1 A Política Pública para a Direção de Tratamento às

Propaganda
A Política Pública para a Direção de Tratamento às Psicopatologias no Brasil: Do Modelo
Manicomial aos Centros de Atenção Psicossociais.
Autoria: Cláudia Henschel de Lima, Dayana Rosa Duarte Morais, Aline Nascimento Nishimura
O presente trabalho resulta da pesquisa conduzida na Universidade Federal Fluminense (Volta
Redonda), dedicada à investigação dos fatores biopolíticos em jogo no declínio do modelo
hospitalocêntrico, que sustentou a formação dos grandes hospícios no Brasil e na ascensão do
modelo da atenção psicossocial. Privilegiando a perspectiva histórica, o objetivo é apresentar
um panorama do processo de reforma psiquiátrica ocorrida no Brasil a partir do final do
século XIX, a fim de ressaltar seus princípios e as políticas públicas que a fundamentaram.
1
Considerações Iniciais
O presente trabalho é produto da pesquisa conduzida no Laboratório de Investigação das
Psicopatologias Contemporâneas (LAPSICON), localizado no Departamento de Psicologia da
Universidade Federal Fluminense em Volta Redonda. O Laboratório tem uma linha de
pesquisa dedicada à determinação das condições que tornaram possível a Reforma
Psiquiátrica no Brasil. Atualmente essa linha de pesquisa, comporta três estudantes de
psicologia e três estudantes da administração pública, dedicados a pesquisar os fatores
biopolíticos em jogo no declínio do modelo hospitalocêntirco, que sustentou a formação dos
grandes hospícios no Brasil até bem recentemente em nossa história, e na ascensão do modelo
da atenção psicossocial.
Nesse sentido, o trabalho condensa os primeiros achados da pesquisa. Seu objetivo é
apresentar um panorama do processo de reforma psiquiátrica ocorrida no Brasil a partir do
final do século XIX, marco da problematização das questões sanitárias na capital do Império,
a partir de uma perspectiva histórica que ressalta a passagem de políticas públicas centradas
em torno da constituição dos hospitais gerais e hospícios para políticas públicas centradas na
atenção psicossocial. Apesar da extensa literatura sobre esse período da história, ainda é
bastante recente a produção dos estudos sobre a relevância dos aparelhos estatais responsáveis
pelas políticas públicas.
No período de 1832 a Sociedade de Medicina, e posteriormente, a Academia Imperial de
Medicina, detinha o monopólio sobre a saúde. Seus membros eram responsáveis pelo parecer
sobre a febre amarela em um contexto histórico em que a população total do Rio de Janeiro
duplicara no período entre 1799 e 1821, conforme demonstra a Figura1.
Figura 1. Evolução da População da Cidade do Rio de Janeiro no Século XIX (áreas
urbanas)
Fonte: Honorato, Cláudio de Paula. (2008).
A despeito da explosão populacional na área urbana do Rio de Janeiro e do avanço epidêmico
da cólera e da febre amarela, o relatório elaborado pela Academia evitara o uso do termo
epidemia, e chegou a minimizar a natureza dessas doenças. Assim, a posição da Academia
Imperial de Medicina levou o Ministério dos Negócios do Império a declarar no relatório
anual que a febre amarela era uma doença passageira agravada pela irregularidade da estação.
Na verdade, a posição da Academia de não reconhecimento da epidemia, e que orientou o
Ministério dos Negócios, agravou o panorama da evolução das doenças no Brasil a ponto de
eclodir pouco tempo depois, um surto de varíola.
O governo interviu diretamente nessa orientação da Academia e criou a Comissão de Saúde
Pública, constituída por uma comissão de médicos e engenheiros, composta por Xavier
Sigaud, o vereador José Pereira do Rego (o Barão do Lavradio) e Jeronimo de Morais Jardim
(Inspetor Geral de Obras Públicas do Império). A criação da Comissão, com a expansão da
pesquisa sobre o problema da higiene para o campo da engenharia, com a elaboração de uma
série de propostas de posturas e regulamentos para normatização de habitantes e domicílios,
exprime o entrecruzamento entre o domínio da investigação científica e a administração
pública.
2
O período de tempo entre os anos de 1849 e 1870, no Rio de Janeiro, foi o marco da discussão
sobre a causalidade das doenças epidêmicas (cólera-morbo, febre amarela, varíola,
escarlatina)que acometiam a população, ultrapassando o domínio da pesquisa acadêmica
conduzida na faculdade de Medicina e na Junta de Higiene, na direção da esfera pública. A
Junta de Higiene Pública, órgão superior encarregado da administração das questões de saúde
do Império e criado pela lei nº 598 de 14 de setembro de 1850, teve como presidente o
vereador José Pereira do Rego (o Barão do Lavradio). Este relatou detalhadamente a
incidência e a difusão da febre amarela e da cholera-morbus, em “Relatório do presidente da
Junta Central de Higiene Pública, Dr. José Pereira Rego” (1868), e na “Memória histórica das
epidemias de febre amarela e cholera-morbus que tem reinado no Brazil” (1873), e sustentava
que a higiene pública era o termômetro do progresso e da civilização de um povo.
2. Um Histórico da Reforma Psiquiátrica no Brasil.
As mesmas questões que sustentaram o modo de abordagem e a estratégia de tratamento das
epidemias no século XIX se apresentaram no campo da saúde mental, orientando a formação
de políticas públicas para o acolhimento das psicopatologias e suas estratégias de tratamento.
2.1. A Assistência a Alienados no Brasil, na passagem do Século XIX para o Século XX.
O pensamento hegemônico no século XIX era de que a hospitalização e a privação do contato
social constituíam a direção de tratamento das psicopatologias, tendo em no alienista francês
Esquirol seu principal representante na França. As primeiras formulações teóricas sobre as
psicopatologias no Brasil entendiam-nas como alienação mental, de acordo com a influência
exercida por Esquirol e resultaram em teses desenvolvidas no interior das faculdades de
Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia. É possível considerar que o saber psiquiátrico
brasileiro do século XIX, é uma reprodução dos argumentos desenvolvidos sobre a etiologia
das psicopatologias por Pinel e Esquirol. Ele reproduz a definição francesa de psicopatologia
como desordem do comportamento, perturbação da ordem social por meio de atos
involuntários, exigindo uma estratégia de tratamento sustentada na imposição de certas
normas por meio de um processo disciplinar de isolamento do alienado. Segundo Esquirol:
“O isolamento consiste em subtrair o alienado a todos os seus hábitos, afastando-o de lugares
que ele habita, separando-o de sua família, seus amigos, seus servos: cercando-o de estranhos;
mudando toda sua maneira de viver. (...) O isolamento tem por objetivo modificar a direção
viciosa da inteligência e das afecções dos alienados.” (Portocarrero, 2002, p.44).
