamente, gerando distorções tais de modo que parte significativa da população mundial ainda passa fome enquanto outra parte excede níveis nutricionais num consumismo compulsivo aumentando a incidência de doenças cardíacas, diabetes entre outras. Vê-se o ‘lado negro da força’. Como no Fausto de Goethe abandonando tradições para aliar-se a forças econômicas, políticas e culturais que ‘organizam’ a destruição do velho e a construção do novo inerente ao mundo moderno. A alegoria trágica do desenvolvimento. Também uma força monstruosa que pode ser representada por meio de “um burocrata que vive não nos seus próprios termos, mas nos termos de um sistema imposto” como a personagem Darth Vader de Guerra nas Estrelas (CAMPBELL, 1990, p.153). Destarte, não se quer aqui negar em si o desenvolvimento apenas indicar o ‘outro lado da força’ para redimir a sociedade. Essa era a princípio a intenção iluminista de Fausto, que acaba na obra de Goethe numa [...] terrível e trágicas convergência, selada com o sangue das vítimas, articulada com seus ossos, que têm a mesma cor e a mesma forma em qualquer parte. O processo de desenvolvimento que os espíritos criativos do século XIX conceberam como uma grande aventura humana tornou-se, em nossa era, uma necessidade de vida ou morte para todas as nações e todos os sistemas sociais do mundo. Em conseqüência disso, autoridades fomentadoras, em toda parte, acumularam em suas próprias mãos poderes imensos, fora de controle e muito freqüentemente letais. (BERMAN, 1986, p.74). Mas não basta roubar os planos do ‘projeto da estrela da morte’? É preciso uma forma de enfrentar o contra-ataque imperial, num retorno que luta desmacarando o ‘lado negro da força’ de forma a materializar outras bases de solidariedade e dando fim aos os projetos da estrela da mortevii. Para Dussel (2006) a questão é encontrar um outro sentido ético para o preenchimento de um vácuo deixado pela irracionalidade entre meios e fins na implantação do projeto moderno. Pensar “um mundo diferente sobre diferentes formas de organização implica refletir aspectos éticos da ação humana” por meio dos quais princípios críticos são elaborados para transformar a realidade (DUSSEL, 2006, p. 500). Como ele salienta, ‘outros mundos possíveis’ declinando a exclusividade da razão eurocêntrica que construiu uma versão da era moderna fundada numa “ideologia regional” para analisar a “racionalidade” e o “desencantamento”, como em Weber, ou num ‘discurso ético” da “ação comunicativa” como em Habermas. Um pensamento que não enfrenta o capitalismo em suas contradições e ao mesmo tempo estabelece o ‘pessimismo cultural’ 10 diante da necessidade crítica de busca por autonomia material em que o poder libertador da razão deveria caminhar para uma emancipação real (MÉSZÁROS, 2004). A organização ....... – a base de mercantilização da vida? Aqueles que tentam deduzir a estrutura social e a máquina institucional-administrativa do capitalismo a partir do ‘espírito do cálculo’ colocam a carroça na frente dos bois. Tratam de uma comunidade abstrata e não consideram a liberdade em face das relações de subordinação e superioridade na associação produtiva de modo que a racionalidade é uma premissa inquestionável. Ela legitima a autoridade na garantia de ‘eficiência técnica’ desencarnada de uma especificidade sócio-histórica a partir da abstração de um ideal-tipo (MÉSZÁROS, 2004). É o império de Darth Vader?... Mészáros (2004) destaca que a burocratização é um modo de controle e um fenômeno inerente tanto às sociedades capitalistas como as pós-capitalistas (URSS e leste europeu) não bastando apenas uma “ideologia de autonomia” para transformá-la. Na realidade, é necessário um ‘deslocamento’ crítico do poder que sustenta a autoridade para romper laços de uma interdependência racional na busca de uma nova totalidade que sustente “um plano geral de indivíduos livremente associados”. Como o próprio Weber (2004) demonstrou, tendo como referência à Alemanha do final do século XIX e início do século XX, a burocracia é a institucionalização da dominação. Seu trabalho analisa como uma comunidade social se transforma em uma sociedade dotada de racionalidade de modo que sua ação social adquire a condição de dominação. De acordo com Motta (1979, p. 22), “a dominação deve ser entendida como um estado de coisas no qual as ações dos dominados aparecem como se estes houvessem adotado como seu o conteúdo da vontade manifesta do dominante” [...], no entanto, “embora seja uma forma de poder não é idêntica ao poder”. Porém, como forma de poder, a burocracia tornou-se igual à organização, tornando a técnica a mais perfeita expressão da razão (TRAGTENBERG, 1974). Ao mesmo tempo, essa visão contribuiu para que as teorias organizacionais não compreendessem a burocracia como forma de poder historicamente situada de modo que esta incapacidade trouxe uma “crise, que diz respeito não apenas à critica administrativa, mas a toda a produção intelectual de cunho funcionalista ” (MOTTA, 1979, p.21). Nada como aprender com