DIREITO À CONSTITUCIONALIZAÇÃO DE DIREITOS Miguel Calmon Dantas Professor de Direito Constitucional da Universidade Salvador – UNIFACS – e do Instituto de Educação Superior Unyahna de Salvador – IESUS. Pós-graduando em Direito Público pela Universidade Salvador – UNIFACS. Assessor de Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia. Sumário: 01. Introdução. 02. Direito Constitucional e a Força Normativa da Constituição. 02.1. Constitucionalismo moderno e direitos individuais. 02.2. Constitucionalismo social e direitos sociais. 02.3. A força normativa da Constituição e o Estado de Direito no constitucionalismo contemporâneo. 03. A Constitucionalização Formal dos Direitos Fundamentais – Abertura da Constituição. 03.1. Os Direitos Fundamentais e as Dimensões de Direitos. 03.2. A Constitucionalização dos Direitos Fundamentais. 4. Conclusão. 05. Bibliografia consultada 01. INTRODUÇÃO. O direito constitucional se revela como um direito de luta1, um direito em cujo nascimento formal houve o florescimento de uma nova concepção de fundamentação dos vínculos de dominação existentes numa comunidade política, sendo responsável pela consagração jurídico-política da inversão do prisma das relações de poder. O poder, então, deixava de residir na vontade do príncipe ou na do soberano, não mais sujeitando a coletividade aos humores e dissabores da subjetividade do seu querer, deslocando-se para o próprio povo, ou para a nação, conforme as doutrinas inicialmente desenvolvidas em contraposição à prática vigente, principalmente pelo 1 Luta pela imposição de limites jurídicos ao exercício do poder político; luta pela imposição de uma ordem fundada na legitimidade de uma democracia constitucionalmente instituída; luta pela prevalência histórica e expansiva dos direitos fundamentais. Lutas estas travadas sempre com a constante reação daqueles que 2 Abade Sieyès e por Rousseau, da soberania nacional e da soberania popular, respectivamente. Tal fenômeno expressa uma revolução, não apenas no sentido sociológico e histórico que lhe é pertinente, mas uma revolução jurídica, mediante a qual se intenta estabelecer rédeas domesticadoras do poder político pelo direito legitimamente fundado nas concepções, valores, interesses e necessidades dos integrantes da comunidade política, originando um direito cuja função, justamente, é constitutiva não apenas dos órgãos estatais que gozarão das competências que lhe serão atribuídas para o exercício do poder político, mas, também, constitutiva de uma idéia de Direito que presidirá as relações sociais entabuladas até mesmo entre os particulares, visando à realização de um ideal de Justiça, ainda que historicamente contextualizado. O processo de afirmação deste novo direito, assim, embora se possa considerar ter-se iniciado desde a Magna Carta, obtida pelos barões ingleses perante o Rei João Sem Terra, em 1215, caracteriza-se como um contínuo que acompanha e promove as transformações das concepções e finalidades do Estado, consolidando-se paulatinamente através de uma gradual resistência aos entraves que lhe são antepostos e de uma permanente evolução, não estando plenamente concluído. Com efeito, nem mesmo a partir do surgimento do constitucionalismo moderno, integrado pelos constitucionalismos inglês, americano e francês, pode-se reputar definitivamente consagrada a concepção da constituição como uma lei dotada de características peculiares que a habilitem a limitar o exercício do poder, eis que, como será analisado, nem todos os poderes do Estado estavam, nesse momento histórico, juridicamente vinculados ao atendimento das disposições constitucionais. Não obstante isso, embasando este processo, que se pode denominar de constitucionalização do poder, na medida em que as relações de poder passar a estar objetivamente sujeitas à disciplina pela constituição, associando-se à constitucionalização do próprio ordenamento jurídico estatal, encontram-se os elementos fulcrais que norteiam o surgimento e desenvolvimento do constitucionalismo, quais sejam, os direitos fundamentais. E sobre os direitos fundamentais e seu caráter histórico e evolutivo, no âmbito de uma apreciação histórico-expansiva, é que residem as indagações que serão ora detinham o poder e dele se utilizavam em nome ou favor próprio, em detrimento dos ideais e valores que consubstanciam o constitucionalismo. 3 formuladas e as tentativas de resoluções que serão apresentadas, mais com finalidade de possibilitar a reflexão do que a definição dogmatizante do que será sustentado. O constitucionalismo, então, nasce inspirado por duas idéias que se interrelacionam, convergindo para um mesmo objetivo, consistentes na limitação ao exercício do poder político pelo Estado através dos órgãos considerados como poderes constituídos, pois pertencente ao povo a soberania, bem como na consagração de direitos, inicialmente apenas os denominados individuais, associando-se a um movimento expansivo que caracterizará os movimentos constitucionais posteriores, consubstanciando um processo complexo e evolutivo de constitucionalização de direitos, contagiados pela fundamentalidade própria da constituição, O objetivo destas duas idéias, de limitação ao exercício do poder e da consagração expansiva dos direitos, manifesta-se como expressão jurídica de uma concepção de Justiça que restará materializada a partir dos princípios e regras do sistema constitucional, o que importa em uma vinculação do Estado e da sociedade à sua ótima realização. Nesse sentido, os direitos fundamentais participam do coração do constitucionalismo, dão-lhe um norte, direcionando a ação do Poder Constituinte, em cada nova manifestação, como também da sociedade composta pelos seus intérpretes 2, que devem conduzir-se sempre no desiderato da consagração, expansão, promoção, efetividade e garantia dos direitos fundamentais. Não obstante isso, a constitucionalização de direitos não deve ser concebida apenas como um processo pertinente a cada etapa de evolução do constitucionalismo, estanques e separadas entre si, a ser implementada apenas e tão-só pelo Poder Constituinte, podendo ocasionar um engessamento da idéia de Direito vinculada axiologicamente à Justiça, retirando da constituição a sua força normativa na medida em que se distanciasse da necessidade de tutela fundamental de bens jurídicos relevantes de acordo com o substrato social ao qual se relaciona inexoravelmente, tal como salientado por Konrad Hesse. A constituição não se forma, não se conclui, não se esgota, enquanto obra acabada do Poder Constituinte, quando da sua promulgação, caso possua caráter democrático quanto ao órgão exercente de sua potência; em verdade, a promulgação da Sobre a abertura da interpretação constitucional, HÄRBELE, Peter. Hermenêutica Constitucional – A sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da constituição. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1997. 2 4 constituição marca o momento inicial de sua formação, consolidando os dispositivos constitucionais que estabelecem as formulações das normas constitucionais sujeitas à construção concretizante pelo intérprete a partir do caso concreto, conformando um processo contínuo de democracia constitucional, como também entende a doutrina que a compreende como living constitution, ou constitución viviente3. Logo, partindo destas considerações, ter-se-á por intento sustentar a possibilidade jurídica de recepção formal de direitos materialmente fundamentais ou constitucionais que não integrem a constituição formal, dado o caráter processual da constituição, associado ao caráter expansivo dos direitos fundamentais, ensejando, por conseguinte, a constitucionalização formal de direitos apenas materialmente constitucionais – justificando-se o título posto –, em decorrência da eficácia positiva do princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado como princípio fundamental do Estado Democrático de Direito em que se funda a República Federativa do Brasil, tal como consolidado pelo art. 1º da Carta Magna. Tal recepção teria, assim, o condão de imprimir a tais direitos, denominados por Vital Moreira de extraconstitucionais4, um grau de fundamentalidade próprio da constituição formal, como adiante se analisará, interdizendo a livra disposição e a atuação legislativa arbitrário sobre os bens jurídicos ou interesses aos quais se relacionem. Para tanto, faz-se necessário transcorrer, ainda que a vol d’oiseau, sobre o caráter do direito constitucional, desvendando a aquisição de fundamentalidade no âmbito do sistema jurídico e do sistema político, com o reconhecimento de seu caráter normativo, o que se pode considerar ter havido apenas neste século5, bem como a evolução do constitucionalismo com a expansão dos direitos fundamentais através das dimensões de direitos, ladeada pelo evolver do Estado de Direito Liberal até o Estado Constitucional Democrático de Direito. Apreciados tais aspectos, deve-se estar em condições de sustentar a imprescindibilidade da recepção pela constituição formal das normas que integram a 3 Nesse sentido, SAGÜÉS, Nestor Pedro. Teoría de la Constitución. Buenos Aires: Astrea, 2001, e, ainda, SAGÜÉS, Nestor Pedro. Sobre el concepto de ‘Constitución Viviente’ (Living Constitution)”, In, Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, nº I, Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 269 e ss. 4 MOREIRA, Vital et CANOTILHO, J. J. Gomes. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra, 1991, p. 116. 5 Excepcionando-se o constitucionalismo americano, em que se desenvolveu o sistema de garantias consubstanciado, primordialmente, no controle de constitucionalidade, responsável pela efetiva supremacia da constituição. 5 constituição material e que consagram direitos fundamentais, consistindo numa inelutável necessidade pelo caráter histórico da promulgação da constituição ante a contingência das necessidades sociais e dos valores que presidem a idéia de Direito, sempre sob a inspiração da eficácia expansiva do princípio da dignidade da pessoa humana, vértice axiológico do sistema constitucional, pela sua natureza normogenética, em compreensão das normas constitucionais de abertura e integração da constituição formal. Registre-se, de logo, que não se está a desconsiderar que uma das principais problemáticas concernentes aos direitos humanos fundamentais, bem como desafiadores da própria força normativa da constituição, relaciona-se com falta de efetividade ou eficácia social, consoante percebido por Norberto Bobbio6; a despeito disso, a análise de tal problemática transbordaria os lindes do que se objetiva verificar através deste estudo. No mesmo sentido, a questão concernente à fundamentação dos direitos fundamentais afigura-se, de igual sorte, de grande importância, inclusive para as finalidades de perceber e reconhecer direitos fundamentais sem assento expresso no texto constitucional, mas susceptíveis de recepção formal; todavia, pelas finalidades do presente estudo, adentrar-se-á na questão apenas no que respeitar ao seu desenvolvimento. De fora parte isso, poder-se-ia refutar a utilidade de se defender a recepção formal dos direitos fundamentais sem sede expressa no texto constitucional em razão do caráter analítico da Constituição pátria, o que também não consistiria em grande objeção, pois, por mais prolixa que seja a Constituição Federal, é lógica e juridicamente impossível ao Poder Constituinte consagrar de forma explícita no catálogo jusfundamental os direitos que reputasse relevantes e merecedores de tutela constitucional hoje e sempre, em virtude da maior perenidade da constituição, não 6 Ao afirmar que “(...) o problema grave de nosso tempo, com relação aos direitos do homem, não era mais o de fundamentá-los, e sim o de protegê-los. (...). Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é a sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados. (...).” BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, pp. 25 e 27, entendimento este de que se discorda por considerar-se imprescindível o juízo teórico e crítico acerca da expansão dos direitos humanos e de sua fundamentação, questão esta também abordada pelo próprio doutrinador na própria obra citada. 6 gozando, malgrado ser potência e energia criadora, da capacidade de antevisão necessária a tal mister. Cumpre, ainda, destacar a necessidade de que a doutrina se volte aos temas constitucionalmente relevantes visando à reconstrução da estrutura normativa da Constituição Federal, em especial após a constância do estado de reforma a que foi e permanece sendo submetida, fazendo-se mister atentar para a advertência de Luiz Lênio Streck, que ora se transcreve, in verbis: “(...). Do modelo de constituição formal, no interior da qual o direito assumia um papel de ordenação, passa-se à revalorização do Direito, que passa a ter um papel de transformação da realidade da sociedade, superando, inclusive, o modelo do Estado Social. É para este salto paradigmático que deve estar atento o jurista. O problema é que, em países como o Brasil, formou-se um ‘silêncio eloqüente’ acerca do significado da Constituição, naquilo que ela tem de norma diretiva (dirigente) fundamental. Sob o manto da baixa constitucionalidade que obnubila o processo de compreensão do Direito, olvidou-se o constituir da Constituição; mas, muito pior do que o silêncio é não prestarmos atenção nele!7”. Assim, todos os operadores do direito devem estar comprometidos com o resgate da força normativa da constituição, pela fraude decorrente da subversão do Poder de Reforma em face do Poder Constituinte, bem como do constante exercício arbitrário dos poderes públicos, ofensivos dos direitos fundamentais, no que se impõe um aprofundamento na compreensão do arcabouço da Constituição Federal, dentro de uma perspectiva contemporaneamente situada de constitucionalismo, consistente nos direitos fundamentais, em especial no que respeita ao seu processo evolutivo. 