ABRIL/2016 ABRIL/2016 DISLIPIDEMIAS: O QUE DIZEM AS DIRETRIZES SOBRE O TRATAMENTO COM MEDICAMENTOS? Sumário Aspectos gerais........................................................................................................................... 2 Principais recomendações da Diretriz da American Heart Association (AHA) e do American College of Cardiology (ACC)........................................................................................................ 3 Comparações entre as recomendaçõesda AHA/ACC e a Diretriz da Sociedade Brasileira deCardiologia de 2013 ......................................................................... 5 Comparações entre a diretrizes do AHA/ACCe as publicadas pelo Veterans Affairs(VA) em dezembro de 2014 ............................................................................................................... 6 Referências ................................................................................................................................. 7 2 Aspectos gerais Vários estudos epidemiológicos1,2demonstraram relação direta, consistente, contínua e independente entre os níveis plasmáticos de colesterol total elevados e a incidência de doença coronariana. A adoção de medidas não medicamentosas, relacionadas a mudanças no estilo de vida, é elementar na abordagem dos casos de hipercolesterolemia. O tratamento medicamentoso com estatinas é eficaz em reduzir os níveis de colesterol plasmático e deve ser adicionado às medidas de controle não medicamentosas (dieta e atividade física) quando estas não forem suficientes para reduzir de forma adequada a hipercolesterolemia. A redução dos níveis de colesterol plasmático, que é um desfecho intermediário, associa-se à redução do risco de morte cardiovascular e de eventos cardiovasculares não fatais (desfechos clínicos) entre os portadores de doença cardiovascular (prevenção secundária) 5. Entre os indivíduos sem história prévia de doença cardiovascular, ou no contexto da prevenção primária, a diminuição desse mesmo risco com o uso de estatinas é menos consistente.6 Os indivíduos, no contexto da prevenção primária, ou seja, aqueles que nunca sofreram qualquer evento cardiovascular prévio podem ser divididos em diferentes categorias de risco de acordo com a presença ou não de outros fatores, como tabagismo, diabetes mellitus, hipertensão arterial, obesidade, sedentarismo, história familiar de doença cardiovascular, idade e sexo. Recentemente, duas revisões sistemáticas de ensaios clínicos randomizados,7,9envolvendo grande número de participantes, avaliaram o papel das estatinas no contexto da prevenção primária. Esses estudos demonstraram que as estatinas são eficazes em reduzir o risco cardiovascular, mesmo entre os pacientes considerados de baixo risco. Essas revisões demonstraram, também, que o benefício da redução dos níveis do colesterol promovido pelas estatinas sobre os desfechos de interesse clínico (morte por qualquer causa, morte por causa cardiovascular, infarto do miocárdio não fatal etc.) é superior aos eventuais efeitos colaterais associados ao uso desses medicamentos em longo prazo. Entretanto, há de se considerar que essas revisões são limitadas. A revisão sistemática elaborada pela Cochrane7, disponibilizada em 2014, incluiu 18 ensaios clínicos randomizados em contrapartida à revisão anterior de 2011, que havia incluído 14 estudos. Entre os quatro estudos incluídos na atualização de 2014 encontram-se ensaios clínicos com importantes fragilidades metodológicas, como o estudo Júpiter8. Se nos limitarmos apenas à inclusão do estudo Júpiter nessa revisão da Cochrane, já teremos elementos que comprometem a sua conclusão, uma vez que o estudo Júpiter teve grande peso nos resultados demonstrados. Esse estudo demonstrou benefício da rosuvastatina para indivíduos considerados de baixo risco cardiovascular; no entanto, o período de seguimento dos pacientes foi muito curto (1,9 anos), e o desfecho primário analisado não foi um evento clínico e, sim, o impacto sobre os níveis de PCR (proteína C reativa) ultrassensível. 