EM “HÁ METAFÍSICA BASTANTE EM NÃO PENSAR EM NADA”

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Revista Filosofia Capital
ISSN 1982 6613
Vol. 1, Edição 2, Ano 2006.
OS OLHOS DE VER DE ALBERTO CAEIRO
(FERNANDO PESSOA)
EM “HÁ METAFÍSICA BASTANTE EM NÃO PENSAR EM NADA”
Simone Villas Ferreira
[email protected]
Brasília-DF
2006
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Revista Filosofia Capital
ISSN 1982 6613
Vol. 1, Edição 2, Ano 2006.
OS OLHOS DE VER DE ALBERTO CAEIRO
(FERNANDO PESSOA)
EM “HÁ METAFÍSICA BASTANTE EM NÃO PENSAR EM NADA”
Simone Villas Ferreira1
[email protected]
Resumo
Será que religião é um termo que pode ser usado apenas quando em comunhão com algo de
sobrenatural, quando na relação com o transcendente (extra-mundano, claro) ou com o
mistério incognoscível? Será que esta é a única forma de se pensar e sentir a religião? Ao se
transfigurar tornando-se mundana, a religião deixa de ser ela própria e se torna menor?
Palavras-Chave: Religião – Sobrenatural – Transfigurar
Os Olhos de Ver de Alberto Caeiro (Fernando Pessoa) em “Há Metafísica Bastante em
não Pensar em Nada”
Quando se depara com tais questionamentos a primeira reação é a da fácil negação,
haja vista, as conseqüências que o excesso do cientificismo legou ao mundo ocidental, da
passagem do século XIX até boa parte do século XX, fazendo-o questionar, pela própria
ciência saturada, acerca do sentido último (ou primeiro) das coisas, ou seja, como a imagem
da cobra que morde o próprio rabo, o cientificismo levou-nos a questões metafísicas e/ou
religiosas. Não raro, hoje se ouve falar, por exemplo, em algumas correntes de cientistas, nas
explicações da física quântica moderna sobre o tempo e o espaço, de “dança de shiva”. Outra
boa razão para se responder negativamente aos questionamentos anteriores é pensar “religião”
sob o prisma das instituições da religião, as quais se valem não somente do fato religioso que
as diferencia, mas também, e não menos importante, da forma de sua inserção no social
1
Mestra em Filosofia, Área: Estética, pela UFRJ. Professora do curso de Filosofia da UNIESCO, dos cursos de
pós-graduação do Instituto Educacional Multidisciplinar de Brasília – ÍMPAR, e dos cursos de pós-graduação do
Centro de Formação Profissional Filadélfia.
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(indivíduo e grupo): determinante, segregadora e disciplinadora e, assim, alienada da vida
mesma.
Porém, responder negativamente às questões que proponho não é uma tarefa tão fácil
assim, quando em encontro com o poema de Alberto Caeiro “Há metafísica bastante em não
pensar em nada”. Ao lê-lo pode-se enumerar, no mínimo, algumas reações, das quais destaco
as principais: 1) perceber beleza, devido a métrica com que o poeta usa das palavras,
encaixando-as num harmônico de sentido, som, métrica e consistência (pode-se ler o poema
várias vezes e nele, sempre, haverá novas descobertas existenciais); 2) espanto com a
mensagem do poeta, devido a ousadia de se abordar tal tema (principalmente se, se pensa na
época e local que fora escrito) e de falar de forma tão explícita aquilo que não temos coragem;
3) concordância com o pensamento do poeta, afinada à nossa consciência contemporânea
acerca do que pode ser hoje um questionamento metafísico/religioso, da condição mundana
do homem e sua relação com o sagrado e 4) sentimento de alívio ao final do poema,
principalmente quando o poeta se “redime” dizendo: “ (...) Então acredito nele [Deus]”,
porque seria ousado demais, para nós, bastarmo-nos com o Deus que é apenas “arvores e
flores e montes e luar e sol”. Isso quer dizer que o nosso pensamento contemporâneo sobre o
sentido da religião e a relação com o sagrado não é tão moderno como se pensa que seja; isto
é, se não houvesse a sensação de alívio, se o poeta não se “redimisse”, o vácuo existencial
talvez fosse insuportável diante do possível embate causado pela visão objetiva de Caeiro
contra o tradicionalismo perene do que seja “religião” em nós.