02. DIREITO CONSTITUCIONAL E A FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO. 7 STRECK, Luiz Lênio. Hermenêutica e concretização dos direitos fundamentais sociais no Brasil. In ANDRADE, André. A Constitucionalização do Direito. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2003, p. 3 e ss. 7 O direito constitucional surge para atender aos postulados mais legítimos de um povo que, em verdade, era constantemente objeto do exercício do poder, pela vontade arbitrária do seu detentor, cabendo-se observar a irretocável colocação de Rousseau, de que “o homem nasceu livre e por toda parte ele está agrilhoado” 8. Em subversão a tal realidade, opera-se uma verdadeira revolução, não apenas caracterizada sociologicamente pelos aspectos de ruptura e contestador, mas, em verdade, pelo giro havido nas relações de poder com o advento do constitucionalismo moderno, conduzindo à despersonalização, à racionalização e à justificação do exercício do poder através do deslocamento da soberania pertencente ao Estado para o povo – ou para a nação –, com o desenvolvimento da teoria do Poder Constituinte. Em razão disto, a constituição representaria um ato distinto daqueles emanados dos poderes públicos, inclusive do Poder Legislativo, órgão constituído pertencente ao Estado; entretanto, ainda não gozaria de supremacia, como já adiantado. A despersonalização e a justificação legítima do poder político associam-se com a consagração dos direitos individuais, direitos estes postos contra o Estado Absolutista, o único que seria concebido como opressor dos bens jurídicos e dos valores mais essenciais para a existência dos membros da comunidade política. Como se opera o surgimento das constituições e a consagração dos direitos individuais é o que será apreciado no próximo tópico, importando destacar que o direito constitucional sempre estará, desde o seu surgimento, sujeito a toda a sorte de desvirtuamento de sua finalidade legitimadora, limitadora do poder, e garantista dos direitos, inicialmente apenas individuais, existindo, como já mencionado, numa constante tensão irreconciliável entre a política e a norma jurídica, em virtude da tendência natural do poder político de eximir-se aos limites que lhe são juridicamente definidos, impondo ao operador do direito um constante trabalho reconstrutivo da normatividade constitucional. 02.1. CONSTITUCIONALISMO MODERNO E DIREITOS INDIVIDUAIS. Ainda que se considere a existência de constituições anteriormente ao constitucionalismo moderno, não possuíam elas os mesmos elementos característicos que hodiernamente se lhes atribui, exatamente porque são decorrência de um processo de 8 ROUSSEAU, J. J.. O contrato social. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 09. 8 caráter revolucionário9 pela consagração dos direitos que, naquele contexto histórico, correspondiam à tutela dos bens fundamentais para o convívio social, consubstanciados nas liberdades, na igualdade formal, na propriedade e no direito de resistência. Pode-se conceber a constituição em sentido institucional10 como expressão da existência de uma real forma de organização e exercício do poder político pelas instituições das comunidades antigas faticamente constituídas, sem que houvesse maior atividade compreensiva acerca de qualquer potencialidade limitadora do exercício do poder, mesmo porque, nesta fase da história, o poder ainda não havia sido despersonalizado e racionalizado, confundindo-se a sua fundamentação com preceitos relativos à tradição, à religião, ao carisma e à força. Não obstante isso, já havia a elucubração investigativa sobre os institutos políticos e concepções filosóficas que iriam permear a ideologia da afirmação do direito constitucional, como a análise sobre as formas de governo e a separação de poderes, realizada por Aristóteles. A constituição, então, existe destituída da sua força normativa conformadora e da sua função legitimadora e limitadora do exercício do poder político pelo Estado, bem como garantista dos direitos fundamentais. Com a formação dos Estados Nacionais, operou-se a consolidação do poder no Estado que, sob o influxo do conceito de soberania, desenvolvido por Jean Bodin, passava a gozar de poder quase que ilimitado, dando origem ao Estado Absolutista, que teve o seu surgimento, desenvolvimento e ocaso em épocas relativamente distintas de acordo com a sua maturação na Europa continental e na Inglaterra. O constitucionalismo moderno11 inicia-se, como já dito, com a Magna Carta, de 1215, que, embora não se caracterize como constituição, pode-se considerar como um seu antecedente, não parecendo ser pertinente o retorno e a atribuição de tal característica aos contratos de domínio, existentes na Idade Média, que estabeleciam mais vínculos de fidelidade e segurança, sem que, cumpre explicitar, houvesse exigibilidade formal quanto às obrigações assumidas por cada parte. 9 Nesse sentido, somente o constitucionalismo inglês não se apresentou com traços típicos de surgimento revolucionário, em virtude das especificidades da evolução das suas instituições políticas; o constitucionalismo americano, não sendo propriamente revolucionário, não deixou de ser contestador do regime instituído pelos vínculos coloniais. 10 Miranda, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 323. 11 STRECK, Luiz Lênio. Hermenêutica e concretização dos direitos fundamentais sociais no Brasil. In ANDRADE, André. A Constitucionalização do Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, orientada aos 9 A Magna Carta, assim, goza da precedência no que concerne à limitação do exercício do poder absoluto então detido, faticamente, pelo Monarca, eis que consiste em uma restrição ao exercício do poder que é pactuada por segmento da nobreza, originando não direitos, mas privilégios estamentais. O constitucionalismo inglês passa a se desenvolver, de acordo com as peculiaridades culturais e institucionais, reafirmando aqueles pretéritos privilégios em documentos posteriores, mediante os quais se transformam em direitos, dada a perda paulatina do caráter estamental, passando a ser historicamente reconhecidos aqueles direitos considerados relevantes e imprescindíveis para uma convivência segura, correspondentes às liberdades e à propriedade, ao mesmo tempo em que se afirmava the rule of law. A ordem constitucional inglesa, então, foi sendo historicamente conformada, desde a consolidação da Magna Carta, seguindo-se a formação de documentos constitucionais posteriores, como a Petição de Direitos, o Instrumento de Governo (que alguns doutrinadores atribuem a precedência quanto às constituições escritas), dentre outros, com a formação institucional de um governo misto, através de um balanceamento dos poderes pela partilha do órgão legislativo, do Parlamento, composto pelo Rei, pela Câmara dos Comuns e pela Câmara dos Lordes, dando ensejo a uma verdadeira soberania do Parlamento que, em razão da ausência de uma constituição formal, atuaria livremente na disciplina da matéria constitucional. Cumpre registrar que a constituição inglesa, sendo histórica, ainda que contenha partes escritas e não escritas, estas propriamente compostas por costumes, não goza, pois, de efetiva supremacia jurídica, pela ausência de sujeição dos órgãos do Estado às suas normas, dada a ilimitação do legislador. De qualquer sorte, consagrados estão os direitos ditos fundamentais de liberdade e propriedade, as garantias pessoais e processuais, que consubstanciam a primeira dimensão dos direitos fundamentais. Atravessando-se o continente, manifesta-se outro dos constitucionalismos modernos, o americano, que, utilizando-se das doutrinas contratualistas e da separação de poderes, tal como delineada por Montesquieu, passa a constituir, em 1787, os Estados Unidos da América, fundado na soberania popular, criando o federalismo e o direitos humanos. Direitos humanos estes que se transformam em direitos fundamentais ao serem contaminados pela força normativa da constituição. 10 presidencialismo, e prevendo um sistema de freios e contrapesos entre as funções atribuídas a órgãos distintos do Estado. A Constituição americana, portanto, passa a expressar o momento máximo da soberania popular, consagrando a fórmula da autodeterminação democrática do povo, fundando o exercício do poder político. Nesse âmbito, os direitos individuais, relativos às liberdades, à propriedade e à igualdade formal, ainda não integravam a Constituição americana, a despeito de já terem sido explicitados nas declarações de vários Estados federados, dentre as quais se destacou a da Virgínia, de 1776, que se destinava a reconhecer expressamente a existência de direitos inatos, decorrentes da natureza humana, consubstanciados, principalmente, na igual porção de liberdade que todos devem possuir e gozar, sendo inalienáveis, bem como na propriedade e segurança, firmando o princípio da soberania popular. Os direitos individuais só foram se integrar à Constituição através das dez emendas constitucionais promulgadas em 1791, denominadas de Bill of Rights, sobre o qual doutrina Cooley que as “dez primeiras emendas, cujo fim foi o de estabelecer garantias contra o abuso dos poderes que haviam sido concedidos ao governo geral, foram adotadas em conseqüência das recomendações feitas pelas convenções dos Estados, quando deram seu assentimento à Constituição. Todas elas provieram da remota desconfiança do povo contra o poder, desconfiança que a experiência colonial havia insinuado e que os sucessos que levaram à revolução a tinham tornado mais viva.”12 A ausência inicial dos direitos individuais na Constituição americana teria como fundamento, além de aspectos relativos às disputas entre federalistas e anti-federalistas, a possibilidade de que tais direitos fossem compreendidos como exaustivamente enunciados, problema este que poderia ser mitigado com a previsão da Nona Emenda.13 O Bill of Rights trata, assim, das liberdades religiosa, de expressão, de imprensa, do direito de petição e de reunião (Primeira Emenda), do direito de uso do porte de arma (Segunda Emenda), da proteção ao domicílio (Terceira Emenda), das garantias processuais (Quarta Emenda), das garantias relativas ao processo criminal (Quinta e Sexta Emendas), da previsão do Júri para o julgamento de determinadas causas cíveis (Sétima Emenda), das garantias quanto a multas, penas e fianças (Oitava Emenda), 12 COOLEY, Thomas M.. Princípios Gerais de Direito Constitucional nos Estados Unidos da América. Campinas: Russell, 2002, pp. 200-201. 13 “A enumeração de certos direitos na Constituição não poderá ser interpretada como negando ou minimizando outros direitos inerentes ao povo.” 11 da disposição interpretativa de abertura (Nona Emenda), e da previsão da competência reservada (Décima Emenda). Logo, evidencia-se que a Constituição americana apenas consagra os direitos relacionados àqueles bens ou valores reputados como imprescindíveis para a limitação do poder do Estado sobre a pessoa dos indivíduos. Retornando, novamente, ao continente europeu, estará surgindo o constitucionalismo francês, marcado pelo acentuado caráter de ruptura políticoinstitucional, consagrando-se após a Revolução, mediante a Declaração Universal de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e da Constituição francesa, de 1791, sob a inspiração das doutrinas contratualistas, da separação de poderes, e da positivação dos direitos inatos ao homem, tidos como direitos naturais. A Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão 14 positivava os direitos individuais e políticos do homem, prevendo, em redação bastante similar à Declaração de Virgínia15, a igualdade e a liberdade inatas ao homem, no seu art. 1º, estabelecendo como finalidade de toda associação a conservação dos direitos naturais do homem, consistentes na liberdade, propriedade, segurança e resistência à opressão, fundando a soberania nacional. No seu art. 4º resta assentada a definição mais usual de liberdade, como sendo o poder de fazer tudo o que não prejudique aos demais, havendo uma limitação recíproca entre as manifestações de exercício dos direitos naturais a fim de que todos pudessem gozá-los, conferindo ao legislador a possibilidade de estabelecer tais limitações, pois consistiria, em verdade, numa autolimitação, por ser a lei a expressão da vontade geral, como definido por Rousseau e acolhido pela Declaração e pela Constituição superveniente. Já o art. 16 da Declaração um conceito material de constituição historicamente situado, ao condicionar a existência de uma constituição à circunstância da previsão da separação de poderes e dos direitos individuais. A Constituição francesa de 1791, em seu preâmbulo, bem expressa o contexto político-social da época e a carga axiológica que seria transferida para as suas 14 A partir de sua própria denominação se pode verificar que cuidou apenas da positivação daqueles direitos considerados inatos ao homem enquanto indivíduo, bem como enquanto cidadão, detendor de direitos políticos, sem qualquer referência às múltiplas relações sociais que entabula no âmbito da sociedade, bem como ao homem enquanto cidadão. Não obstante a referência de direitos políticos, não se pode considerar ter havido a consagração dos mesmos, pois eram atribuídos mediante uma série de condicionamentos, excluindo a maioria do povo da condição de cidadão e do gozo de tais direitos. 