os mestres Yodas... para se (re)conectar com o outro lado da força. Seguem eles. A burocracia é a intenção de um grupo (burocratas) de constituírem “um sistema de poder coletivo, que se define em oposição à ausência de poder dos dominados, bem como de se organizarem num sistema de mando e subordinação que estabelece diferenças materiais e de prestígio” e só pode ser compreendido a partir das condições históricas do seu desenvolvimento (MOTTA, 1986c, p. 19). Sua competência está “na sua capacidade de manutenção e expansão enquanto sistema de poder”, sendo “essencialmente competitiva e por essa razão sua ética conforma-se ao espírito capitalista” (p.22). Dessa forma, a burocracia no Estado, na empresa e na escola é uma ideologia para cristalizar a dominação sob os auspícios do ideal cooperativo (MOTTA, 1984, 1986b, 1986c; TRAGTENBERG, 1974, 1989). Este ideal baseia-se na razão de tal modo que A cooperação industrial gera, na realidade, o tipo de organização burocrática que Max Weber analisou magistralmente em nível de alta abstração em seu tipo ideal. Trata-se de um fenômeno de profundas repercussões administrativas, econômicas, sociais, políticas, ideológicas e 11 psicológicas. A burocratização da empresa leva a uma intensificação da burocratização dos aparelhos de Estado. Ampliam-se e racionalizam-se os aparelhos econômicos, repressivos e ideológicos do Estado. [Mesmo] nas universidades, o saber é burocratizado. (MOTTA, 1986b, p.67) Mais ainda que mercantilizar, conclui Motta (1986c), a burocracia rouba a vida. Basta olha para a figura de Darth Vader. Basta assistir o filme The Corporation. A organização é a forma como o sistema econômico produz e se reproduz em suas relações sociais de modo a confirmar e reforçar a estrutura social (MOTTA, 1984). No entanto, não é só por excelência o local das relações de produção e das forças produtivas, é também a base de materialidade da sociedade naquele seu ideal cooperativo que dá-se de forma heterônoma, estando ausente qualquer autonomia individual e social (MOTTA, 1979). No entendimento de Dussel (2006), a organização é um contraditório; ao mesmo tempo em que é uma necessidade ética da comunidade, produz a divisão do trabalho. Na sociedade moderna, ela não trás em si o princípio da ordem inerente à solidariedade orgânica, como almejou Durkheim, mas a base de um conflito, como indicou Marx, na luta por uma redistribuição de renda e poder. Conseqüentemente, trata-se de uma luta moral em que alienação no processo de trabalho é também uma alienação política, como ressalta Tragtenberg (1989). Qual então seria a resistência crítica a esse processo? Ramos (1981) propõe a distinção entre organizações econômicas e organizações não econômicas. A primeira é “um sistema microsocial que produz mercadorias, segundo normas contratuais objetivas, dispõe de meios operacionais para a maximização de recursos limitados e utiliza critérios quantitativos para avaliar a equivalência de bens e serviços”, priorizando o cálculo utilitário. Por sua vez, as organizações não econômicas, apesar de exercerem funções econômicas, não se distanciam do cálculo maximizador de lucros a procura de uma racionalidade substantiva direcionada à emancipação do ser humano (RAMOS, 1981, p.134 e 135). A questão ética toma a forma na distinção de racionalidades, proposta por Weber (2004), e reforçada por Ramos (1966) na diferenciação entre ética de responsabilidade e ética da convicção. Todavia, na sua proposta de “vida associada”, Ramos (1981) acaba por colocar a ‘carroça na frente dos bois’, igualando instrumentalidade a cálculo, como já salientado por Mészáros (2004). Dessa forma, suas “organizações de resistência”, substanciadas numa multidimensionalidade paradigmática, parecem querer fugir da influência econômica, inerente à existência humana como um todo, nos quadrantes de um modelo de distintos enclaves sociais. Trata-se, contudo, de uma resistência fenomenológica, pois, materialmente, a emancipação só pode se dar no campo econômico. A recuperação do ser social fragmentado pela divisão do trabalho não se dá sem conflitos, e “sem conflitos não há história” (TRAGTENBER, 1989, p. 28), logo, as relações intersubjetivas dependem da posição de cada um na sociedade e a superação do conflito se insere na questão da hegemonia traduzida em ação política (MOTTA, 1984; TRAGTENBERG, 1989). O organizar está nas esferas produtiva, distributiva, jurídica e, também, ideológica, a espera de uma ação coletiva que somente se traduz em prática política (MOTTA, 1984). Assim, uma teoria crítica das organizações deve aceitar plenamente as conseqüências políticas e submeter os processos organizacionais a um inquérito racional para refletir sobre a diversidade de suas práticas e forças sociais. 