3 A revisão sistemática publicada em 2012 pelo Cholesterol Treatment Trialists’ (CTT) Collaborators9 também concluiu que as estatinas são eficazes em reduzir o risco de eventos vasculares maiores (morte por doença coronariana, infarto do miocárdio não fatal, revascularização coronariana e acidente vascular cerebral) em pacientes em prevenção primária ou secundária, em todos os níveis de estratificação basal do risco (desde aqueles com risco cardiovascular em cinco anos menor que 5% até os pacientes classificados como de altíssimo risco, ou seja, maior que 30%). Essa revisão, como aquela da Cochrane, também inclui estudos passíveis de críticas por vieses metodológicos importantes. Assim, ainda que as revisões sistemáticas permitam que se alcancem amostras relevantes e suficientes, estudos secundários não podem corrigir eventuais vieses dos estudos primários. Na aplicação dos resultados de qualquer estudo na prática clínica, um aspecto muito importante a ser considerado é o impacto do emprego da tecnologia avaliada sobre desfechos clínicos. No caso do uso de estatinas entre os pacientes com baixo risco cardiovascular (menor que 10% em dez anos) e em situação de prevenção primária, esse impacto é muito pouco relevante. Assim, é necessário tratar 1000 pacientes, com uma dose de estatina suficiente para baixar o LDL colesterol em 1,0 mmol/L (38,6 mg/dL), durante cinco anos, para que sejam evitados 11 eventos vasculares maiores. Principais recomendações da Diretriz da AHA (American Heart Association) e do ACC (American College of Cardiology) Os autores da diretriz americana10 para tratamento das dislipidemias estabeleceram como condição elementar para as recomendações de uso de estatinas na prevenção de doenças cardiovasculares a disponibilidade de evidências robustas e consistentes, providas por ensaios clínicos randomizados ou revisões sistemáticas, com demonstração de impacto sobre desfechos clínicos. Não fazem recomendações do uso de estatinas para situações em que não houver estudos com esses desenhos metodológicos. Isso a difere das diretrizes anteriores sobre o tratamento das dislipidemias que são mais abrangentes e estabelecem graus de recomendações mais ou menos fortes, de acordo com a robustez dos estudos clínicos que avaliaram as estatinas nas diferentes situações clínicas. Baseada nesse princípio, a Diretriz da AHA/ACC dividiu os pacientes em quatro grupos elegíveis para o uso de estatina: a) portadores de doença cardiovascular aterosclerótica manifesta (prevenção secundária); b) portadores de LDL colesterol igual ou maior que 190mg/dL; c) diabéticos com idade entre 40 e 75 anos, com LDL–C entre 70 a 189 mg/dL e sem manifestação clínica de doença cardiovascular aterosclerótica; d) pacientes sem doença cardiovascular aterosclerótica clinica ou diabetes, com LDL– C entre 70 a 189mg/dL e risco estimado de doença cardiovascular aterosclerótica maior que 7,5%. 4 Portanto, a Diretriz estabelece que, além da situação de prevenção secundária, há três outros grupos de pacientes que devem receber estatina no contexto da prevenção primária, porque considera que para esses grupos há evidências suficientemente robustas de benefício clínico. Os benefícios que esses três grupos podem auferir do uso da estatina, com certeza, são diferentes. Pode-se apontar como uma fragilidade da Diretriz do AHA/ACC, que as suas recomendações estejam embasadas em ensaios clínicos ou em revisões sistemáticas, cuja análise crítica revela várias limitações. Ou seja, ainda que do ponto de vista metodológico, os estudos considerados pela Diretriz possuam o desenho ideal para a obtenção de boas evidências, por outro lado, outros aspectos da condução comprometem a robustez das mesmas. Uma característica interessante da diretriz americana é o objetivo de ser um documento balizador da conduta clínica, sem pretender substituir o julgamento do clínico. Com esse objetivo, a Diretriz não adota graus de recomendação e estimula a decisão clínica compartilhada entre o clínico e o paciente, no contexto da melhor prática da medicina baseada em evidências. Tendo como base as orientações da Diretriz do AHA/ACC e a análise crítica de alguns dos estudos que pautaram as suas recomendações e até expandiram o grupo de pacientes elegíveis para a prevenção primária de doenças cardiovasculares, alguns pontos devem ser enfatizados: a) O impacto de uma intervenção na redução do risco de uma doença ou evento clínico depende da intensidade desse risco, o que vale para qualquer situação clínica e não é diferente quando se trata de reduzir o risco potencial de desfechos cardiovasculares com o uso de estatinas. Ao se prescrever uma estatina, há de se almejar, também, que a redução do risco de eventos cardiovasculares fatais e não fatais ocorra com segurança e com preservação da qualidade de vida do paciente. Ou seja, muito mais do que simplesmente reduzir os níveis plasmáticos do colesterol total e do colesterol LDL, ou “tratar o exame”, o que importa é o impacto da estatina sobre desfechos clínicos. b) A abordagem do paciente quanto à prevenção cardiovascular deve incluir sempre mudanças no estilo de vida (cessação do tabagismo, dieta, atividade física, manutenção de peso saudável). Os ensaios que avaliam o impacto do tratamento medicamentoso sobre a redução de risco