12 disposições, consagrando o princípio da igualdade, rompendo com a estrutura estamental nobiliárquica, reafirmando, em suas primeiras disposições, os direitos naturais declarados anteriormente, bem como corroborando a existência da soberania nacional, que seria exercida através do sistema representativo, prevalecendo o que defendido por Sieyès 16, ao contrário do que sustentava Rousseau, por considerar impossível a delegação do exercício do poder. Mais uma vez, os direitos individuais consagrados pela Declaração e pela Constituição eram considerados como direitos deduzidos e percebidos racionalmente a partir da natureza humana, consubstanciando, em verdade, uma decorrência da idéia de Direito e de Justiça que prevalecia na época, sob os influxos do liberalismo e da fisiocracia, que visavam a resguardar o indivíduo da exploração pelo poder do Estado. Tem-se, assim, em breve referência, o surgimento do constitucionalismo moderno, também caracterizado como constitucionalismo liberal, por importar na criação do Estado Liberal, em reação ao Estado Absolutista, pois, através da consagração dos direitos individuais, além da separação de poderes – outra das técnicas de limitação ao exercício do poder político –, resta delimitado um âmbito muito estreito para a atividade estatal, que passaria a consistir nas atividades de segurança, defesa do território e observância dos direitos individuais, gerando, no mais das vezes, deveres de abstenção. Neste momento histórico, o constitucionalismo liberal, com a consagração dos direitos individuais, promoverá a positivação dos postulados jusnaturalistas pertinentes aos direitos humanos, embora não se possa, ainda, considerar que tais direitos foram, efetivamente, dotados de fundamentalidade, pois as constituições, com exceção da americana, que no início do século XIX passará a gozar de efetiva supremacia 17, ainda não se superpõem ao exercício do Poder Legislativo. Assim, os direitos individuais, correspondentes à primeira dimensão do âmbito protetivo da personalidade humana, merecedora de resguardo tutelar constitucional, a despeito de representarem a essência do constitucionalismo moderno, impondo a ausência de intervenção estatal nas relações particulares e, principalmente, no âmbito da econômica – que se regeria pelas leis próprias e naturais de mercado –, não se impunham, ainda, como direitos fundamentais, pois a própria constituição carecia de efetiva 15 Sendo de se referir o já ocorrido debate doutrinário acerca da precedência e da influência da francesa sobre a americana, e vice-versa. 16 Observe-se que a doutrina de Sieyès vai, em verdade, causar um desvirtuamento no exercício do poder que se pressupunha democraticamente fundado, ensejando a representação soberana da nação, ao invés da representação da nação soberana. 13 supremacia jurídica, carecia de força normativa, de fundamentalidade, como analisa Javier Peréz Royo, em trecho que ora se transcreve, in verbis: “La constitución no consiste en la declaración de derechos, sino unicamente en su garantía. Los derechos son preconstitucionales, son naturales. Es en la garantía vinculada a la división de poderes en lo que consiste la Constitución. Esta es la forma por que los derechos se presentan en sociedad. Será necesário un paso más para que se produzca la transformación de los derechos naturales en derechos constitucionales. (...)18. (Itálico original). Por conseguinte, apesar de estarem inseridos nos textos constitucionais, ou integrados à prática política institucional do poder, historicamente reconhecidos, os direitos individuais só seriam efetivamente constitucionalizados, passando a gozar de fundamentalidade – pressupondo-se a força normativa e a supremacia da constituição –, em sendo previstos meios de controle que efetivamente sujeitassem o legislador à observância da Constituição, ultrapassando-se o Estado de Direito Liberal, em que o direito se reduzia à lei, às disposições postas pelo legislador, até o Estado Democrático de Direito; todavia, faz-se mister, ainda, transitar pelo constitucionalismo social, responsável pela expansão dos direitos constitucionais mediante a integração à Constituição de direitos sociais. 02.2. CONSTITUCIONALISMO SOCIAL E DIREITOS SOCIAIS. Com a crise do Estado Liberal, tornou-se possível observar que, em verdade, o Estado já não seria apenas a única ameaça ao livre desenvolvimento da personalidade humana, transferindo-se o grupo de poder responsável pelas opressões que eram anteriormente realizadas em razão da distinção estamental, de base nobiliárquica, para os detentores do poder econômico ou de qualquer situação de prevalência fática em face da outra parte, vulnerável ou hipossuficiente, que, então, não gozaria, nas relações privadas que entabulasse, da livre manifestação de vontade, nem sequer, em virtude de situações fáticas de sujeição que lhe eram impostas, da pretensa liberdade natural que lhe dizia respeito. 17 Com o desenvolvimento do judicial review. 14 Ao mesmo tempo, verificou-se que as liberdades e garantias individuais não eram suficientes a propiciar condições de vida digna, que possibilitassem as mínimas potencialidades materiais à parcela do povo que não conseguia, no exercício da sua liberdade profissional e contratual, auferi-las, inviabilizando, de igual sorte, o exercício dos direitos individuais. Por conseguinte, há duas questões fulcrais, das quais advém uma série de aspectos conexos também agravantes da situação social, que respondem pela insuficiência e inaptidão do Estado Liberal a se prestar até mesmo como garantidor do gozo dos direitos individuais. A primeira questão consiste na verificação de que a igualdade formal conduziria a situações de opressão do homem pelo homem, pois a ausência da regulação estatal sobre as relações privadas reacenderia aquele intento já denunciado por Hobbes de exploração do homem, pela sua própria natureza, homo homini lupos. No mesmo sentido, a segunda questão implica a constatação de que os direitos individuais seriam frustrados se não fosse garantida uma base ou um substrato material para que a pessoa humana tivesse disponibilizadas mínimas condições essenciais de vida, a fim de poder desenvolver integralmente a sua personalidade, inclusive pela autodeterminação pertinente ao âmbito de autonomia individual que lhe pertence e que, em verdade, vinha-lhe sendo expropriado e invadido por aquele que se apresentava em situação de prevalência. Essas questões se somavam com a concepção legalista que passou a ser desenvolvida, pela qual se reduzia o direito à lei19, ficando os enunciados constitucionais à disposição arbitrária do legislador, obstando o real gozo dos direitos individuais e conduzindo, então, à crise do Estado Liberal. Logo, neste contexto social específico, passa a corresponder à idéia e à concepção de Justiça que permeia o momento histórico, a partir dos valores, necessidades e interesses aferidos do povo, detentor do Poder Constituinte, a consagração de direitos pertinentes a bens jurídicos relevantes consubstanciadores de condições mínimas de vida digna, ensejando a tutela não apenas do homem-indivíduo, garantindo as suas liberdades e a propriedade, mas também albergando a idoneidade à proteção da pessoa humana em todas as múltiplas relações sociais em que se apresente em estado de vulnerabilidade em 18 ROYO, Javier Peréz. Curso de Derecho Constitucional. 8ª ed., Madri: Marcial Pons, 2002, p. 254. E, posteriormente, dos direitos sociais que seriam constitucionalizados, pela permanência da disposição arbitrária do legislador. 19 15 face da outra parte, abrangendo o idoso, a criança, a mulher, o trabalhador, pois dignidade humana não se realiza apenas no âmbito da autodeterminação individual, mas nas relações sociais. Desenvolve-se, assim, o constitucionalismo social, cujas primeiras manifestações, como é cediço, são a Constituição Mexicana de 1917 e a Alemã de Weimar de 1919, que serão responsáveis por constitucionalizar, embora ainda sem dotálos de fundamentalidade, os direitos ditos sociais, originando uma alteração nas concepções e fins do Estado, que fica, por conseguinte, impelido a retirar-se da inércia e a promover as atividades interventivas no âmbito econômico e nas relações privadas, embora persistisse resguardando os direitos individuais. O constitucionalismo social se orientou pelo princípio da igualdade material, expressando a idéia de Justiça Distributiva, legitimando a previsão normativa de tratamentos distintos para pessoas que se apresentassem em situações de sujeição fática em face de outra ou outras pessoas, conferindo-lhes maiores benefícios, garantias ou poderes jurídicos, visando a promover a igualização no plano fático, permitindo, assim, o exercício do âmbito de liberdade consubstanciado na autonomia individual, bem como o exercício das demais liberdades. Esse processo se realiza, como já mencionado, mediante alteração das concepções e valores que passam a permear a idéia de Direito, dirigindo-se ao princípio da dignidade da pessoa humana, assentado precedentemente na Constituição de Weimar. A Constituição mexicana tem um título específico em que se destina a estabelecer normas constitucionalização sobre – o trabalho e a previdência a integração constitucional social, operando a por expressa manifestação refundacional do Poder Constituinte – dos direitos sociais, baseados na igualdade material; consagrava, também, normas atributivas de deveres ao Estado consistentes em prestações materiais ou na imposição de restrições ao exercício da liberdade daqueles que se impunham numa relação de sujeição jurídica, prescrevendo, no art. 123, a duração da jornada de trabalho, a redução da jornada noturna, a proibição do trabalho infantil, o salário mínimo, que deveria atender “las necesidades normales de la vida del obrero, su educación y sus placeres honestos, considerándolo como jefe de família”, dentre outros direitos de cunho social, como o direito à greve. Já a Constituição alemã de Weimar, por obra do Poder Constituinte, utilizandose explicitamente da denominação de direitos fundamentais, disciplina a vida privada, a vida social, o aspecto religioso, a educação e a escola – esta última matéria já integrando 16 o âmbito dos direitos sociais, a exigir uma prestação estatal – mas, principalmente, normatizando a vida econômica, operando a constitucionalização20 expressa, em seu art. 151, do princípio da dignidade da pessoa humana, como se observa de sua peremptória redação, que ora se transcreve, in verbis: “Art. 151. El régimen de la vida económica debe responder a principios de justicia con la aspiración de asegurar a todos una existencia humana digna. Dentro de estos límites se reconoce al individuo liberdad económica.”21 Outrossim, resta assentada a proibição da usura no art. 152, garantindo o direito de propriedade, impondo, todavia, um dever de utilização segundo o bem comum pelo art. 153, disciplinando a distribuição do solo a fim de que haja uma “vivienda digna”, tal como prescrito pelo art. 155. Assim, estão postos por manifestação explícita do Poder Constituinte os direitos sociais, que não são imediatamente decorrentes da natureza humana, mas, em verdade, são pertinentes à condição político-social do homem, ocasionando uma transformação do Estado, que passa a se constituir em Welfare State, ou Estado do Bem Estar, ou, ainda, Estado Social, com o desiderato constitucional de ensejar desenvolvimento da personalidade humana, só possível com a disponibilização de condições mínimas que possibilitem uma condição de vida digna através da atividade prestacional do Estado, como também da intervenção no âmbito econômico, seja mediante regulação das relações privadas, antes imunes – reconhecendo-se a necessidade de, por desigualização jurídica, possibilitar a igualização fática, resguardando a liberdade na manifestação de vontade, impedindo, por conseguinte, a sujeição do trabalhador, da mulher, da criança, do idoso, ou do adolescente à outra parte –, seja através de fomento, ou seja por atuação direta na exploração de atividade econômica,. Não obstante isso, há de se ressaltar que justamente na vigência do Estado Social, da Constituição de Weimar, que operou a constitucionalização dos direitos sociais e a consagração explícita do princípio da dignidade da pessoa humana, houve o implemento de um dos regimes mais ofensivos da dignidade humana, confirmando que, malgrado constitucionalizados, os direitos sociais, como os individuais, integrantes das 20 Embora, ainda, sem haver a necessária e imprescindível fundamentalidade que caracteriza o processo real e efetivo de constitucionalização, ante a persistência de ausência do caráter normativo da constituição e da sua efetiva supremacia jurídica. 21 SUANZES, Joaquín Varela. Textos básicos de la História Constitucional comparada. Madri: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 1998, p.400. 