12 O organizar ....... – novos episódios? Vê-se que falar sobre a organização e o processo do organizar não implica assumir uma distinção entre moderno e pós-moderno como expõem Cooper e Burrell (1988). A organização e o organizar constituíram sempre as relações humanas, por isso, eles não podem ser exclusivos de uma era determinada. Pode-se sim falar de uma ‘sociedade organizacional’ com o predomínio de ‘organizações complexas’ onde ‘processos organizacionais complexos’ são ordenados por uma forma de poder: a burocracia. Entretanto, a tentativa de normalizar essa forma organizacional, por aqueles que não querem visualizar as relações de poder que lhes são inerentes, como fizeram os funcionalistas, não pode ser confundida com o modernismo. Como forma de dominação, a burocracia é um processo não uma ordem. E, isso é reconhecido por Cooper e Burrell (1988) na introdução de seu artigo ao citar o próprio Weber. Seguem eles afirmando que a ‘organização racional moderna’ é uma força que não podemos realmente entender. Porém, a organização racional torna-se facilmente compreensível quando entendida como forma de poder que é estruturada sob bases materiais e ideológicas. A questão não é tanto estabelecer os ‘pós’, mas, fundamentalmente, os ‘contra’. Isto é, um contra-poder em que as bases de cooperação social não necessitem de processos organizacionais ordenados pela subordinação e a dominação. No entanto, é preciso aqui fazer atenção para não cair numa aventura cega com ‘pós’, e tentar encontrar efetivamente o ‘outro lado da força’. A mudança não está em si numa nova forma, mas nas relações de poder. Relembrando, a forma burocrática é resultado de relações, ou melhor, formada por um tipo de poder estabelecido, isto é, através da dominação. A atrativa ‘forma’ do rizoma de Guattari e Deleuze (1995), com caules e galhos que se ramificam e se reticulam por toda parte num constante processo de organizar pode ser uma falácia. Este é o ensinamento de mestre Motta (1986a, p. 62) indicando essa falácia do rizoma e chamando atenção para a necessidade de “uma outra teoria, ou se se preferir, uma contrateoria”. Os sistemas arborescentes são sistemas hierárquicos que comportam centros de significação e de subjetivação, autômatos centrais e memórias organizados. É que os modelos correspondentes são tais que um elemento só recebe suas informações de uma unidade superior... [...] Mesmo que se pretenda uma multiplicidade, essa pode ser falsa – o que chamamos tipo radicular – porque sua apresentação ou enunciado de aparência nãohierárquica nada de fato admitem a não ser uma solução totalmente hierárquica [...] As árvores podem responder ao rizoma ou, inversamente, germinar em rizoma. [...] A teoria convencional das organizações espelha maravilhosamente bem o modelo da arvora, ainda que com o freqüência e, aliás, cada vez com maior freqüência, o mascare. [...] Da mesma forma que a organização pode seguir o rizoma, também a sua teoria pode. Trata-se, porém, já de uma outra nova teoria, ou, se se preferir, uma contra-teoria. (MOTTA, 1986a, p. 62) Assim, uma contra-teoria necessita refletir como é possível existir um contra-poder no sentido de transformação das bases materiais e ideológicas da burocracia. Motta salienta que se dissociar da apropriação do desenvolvimento técnico nessa ‘luta de reorganização’ é no mínimo “idealista” e ao seu ver ingênuo. Como agenda, ele propõe que a teoria organizacional deve estar atenta ao que indicam as práticas dos movimentos sociais e “deve ser sempre a expressão desse movimento” (MOTTA, 1986a, p. 63). Às sugestões de Motta, pode-se acrescentar a base reflexiva do mestre Tragtenberg (1989), isto é, fazer atenção às 13 “respostas ideológicas do capital”, atualmente no que concerne às responsabilidades social e ambiental das corporações para não se cair nas armadilhas da alienação que também “é a ocultação do político” (p. 27). E, também assim, pode-se pensar em estabelecer “novas formas de relação social que criam condições objetivas para que surja um novo tipo de sociedade, que ultrapasse o binômio dirigente-dirigido” (MOTTA, 1986, p. 63). Essa reflexão tem sido realizada por diversos estudiosos críticos das organizações no Brasil nestes últimos anos. Todavia, esses ‘jedis’ devem se recordar que o episódio seguinte ao original, a nova esperança, é o império contra-ataca. O ‘lado negro da força’ quer destruir a ‘aliança rebelde’ que tem de fugir e a força jedi somente retorna em outro um novo episódio. Quais serão os novos episódios dos estudos organizacionais críticos brasileiros só tempo dirá, mas nada custa sempre aprender com os nossos ‘mestres Yodas’. Referências Bibliográficas ADORNO, Theodoro. W. A indústria cultural e sociedade.São Paulo: Paz e Terra , 2002. ALVESSON, Mats.; WILLMOTT, Hugh. Critical Management Studies. London: Sage, 1992a. ______. 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Anti-Disciplinary protest: sixties radicalism and postmodernism. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1998. v Infere-se o Estado de bem estar social. vi O termo é utilizado por Habermas. vii Uma referência direta ao episódio original de Guerra nas Estrelas e aqueles realizados logo após: O império contra-ataca e o Retorno de jedi e, posteriormente, seguidos pelos episódios I, II e III. 15