É essa concepção que justificará o princípio de isolamento como estratégia de tratamento e a
orientação para a construção do hospício de alienados no Brasil. No entanto, a
institucionalização do espaço asilar para o tratamento das psicopatologias não favorece a
pesquisa na psiquiatria, pois os hospícios se mostram insuficientes, superpovoados, não
medicalizados, sendo assim objeto da crítica dos médicos desde o início da década de 1830.
Um exemplo dessa posição da medicina foi o relatório de 1831 da Comissão de Salubridade
da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro (SMRJ), assinado pelo Dr. Jobim, que
diagnosticava a insalubridade, a inadequação e a insuficiência das instalações da Santa Casa
de Misericórdia, em um contexto de época que testemunhara a duplicação populacional das
áreas urbanas do Rio de Janeiro (conforme figura 1), considerando o cúmulo da barbaridade,
o tratamento reservado aos necessitados (Machado, 1978). O princípio de isolamento, o uso
de procedimentos pouco adequados (sangrias e sedenhos, quando não de exorcismos católicos
ou fetichistas) ou reservado ao suplício de escravos (tronco, chicote), pela Santa Casa de
Misericordia, são índices de que os hospícios encontravam-se nas mãos de uma administração
leiga, não médica prescindindo da autoridade médica. Alguns artigos de época refletem a
3
posição da Sociedade de Medicina contrapondo-se aos procedimentos da Santa Casa, e
defendem que o tratamento das psicopatologias deveria sair da esfera da caridade e inserir-se
na filantropia - entendida como ação do estado monárquico voltada para os pobres e dirigida
segundo os preceitos da “higiene pública” e da “polícia médica”. A SMRJ, transformada em
órgão oficial - a Academia Imperial de Medicina (1835) - prossegue em sua campanha pela
edificação de um hospício de alienados na Corte cujo sucesso se deve à ação do Ministro
Imperial, José Clemente Pereira. Em 1841, D. Pedro II determina, então, a criação, no Rio de
Janeiro, do primeiro hospício dedicado exclusivamente ao tratamento das psicopatologias. A
inauguração do Hospital Pedro II, em 1852, em um edifício construído na Praia Vermelha
(onde hoje funciona o Instituto de Ciências Humanas da UFRJ) representou a constituição de
uma nova etapa na história da institucionalização dos alienados no Brasil e de sua
administração pública. (Oda e Dalgalarrondo, 2004).
O alienista brasileiro Juliano Moreira (1905) escreveu um relatório apresentando a situação de
alguns hospícios no país: o Hospício de Juqueri e a Chácara em Sorocaba (São Paulo); o
Hospício de Olinda (Pernambuco); o Asilo João de Deus (Bahia); a Santa Casa de
Misericórdia (Rio Grande do Sul).
No caso de São Paulo, Juliano Moreira destacou a posição de Franco da Rocha, que
demonstrou aos poderes públicos que o estado necessitava criar na capital ou em seus
arredores, um hospício central, paradigmático do sistema de open-door e, consequentemente,
em oposição ao princípio de isolamento.
A análise de Moreira sobre a situação do Hospício de Olinda mostra a gravidade da situação
no Nordeste. Um Relatório do provedor da Santa Casa, o Desembargador Oliveira Maciel
evidenciou a estratégia de tratamento das psicopatologias ali empregada afirmando que os
pacientes sofriam de falta de ar, luz e de cômodos” (Moreira 1905/2011). A análise de
Moreira (1905/2011) privilegiou o elevado índice de mortalidade (tabela 1) como índice de
que o Hospício de Olinda também era administrado por pessoas leigas:
Tabela 1
População de internos no Hospício de Olinda (Referência: século XIX)
Entraram durante 16 anos..........789
Saíram....................................... 224
Faleceram..................................485
Nota. Fonte: Moreira,J. (1905) Notícia sobre a Evolução da Assistência a Alienados no Brasil. (p.180). Revista
Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental. São Paulo, PUC, 2011.
No caso da Santa Casa de Misericórdia do Rio Grande do Sul, a análise de Moreira
(1905/2011) privilegiou e elevado índice de indigentes e estrangeiros que ali encontravam-se
alojados. No período de 29 de junho de 1884 a 30 de junho de 1904, a Santa Casa contava
com uma população de internos de 2.252 alienados - sendo, basicamente, de indigentes e
agitados, com 553 estrangeiros. Dos 553 internos estrangeiros, 48% eram italianos.
A partir desse quadro instalado em vários estados do país, o Dr. Juliano Moreira sugere, ao
Ministro do Interior, a criação de uma lei geral de Assistência a Alienados considerando o
aumento da população de epiléticos indigentes e alcoolistas. Trata-se do Decreto nº 1.132 de
“Reorganização da Assistência a Alienados”, cujos artigos preveem a internação exclusiva de
alienados em hospitais especializados (Moreira, 2011):
Art. 1º. O indivíduo que, por moléstia mental congênita ou adquirida, comprometer a ordem
pública ou a segurança das pessoas, será recolhido a um estabelecimento de alienados.
Art. 9º. Haverá ação penal, por denúncia do Ministério Público, em todos os casos de
violência e atentado ao pudor, praticados nas pessoas dos alienados.
4
Art. 10. É proibido manter alienados em cadeias públicas ou entre criminosos.
Art. 19 Parágrafo único. A diária dos alienados remetidos pelos estados será paga por estes e
pelos respectivos países a dos alienados estrangeiros.
O Relatório Final “Reforma Psiquiátrica – A Questão das Novas Tecnologias de Cuidado”,
inserido na II Conferência Nacional de Saúde Mental (Ministério da Saúde, 1992) é bastante
claro em seu parecer técnico sobre as modificações do saber psiquiátrico desde o final do
século XIX. A despeito da sofisticação da psiquiatria a partir da síntese dos primeiros
antidepressivos e antipsicóticos, nos anos cinquenta, o manicômio como paradigma das
estratégias de tratamento das psicopatologias resistiu, no Brasil, a qualquer transformação seja
ela imposta pela tecnologia medicamentosa, seja ela determinada pela consolidação das linhas
psicoterapêuticas. Esse Relatório cita uma série de análises da situação brasileira dos
manicômios conduzidas de 1950 a 1991(Ministério da Saúde, 1992, p. 38). Considere-se as
seguintes:
1.Sobre a situação dos manicômios, no final dos anos cinquenta, a análise de Heitor Rezende
evidencia a ocorrência da superlotação, da deficiência de pessoal qualificado, dos maus tratos,
das condições de hotelaria tão más ou piores do que nos piores presídios, reproduzindo assim
a mesma análise conduzida por Teixeira Brandão cem anos antes.