17 duas primeiras dimensões de direitos, não gozavam do atributo da fundamentalidade, persistindo a redução direito à lei, prevalecendo, conseqüentemente, a soberania da representação sobre o representante, como sustentado por Perez Royo, in verbis: “En pocas palabras: los derechos de Weimar eran los derechos indiscutibles, expresión de la cultura jurídica occidental, y reivindicaciones muchas cosas coyunturales, más, que resultantes habían de consiguido colarse en la Constitución, como consecuencia del desbarajuste producido por la profunda crisis del final de la guerra. .................................................................................................. El problema (relativo ao alcance e proteção jurídica dos direitos constitucionalizados) era especialmente complicado de resolverse, porque el constituyente aleman no previó el control de constitucionalidade de la ley y, en consecuencia, no disponía la constitución de un instrumento indiscutible para afirmar su superioridad sobre los actos del legislador. No pudo haber, por tanto, una doctrina constitucional definitivamente vinculante sobre los derechos fundamentales y sobre la posición del legislador en relación con los mismos22.” Como já referido, apesar do constitucionalismo surgir desde os primeiros documentos ingleses limitadores do poder político, expandindo-se para os Estados Unidos e para a França e, depois, para a América e Europa, não se pode considerar que as constituições deste período realizam, efetivamente, a função de regular e limitar a atuação dos órgãos do Estado, dado que o Poder Legislativo ainda resistia sem se sujeitar à constituição, que só vinculava os demais poderes a partir do desenvolvimento pela lei de suas disposições, sendo considerada necessária a interpositio legislatoris. Logo, o Poder Constituinte constituía uma nova ordem jurídico-políticoinstitucional, em caráter fundacional, ou em ruptura à ordem vigente anteriormente, e o 22 Royo, Javier Peréz, ob. cit., p. 263. 18 Poder Legislativo dispunha discricionariamente, no mais das vezes, arbitrariamente 23, sobre a normatividade constitucional, frustrando a garantia dos direitos individuais e dos sociais24. Não obstante isso, essa situação seria alterada pelo advento do controle jurisdicional de constitucionalidade, que já havia sido desenvolvido pelo Justice Marshall nos Estados Unidos ao entender que não competia à Suprema Corte julgar o caso Marbury x Madison porque a competência deste órgão era reservada ao que cometido pela Constituição americana, não podendo uma lei alargar o âmbito da competência jurisdicional nela previsto, estabelecendo o judicial review, anteriormente desenvolvido nos Artigos Federalistas. Entretanto, apenas com a expansão do sistema jurisdicional de controle de constitucionalidade é que a constituição, entendendo-se como tal a constituição formal, escrita, positivada e rígida, passa a, efetivamente, sujeitar e vincular todos os órgãos exercentes das funções do Estado, inclusive o legislador. 02.3. A FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO E O ESTADO DE DIREITO NO CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO. Pode-se afirmar, assim, com Perez Royo25, que somente a partir da efetiva supremacia jurídica das constituições, passando a gozar do atributo da fundamentalidade, transformar-se-ão os direitos de primeira e segunda dimensão, já formalmente incorporados às mesmas, em direitos verdadeiramente fundamentais, malgrado já tenha o constituinte de Weimar se referido a eles utilizando-se de tal denominação. Com efeito, os direitos constitucionalizados, incorporados formalmente ao texto das constituições por obra do Poder Constituinte, não logravam, por si sós, êxito em limitar o poder político e promover a proteção jurídica da pessoa, seja enquanto 23 Sobre alguns fundamentos desta ilimitação do legislador, sucintamente analisados, ver C ALMON DANTAS, Miguel. Mandado de Injunção e Eficácia dos Direitos Fundamentais ante a Supremacia da Constituição, in Revista da OAB-BA, nº 01, Ano 1, julho de 2002, T. II, pp. 145-175. 24 Seja por atuar contrariamente às disposições constitucionais, seja por não desenvolvê-las, permanecendo inerte quanto necessária edição da lei para dotar a norma constitucional de plena eficácia, vício este verificado na atualidade, não tendo havido uma vontade de Constituição, na esteira da doutrina de Hesse, quanto à compreensão da sua força normativa concernentemente à atuação do legislador, a fim de se constatar a imposição de um dever de legislar, cuja inércia, malgrado já susceptível de controle, não vem sendo regularmente sancionada, em especial pelo Supremo Tribunal Federal. Sobre a questão, dissertação agraciada com o Prêmio Calmon de Passos, instituída pela Ordem dos Advogados – Seção Bahia, CALMON DANTAS, Miguel. Mandado de Injunção e Eficácia dos Direitos Fundamentais ante a Supremacia da Constituição, in Revista da OAB-BA, nº 01, Ano 1, julho de 2002, T. II, pp. 145-175. 25 Royo, Javier Peréz, ob. cit., p. 257. 19 indivíduo, seja no âmbito das suas relações sociais, e principalmente nestas, pois os direitos sociais exigiam uma específica atuação do Estado, quer em caráter prestacional, quer intervindo mediante regulação e disciplina nas relações econômicas, como explicitado, o que só poderia ocorrer a da disciplina legal. Nesse sentido, assiste razão a Lassale que, em 1863, proferiu uma palestra questionando-se sobre a essência da constituição, refletindo-se inexoravelmente na essência dos diretos constitucionais, a partir do que externou a sua concepção sociológica de constituição, pela qual esta nada mais representa do que o resultado da soma dos fatores reais de poder que existem em uma nação em determinado momento histórico, compreendendo o poder econômico, o militar, os grupos de pressão, e, inclusive, mas em menor grau de potencialidade, o povo. A constituição escrita – esta de que se trata enquanto composta por direitos constitucionais que deveriam propiciar a legitimação e a limitação do exercício do poder pelos órgãos do Estado –, constituía-se apenas e tão-somente numa folha de papel, na medida em que não vinculava, não sujeitava os poderes públicos ao cumprimento de suas disposições, em distanciando-se daquela constituição efetivamente existente e desenvolvida pelos fatores reais de poder. Não obstante isso, pode-se considerar que as constituições deste período revelavam-se, adotando-se a classificação de Loewenstein26, ou como constituições semânticas, representando apenas a formalização de uma estrutura de poder já existente, visando a consolidá-la em proveito dos detentores do poder, ou como constituições nominais, que, malgrado destituídas de uma efetiva existência como vinculantes e limitadoras dos poderes públicos, não conseguindo tutelar os bens e valores fundamentais que se relacionavam com os direitos constitucionais, estavam imbuídas de uma intencionalidade quanto à realização mais breve possível das disposições constitucionais, orientando-se a atuação do Estado nesse sentido. Por conseguinte, não existia uma constituição que gozasse de força normativa – excepcionando-se a americana –, havendo, em verdade, a supremacia do legislador sobre a constituição, a supremacia da representação, que passava a ser efetivamente soberana, sobre o próprio povo. Assim, no curso da evolução do constitucionalismo o embate entre o princípio da legalidade e o princípio da constitucionalidade vinha sendo vencido por aquele, por 26 LOEWENSTEIN, Karl. Political Power and the governamental process. Chicago: The University of Chicago, 1965, pp. 148-149. 20 mais paradoxal que fosse, dado o caráter quase mítico do legislador, entendido como ser racional capaz de externar e atualizar a vontade geral, na representação da soberania, não podendo ter a sua atuação susceptível de controle, a não ser, como desenvolvido na França, por meios de controle internos, estabelecidos no âmbito da própria atividade legislativa. A despeito de tal concepção, a luta do constitucionalismo contra os arbítrios do poder, sempre em prol da efetiva constitucionalização e proteção dos direitos mais caros à proteção da pessoa humana, imediatamente decorrentes da idéia de Direito que preside determinada época histórica, ensejando a caracterização da constituição como lei fundamental, viria a redundar na consagração de sua força normativa. A constituição não se reduzia apenas numa proposta, numa orientação não vinculante, num convite ou num apelo ao legislador para que, se possível, no exercício da sua liberdade – que sequer poderia se considerar tratar-se liberdade de conformação, porque não estava sujeito a se conformar –, realizasse os dispositivos constitucionais, em especial os atributivos de direitos constitucionais, que ficavam sujeitos, subjugados, ao livre alvedrio e arbítrio político de uma representação que, subvertendo a idéia de soberania, passava, ela própria, a ser exercida ilimitadamente, seja pelo caráter fantasioso da legitimidade democrática, seja por uma extrema estrutura de separação de poderes, que foi implementada na França revolucionária, tendo a Revolução se direcionado também contra os juízes.27 Os direitos constitucionais, então, tanto os de liberdade como os sociais, quedavam-se ante o arbítrio do único órgão do Estado capaz de descumpri-los e frustrálos, embora o mais democraticamente legitimado, ao menos até que se desenvolvessem os sistemas jurisdicionais clássicos e típicos de controle de constitucionalidade, consubstanciados no controle difuso, através do judicial review, desenvolvido pelo constitucionalismo americano, e pelo controle concentrado, que se expandiu pela Europa após acolhimento na Constituição Austríaca de 1920, por obra de Kelsen, como também os demais meios de garantias constitucionais aos direitos que vão compor a jurisdição constitucional, sendo bastante expressivo Kägi, citado por Luiz Lênio Streck, ao afirmar que “diz-me a tua posição quanto a jurisdição constitucional e eu te direi que conceito tens de Constituição”28. 27 Cumpre registrar que na França o Judiciário não julga as causas contra a Administração, que se sujeitam ao contencioso administrativo, e nem exerce o controle sobre a atividade do Poder Legislativo. 28 Streck, Luiz Lênio, ob. cit., p. 40. 21 A jurisdição constitucional, então, mediante os sistemas de controle jurisdicional constitucionalidade e da constitucionalização de garantias processuais aos direitos constitucionais, promove, efetivamente, a aquisição pelas constituições do atributo de fundamentalidade, que se imprimirá, como não poderia deixar de ser, aos direitos constitucionais, tornando-os direitos fundamentais, ainda que haja um grau distinto de fundamentalidade no que pertine aos direitos de primeira dimensão e aos direitos de segunda dimensão, o que é por assaz discutível. Registre-se que tal processo, de previsão de meios constitucionais de garantia para os direitos constitucionais, dotando-os de fundamentalidade, respondeu por atribuir força normativa à constituição, ensejando o desenvolvimento doutrinário desta nova perspectiva. Sem se conceber a constituição como norma, a proposta revolucionária que ensejou o surgimento do constitucionalismo não teria logrado êxito em suas finalidades essenciais de legitimar o exercício do poder, sempre em prol do detentor da soberania – o povo –, limitar o seu exercício, e promover a consagração da idéia de Direito que persiste num determinado momento histórico, aproximando-se da Justiça pela expressão do processo contínuo de constitucionalização dos direitos. Nesse sentido, Konrad Hesse, rebatendo as observações de Lassale, desenvolve a sua doutrina sobre a força normativa da constituição, só que partindo para as considerações pertinentes ao conflito entre a força da organização ou da estrutura social estabelecida e a força normativa da constituição, analisando as circunstâncias de interferência e conformação recíproca do fato à norma e da norma ao fato. A constituição deve gozar, pois, de respaldo do substrato social em que vige, devendo expressar os valores e concepções que prevaleçam em determinada comunidade política; possui, entretanto, pela sua própria condição de norma jurídica, força suficiente para conformar a realidade social dentro dos limites do contexto histórico existente, condicionando-se, ainda, à vontade de constituição, ou seja, “embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A Constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas, se existir disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos e reservas provenientes dos juízos de conveniência, se puder identificar a vontade de concretizar essa ordem. Concluindo-se, pode-se afirmar que a Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes, na consciência geral – particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional –, 22 não só a vontade de poder (Wille zur Macht), mas também a vontade de Constituição (Wille zur Vergassung).”29 Na mesma linha teórica de Hesse, postulando a força normativa da constituição, dentre outros vários doutrinadores, pode-se mencionar Eduardo García de Enterría30 e German Bidart Campos31, força normativa esta que, como dito, imprimirá às constituições a fundamentalidade que se comunicará inexoravelemente aos direitos fundamentais, direitos constitucionalizados, incorporados formalmente pela manifestação do Poder Constituinte à constituição formal, gozando não apenas de supremacia lógica ou axiológica, mas de efetiva supremacia jurídica a partir da rigidez associada com o sistema de garantias que irá justificar a atuação da jurisdição constitucional, muito bem delineada por José Adércio Leite Sampaio, como se ora verifica do seu entendimento a seguir transcrito, in verbis: “A conciliação entre critérios formais e materiais (de delimitação da jurisdição constitucional), a nosso ver, pode ser conseguida com a identificação de jurisdição constitucional como uma garantia da Constituição, realizada por meio de um órgão jurisdicional de nível superior, integrante ou não da estrutura do Judiciário comum, e de processos jurisdicionais, orientados à adequação da atuação dos poderes públicos aos comandos constitucionais, de controle da ‘atividade do poder do ponto de vista da Constituição’, com destaque para a proteção e realização dos direitos fundamentais.”32 O caráter normativo da constituição e a fundamentalidade que passou a gozar, consubstanciando-se em fundamento de legitimação do exercício do poder político e da adoção de políticas públicas destinadas à consecução das tarefas constitucionalmente cometidas, em especial aquelas pertinentes aos direitos sociais que se relacionam com a criação e disponibilização de condições mínimas de existência que possibilitem o livre desenvolvimento da personalidade humana, ensejando o gozo dos direitos fundamentais, 29 HESSE, Konrad, A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1991, p. 19. 