É possível, contudo, perceber sentido religioso numa visão literária “árcade”, que
privilegia o objetivismo absoluto (“Os meus pensamentos são todos sensações”), como no
poema escolhido de Alberto Caeiro? Quando se pensa que o resgate do arcadismo, proposto
por um dos heterônimos de Fernando Pessoa – Alberto Caeiro – tem como um dos principais
objetivos caracterizar-se pela visão menos angustiada da existência humana, inspirando-se na
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antiga cultura grega e romana, pensa-se, pois na irracionalidade da visão religiosa tradicional
cristã e os seus reflexos no homem, por isso a necessidade de entender as críticas que tal
literatura faz no sentido religioso proposto por este movimento.
Destarte, arrisco-me a perceber sentido religioso no arcadismo de “Há metafísica
bastante em não pensar em nada”, sentido esse que vai para além das convenções
institucionalizadas da religião tradicional e mergulha no sentido que o próprio homem vê,
sente e fala da sua religião, da sua relação com o mistério, da sua relação com o sagrado.
Sendo humana, tal religião objetiva é mundana, e por isso despida dos pudores de se ter
intimidade com Deus, de se falar sobre Ele, de conhecê-Lo sem fantasias e mistérios.
Não pretendendo, nesta tarefa, responder ao que seja o sentido de Deus (religião) no
Arcadismo literário de Caeiro como um todo; pretendo, apenas, interpretar e analisar sob o
prisma filosófico a obra por mim escolhida. Atentando simplesmente a este objetivo, pretendo
repensar “religião” dentro do sentido religioso proposto por Caeiro, o qual a recria e a eleva,
agora na sua condição humana e do mundo.
A religião no objetivismo do poema de Caeiro, para sobreviver aos avanços e
necessidades do mundo em que vivemos, descobre-se dependente da atenção e da visão
exclusivamente humanas e, apesar dos assombros tradicionais da visão de religião
institucionalizada, tal religião não é ‘menor’, menos digna, inconsistente. Ao contrário, a
proposta do poema se nos afigura como uma chance de reaproximação do sagrado e do
mistério na atualidade.
O Poema
Há Metafísica Bastante em Não Pensar em Nada
O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.
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Que idéia tenho eu das coisas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).
O mistério das coisas? Sei lá o que é mistério!
O único é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas coisas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz.
E por isso não erra e é comum e boa.
Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
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A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?
“Constituição íntima das coisas”...
“Sentido íntimo do Universo”...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em coisas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.
Pensar no sentido íntimo das coisas
É acrescentando, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.
O único sentido íntimo das coisas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!
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(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as coisas,
Não compreende quem fala delas
Como o modo de falar que reparar para elas ensina.)
Mas se Deus á as flores e as árvores
E os montes e o sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.
E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).
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Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.
Alberto Caeiro2
O Poema Interpretado
De início, o poeta afirma “Há metafísica bastante”; não nega a sua existência,
afirma-a como questão sempre presente em abundância, pois que é ‘a questão’, a mais
importante de todas as outras. É a partir das questões de ordem metafísica que se dá o
questionamento da própria existência como um todo. Por isso é que ela existe: pelo simples
fato de existir, sem por quê. Todo falar sobre a natureza, sobre o homem, sobre o mundo é um
falar de metafísica; daí ela ser o início não só dos questionamentos, mas do próprio poema.
Tal preocupação sobre ela é tão importante e tão presente que, por si só, isenta de
justificativas outras fantasiosas, ou seja, é bastante pensar nela, é bastante “... não pensar em
nada”. O poeta propõe simplesmente existir, deixar de procurar justificativas alheias à própria
condição da existência humana no mundo.
Não interessa, para o poeta, o que se pensa sobre o mundo e as coisas: dar nomes,
justificar é enquadrar a razão a serviço do menos importante. Assim como não se pode querer
fantasiar sobre questões metafísicas, não se pode também ter a ilusão que o mundo, as coisas,
as causas e os efeitos tenham outras razões que não a deles próprios (“o que penso eu do
mundo? / (...) Que idéia tenho eu das coisas? / Que opinião tenho sobre causas e efeitos?”);
investigá-los não é a preocupação do poeta, ao contrário, só “Se eu adoecesse pensaria
2
Fernando Pessoa, Obra Poética Ficções do Interlúdio. In: Poemas completos, poema nº. 210, p. 206-208.