2.Em 1979, durante o III Congresso Mineiro de Psiquiatria, as denúncias sobre as condições
humilhantes em que eram mantidos os pacientes do Hospital Colônia de Barbacena chocaram
a opinião pública.
3.Em 1991, denúncias gravíssimas foram publicadas na imprensa sobre a Casa de Saúde
Dr. Eiras de Paracambi, Estado do Rio de Janeiro, provocando uma reação semelhante.
Esse Relatório evidencia que o paradigma manicomial, com o princípio de isolamento como
estratégia de tratamento das psicopatologias, não cessou de proliferar no Brasil desde o final
do século XIX. Na seção seguinte, será conduzida uma análise dos efeitos desse modelo sobre
as políticas públicas de sáude mental no Brasil, acentuando a evolução da estrutura
manicomial e sua relação com os hospitais privados.
2.2. Crítica ao modelo manicomial no Brasil (1976-1991)
A reforma do modelo assistencial no Brasil teve como fundamento a posição política de que
esta não poderia restringir-se a uma reforma administrativa (FLEURY et al., 1997), sendo
reflexo não só de gestões, mas também de uma conjuntura histórica e socioeconômica que
remonta ao golpe de 1964. De fato, o modelo econômico adotado pelo Brasil no marco do
golpe de 64 determinou uma organização social profundamente desigual com elevada
concentração de renda e da propriedade. Esse modelo impôs a expulsão de enormes
contingentes populacionais para a periferia dos centros urbanos, o êxodo rural que acarretou
em exército de reserva, barateamento da mão-de-obra, subemprego, desemprego e baixa
remuneração. Essa situação determinou, ainda, a precariedade das condições materiais de vida
da maioria da população brasileira. Um exemplo paradigmático dessa precariedade é a
elevada jornada de trabalho, constatada nessa época, sendo considerada uma das maiores
dentre as nações industrializadas do mundo capitalista. Esse quadro gerou um grave perfil de
morbidade no país, com elevado índice de mortalidade e acidentes no trabalho. Um
levantamento conduzido, em 1980, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
registrou 12 mortes e mais de 3000 acidentes diários de trabalho no país.
O Relatório da I Conferência de Saúde Mental (1987) apresentou dados importantes a respeito
da incidência de morbidades psicológicas na população brasileira, reforçando a correlação
entre a deterioração das condições de vida da população, a defasagem entre os gastos
5
dispendidos pelo governo federal da época, e o desencadeamento de psicopatologias. Em
relação às demais clínicas, as doenças mentais figuraram entre as principais determinantes de
internações. Um aspecto desta situação particularmente importante se refere a equação entre a
proporção de internação por doença mental e a taxa de ocupação dos leitos psiquiátricos
sobre o total de leitos gerais instalados: se, por um lado a proporção de internação por doença
mental aparenta ser pequena (3,5 por cento das internações na clientela urbana do INAMPS,
para o ano de 1983), por outro lado , a taxa de ocupação dos leitos psiquiátricos sobre o total
de leitos gerais instalados é de 19 por cento, indicando uma média de permanência (54,3
dias) elevada para as doenças mentais, além da concentração dos leitos na região Sudeste,
explicando a ocupação permanente dos leitos disponíveis, o déficit de leitos para as regiões
mais pobres e a existência do leito-chão (Ministério da Saúde, 1987).
O Relatório cita também os estudos conduzidos pela Organização Pan-Americana da Saúde
(OPAS) para a América Latina nos anos setenta – contexto da eclosão do Movimento da
Reforma Psiquiátrica no Brasil. Segundo a OPAS, em 1973, no Plano Decenal de Saúde para
as Américas, calculava-se, na região, a prevalência do índice das seguintes psicopatologias:
psicoses, entre 1,5 a 5%; neuroses que exigem tratamento médico, entre 5 e 20%; alcoolismo,
superior a 5%; consumo de substâncias causadoras de dependência entre os estudantes de
nível secundário, 5%; retardo mental e epilepsia, além de 1%.
Os estudos da OPAS previam, ainda, um aumento relativo do índice desses transtornos
devido: à uma pressuposta diminuição das taxas de mortalidade e morbidade por
enfermidades ligadas ao meio, à crescente urbanização desorganizada da população, à
automatização das fábricas e à desvinculação entre o trabalhador e o produto de seu trabalho.
A partir desse conjunto de dados, a posição da Reforma Psiquiátrica fundamentou-se na idéia
de ampliação do conceito de saúde para além do âmbito da biologia e na direção de uma
análise dos determinantes das condições materiais de vida. Isso significou defender a
articulação entre o conceito de saúde e a implantação das políticas sociais do Estado
(Ministério da Saúde, 1988).
O marco da Reforma Psiquiátrica no Brasil foi a ocorrência do movimento sanitário nos anos
setenta, que reivindicava para a análise das morbidades, a inclusão das variáveis econômicas,
políticas e sociais em jogo na formação dos laços sociais da época, na contramão da posição
do governo federal da época que tendia a “tornar absolutos os aspectos racionalizantes da
Reforma Sanitária, minando, dessa forma, sua base política, imprescindível para que esse
processo transcenda os limites administrativos” (FLEURY, 1988, p.204).
A crítica conduzida pela Reforma incidia sobre o modelo hospitalocêntrico, manicomial de
exclusão social da loucura - considerado como um modelo iatrogênico e superado, de custos
sociais e econômicos elevados (Nascimento Alves, Fleury Seid, Schechtman e Correia e Silva,
1992). Assim, no quadro da defesa das variáveis econômicas, sociais e políticas das
morbidades psiquiátricas, não era possível dissociar reforma psiquiátrica, reforma sanitária e
reforma agrária e urbana. No entanto, o processo de Reforma Psiquiátrica brasileira possui
especificidade própria, estando inscrita no contexto internacional mais amplo de combate e
superação da violência asilar. Sua especificidade reside em duas variáveis: a crise do modelo
de assistência centrado no hospital psiquiátrico e a eclosão dos esforços dos movimentos
sociais pelos direitos dos pacientes psiquiátricos (Ministério da Saúde, 2005).
Em 1978, após denúncias feitas por médicos do Centro Psiquiátrico Pedro II, surge o
Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM) - movimento constituído por
trabalhadores integrantes do movimento sanitário, por associações de familiares, sindicalistas,
membros de associações de profissionais e pessoas com longo histórico de internação
psiquiátrica - que, de acordo com Paulo Amarante (1997), foi o primeiro e mais importante
passo dado em direção ao início da Reforma Psiquiátrica protagonizando e elaborando
formalmente as denúncias sobre a violência dos manicômios, a mercantilização da loucura e a
6
hegemonia da rede privada de assistência. Orientado pelo vetor epistemológico da experiência
italiana de desinstitucionalização em psiquiatria, com Basaglia, o MTSM sustentou a
possibilidade de ruptura com o paradigma manicomial hegemônico na organização da
estrutura asilar brasileira - como era o caso exemplar da Colônia Juliano Moreira, asilo
situado no Rio de Janeiro, que possuía mais de 2.000 internos entre o final dos anos setenta e
o início dos anos oitenta.