cardiovascular sempre incluem tais recomendações como parte da abordagem do paciente, antes e concomitantemente ao uso de drogas. c) Entre as recomendações da Diretriz atual da AHA/ACC, a avaliação de que algumas abordagens terapêuticas usuais não dispõem de qualquer evidência e devem ser evitadas, é um ponto importante. Assim, o uso concomitante de estatina e fibratos ou niacina, visando reduzir os níveis de triglicerídeos plasmáticos ou aumentar os níveis de HDL colesterol não é uma conduta adequada, por carecer de evidências quanto ao seu benefício e estar associada ao risco de efeitos adversos. A Diretriz inclui também recomendações contrárias ao uso de estatinas por alguns grupos específicos, como os pacientes com doença renal crônica em diálise e os portadores de insuficiência cardíaca em classe funcional de II a IV, que, embora detentores de alto risco cardiovascular, não se beneficiam do uso de estatinas, que se mostraram consistentemente ineficazes na redução desse risco. 5 d) O documento não estabelece metas específicas de valores de LDL colesterol ou de colesterol não HDL a serem atingidas. Os autores, uma vez mais, justificam que os ensaios clínicos e revisões sistemáticas não foram consistentes em demonstrar que um determinado nível de LDL deva ser atingido para que se alcance um melhor benefício clínico. Em vez de metas específicas, a Diretriz recomenda tratamento “intensivo”, definido como o objetivo de reduzir 50% ou mais os valores basais de LDL ou tratamento “moderado” (redução de 30% a 49% dos níveis basais de LDL). e) Um aspecto aparentemente polêmico da diretriz atual do AHA e ACC é a expansão da indicação de estatinas na prevenção primária de eventos cardiovasculares para grupos de pacientes considerados de baixo risco para tais eventos. Esses indivíduos encontramse na faixa etária de 40 a 75 anos, não são diabéticos e nem portadores de doença aterosclerótica manifesta; apresentam escore de risco para eventos cardiovasculares em 10 anos, medidos por critérios específicos, superior a 7,5%.11 O escore de risco menor que 10% em 10 anos definia indivíduos de baixo risco, não elegíveis ao uso de estatinas, até então. Entretanto, duas revisões sistemáticas de ensaios clínicos randomizados mostraram resultados semelhantes e comprovaram benefício estatisticamente significante do uso de estatina nesse grupo específico. Fundamentados nesses estudos, a diretriz atual estabeleceu o quarto grupo de pacientes considerados elegíveis ao tratamento com estatinas, ou seja, indivíduos sem doença aterosclerótica, não diabéticos, com LDL–C entre 70 e 189mg/dl e risco estimado de doença cardiovascular aterosclerótica maior que 7,5%. Como tal recomendação se fundamenta em revisões sistemáticas aparentemente comprometidas por vieses metodológicos dos estudos primários, a extensão dessa recomendação é questionável e, além do mais, ainda que tenha mostrado significado estatístico, o uso de estatina no contexto da prevenção primária entre indivíduos de baixo risco carece de significado clínico. (Vide comentários anteriores.) f) Fora da faixa etária entre 40 e 75 anos não há evidências de que a prevenção primária seja eficaz entre os pacientes classificados como baixo risco, uma vez que esses pacientes não foram incluídos nos ensaios clínicos. De qualquer forma, para qualquer paciente é importante considerar a redução absoluta do risco mais do que a redução relativa, avaliando o NNT (número de pacientes que se deve tratar com estatina para se prevenir um evento cardiovascular maior). Comparações entre as recomendações da AHA/ACC e a Diretriz da Sociedade Brasileira de Cardiologia de outubro/2013 O documento da Diretriz Brasileira publicado em 2013 é uma atualização de outro documento de 2007. Como as “diretrizes clássicas”, a Diretriz Brasileira conserva o padrão de fazer recomendações mesmo para situações clínicas não contempladas por evidências robustas e consistentes.Há diferentes graus de intensidade das recomendações, diretamente proporcionais à 6 robustez das evidências. No quadro 1 estão descritos os principais aspectos contidos nas duas diretrizes. QUADRO 1 ASPECTOS AVALIADOS DIRETRIZ BRASILEIRA DIRETRIZ AMERICANA Metas de LDL e colesterol não HDL Valores fixos de LDL, de acordo com o grau de risco cardiovascular. Não estabelece valores de de LDL a serem alcançados. Tratamento intensivo (redução>50%) tratamento (redução 49%). Restrição à associação de estatinas fármacos DRC em dialítico com ICC grau II a IV ao moderado entre Não outros tratamento Grupos elegíveis tratamento Não tem. ou 30% e recomenda associação de fibratos às estatinas. Não recomenda estatinas. Não recomenda estatinas. Não cita este subgrupo