30 ENTERRÍA, Eduardo García de. La Constitución como Norma y el Tribunal Constitucional. 3ª ed., Madri: Civitas, 2001. 31 CAMPOS, German J. Bidart. El Derecho de la Constitución y su fuerza normativa. Buenos Aires: Ediar, 1995. 23 atendendo ao princípio da dignidade da pessoa humana, operará a transformação do Estado de Direito. O ordenamento jurídico passa a estar imbuindo de uma concepção expansiva de proteção do ser humano em suas várias manifestações, pela ascendência hierárquica da Lei Fundamental e dos direitos fundamentais nela expressamente consagrados, almejando a proteção até mesmo daqueles ainda não existentes e, inclusive, das gerações futuras, expressando a constitucionalização da idéia de Direito proveniente das perspectivas e dos valores de Justiça historicamente assentados. Dessarte, o constitucionalismo propicia uma evolução conjunta dos direitos constitucionais com as concepções de Estado de Direito, andando lado a lado, de braços dados com os valores de democráticos de legitimação de poder e de Justiça, resistindo à luta incessante em prol da afirmação da efetiva supremacia jurídica da constituição e, por conseguinte, dos direitos constitucionais e da Justiça, segundo os valores e princípios constitucionalizados, sempre tendo como norte um fundamento antropocêntrico consubstanciando na dignidade da pessoa humana, não apenas do indivíduo, mas também da dignidade da pessoa enquanto ser social, cultural e político. Por conseguinte, conseqüência outra não há se não o movimento de expansão irresistível dos direitos constitucionais que passam a gozar de fundamentalidade, ainda que em graus diversos. Nesse sentido, o Estado de Direito evolui num contínuo processo de vivência constitucional, integrado por algumas rupturas refundacionais através de novas manifestações do Poder Constituinte, ocasionando a superação do Estado de Direito Liberal burguês, que se afigurava como Estado Legal, passando pelo Estado Social de Direito, que persiste com a redução do Direito à obra do legislador, até a consolidação do Estado de Direito enquanto Estado Constitucional Democrático de Direito. O direito passa a ser presidido hierarquicamente pelo princípio da constitucionalidade, tendo a constituição, como Kelsen já concebia, o caráter de norma fundamental jurídico-positiva, sujeitando-se o legislador, por mais que democraticamente legitimado, inexorável e inelutavelmente, a um momento máximo de democracia, consubstanciada na emanação da constituição, autorizando Bruce Ackerman a defender a existência de um dualismo democrático, como analisado por Marianna Montebello, em trecho a seguir transcrito, in verbis: 32 SAMPAIO, José Adércio Leite. A Constituição Reinventada pela Jurisdição Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 23. 24 “A idéia básica remonta ao dualismo democrático: o tempo e o esforço empreendidos para se alcançar determinado resultado quando a deliberação ocorre com a ativa mobilização da cidadania seriam inúteis caso nenhuma precaução fosse tomada para impedir que os homens políticos ordinários fizessem, no futuro, leis em contraste com a Constituição. Em poucas palavras, Bruce Ackerman concebe o judicial review como instituto a exercer função preservativa, assumindo relevância ímpar no contexto de uma democracia dual que pretenda observar o seu estatuto supremo.33” Assim, a democracia passa a ser resguardada e delimitada pela própria constituição, revelando-se a sua promulgação como o momento máximo de democracia, relacionando todos os integrantes da comunidade política enquanto sujeitos constituintes, como referido por Canotilho34; logo, o direito constitucional deve se fundar na democracia que deriva da soberania popular, preservando a vivência democrática a fim de que não haja o seu desvirtuamento, impondo os direitos fundamentais mesmo a uma eventual maioria legislativa, e resguardando, portanto, os direitos das minorias, essenciais para a existência do regime democrático. Por conseguinte, o Estado Constitucional Democrático de Direito vai impor o império do direito até mesmo ao legislador, que deverá produzir as normas jurídicas integrantes do ordenamento jurídico estatal em atenção e observância ao direito constitucional, integrando-se ao cumprimento das tarefas e à promoção da efetividade dos direitos constitucionais que passaram a compor o sistema constitucional. O Estado de Direito, todavia, como concebido a partir do constitucionalismo contemporâneo, não se esgota na perspectiva de sujeição democrática do legislador, possuindo também um caráter constitutivo de sua própria existência e justificação, consubstanciado em preservar e expandir a cultura constitucional dos direitos fundamentais, caracterizando-se como um Estado de Justiça em que o Direito tem como 33 MONTEBELLO, Marianna. Estudo Sobre a Teoria da Revisão Judicial no Constitucionalismo NorteAmericano – A Abordagem de Bruce Ackerman, John Hart Ely e Ronald Dworkin. In VIEIRA, José Ribas (organizador), Temas de Direito Constitucional Norte-Americano. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 100101. 34 “Em conclusão: só o povo real – concebido como comunidade aberta de sujeitos constituintes que entre si ‘contratualizam’, ‘pactuam’, e consentem o modo de governo da cidade –, tem o poder de disposição e 25 fundamento concepções e princípios axiologicamente fundados na idéia de Justiça historicamente consagrada, como já o dizia Elias Diáz ao considerar que os “derechos humanos constituyen el contenido concreto, histórico, de esos grandes valores éticos (y políticos) que son la liberdad, la igualdad, la justicia, la paz... Quizá todos estos valores pudieran sintetizarse en el de la justicia, si entendemos ésta como el resultado de una correcta y dinámica articulación en el tiempo – y en una concreta realidad social – de las exigencias, siempre de progresión abierta, que se expresan fundamentalmente a través de la liberdad y de la igualdad”35. Nesse sentido, em consonância com o constitucionalismo contemporâneo, em virtude do caráter de abertura sistemática das normas constitucionais, integradas por princípios e regras, que pugnam por uma concretização metódica mediante a intermediação dos intérpretes e operadores constitucionais, há de se postular não apenas a constitucionalização formal e a fundamentalidade dos direitos de primeira e segunda dimensão. Em verdade, deve-se compreender que a constituição consiste em um documento aberto ao resguardo e à tutela de bens e valores axiologicamente relevantes para a satisfação do princípio da dignidade da pessoa humana e, conseqüentemente, dos ideais de Justiça subjacentes, constituindo-se o Estado em um Estado de direitos fundamentais. Logo, evidencia-se a necessidade de se concluir pela existência de um processo de constitucionalização abrangente não apenas dos direitos inscritos na constituição formal, mas também daqueles que compõem a constituição em sentido material, sejam direitos de liberdade, que formam a primeira dimensão de direitos, os de caráter individual, sejam direitos sociais, exigentes de uma atuação prestacional e intervencionista do Estado, de segunda dimensão, sejam os de terceira e quarta dimensões, dado o caráter multidimensional da personalidade humana, integralmente carente de tutela constitucional. Faz-se mister, pois, atentar-se para a lapidar e insuperável lição de Canotilho, que deve ressoar e comandar toda atividade compreensiva da ordem constitucional, em doutrina que ora se transcreve, in verbis: conformação da ordem político-social.” CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5ª ed., Coimbra: Almedina, 2002, p. 76. 35 DÍAZ, Elías. Legalidad-Legitimidad em el Socialismo Democrático. Madri: Civitas, 1978, p. 125. 26 “Dizer que o Estado de direito é um Estado de direitos significa, desde logo, que eles regressaram ao estatuto de dimensão essencial da comunidade política. Não admira, por isso, a sua constitucionalização. Estarem os direitos na constituição significa, antes de tudo, que beneficiam de uma tal dimensão de fundamentalidade para a vida comunitária que não podem deixar de ficar consagrados, na sua globalidade, na lei das leis, ou lei suprema (a constituição). Significa, em segundo lugar, que, valendo como direito constitucional superior, os direitos e liberdades obrigam o legislador a respeitá-los e a observar o seu núcleo essencial, sob pena de nulidade das próprias leis.36” Partindo de tais premissas, que devem presidir a compreensão do constitucionalismo contemporâneo, reconhecendo-se o caráter expansivo dos direitos fundamentais, em atenção a multidimensionalidade da personalidade humana, correlacionada ao princípio da dignidade da pessoa humana, após a constatação da constitucionalização e aquisição do caráter de fundamentalidade dos direitos de primeira e segunda dimensão, passará a se sustentar que outros direitos, ainda que não inscritos na constituição formal, seriam susceptíveis de recepção formal. Nesse contexto, cumpre que seja, também, procedida a analise do advento das demais dimensões de direitos – terceira e quarta – e das críticas que são suscitadas sob a perspectiva de uma eventual banalização dos direitos fundamentais, supostamente capazes de comprometer a força normativa da constituição. 03. A CONSTITUCIONALIZAÇÃO FORMAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS – ABERTURA DA CONSTITUIÇÃO. Inicialmente, importa analisar a evolução das dimensões pertinentes à constitucionalização progressiva dos direitos humanos, sustentando os elementos característicos de cada uma, a fim de verificar que a atividade do Poder Constituinte de integrá-los ao texto constitucional não é capaz de esgotar a completude pertinente 36 CANOTILHO, J.J. Gomes. Estado de direito. Lisboa: Fundação Mário Soares, 1999, p. 56. 27 àqueles bens e valores impostergáveis que exijam tutela constitucional, perquirindo-se as notas características dos direitos fundamentais e sua configuração. Após, passar-se-á à constatação da admissibilidade de integração constitucional mediante recepção formal de direitos materialmente constitucionais, a fim de que gozam da fundamentalidade da constituição. 03.1. OS DIREITOS FUNDAMENTAIS37 E AS DIMENSÕES DE DIREITOS. Os direitos sofreram um processo de constitucionalização paulatino, no curso histórico do desenvolvimento do constitucionalismo, processo este que teria originado duas gerações de direitos bastante nítidas e destacadas, distinguíveis através do conteúdo, da finalidade e do objeto tutelado, próprio de cada categoria que permeou a caracterização das distintas gerações. Cumpre salientar que a atribuição da denominação a cada etapa da evolução histórica da constitucionalização de direitos como gerações vem sendo criticada pela melhor doutrina38, sob o fundamento de que, apesar de haver uma certa delimitação histórico-temporal quanto ao surgimento de cada uma, não haveria, propriamente, gerações, por não se operar uma sucessão de direitos fundamentais, existindo, em verdade, várias dimensões que se relacionam como decorrências redutoras da abstração da força axiológica do princípio da dignidade da pessoa humana39. Outrossim, há, inclusive, dissenso no que concerne aos direitos que compõem cada uma das dimensões, em especial os que integram as terceira e quarta dimensões – que não foram explicitadas no título anterior em razão de serem processos de constitucionalização mais relacionados com o constitucionalismo contemporâneo, advindo do pós-guerra. De qualquer sorte, importa ater-se à advertência posta por Konrad Hesse, para quem “toda esta diversidad pone de manifiesto que la validez universal de los derechos fundamentales no supone uniformidad. La razón es bien conocida: el contenido concreto y la significación de los derechos fundamentales para un Estado dependen de numerosos 37 Usualmente a doutrina distingue os direitos humanos dos direitos fundamentais, correspondendo àqueles os direitos consagrados pelos instrumentos de Direito Internacional, enquanto esses seriam os direitos que foram constitucionalmente positivados. Diante da concepção adotada, tal diferença é um pouco mitigada, como se observará, porque os direitos humanos que não foram expressamente positivados pela Constituição Federal seriam constitucionalizados através de recepção formal, em sendo atendidos os pressupostos constitucionais para tanto. 