Neste mesmo, os profissionais do Centro Psiquiátrico Pedro II, do Hospital Pinel, da Colônia
Juliano Moreira e Manicômio Judiciário Heitor Carrilho organizaram uma greve que teve
início no Rio de Janeiro e em pouco tempo se difundiu por todo o país. Em resposta a greve, a
Divisão Nacional de Saúde Mental (DINSAN) demitiu 260 funcionários destas unidades. O
episódio da greve e da demissão foi denominado de Crise da DINSAN e contribuiu para o
fortalecimento do MTSM que organizou-se em núcleos estaduais (São Paulo, Bahia, Rio de
Janeiro, Minas Gerais). Tais núcleos tiveram envolvimento ativo no V Congresso Brasileiro
de Psiquiatria, ocorrido na cidade de Camburiú em outubro de 1978, e que acabou conhecido
como Congresso de Abertura, contando com a participação de setores considerados
conservadores e formando uma frente ampla a favor da mudança nos fundamentos e na
organização da assistência psiquiátrica brasileira. (Amarante, 1997).
Em 1979, o I Simpósio de Saúde da Câmara dos Deputados apresentou os relatórios
elaborados pelo MTSM e CEBES, que denunciavam a situação da assistência psiquiátrica do
país, contribuindo para publicar o modo de funcionamento dos hospitais psiquiátricos no
Brasil, alcançando todas as esferas da sociedade e entidades da sociedade civil.
Esse conjunto de acontecimentos e análises críticas foram relevantes no complexo políticosocial da época, estabelecendo uma articulação entre um posicionamento crítico frente a
conjuntura política, econômica e social de época, e um posicionamento ético de ruptura com
os pressupostos teóricos do paradigma do isolamento e da punição e as representações sociais
que estabeleciam a equação entre as psicopatologias e a periculosidade.
O objetivo fundamental da Reforma Psiquiátrica foi a desconstrução do modelo manicomial,
hospitalocêntrico, em nome da superação “(...) do estigma, da segregação, da desqualificação
dos sujeitos ou ainda, no sentido de estabelecer com a loucura uma coexistência, de troca, de
solidariedade, de positividade e de cuidados.” (Amarante, 1997,p. 4)
No que se refere à mercantilização da loucura e a hegemonia de uma rede privada de
assistência, denunciadas pelo MTSM, a tabela 2 e a figura 2 apresentam detalhadamente os
números relativos à evolução dos hospitais psiquiátricos no Brasil. A partir desses números, é
possível constatar o salto na formação dos hospitais psiquiátricos privados/filantrópicos entre
os anos de 1961 e 1971: de 81 para 269 hospitais, confirmando a análise conduzida na seção
anterior a respeito da consolidação do modelo manicomial como paradigma das estratégias de
tratamento das psicopatologias. Um elemento presente no levantamento da evolução dos
hospitais psiquiátricos públicos torna ainda mais complexa a situação brasileira. Comparando
a evolução dos hospitais públicos, o salto é maior ainda: 72 hospitais públicos para 269
hospitais privados. Conforme mostram os dados abaixo, isso significa que a expansão dos
hospitais psiquiátricos, iniciada na década de sessenta, aumentou em torno de três vezes o
número de hospitais psiquiátricos, principalmente no setor privado.
Tabela 2
Evolução do Número de Hospitais Psiquiátricos no Brasil, segundo o Prestador (19411991)
ANOS
1941
HOSPITAIS
PÚBLICOS
23
HOSPITAIS PRIVADOS/
FILANTRÓPICOS
39
TOTAL
62
7
1961
1971
1981
1991
54
72
73
54
81
269
357
259
135
341
430
313
Nota. Fonte: Ministério da Saúde (1992) II Conferência de Saúde Mental. A Reestrutração da Saúde mental no Brasil:
Modelo Assistencial. Direito à Cidadania (p.51). Distrito Federal: Ministério da Saúde.
Os dados acima indicam que o paradigma do isolamento e o modelo manicomial que lhe era
correlato não resultavam somente da estagnação das estratégias de tratamento das
psicopatologias, apesar dos avanços da tecnologia medicamentosa e das psicoterapias no
Brasil. Ele refletia a própria gestão dos recursos e a administração em si. Nessa época, além
do Ministério da Saúde (MS) e das Secretarias Estaduais de Saúde (SES) a assistência
psiquiátrica também era de responsabilidade do Ministério de da Previdência e Assistência
Social (MPAS). A figura 2 permite uma visualização desses elementos analisados.
Figura 2 Evolução do Número de Hospitais Psiquiátricos no Brasil, segundo o Prestador
(1941-1991)
Fonte: Ministério da Saúde (1992) II Conferência de Saúde Mental. A Reestrutração da Saúde
mental no Brasil: Modelo Assistencial. Direito à Cidadania (p.51). Distrito Federal:
Ministério da Saúde.
Além de disponibilizar recursos, a função do Ministério da Saúde e das Secretarias Estaduais
de Saúde (SES) era administrar macro-hospitais, que abrigavam não apenas as diversas
formas de psicopatologia, como também a população indigente, sem especificação na direção
de tratamento dos casos que para ali eram endereçados.
Os hospitais/albergues recebiam verba da Previdência Social (PS) de acordo com os
procedimentos realizados e os leitos ocupados. Dentro desse critério, a PS também pagava por
uma categoria de leito denominada de leitos-chão. Os leitos-chão referiam-se aos pacientes
internados sem que, todavia, houvessem leitos correspondentes. Somado a isto o MPAS
exercia a política de compra de leitos juntamente com o INPS já que o primeiro não possuía
rede própria.
Os relatórios elaborados pelo Movimento dos Trabalhadores da Saúde Mental (MTSM) localizavam o INPS e sua política de compra de serviços da rede privada como um dos piores
retrocessos no campo da saúde. Tal sistema ocasionava uma gama de problemas, dentre os
quais destacam-se:
1.O pagamento de serviços que não eram produzidos (ex: medicamentos não utilizados,
pacientes fantasmas).
2.O pagamento de serviços que apesar de produzidos não se faziam necessários (ex:
internações que poderiam ser tratados em ambulatórios).
3.A privatização da saúde mental e sua localização como um dos setores da saúde mais
privatizado: em 1941, os leitos psiquiátricos da rede privada passaram de 3.034 para 55.670,
(pesquisar); em 1965 os hospitais psiquiátricos que tinham convênio com o INPS totalizavam
100, aumentando para 276 no ano de 1976.