específico. Contraindica Vários grupos diferentes graus recomendação. Quatro grupos elegíveis, com de Considera consenso entre especialistas como fundamento para várias recomendações. estatina a este grupo. baseados na existência de evidências robustas de benefício clínico, retiradas de ensaios clínicos revisões sistemáticas. e Comparações entre as diretrizes do AHA/ACC e as publicadas peloVeteransAffairs (VA) em dezembro/2014 O documento do VA (VA/DoD Clinical Practice Guideline for the Management of Dyslipidemia for Cardiovascular Risk Reduction)é uma diretriz que também se baseou em ampla análise da literatura disponível sobre o tratamento das dislipidemias. Entretanto, as recomendações do VA foram simplificadas em algoritmos que facilitam a consulta pelo médico assisten- 7 te. Há uma similaridade entre as recomendações para os portadores de doença cardiovascular aterosclerótica estabelecida (prevenção secundária) entre os dois documentos. Quanto à prevenção primária, o documento do VA limita-se a indicar o uso de estatinas para aqueles pacientes considerados de maior risco (LDL >190mg/dL associado ao diabetes mellitus, tabagismo ou hipertensão arterial) sem delimitar os níveis de colesterol que devem ser alcançados. A divisão dos pacientes de acordo com o risco cardiovascular determinado por avaliações por meio de escores não considera elegíveis ao tratamento medicamentoso com estatinas os pacientes com escores menores que 6% em dez anos. Os pacientes com escore de risco entre 6 a 12% devem ser avaliados individualmente.13 Referências 1. Pekkanen J, Linn S, Heiss G, Suchindran CM, Leon A, Rifkind BM et al. Ten-Year Mortality from Cardiovascular Disease in Relation to Cholesterol Level among Men with and without Preexisting Cardiovascular Disease. N Engl J Med 1990; 322:1700–7. 2. Rosengren A, Hagman M, Wedel H, Wilhelmsen L.Serum cholesterol and long-term prognosis in middle-aged men with myocardial infarction and angina pectoris. Eur Heart J 1997; 18:754-61. 3. Sacks FM, Pasternak RC, Gibson CM, Rosner B, Stone PH. Effect on coronary atherosclerosis of decrease in plasma cholesterol concentrations in normocholesterolaemic patients. Harvard Atherosclerosis Reversibility Project (HARP) Group. Lancet. 1994; 344(8931):1182. 4. Teo KK, Burton JR, Buller CE, Plante S, Catellier D, Tymchak W, Dzavik V, Taylor D, Yokoyama S, Montague TJ. Long-term effects of cholesterol lowering and angiotensinconverting enzyme inhibition on coronary atherosclerosis: The Simvastatin/Enalapril Coronary Atherosclerosis Trial (SCAT).Circulation. 2000; 102(15):1748. 5. Scandinavian Simvastatin Survival Group. Randomised trial of cholesterol lowering in 4444 patients with coronary heart disease: the Scandinavian Simvastatin Survival Study (4S). Lancet 1994;344:1383-9. 6. Downs JR, Clearfield M, Weis S, Whitney E, Shapiro DR, Beere PA et al. Primary Prevention of Acute Coronary Events With Lovastatin in Men and Women With Average Cholesterol Levels. JAMA 1998;279:1615-1622. 7. Fiona T, Mark H, Macedo AF, Moore T, Burke M, Davey SG et al. Statins for the primary prevention of cardiovascular disease. Cochrane Database of Systematic Reviews. In: The Cochrane Library, Issue 4, Art. No. CD004816. 8 8. Ridker PM, Danielson E, Fonseca FAH et al. Rosuvastatin to prevent vascular events in men and women with elevated C-reactive protein. N Engl J Med 2008; 359:2195-2207. 9. Cholesterol Treatment Trialists’ (CTT) Collaborators. The effects of lowering LDL cholesterol with statin therapy in people at low risk of vascular disease: meta-analysis of individual data from 27 randomised trials. Lancet 2012; 380: 581–90. 10. Stone NJ, Robinson J, Lichtenstein AH, BaireyMerz CN, Lloyd-Jones DM,Blum CB, McBride P, Eckel RH, et al. The 2013 ACC/AHA guideline on the treatment of blood cholesterol to reduce atherosclerotic cardiovascular risk in adults. Journal of the American College of Cardiology (2013) 11. The National Cardiovascular Data Registry – NCDR. 2013 Prevention Guidelines ASCVD Risk Estimator. [Acesso em: 01 set. 2015]. Disponível em: http://my.americanheart.org/cvriskcalculatorand http://www.cardiosource.org/science-andquality/practiceguidelines-and-quality-standards/2013-prevention-guideline-tools.aspx for risk equations 12. Xavier HT, Izar MC, Faria Neto JR, Assad MH, Rocha VZ, Sposito AC, et al. V Diretriz Brasileira de Dislipidemias e Prevenção da Aterosclerose. Arq Bras de Cardiol 2013. 13. U.S. Department of Veterans Affairs. Department of Defense. VA/DoD CLINICAL PRACTICE GUIDELINE FOR THE MANAGEMENT OF DYSLIPIDEMIA FOR CARD. [Acesso em: 01 set. 2015]. Disponível em: http://www.healthquality.va.gov/guidelines/CD/lipids/VADoDDyslipidemiaCPG.pdf