38 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 7ª ed. Malheiros: São Paulo, 1997, p. 525. 39 Razão pela qual se vem preferindo a utilização de dimensão de direitos, ou invés de geração de direitos. 28 factores extrajuridicos, especialmente de la idiosincrasia, de la cultura y la história de los pueblos. Por ello, sólo teniendo en cuenta estos aspectos resulta posible una comprensión objetiva de las tareas, la conformación e la eficacia de los derechos fundamentales en un ordenamiento estatal concreto.”40 03.1.1. Os Direitos de Primeira Dimensão. Como já mencionado, os direitos individuais foram os que primeiro adquiriram sede constitucional, inspirando e reforçando o conteúdo ideológico do constitucionalismo liberal, sendo incorporados às primeiras constituições, em manifestação da proteção do indivíduo em face do arbítrio do poder político exercido pelo Estado, justificando-se pelo deslocamento da soberania do Estado para o povo. Então, havia a necessidade de se proteger aqueles bens que sofriam maiores violações e opressões por parte do Estado Absolutista, que consistiam exatamente nas liberdades, em suas múltiplas manifestações, de pensamento, de expressão, de locomoção, bem como na propriedade, devendo haver um tratamento isonômico de todos pela lei, inexistindo razão para distinção de benefícios, encargos ou favores legais para pessoas que têm a mesma natureza, qual seja, de indivíduo. Tal dimensão, por conseguinte, visa ao estabelecimento de direitos de defesa do cidadão em face do Poder Público, constituindo o Estado Liberal, operando a positivação de direitos que impeçam a intervenção do Estado num âmbito que formará a autonomia individual da pessoa, cabendo-lhe o seu próprio desenvolvimento, ensejando, portanto, um âmbito denominado de liberdade negativa, impediente de opressão pelo Estado, e outro, liberdade positiva, consistente na autodeterminação individual. A circunstância de tais direitos terem fundamento no jusnaturalismo tornava-os ainda mais susceptíveis de disposição pelo legislador, dada a grande abstração ou generalidade dos princípios de que decorriam, sendo-lhe reservada a atividade de desenvolvê-los, dotando-os de exigibilidade. As liberdades garantidas ao indivíduo também se comunicavam ao âmbito da atividade econômica, em que vigia o liberalismo econômico, sendo garantidas a livre iniciativa e a livre concorrência, sem que o Estado pudesse intervir, sequer para regular a atuação dos particulares nesta área. 40 HESSE, Konrad et BENDA, Ernest et alli. Manual de Derecho Constitucional. 2ª ed. Madri: Marcial Pons, 2001, p. 85. 29 A despeito disso, nem mesmo os direitos individuais conseguiram lograr êxito no que pertine à proteção do âmbito individual de cada membro da comunidade política, pois, como já explicitado, a igualdade formal e a desigualdade material impediam o livre exercício de todos no que respeita às liberdades que lhes eram constitucionalmente asseguradas, além da impossibilidade de garantia, por cada um, das condições mínimas de existência e de vida digna. Com efeito, não se poderia considerar existir liberdade para aquele operário que tem as opções de trabalhar diuturnamente até a exaustão absoluta para perceber um salário desprezível e cada vez menor, ou marginalizar-se, ou, ainda, aguardar, ansioso, pela brevidade de seu falecimento em razão das péssimas condições em que vivia. Assim, surge a necessidade de proteção de uma dimensão da personalidade humana, respeitante ao seu âmbito de existência no corpo social, impondo a superação do constitucionalismo liberal pelo social mediante a constitucionalização dos direitos sociais. Registre-se, ainda, que parte da doutrina aponta que a primeira dimensão seria composta pelos direitos individuais de natureza civil e política, o que não se afigura muito correto, pois os direitos políticos, apesar de terem uma certa positivação nas constituições liberais, ainda eram revestidos de caráter restritivo, apenas sofrendo um processo de universalização em momento posterior, com a consagração do sufrágio universal. Observe-se, também, que a despeito de se considerar que os direitos de primeira dimensão impõem um dever negativo ao Estado, dever de abstenção, tal regra não pode ser dogmatizada, pois a garantia destes direitos pertence ao Estado, conduzindo-o a atuar positivamente no resguardo e na preservação destes direitos, principalmente na atualidade, em que mesmo tais direitos de liberdade sofrem constantes violações, não somente, e diretamente, pelo Estado, que concorre para o agravamento desta problemática pela inércia e falta de adoção de políticas públicas que ensejem o desempenho de sua missão constitucional de promover os direitos fundamentais, dentre os quais os individuais. 03.1.2. Os Direitos de Segunda Dimensão. Os direitos de segunda dimensão são aqueles que visam a tutelar e proteger o homem no que concerne à sua dignidade enquanto membro da sociedade, tendo conteúdo bastante variável, e vinculando de forma distinta o Estado, revelando, geralmente, caráter 30 impositivo de dever prestacional, impondo-se-lhe a realização de prestações materiais efetivas em prol da disponibilização de condições mínimas de existência digna, como o direito à saúde e à assistência social, consagrados na Constituição Federal de 1988 em seu art. 6º e desenvolvidos normativamente pelos arts. 196 e 203, respectivamente. Há, ainda, aqueles direitos sociais que decorrem de uma intervenção do Estado na atividade privada e na economia, em cumprimento ao princípio da isonomia material através de tratamento jurídico distintivo a partir de um discrímen relevante, visando a uma igualização material, em proteção a valores constitucionalmente albergados, como se opera com a proteção do empregado contra despedida arbitrária. Associando-se a eles, encontram-se, também, aquelas normas consubstanciadoras de direitos sociais que não gerariam direito subjetivo ao seu titular, não permitindo exigibilidade judicial objetivando o seu cumprimento, mas vinculando materialmente a atuação do legislador, dos demais poderes públicos e até mesmo da sociedade, à realização das tarefas necessárias para o implemento dos mesmos, passando a haver não apenas uma vinculação negativa do legislador em face da constituição, mas, efetivamente, uma vinculação positiva. O legislador, então, passa a se sujeitar ao desenvolvimento das tarefas necessárias à realização ótima desta categoria de direitos sociais pela adoção de políticas públicas pertinentes e idôneas, tendo-se como exemplo o dispositivo que disciplina o salário mínimo, consagrado, inclusive, nas primeiras constituições da fase social do constitucionalismo, e o que prevê o direito à moradia, abrangendo, mais contemporaneamente, até mesmo direitos culturais. Observe-se, pois, que o Estado deixa de ter deveres precipuamente de abstenção para se transformar em Estado Social, tendo como finalidade propiciar as condições sociais mínimas para o pleno desenvolvimento da personalidade, ante a verificação de que o homem também pode estar submetido ao arbítrio de outro homem. Não obstante residirem no mesmo fundamento que as liberdades individuais, parte da doutrina considera que tais direitos não seriam fundamentais, mesmo em sendo constitucionalizados, entendimento que não goza de plausibilidade na medida em que a constitucionalização, associada à força normativa da constituição, estabelece um regime jurídico protetivo aos direitos constitucionais, independentemente de sua natureza, ainda que, pelo seu conteúdo, gozem de distintos graus de fundamentalidade, como na nossa 31 Constituição, em que os direitos individuais são resguardados da atividade do Poder de Reforma41. Portanto, razão inexiste para que seja negada a tais direitos, devidamente constitucionalizados, a qualidade de direitos fundamentais, enquanto concretizações parciais do princípio da dignidade da pessoa humana, no âmbito das relações sociais. 03.1.1. Os Direitos de Terceira Dimensão. Os direitos de terceira dimensão são aqueles que ensejam a tutela não do ser humano enquanto indivíduo, nem concernem à proteção de situações e relações jurídicas habitualmente travadas no âmbito social, tendo em vista situações de carência que precisem ser supridas pelo Poder Público. São, em verdade, os direitos que se destinam a resguardar e proteger a coletividade de seres humanos em relação a determinado bem ou interesse que apresente relevância para a existência de condições dignas de vida, a possibilitar, como os direitos sociais – e também os individuais –, o pleno desenvolvimento de cada pessoa humana componente da coletividade. Tais direitos, então, teriam uma titularidade difusa, não se relacionando a indivíduos concretos, mas à própria humanidade, em algumas manifestações de tais direitos, como o direito à paz, ao patrimônio mundial, ao desenvolvimento, ou até mesmo ao ser humano concebido em perspectiva atemporal, como o direito ao meio ambiente sadio, ou, ainda, grupos de coletividades mais delimitados. Dessarte, enquanto os direitos individuais realizam o princípio da liberdade, em suas múltiplas manifestações, e os direitos sociais derivam do princípio da isonomia material, sendo todos esses direitos reconduzidos a sua base fulcral, consistente no princípio da dignidade da pessoa humana, os direitos de terceira dimensão expressam o princípio da solidariedade, ou da fraternidade, também derivado do aludido princípio, denotando a idéia da existência de carências pertencentes a uma coletividade de pessoas que obrigam a todos, inclusive a esta própria coletividade, atuar no desiderato de suprilas. A constitucionalização destes direitos, denominados coletivos, em sentido amplo, ou difusos é questionada por parte da doutrina, que tece críticas mais acentuadas do que as opostas quanto aos direitos sociais, considerando haver uma inflação de 41 O que não autoriza qualquer entendimento que sustente uma hierarquia jurídica entre direitos fundamentais, pelo caráter de unidade sistemática da Constituição. 32 reivindicações inidôneas, pelo seu próprio conteúdo, a se revestirem da condição de direitos humanos, quanto mais em se tratando de direitos constitucionais, como se verifica através de Guy Haarscher, afirmando que “o facto de lhes conceder imediatamente o estatuto claro de direitos do homem pode produzir o efeito habitual da banalização por inversão: em vez de os novos direitos alargarem o campo dos antigos, ou seja, de os reforçarem, é a precariedade do seu estatuto que pode prevalecer sobre os direitos das gerações precedentes; criar-se-á pouco a pouco a habituação a que os direitos do homem em geral não passem de uma vaga reivindicação moralizante.”42 No mesmo sentido, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, que considera haver uma vulgarização dos direitos fundamentais pela incorporação desses direitos de terceira dimensão no catálogo jusfundamental.43 Não obstante tais impugnações, infere-se a insubsistência das mesmas em se adotando uma perspectiva mais ampla dos direitos fundamentais, sem se ater à radical subjetividade que lhes acompanha quando do nascedouro, gozando os direitos coletivos e difusos da condição de direitos materialmente constitucionais e merecendo, pois, a sua constitucionalização, se não procedida formalmente pelo Poder Constituinte, mediante recepção formal. O desenvolvimento dos direitos coletivos serve, ainda, para, dentre outros misteres, “pôr a descoberto a insuficiência estrutural de uma Administração Pública e de um sistema judicial calcados exclusivamente no ideário liberal, que apenas comporta a referência individual, incapaz que é de lidar com fenômenos metaindividuais”44, devendo a doutrina também se adequar às novas realidades e buscar compreendê-las contribuindo para a solução da problemática suscitada por André Ramos Tavares. 03.1.1. Os Direitos de Quarta Dimensão. Já os direitos de quarta dimensão correspondem a uma fase ainda em construção no constitucionalismo contemporâneo, abrangendo os direitos relacionados a bioética, ao que concerne com a manipulação do genoma humano, com o processo de clonagem e 42 HAARSCHER, Guy. A filosofia dos direitos do homem. Lisboa: Instituto Piaget, s/d., p. 53. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 1998, p. 67. 44 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 361. 43 33 com a adequação e utilização das novas técnicas da biomedicina, objetivando a consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana.45 Tais direitos são aqueles mais susceptíveis ao processo de constitucionalização formal, em vista da sua atualidade contemporânea, que não permitiu aos Poderes Constituintes a previsão formal de tais direitos nos textos das constituições. 