Esses dados mostram claramente que a mercantilização do setor ocorria de forma acelerada. A
partir deste quadro, os agentes da Reforma Psiquiátrica propuseram o retorno da estatização,
sustentando que o investimento feito no setor privado em detrimento do setor publico estava
entre os motivos de sua deterioração.
A década de oitenta foi marcada por acontecimentos e transformações no campo da Saúde
Mental. A crise na Previdência Social (PS) resultou em um novo convênio entre e a
8
Previdência e o Ministério da Saúde. Esse convênio consistia em uma co-gestão dos hospitais,
por parte da OS. Dessa forma, além de seu envolvimento no custeio, a PS também participaria
do planejamento e avaliação das unidades hospitalares. A implantação do plano CONASP
reforçou e disseminoou as propostas de mudanças trazidas pela co-gestão. A importância do
fato diz respeito ao campo da saúde, de maneira geral, por trazer mudanças nas políticas
públicas, tomando como princípios fundamentais: a descentralização, a integração
interinstitucional, a hierarquização, a regionalização e a participação comunitária. As
propostas e estratégias sugeridas pelo MTSM começaram a serutilizadas no setor. Uma série
de pré-conferências estaduais foram realizadas com o objetivo de organizar os profissionais
para a I Conferência Nacional de Saúde Mental, na qual a participação inédita da sociedade
civil na construção de um novo modelo assistencial somada a aspiração de que esta
conferência legitimasse as diretrizes propostas pelo MTSM, acabou por transformar a
realização do evento em um embate entre a Dinsan e o MTSM. A despeito das tentativas da
DINSAN, a I Conferencia aconteceu em 1987 sob a direção do MTSM. Esta contou com a
participação de 176 delegados eleitos em pré-conferências estaduais e demais segmentos
representativos da sociedade. Sua estruturação compôs-se por temas fundamentais para a
condução da Reforma:
Tema 1. Economia, Sociedade e Estado: impactos sobre saúde e doença mental.
Tema 2. Reforma sanitária e reorganização da assistência à saúde mental.
Tema 3. Cidadania e doença mental: direitos, deveres e legislação do doente mental.
O eixo central desta I Conferência, realizada no final dos anos oitenta, ou seja, antes da
Constituinte, foi denunciar a posição ambígua do Estado no campo das políticas sociais e
resgatar para a saúde sua orientação para a igualdade de direitos e o exercício da participação
popular combatendo, para isso, a psiquiatrização do social pela expansão manicomial, a
miséria social e institucional e, no âmbito das ações governamentais e privadas, sua alienação
no campo da saúde. Nesse contexto, foi recomendada à Comissão de Sistematização da
Assembléia Nacional Constituinte, a solicitação de inclusão de um parágrafo terceiro ao item
primeiro do relatório da Comissão de Saúde. Abaixo serão reproduzidas as recomendações da
I Conferência de Saúde Mental à Constituinte (Ministério da Saúde, 1987, p. 23-29):
“ DA SAÚDE:
Art. 1º – A saúde é um dever do Estado e um direito de todos.
§ 1° – O Estado assegura a todos condições dignas de vida e acesso igualitário e gratuito às
ações e serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde, de acordo com suas
necessidades.
§ 2° – A lei disporá sobre a ação de rito sumário pela qual o cidadão exigirá do Estado o
direito previsto neste artigo.
§ 3° – Todas as pessoas, independente da natureza de sua deficiência ou doença, gozam
plenamente de todos os direitos e estão sujeitos aos deveres consignados nesta Constituição e
legislação que reconheça suas especificidades.
1.1. Ainda com relação ao processo constituinte, reforçamos o "projeto de iniciativa popular",
que assegurará a possibilidade de técnicos e usuários, através de suas entidades
representativas e mediante ampla mobilização popular, apresentarem, em futuro próximo,
projeto de lei modificando os dispositivos jurídicos ora em vigor.
1.2. Que se inclua no Título II dos Direitos e Liberdades Fundamentais, capítulo dos Direitos
Individuais, no artigo 6°, menção à saúde: Onde se lê: "... a inviolabilidade dos direitos
concernentes à vida", leia-se" ... a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida e à saúde".
Tal proposição é coerente com o artigo 261 que consagra a saúde como um direito, tido por
todos como fundamental. Como o projeto de Constituição (§ 5°, do artigo 6°) pune como
crime inafiançável qualquer discriminação atentatória aos direitos e liberdades fundamentais,
tal menção à saúde mais se justifica.
9
1.3. Que se inclua no texto constitucional:
Art. – Por motivo de doença ou deficiência não serão toleradas quaisquer medidas ou
preceitos discriminatórios, segregacionistas ou punitivos, excetuados os casos em que
condutas ou estados patológicos possam acarretar riscos à incolumidade física das pessoas, ou
danos ao patrimônio, ou resultarem de atos delituosos.
1.4. Quando da revisão da legislação ordinária consubstanciada no Decreto nº 24.559, de 3 de
julho de 1934, devem ser incorporadas as conquistas de direitos dos indivíduos e os atuais
avanços de organização e de técnicas no setor. Também deverão merecer cuidados a revisão
dos textos específicos no âmbito do Direito Civil. Sanitário, Trabalhista, Previdenciário, Penal
e no campo da Deontologia.
B – Reformulação da legislação ordinária
A Conferência Nacional de Saúde Mental entende que a extensão de direitos civis, sociais e
políticos a todos os indivíduos cria a necessidade constitucional de imediata substituição das
leis especificas vigentes. Para tanto, recomenda-se:
1 – Com relação à legislação civil
Modificação da legislação que regula as questões relativas às interdições e aos estados de
incapacidade civil ("aos loucos de todo o gênero"). A interdição deverá estar restrita quando
houver ameaça aos bens públicos, aos bens próprios e perigo de agressão física.
2 – Com relação à legislação penal (Código Penal Brasileiro)
Estabelecimento de penalidade àqueles que, em última análise, determinam o tipo e modo
como se dá o processo produtivo, que reconhecidamente causam danos à saúde física e mental
dos trabalhadores. A legislação ordinária deverá fazer uma revisão acerca da questão da
inimputabilidade. Que se aprofunde a discussão sobre os manicômios judiciários, visando sua
extinção ou profunda transformação.
A questão da definição da periculosidade deverá merecer especial atenção por implicar em
juízo de valor e dar margem ao uso indevido da saúde mental e dos seus profissionais para o
cerceamento da liberdade individual a da opção de forma de vida das pessoas.
A definição de uma pessoa como 'perigosa' não deve ter o caráter de definitivo julgamento.