03.2. A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. A explanação precedente tornou possível verificar a evolução havida pelo constitucionalismo, acompanhada do umbilical desenvolvimento e da expansão dos direitos fundamentais, ensejando a constatação inicial da ausência de fundamentalidade formal, mesmo dos direitos constitucionais expressos, pela carência de força normativa das constituições, até o advento do Estado Constitucional Democrático de Direito46, adotado pela grande maioria das constituições vigentes, ainda que com alternância da ordem dos vocábulos, embora expressando a mesma idéia antes desenvolvida, pertinente ao seu conteúdo axiológico. Os direitos fundamentais, então, têm um caráter histórico expansivo, compondo sempre a constituição em sentido material, consubstanciada nas normas que tratam de matéria constitucional, insusceptível de definição estanque e exaustiva, mas apresentando um núcleo duro de conteúdo variável, correspondendo às técnicas de limitação ao exercício do poder47, bem como aos direitos fundamentais, que se relacionam com a proteção da pessoa humana concernentemente ao seu âmbito de autonomia individual, à manutenção e preservação da sua integridade física e moral, e à disponibilização de meios e condições necessárias para o seu pleno desenvolvimento. Assim, inicialmente, no constitucionalismo liberal, os direitos fundamentais resumem-se apenas àqueles de primeira dimensão, alargando-se, posteriormente, cada vez mais, como já observado, devendo atentar-se para que, “além do objecto das normas, se preste, doravante, uma maior atenção à ideia de Direito ou de instituição, aos projectos 45 André Ramos Tavares e Paulo Bonavides atribuem tal dimensão a outra espécie de materialidade de direitos. TAVARES, André Ramos, ob. cit., p. 361, e BONAVIDES, Paulo, ob. cit. p. 524-525. 46 Como a Constituição portuguesa, que consagra a expressão Estado de Direito Democrático, em seu art. 2º, a da Alemanha, consignando a existência de um Estado Federal Democrático e Social, em seu art. 20, bem como a da Espanha, que prevê um Estado Social e Democrático de Direito, em seu art. 1º, todas fórmulas distintas da utilizada pela Constituição Federal de 1988, consubstanciada num Estado Democrático de Direito, mas tendo, todas elas, a mesma significação axiológica. 47 Que se sucedem e se aperfeiçoam no curso da história, figurando a clássica separação de poderes como a técnica inicial. 34 distintivos dos diversos regimes políticos, aos princípios fundamentais com os quais têm de ser congruentes as disposições constitucionais avulsas.”48 Ou seja, os direitos fundamentais componentes da constituição em sentido material podem sempre ser aferidos mediante a atividade do intérprete ou do operador do direito que importe numa concretização parcial do princípio da dignidade da pessoa humana em quaisquer dos seus planos ou manifestações49, quais sejam, a proibição de tratamento degradante, humilhante, ofensivo da condição de ser humano, a preservação do âmbito da autonomia pessoal, resguardando o exercício da formação da personalidade, bem como o implemento de tarefas pelos poderes públicos e pela própria sociedade50 destinadas a disponibilização de condições mínimas para uma vida em que haja a possibilidade do pleno desenvolvimento da pessoa humana, merecendo análise percuciente de Ernest Benda, que ora se transcreve, in verbis: “Ciertamente que la dignidade humana es originariamente un valor moral. Lo que sucede es que su acogida con carácter de mandato constitucional en la Ley Fundamental implica su aceptación como valor jurídico, es decir, como norma jurídico-positiva. En cualquier caso, el Estado se halla jurídicamente obligado a preservar la dignidad humana y a protegerla en el marco de sus posibilidades. Las competencias del Estado resutan limitadas, en la medida en que con el mandato de respeto a la dignidad se establece una barrera absoluta a toda acción del Estado. A la vez aumentan las obigaciones de éste, toda vez que debe proteger tal valor, es decir, debe acudir en ayuda de cualquier persona cuya dignidad resulte amenazada – con independencia del origen público o privado de los peligros. Respecto y protección de la dignidad son directrices vinculantes para toda la actividad del Estado.”51 Logo, o princípio da dignidade da pessoa humana, expressamente acolhido pelo Poder Constituinte de 1988, consagrando-o como um dos fundamentos da República 48 MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 328. Tratados com atenção por Ingo Sarlet. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. 50 Dada a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, ainda parcialmente questionada por parte da doutrina. 49 35 Federativa do Brasil, traduz-se como princípio material e formalmente constitucional que, pelas características próprias de sua compostura e natureza, possui uma eficácia positiva mais acentuada do que a dos demais princípios constitucionais por constituir-se, axiologicamente, como o centro de referência normativa do sistema constitucional. Como toda norma jurídica, segundo a metódica estruturante desenvolvida por Müller52 e Canotilho53, o princípio da dignidade da pessoa humana é composto por um programa normativo, inferido a partir da literalidade da norma, e pelo domínio da norma, consistindo este no recorte da realidade social ao qual a norma se relaciona, seu âmbito de regulação, e que será trabalhado pelo operador do direito na necessária concretização normativa através de elementos que não se relacionem propriamente com o programa normativo, elementos que podem ser de caráter extrajurídico. Evidencia-se, portanto, a possibilidade de que, a partir da literalidade consagrada pelas constituições quanto ao princípio da dignidade da pessoa humana, dado o seu caráter axiológico e seu altíssimo grau de abstração e generalidade, sobrevindo alterações das condições fáticas, sociais e políticas existentes num determinado Estado, sejam constatados outros direitos fundamentais, ainda que não formalmente fundamentais54. O princípio da dignidade da pessoa humana, assim, permeia o constitucionalismo, principalmente a partir do pós-guerra, estando consagrado como um dos fundamentos do Estado de Direito constituído segundo as várias fórmulas lingüísticas já analisadas, estando previsto na Constituição alemã, através do art. 1º, na Constituição portuguesa, em seu art. 1º, na Constituição espanhola, art. 10, e na Constituição italiana, art. 2º, ainda que referindo este dispositivo apenas a dignidade no seu aspecto social.55 Mediante essa compreensão metódica estruturante, restará possível e mesmo irresistível a abertura da constituição, concebida como sistema aberto de regras e princípios, em especial no que tange aos direitos fundamentais, pois os não previstos pelo 51 BENDA, Ernest, ob. cit., p. 120. MULLER, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. 2ª ed., São Paulo: Max Limonad, 2000. 53 CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito Constitucional (...), pp. 1101 e ss. 54 Utiliza-se, aqui, entre fundamentalidade formal e material, a distinção estabelecida por Canotilho, caracterizando-se a fundamentalidade formal por gozar das características, da hierarquia e das garantias pertencentes à constituição formal. CANOTILHO, J. J. Gomes, ob. cit., pp. 376-377. 55 Mesmo nas constituições que eventualmente não tenham constitucionalizado explicitamente tal princípio, há de se inferir a sua existência implícita, integrando o complexo sistemático-normativo delas próprias. 52 36 Poder Constituinte, pela própria impossibilidade de antevisão das necessidades e carências passíveis de afetar a dignidade da pessoa humana no curso da evolução histórica, seriam susceptíveis de recepção formal, devendo ser integrados à constituição formal, embora não inscritos no rol enunciativo dos direitos fundamentais, passando a gozar da fundamentalidade formal. A fundamentalidade formal atribui aos direitos fundamentais sem assento constitucional a condição de direitos pertencentes à constituição formal, importando na vinculação dos poderes públicos à sua observância e ao seu respeito, impondo-se, inclusive, em face do legislador, que não poderá aboli-los, devendo, ao discipliná-los, resguardar seus conteúdos essenciais, atendendo ao princípio da razoabilidade e da proporcionalidade, sujeitando-se eventual violação ao controle de constitucionalidade.56 Por conseguinte, a partir do princípio da dignidade da pessoa humana, as constituições sempre estarão susceptíveis à integração de eventuais espaços lacunosos quanto à proteção e tutela de bens ou valores que se mostrem, com a evolução da sociedade, necessários à proteção do ser humano, permitindo o pleno desenvolvimento da sua personalidade. Este entendimento se reforça pelo caráter indivisível57 dos direitos fundamentais, em virtude da multidimensionalidade do ser humano, ou da sua condição polifacética58, ensejando a recepção formal pelas constituições daqueles direitos que se revelem como concretizações parciais do princípio da dignidade da pessoa humana, vértice axiológico do sistema constitucional e fundamento último dos direitos, como registra Salvador Vérges Ramírez, em doutrina ora transcrita, in verbis: “La promoción de los derechos humanos, eje central de los mismos, está en la base de la dignidad, como la prioridad de las prioridades, pues la urgencia de dicha promoción se halla justificada precisamente por la íntima manera de ser de la dignidad. De ahí que hunda sus anclas en lo más profundo del hombre, ya que es un ser esencialmente comunicativo.”59 Ainda que Ramírez só se tenha referido aos direitos humanos, a sua constitucionalização formal faz-se imperiosa, operando-se a atualização do catálogo de 56 Sobre as características decorrentes da condição de direitos formalmente constitucionais, dotados de fundamentalidade formal., ROYO, Javier Peréz, ob. cit., p. 275, e CANOTILHO, J. J. Gomes, ob. cit., p. 377. 57 MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direito Constitucional. T. I, Belho Horizonte: Mandamentos, 2002, pp. 61-62. 58 HESSE, Konrad. Manual de Direito Constitucional ..., p. 89. 37 direitos fundamentais, desde que haja pertinência com o âmbito sócio-cultural existente e com os valores e interesses susceptíveis da mais cara proteção constitucional. Observe-se que seria desarrazoado entender-se que a força normativa da constituição formal, e a fundamentalidade que dela decorre, iria se restringir aos direitos constitucionais topicamente previstos pelo Poder Constituinte, não se afigurando pertinente conceber-se o fechamento do sistema de direitos fundamentais, distanciando-o da realidade social, em especial pelo caráter permanente da constituição, impondo-se-lhe a condição de constituição viva, que não se esgota apenas na fria literalidade dos dispositivos soberanamente incrustados no texto incolor e inodoro do documento constitucional, ao contrário da cambiante realidade plural com a qual suas normas se relacionarão. A constitucionalização formal, mediante recepção, dos direitos extraconstitucionais ou sem assento constitucional teria, ainda, fundamento democrático, não sendo razoável impedir-se que as gerações futuras estejam sujeitas às limitações fáticas daquela comunidade criadora da constituição vigente e nem que seja necessária nova manifestação do Poder Constituinte para proceder a atualização do catálogo de direitos fundamentais60, sempre gravosa e situada em momentos de crise institucional, fazendo-se imprescindível atentar-se para a existência da constituição não como texto historicamente delimitado, mas em contínuo processo de formação e conformação pelo intercâmbio recíproco com os valores, interesses e concepções da realidade social da comunidade política que lhe é subjacente, sempre em constante mutação. Os direitos fundamentais, por conseguinte, não podem estar engessados pela historicidade que é própria da promulgação da constituição enquanto texto, pelo caráter contínuo de compreensão e formação das normas constitucionais, a partir da concepção aqui exposta, pois o texto integraria apenas o primeiro momento de sua concretização parcial. Certamente observando a aludida problemática, o Poder Constituinte pátrio, reconhecendo o perigo de que se entendesse ser exaustivo o rol de direitos fundamentais que estivesse consignado na Constituição Federal de 1988, estabeleceu explicitamente a abertura do sistema aos direitos materialmente fundamentais, sem assento constitucional, 59 RAMÍREZ, Salvador Vérges. Derechos Humanos: Fundamentación. Madri: Tecnos, 1997, p. 86. Não cabendo a objeção de que tal atualização poderia ser procedida por reforma, pois a constitucionalização dos direitos fundamentais, por emenda constitucional, ficaria sujeita ao alvedrio do órgão legislativo, que exerce a competência reformadora. 