Sua elaboração deve estar subordinada aos objetivos de uma sociedade democrática, justa,
igualitária e capaz de garantir os direitos humanos fundamentais. É conveniente que os
diversos especialistas do campo das ciências humanas, sensíveis à comunidade em seus
anseios, contribuam para essa avaliação, assegurando que não se estabeleçam julgamentos
ligados a qualquer tipo de preconceito.
3. Com relação à legislação sanitária e psiquiátrica
1. Ao Poder Público cabe a responsabilidade pela fiscalização do cumprimento dos direitos do
doente mental. A questão da internação psiquiátrica deve ser regulamentada em lei onde
estejam estabelecidos os direitos do paciente internado.
A internação não deverá ser ato obrigatório do tratamento psiquiátrico, devendo ser
estabelecidos os critérios da internação, envolvendo, neste ato, a defensoria pública,
comissões multiprofissionais e a participação de setores organizados da comunidade,
definindo o caráter dessa internação e o seu tempo de duração, revisado periodicamente.
2. A decisão sobre diagnóstico, tratamento e regime de tratamento é da responsabilidade da
equipe assistencial multiprofissional, e pode ser legalmente questionada pelo cliente,
familiares ou entidades civis.
3. Que se garanta ao usuário o direito de acesso ao prontuário, de acordo com uma avaliação
das condições de sua autodeterminação e capacidade de entendimento.
4. Que os doentes tenham o direito de escolher o tipo de tratamento e o seu terapeuta,
associando, no entanto, a participação efetiva de uma equipe multidisciplinar, possibilitando
ao doente o conhecimento da natureza das indicações e contra-indicações do seu tratamento.
10
5. Que os critérios de funcionamento hospitalar, relação de leitos por técnicos, sejam
estabelecidos considerando as características próprias de cada faixa etária, assim como o
direito ao atendimento multiprofissional.
6. Que se assegurem mecanismos e recursos legais de garantia do direito individual contra a
internação involuntária (por exemplo: habeas-corpus, comunicação automática à autoridade
judiciária competente, criação de tutela provisória para estes pacientes), visando a possível
reversibilidade do estado de internação no período máximo de 72 horas.
7. Que sejam criadas estruturas que proporcionem a reinserção no trabalho, através de Centros
de Reabilitação, sendo o trabalho protegido de tal forma que se torne dispensável a
aposentadoria compulsória.
8. Que na legislação previdenciária a concessão de auxílio-doença aos casos de doenças
mentais submeta-se a critérios técnicos rigorosos e que a perícia médica realizada pelo
Instituto Nacional da Previdência Social (INPS) tenha especialistas próprios (e não
credenciados), com a obrigatoriedade de imediata inclusão dos doentes em tratamento de
reabilitação nos Centros de Reabilitação Profissional.
9. Que os Centros de Reabilitação Profissional tenham equipe multiprofissional de saúde
mental para atender especificamente os pacientes encaminhados pela perícia médica.
4. Com relação à legislação sanitária e psiquiátrica da criança e do adolescente
CONSIDERANDO:
1. O atual estado de ausência de política de saúde mental para a infância e adolescência, a
carência de recursos humanos especializados e a ausência de legislação específica;
2. Que cerca de metade da população brasileira é formada por crianças e adolescentes, sujeitas
a tutela e sem possibilidade legal de exercer seu livre arbítrio;
3. As atuais deficientes condições de funcionamento da rede assistencial pública.
4. A sobreposição dos interesses econômicos na existência e expansão dos hospitais
psiquiátricos privados;
5. A deformação conceitual vigente que considera menores sem lar, 'meninos de rua', como
futuros delinqüentes ou psicopatas.
PROPOMOS:
1. Que se adotem normas legais que limitem a internação psiquiátrica de menores e a
mantenham sob controle;
2. Que aos menores, a partir dos 16 anos, seja facultado requerer contra sua internação;
3. Que se garanta, aos menores hospitalizados, educação formal ou especializada, habilitação
profissional e o direito ao espaço lúdico;
4. Que os critérios de funcionamento hospitalar e relação de leitos por técnicos sejam
estabelecidos, considerando as características próprias de cada faixa etária, assim como o
direito ao atendimento multiprofissional;
5. Que as medidas terapêuticas para utilização em menores sejam revistas criteriosamente,
limitando ou proibindo a utilização de psicofármacos e outros procedimentos
(eletroconvulsoterapia, por exemplo) de utilidade duvidosa ou de potencial pernicioso ao
processo de desenvolvimento e integridade física e mental dos menores;
6. Que as internações psiquiátricas realizadas por decisão do Juizado de Menores sejam
necessariamente submetidas à avaliação de uma equipe de saúde mental;
7. Que aos menores submetidos à internação sejam garantidos os direitos de proteção
semelhantes aos dos pacientes adultos, estudando-se mecanismos de controle a proteção que
evitem uma discriminação acessória a partir de sua minoridade e condição de tutelados;
8. Em relação à internação de menores marginalizados, que esta seja feita mediante a
avaliação de equipe multiprofissional e com ordem judicial.
5. Com relação à legislação trabalhista
CONSIDERANDO:
11
1. A importância da fadiga e da tensão psíquica na determinação dos acidentes de trabalho,
amplamente reconhecida;
2. Que numerosos estudos comprovam que uma série de aspectos organizacionais do trabalho
desempenham ação na instalação e desenvolvimento de distúrbios mentais, psicossociais e
psicossomáticos;
3. O conhecimento científico atualmente existente sobre os prejuízos decorrentes para a saúde
a partir da implantação de sistemas automatizados;
4. Que a especificidade de determinadas situações de trabalho, pela complexidade de
interação de fatores morbígenos e ou tensiógenos, derivados da organização, ambiente e
conteúdo/natureza do trabalho, exigem estudos ergonômicos e modificações efetivas dos
efeitos psicossociais sobre os trabalhadores;
5. Que em diversos países as legislações têm levado em conta os agravos que o trabalho em
regime de turnos alternados e de trabalho noturno trazem para a saúde física, psíquica e
psicossocial, e que um ponto essencial destas evoluções de legislação tem sido contemplar um
maior período de repouso e de recuperação do cansaço;
6. A necessidade de manutenção na vida social e produtiva dos portadores de doenças
mentais.
PROPOMOS:
1. O reconhecimento de que a doença mental esteja ligada às condições em que ocorrem as
atividades produtivas;
2. Que se crie dispositivo legal que garanta a manutenção do emprego aos indivíduos
acometidos de algum tipo de sofrimento psíquico e submetidos a tratamento;
3. Que os exames de sanidade física e mental não sejam, por lei, instrumentos de exclusão da
vida produtiva, mas sim que adequem as limitações físicas e mentais do trabalhador às
atividades que este possa desempenhar satisfatoriamente;
4. Punição do empregador que mantenha condições de trabalho reconhecidamente insalubres
e deletérias à saúde, com o estabelecimento de responsabilidade legal pelos prejuízos
eventualmente produzidos.”
É importante destacar, no contexto dos anos oitenta, a consolidação dos primeiro Centro de
Atenção Psicosocial (CAPS) no Brasil, ocorrido na cidade de São Paulo, em 1987, e o início
de um processo de intervenção, em 1989, da Secretaria Municipal de Saúde de Santos no
hospital psiquiátrico Casa de Saúde Anchieta – instituição conhecida pela conduta de maustratos e elevado índice de mortalidade de pacientes. Esta intervenção teve repercussão
nacional e representou o marco da possibilidade de construção de uma rede de cuidados que
efetivamente superaria o modelo manicomial que estava no fundamento do hospital
psiquiátrico brasileiro. Neste período, são implantados no município de Santos, os Núcleos de
Atenção Psicossocial (NAPS) com funcionamento de 24 horas por dia e todos os dias.
Diferente do que se viu até então no país, o NAPS propunha a utilização dos recursos
disponíveis na comunidade estimulando que esta se envolvesse ativamente forma contínua e
sistemática através de iniciativas culturais. Também são criadas as cooperativas, as
residências para os egressos do hospital com forte dependência institucional e as associações.
A experiência do município de Santos se converte, assim, em um marco do processo de
Reforma Psiquiátrica brasileira. A figura 3 apresenta a evolução dos Centros de Atenção
Psicossocial no período entre o início dos anos oitenta e o final dos anos noventa:
Figura 3. Expansão da Rede CAPS (1980-1999)
12
Fonte: Ministério da Saúde (2006). Saúde Mental em Dados (p.6). Distrito Federal: Ministério
da Saúde. Ano I, nº 2, janeiro-julho de 2006.
Neste mesmo período é elaborado o Projeto de Lei Paulo Delgado (Lei 3.657/89), que previa
a desinstitucionalização progressiva dos pacientes e a extinção dos manicômios substituindoos por dispositivos que dariam suporte ao paciente e seus familiares e objetivando a
reinserção do paciente no meio familiar e social. O Projeto de lei 3.657/89 continha,
originalmente, três artigos:
Artigo 1: Impedia a construção ou contratação de novos hospitais psiquiátricos pelo poder
público, considerando tais hospitais como não produtores de saúde, mas sim geradores de
doença, portanto inadequados à reabilitação humana.
Artigo 2: Previa o direcionamento dos recursos públicos para a constituição de “recursos nãomanicomiais de atendimento”.
Artigo 3: Obrigava a comunicação das internações compulsórias à autoridade judiciária, que
teria como tarefa emitir um parecer sobre a legalidade da internação.
Inspirado pelo Projeto de Lei, o Ministério da Saúde adotou a portaria 189/91, possibilitando
a criação dos Centros e Núcleos de Atenção Psicossocial, em torno dos hospitais já existentes.
Já a portaria 224/92 iniciava o processo de encerramento dos hospitais psiquiátricos por impor
mudanças difíceis de serem alcançadas. Em consequência destas portarias, foram criados: 48
hospitais-dia (sendo 46 públicos, 11 contratados e 08 universitários); 57 CAPS/NAPS (sendo
46 públicos e 11 contratados) e 1.765 leitos psiquiátricos em hospitais gerais.
O Projeto de Lei 3.657/89 foi aprovado na Câmara dos Deputados, mas enfrentou dificuldades
no Senado. A aprovação pelo Senado ocorreu somente no mês de Janeiro de 2000, a partir de
um substitutivo de autoria do senador Sebastião Rocha. Esse substitutivo produzia uma
ambiguidade no Projeto Lei Paulo Delgado, pois regulamentava a construção de novas
estruturas manicomiais segundo o modelo que se pretendia substituir. O texto retorna à
Câmara dos Deputados para a supressão do artigo referente à construção ou contratação de
novos leitos e a Lei definitivamente aprovada foi a Lei de 10.216, de 6 de abril de 2001,
avaliada pelo movimento da Reforma como um ato genuinamente progressista.
2.3. A Consolidação da Reforma Psiquiátrica no Brasil: o período de 1993 a 2000
Conforme se analisou até o momento, a implantação das novas instituições e das novas
práticas, orientadas a partir da Reforma Psiquiátrica, transformou o modo de entendimento
sobre o tema dos direitos dos pacientes portadores de psicopatologias. No modelo
hospitalocêntrico, a psicopatologia era entendida como resultado de variáveis biológicas e
morais, concentrando sua causalidade exclusivamente no paciente. Consequentemente, a
tutela (o procedimento de proteção legal fundamentado na noção da incapacidade civil e
irresponsabilidade penal do portador de psicopatologia) era considerada e aplicada sobre o
paciente limitando a abordagem de seus direitos. Sendo visto como incapaz e irresponsável portanto, sem deveres diante da sociedade -, ao paciente dificilmente se procurava oferecer
alternativas para ser sujeito e agente da busca por seus direitos. Os casos de curatela, de
problemas com a lei e de trabalho, eram suprimidos da direção de tratamento, e eram no
máximo designados para acompanhamento pelo serviço social. No trabalho dos serviços
substitutivos de saúde mental, tais questões fazem parte da rotina da direção de tratamento,
sendo um eixo incluído no projeto terapêutico de cada paciente. É neste sentido que apesar da
aprovação de um substitutivo do Projeto de Lei original, a promulgação da lei 10.216 impõe
novo impulso e novo ritmo para o processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil garantindo os
13
direitos civis dos pacientes – em contraposição ao modelo hospitalocêntrico, de isolamento
social, que suprimia a dimensão dos direitos civis.
No contexto desta promulgação da Lei 10.216, em 2001, o Ministério da Saúde passou a
elaborar linhas específicas de financiamento para os serviços abertos e substitutivos ao
hospital psiquiátrico e novos mecanismos são criados para fiscalização, gestão e redução
programada de leitos psiquiátricos no país, cuja evolução é possível verificar por meio da
figura 4.
Figura 4. Evolução do Número de Leitos Psiquiátricos no Brasil (1996-2011)
Fonte: Ministério da Saúde (2012), Saúde Mental em Dados 10 (p.16). Distrito Federal:
Ministério da Saúde. Ano VII, nº 10, março de 2012.
A partir deste ponto, a rede de atenção diária à saúde mental experimenta uma importante
expansão, passando a alcançar regiões de grande tradição hospitalar, onde a assistência
comunitária em saúde mental era praticamente inexistente.