60 38 decorrentes dos princípios e do regime adotados, bem como dos tratados61 em que seja parte a República Federativa do Brasil, como previsto pelo §2º do art. 5º da Constituição Federal, ao determinar que não estariam excluídos pelos direitos nela expressos. Diante disso, o sobredito dispositivo constitucional corrobora a eficácia positiva do princípio da dignidade, cabendo-lhe, juntamente com os demais princípios constitucionais, a necessária atualização dos direitos fundamentais para resguardar o âmbito de proteção da pessoa humana a partir de novas condições sociais, econômicas e culturais, pelo seu próprio caráter normogenético, consubstanciando-se como um dos princípios fulcrais do Estado Democrático de Direito. Com efeito, o Poder Constituinte pátrio, malgrado a abertura expressa do sistema, independentemente da consagração do princípio da dignidade da pessoa humana, admitindo a recepção formal de direitos fundamentais não constitucionalizados formalmente, consoante o art. 5º, §2º, da Constituição Federal62, ainda preferiu determinar em mais dois dispositivos, mais específicos, a possibilidade de integração de direitos materialmente fundamentais. Consistem eles no art. 7º da Constituição Federal, pertinente aos direitos sociais dos trabalhadores, e no art. 5º, inciso LV, respeitante aos direitos processuais de defesa da pretensão da parte, assegurando o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. Tais dispositivos constitucionais se configuram, em verdade, como normas integrativas dos catálogos de direitos expressamente fundamentais, ensejando a recepção formal dos direitos apenas materialmente fundamentais, caracterizando-se como princípios de não identificação, de atipicidade, ou como cláusulas abertas63. Cumpre, ainda, mencionar que a Constituição Federal pátria não é a única que expressamente estabelece estas normas de abertura sistemática, dispondo no mesmo sentido a Constituição portuguesa, em seu art. 16, a Constituição peruana, em seu art. 3º e, ainda, segundo Jorge Miranda64, as da Venezuela, de Guiné-Bissau, da Colômbia, de Cabo Verde, da Rússia, da Estônia e da Ucrânia, mencionando com dúvidas o art. 2º da 61 A questão do caráter constitucional dos direitos humanos previstos em tratados de que participe o Estado brasileiro se relaciona com a exposição, embora não seja possível um tratamento específico, por transbordar os lindes do estudo propostos, sendo de salientar que o Supremo Tribunal Federal tem manifestado entendimento no sentido de que tais direitos gozariam da hierarquia constitucional, o que vem a contrariar a possibilidade de recepção formal. 62 Já existia dispositivo similar nas Constituições de 1946, em seu art. 144, e de 1967, § 35 do art. 150, mantido pelo Emendão de 1969, só que no § 36 do mesmo dispositivo. 63 CANOTILHO, J. J. Gomes, ob. cit., p. 401, e MIRANDA, Jorge, Manual..., T. IV, p. 162 e ss. 64 MIRANDA, Jorge, ob. cit., p. 163. 39 Constituição italiana, que, certamente se confirma, como se observa da doutrina de Pizzorusso, exemplificando o direito de intimidade como fundamental, malgrado não esteja expressamente acolhido no texto constitucional italiano.65 Além destes dispositivos, há de se ressaltar a Nona Emenda da Constituição americana, já referida, que precedeu a todos, possuindo um caráter fundamental no sistema constitucional norte-americano em virtude do caráter sintético da Constituição e da já distante época de sua promulgação. Faz-se mister salientar que, para fins de constitucionalização formal, pouco importa a fonte da qual tenha se manifestado o direito constitucionalizado pelo processo de recepção, podendo estar consagrado numa lei, consistir num costume, ou compor implicitamente o sistema jurídico. Nesse sentido, tem-se por caracterizada a possibilidade de recepção formal de direitos apenas materialmente constitucionais e fundamentais, em decorrência do princípio da dignidade da pessoa humana e seu caráter normogenético, associado aos dispositivos constitucionais de abertura, já referidos, em especial o art. 5º, §2º, , em se tratando da ordem constitucional pátria – trabalhados através de uma metódica estruturante a partir da compreensão diante da realidade social –, bem como pelo caráter indivisível dos direitos fundamentais, não se podendo tutelar parcialmente quaisquer dos planos de existência humana, seja concernente à liberdade, seja pertinente às relações sociais, seja respeitante aos interesses difusos e coletivos relevantes, seja em face da biogenética e biomedicina, pela integralidade multidimensional que compõe a personalidade humana. Cotejando-se o que ora sustentado com o explanado sobre as dimensões de direitos fundamentais, evidencia-se que os mais susceptíveis à recepção formal, passando a gozar de fundamentalidade formal, aderindo à hierarquia constitucional, são os de quarta dimensão, mesmo porque, quando do advento da Constituição Federal, ainda não havia o desenvolvimento atual da biomedicina, sendo manifesto o relevo constitucional das questões relativas à tutela da manipulação embrionária e do genoma humano, dentre outras. Não obstante isso, mesmo os direitos de primeira dimensão seriam susceptíveis de constitucionalização formal, como o direito ao nome previsto pelo art. 16 do Código Civil vigente, o direito à vida por parte do nascituro, como se pode inferir através da 65 PIZZORRUSSO, Alessandro. Lecciones de Derecho Constitucional. T. I, Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1984, p. 214. 40 proteção legal conferida à gestante visando a resguardar o seu estado de saúde e uma gravidez sadia, como se evidencia do art. 8º do Estado da Criança e do Adolescente. Em matéria processual, poder-se-ia considerar o direito à citação e o direito ao duplo grau de jurisdição, desde que, neste último caso, houvesse compatibilidade lógica e sistemática com normas constitucionais disciplinadoras das competências dos tribunais. Em corroboração ao que se vem de afirmar, José Adércio Leite Sampaio66 analisa o processo de recepção e constitucionalização formal havido nos Estados Unidos, pela Suprema Corte, pelo Conselho de Estado Francês e pelo Supremo Tribunal Federal, que tem consolidada jurisprudência manifestando o entendimento de que os sigilos fiscal e bancário seriam desdobramento do direito à inviolabilidade de dados, configurando uma recepção formal dos mesmos pelo nosso Pretório, embora não constantes do catálogo constitucional previsto no art. 5º. Concernentemente ao âmbito doutrinário, Jorge Miranda entende possível a existência de direitos fundamentais não expressamente previstos na Constituição, manifestando-se moderadamente pela aquisição de uma fundamentalidade formal, afirmando que “como se trata de direito fundamental, por reflectir o sentido próprio da Constituição material, e como a sua formulação representa mais um passo na realização desta, torna-se inadmissível ou extremamente difícil de conceber que ele possa depois vir a ser suprimido, salvo, porventura, situação excepcional ou de revisão constitucional.” 67 Em sentido similar, Vital Moreira e Canotilho consideram que ao menos os direitos apenas materialmente constitucionais gozariam de um grau de fundamentalidade formal capaz de impedir o legislador a livre disposição sobre o interesse ou bem jurídico a que se relacione.68 04. CONCLUSÃO. Por conseguinte, perpassando toda a análise da constitucionalização formal dos direitos pertinentes à pessoa humana, de acordo com cada uma das dimensões usualmente estabelecidas pela doutrina, infere-se que, em verdade, este processo de constitucionalização não se condiciona apenas às manifestações do Poder Constituinte, 66 SAMPAIO, José Adércio Leite, ob. cit., pp. 705-720. MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. T. IV, 3ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 169. 68 MOREIRA, Vital, ob. cit., p. 115-116, 126. 67 41 sempre historicamente situadas, não se restringindo apenas àqueles direitos que tenham sido expressamente consignados nas constituições. Assim, poder-se-ia considerar haver uma nova constitucionalização formal operada em cada momento histórico de manifestação do Poder Constituinte, com a elaboração e positivação de nova constituição, compreendendo direitos não integrantes do texto da que será substituída, associando-se com as já consagrados e que vierem a ser mantidos. Entretanto, pelo caráter viviente da constituição, pela sua conformação contínua mediante a interação normativa com o âmbito social, relativamente aos valores, interesses e necessidades que pertençam ao povo, haveria um necessário processo de constitucionalização formal a ser efetivado pelos operadores do direito, dentre os quais, o Poder Judiciário, que teria a mais relevante participação, por ser o intérprete último, e, nosso sistema jurídico, da Constituição Federal. Com efeito, o Poder Judiciário, em se tratando da Constituição brasileira, por seu órgão de cúpula, o Supremo Tribunal Federal, e os Tribunais Constitucionais, caso não seja previsto o judicial review, são os intérpretes máximos da Constituição, transpondo para a atividade compreensiva que resultar da mediatização das suas normas com o âmbito de proteção a característica da definitividade69 que é típica da função jurisdicional que exercem, sendo-lhe admissível, portanto, controlar a atuação dos poderes públicos e do legislador, que não podem dispor dos direitos materialmente fundamentais que sejam objeto de constitucionalização formal por recepção, passando a gozar da fundamentalidade formal. Dessarte, há de se considerar a existência de um direito à constitucionalização formal dos direitos apenas materialmente fundamentais, direito este que deve ser sustentado pelas vias da jurisdição constitucional70, ante a impostergável necessidade de constante aperfeiçoamento e atualização da tutela constitucional da pessoa humana, como bem salienta, mais uma vez, Ernest Benda, em doutrina ora transcrita, in verbis: “Las nuevas amenazas a la dignidad humana, como resultan em varia forma del cambio tecnológico (al igual que sucede con las posibilidades ya planteadas por el procesamiento automatizado de datos), necesitan una respuesta tan adecuada 69 Podendo, ou não ter efeito vinculante e eficácia inter partes ou erga omnes, a depender da sistematização do controle de constitucionalidade que seja estabelecida pela respectiva constituição. 42 como pueda ser la que se dé a los peligros hace tiempo conocidos. La Constitución está abierta al tiempo, y en consecuencia hace posible a los poderes públicos reaccionar en la medida en que objetivamente proceda a los nuevos problemas planteados. La Constitución está también allí donde obliga a la actividad estatal a seguir objetivos definidos como fundamentales. Del art. 1.1 del GG (Constituição alemã) se deduce la indisponibilidad de la dignidad humana. Qué signifique el mandato de respetar la dignidad, resultará de la evolución histórica y del nivel de consciencia. Ni las ideas de los padres de la Constitución ni las interpretaciones actuales pueden pretender una validez intemporal.71 (Itálicos no original). Portanto, como o princípio da dignidade da pessoa humana e os ideais de Justiça albergados na constituição formal não são susceptíveis de delimitação histórica estanque e definitiva, mediante exaustiva catalogação expressa, conclui-se pela exigência constitucionalmente fundada e determinada pelo próprio Poder Constituinte pátrio, como se observou a partir das normas de abertura, que seja operada pelos intérpretes e aplicadores das normas constitucionais a recepção formal de direitos materialmente fundamentais não assentados no texto da Constituição de 1988, conferindo-lhes a fundamentalidade formal – entendimento este que pode se estender às demais ordens constitucionais –, e todas as conseqüências decorrentes da hierarquia e da força normativa da Constituição. Afigura-se, então, a existência de um processo contínuo de formação e conformação dos direitos fundamentais baseado na pretensão de toda e qualquer pessoa humana de ser integralmente tutelada quanto aos aspectos, interesses e necessidades relevantes e imprescindíveis para o pleno desenvolvimento de sua personalidade, tutela esta que só se realiza mediante a constitucionalização, por recepção formal, dos direitos sem assento constitucional, por impedir, assim, a livre disposição do legislador sobre os bens e interesses a que se relacionem, vinculando os demais poderes públicos e a sociedade, impondo-se o reconhecimento desta pretensão pelo Poder Judiciário, em 70 Abrangendo não apenas o controle de constitucionalidade, mas as garantias consubstanciadas nas ações constitucionais previstas em proteção aos direitos fundamentais. 71 BENDA, Ernest, ob. cit., p. 136. 43 face da ordem constitucional pátria, no exercício de seu mister de guardião da Constituição e, conseqüentemente, dos direitos fundamentais, na atualidade e sempre, independente de nova manifestação do Poder Constituinte. Por conseguinte, o direito à constitucionalização dos direitos enseja uma pretensão de que determinado direito apenas materialmente constitucional, titularizado pela pessoa humana, seja reconhecido como formalmente constitucional, a partir de circunstâncias fáticas que possibilitem e recepção formal, como já salientado, sempre em atenção ao caráter contínuo da evolução dos direitos fundamentais, como expressão do princípio da dignidade da pessoa humana, em consonância com as disposições de abertura do sistema constitucional. 05. BIBLIOGRAFIA CONSULTADA: BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 7ª ed. Malheiros: São Paulo, 1997. CAMPOS, German J. Bidart. El Derecho de la Constitución y su fuerza normativa. Buenos Aires: Ediar, 1995. CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5ª ed., Coimbra: Almedina, 2002. _____. Estado de direito. Lisboa: Fundação Mário Soares, 1999. 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