Neste mesmo período, o processo de desinstitucionalização de pessoas que sofreram períodos
de longa internação, e com sequelas de dependência institucional, é impulsionado pela criação
do Programa De Volta para Casa. Uma política de recursos humanos para a Reforma
Psiquiátrica é construída, e é traçada uma política para a direção de tratamento do uso abusivo
de álcool e outras substâncias psicoativas, incorporando a estratégia de redução de danos. No
ano de 2004, ocorre em São Paulo, o I Congresso Brasileiro de Centros de Atenção
Psicossocial, reunindo dois mil trabalhadores e usuários de CAPS. Este processo caracterizase por ações dos governos federal, estadual, municipal e dos movimentos sociais, para efetivar
a construção da transição de um modelo de assistência centrado no hospital psiquiátrico, para
um modelo de atenção comunitário.
O contexto dos anos dois mil caracteriza-se, assim, por dois vetores simultâneos:
1. A construção de uma rede de atenção à saúde mental substitutiva ao modelo centrado na
internação hospitalar.
2. A fiscalização e redução progressiva e programada dos leitos psiquiátricos existentes, por
outro.
Os dados recentes, publicados pelo Ministério da Saúde em 2012, indicam a consolidação da
Reforma Psiquiátrica como política oficial do governo federal reforçando não só a redução
progressiva e programada dos leitos psiquiátricos (figura 4) como também a construção de
uma rede de atenção à saúde mental substitutiva ao modelo centrado na internação hospitalar,
já evidenciada pela figura 3 para o período de 1980 a 1999. A figura 5, abaixo, evidencia para
o ano de 2011, a manutenção desses vetores.
Figura 5. Série histórica da expansão dos CAPS (Brasil, 1998 ‐ 2011)
14
Fonte: Ministério da Saúde (2012), Saúde Mental em Dados 10 (p.5). Distrito Federal:
Ministério da Saúde. Ano VII, nº 10, março de 2012.
3. Conclusão
A partir da perspectiva histórica e a análise dos dados do governo federal entre os anos oitenta
e o ano de 2012, verificou-se, no Brasil, a seguinte vetorização das políticas públicas na área
da saúde mental: de políticas públicas centradas em torno da constituição dos hospitais gerais
e hospícios para políticas públicas centradas na atenção psicossocial. Apesar das inovações e
da implantação do novo modelo assistencial, muitos problemas se apresentaram desde então.
Diante disso, os autores alertam para o fato de que a consolidação dos Centros de Atenção
Psicossocial não garante, por si só, a estrutura não-manicomial de assistência. Sustenta-se, na
pesquisa, que a presença da assistência psicossocial exige não apenas a regulação da
constituição de espaços hospitalares de característica segregativa, mas a presença de uma
fundamentação epistemológica e clínica que articule a direção de tratamento e as variáveis
sociais e econômicas envolvidas no desencadeamento das psicopatologias. O que significa a
constante observância dos princípios para que não haja um retrocesso nas conquistas sociais,
políticas e terapêuticas imanentes a Reforma. Um elemento exemplar desse retrocesso situa-se
na discussão recentemente conduzida por governos municipais e estaduais a respeito das
políticas públicas de direção de tratamento do consumo abusivo de crack entre crianças,
adolescentes e adultos em situação de rua. Diante do elevado índice de desencadeamento do
consumo abusivo de substâncias psicoativas, como é o caso do crack entre crianças,
adolescentes e adultos em situação de rua, proliferam os debates na sociedade civil e nas
instâncias governamentais à nível de municípios e estados, que centram suas posições na
defesa da internação compulsória e no aumento de leitos hospitalares para internação dos
mesmos. A Resolução 20 da Secretaria Municipal de Assistência Social do Município do Rio
de Janeiro previa a internação compulsória da população em situação de rua envolvida com o
consumo de drogas, ignorando a complexidade causal do desencadeamento do consumo ao
concentrar o problema somente no usuário, e sem referir-se às condições sociais que, por
exemplo, levaram um sujeito a migrar para a rua: violência doméstica, abuso sexual.
Além disso, a abordagem à população em situação de rua é conduzida por profissionais
voluntários e policiais sem a devida presença de profissionais qualificados. Essa situação
reflete uma posição por parte do Município do Rio de Janeiro na contramão da Reforma
Psiquiátrica. Espera-se com a pesquisa conduzida no Departamento de Psicologia da
Universidade Federal Fluminense (Volta Redonda), ontribuir para a discussão sobre a direção
de tratamento das psicopatologias na atualidade e as políticas públicas mais adequadas para
sua abordagem.
Referências:
Amarante, P. (1997). Loucura, cultura e subjetividade. Conceitos e estratégias, percursos e
atores da reforma psiquiátrica brasileira. In, Fleury, S (org.). Saúde e Democracia: A Luta do
CEBES.( pp. 163-186) São Paulo: Lemos Editorial.
Honorato, C.P. (2008). Valongo: O Mercado de Escravos do Rio de Janeiro, 1758 a 1831.
Dissertação de mestrado, Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil.
Ministério da Saúde (1992) II Conferência de Saúde Mental. A Reestrutração da Saúde
mental no Brasil: Modelo Assistencial. Direito à Cidadania. Distrito Federal: Ministério da
Saúde.
Ministério da Saúde; Secretaria de Atenção à Saúde; Departamento de Ações Programáticas
Estratégicas; Coordenação de Saúde Mental, (2006). Saúde Mental em Dados 3. Ano I, nº 3,
dezembro de 2006.
15
Ministério da Saúde; Secretaria de Atenção à Saúde; Departamento de Ações Programáticas
Estratégicas; Coordenação Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas (2012). Saúde
Mental em Dados 10. Ano VII, nº 10, março de 2012.
Machado, R.; Loureiro, A.; Luz, R.; Muricy, K. (1978). Danação da norma: a medicina social
e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro:Edições Graal.
Moreira, J. (1905).Notícia sobre a Evolução da Assistência a Alienados no Brasil (1905).
Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, vol.14, n.4, São Paulo, dec. 2011,
559-562.
Nascimento Alves,D.S., Fleury Seid, E.M., Schechtman, A. & Correia e Silva, R.
(1992).Elementos para Uma Análise da Assistência em Saúde Mental no Brasil. In Ministério
da Saúde. II Conferência de Saúde Mental (1992). A Restruturação da Atenção em Saúde
mental no Brasil: Modelo Assitencial, Direito a Cidadania. Distrito Federal: Ministério da
Saúde.
Oda, A. M. G. R; DALGALARRONDO, P. História das primeiras instituições para alienados
no Brasil. História, Ciências, Saúde – Manguinhos,v. 12, n. 3, p. 983-1010, set.-dez. 2005.
Portocarrero, V. (2002). Arquivos da Loucura. Juliano Moreira e a Descontinuidade Histórica
da Psiquiatria. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.
16
Download