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nisso”, só se estivesse fora de mim e do mundo é que tais questões poderiam ter outros
motivos separados delas mesmas. Seguindo este raciocínio, também a preocupação acerca do
que seja Deus ou a alma é infundada e absurda (“Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
/ E sobre a criação do Mundo?”); pensar sobre isso é não pensar, é fechar os olhos e não ver
a realidade que se mostra, não é oculta, nem digna de mistérios sobre sua essência. O não
pensar do poeta diz respeito à forma errônea de enxergar a realidade, fora de como ela se
apresenta; “É correr as cortinas / Da minha janela” sem cortinas, é buscar motivos outros
desvinculados ao que o ver as coisas nos traz, por si só, de ensinamento, é estar isento de préconceitos. A janela sem cortinas permite que a claridade entre sem barreiras, permite que se
possa ver o mundo lá fora sem os empecilhos que nós próprios nos colocamos, permite-nos
ver a realidade sem imaginá-la ou fantasiá-la. O mundo visto através de uma janela sem
cortinas é despido, é inteiro.
Sendo assim, as coisas em si não têm mistério: “O único é haver quem pense no
mistério”. O poeta chama-nos a atenção à nossa mania em afirmarmo-nos fora do mundo
sensível, fora do mundo como ele é, ou seja, não há por que descobrir verdades ou mensagens
ocultas alheias das coisas que os nossos sentidos possam abarcar: “Quem está ao sol e fecha
os olhos, / Começa a não saber o que é o sol”. A nossa insistente recusa em mudar o lugar do
mistério para fora das coisas em si faz com que pensemos em coisas fantasiosas e menos
importantes, nos faz, com essa atitude, a “pensar muitas coisas cheias de calor” e nos
esquecemos, (ou não queremos) ver o sol, com toda a sua generosa luz (sem ocultar-se).
Afora isso, todas as elucubrações são vãs “Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
/ De todos os filósofos e de todos os poetas”; pois que é espontânea, inteira, generosa. É nessa
luz que nos devemos ater, e não à luz da razão que pensa sobre as coisas, não à teologia de um
Deus distante e separado da sua própria criação.
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Todas as coisas estão aí e numa função e sentido. Metafísica, então, para o poeta, é o
próprio fato de existir, sem perguntar e sem querer saber sobre o porquê: “Mas que melhor
metafísica que a delas [árvores], / Que é a de não saber para que vivem / Nem que não
sabem?”.
“’Constituição íntima das coisas’... / ‘Sentido íntimo do Universo’...”. Nesta
passagem, Caeiro não se limita a defender sua busca do conceito direto das coisas; também
ataca todos aqueles que vêem ‘sentidos íntimos metafísicos’ nas coisas culminando com suas
colocações acerca da existência de Deus:
“Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!”
Observa-se, neste trecho, como Caeiro nega sua crença num Deus espiritualizado,
transcendente, buscando um deus que seja visível, que seja as próprias flores, árvores, montes,
sol e luar (“É que ele quer que eu o conheça...”), e que por isso não se chame Deus. Deus é a
própria criação divina, estando presente em todo e em todos.
Caeiro não se define por ser anticristão (esse é um equivoco preconceituoso!):
“Então acredito nele, / Acredito nele a toda a hora,”; seu objetivo está em cada um sentir-se
integrado a uma realidade harmônica e equilibrado (que é o Mundo), desfrutando suas
possibilidades de forma objetiva. Para o espírito do poeta, o mundo sensível é muito
importante, pois é nele que se manifestam as formas divinas (os deuses) que os homens
podem vivenciar em sua vida efêmera. No cristianismo, a crença na vida após a morte faz
com que o homem coloque o mundo sensível em segundo lugar, valorizando mais o plano
espiritual. Ao contrário, o poeta busca uma integração sensorial com a Natureza, sentindo-se
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parte dela. E, mais importante: sentir-se parte da Natureza sem pensar em se sentir parte dela,
como finaliza no trecho que se segue:
(...)
“Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.“
O Poema Analisado
A escalada anticonceptualista de Caeiro chega à culminância de seu trajeto com a
negação do pensamento metafísico, da especulação do que esteja para além da realidade em
si. Pagão por convicção e num processo bem pessoano de identidade dos opostos3, ele reduz a
metafísica à não-metafísica . Ou, por outros termos, por não perceber além do sensorial,
reduz o metafísico ao físico. Anti-subjetivista, antimetafísico, Caeiro pode ser definido como
pagão não só com a inteligência abstrata, não só com a sensibilidade da inteligência, mas
também com a sensibilidade do temperamento. A sua crença em Deus está presa à
possibilidade de este ser coisas, dados da realidade natural (flores, árvores, motes, luar e sol),
ou seja, Deus é imanente, e não transcendente.
Se o sentido de Deus, e conseqüentemente o de religião, como tradicionalmente
concebidos, desaparece, qual será, então, o lugar possível da religião neste poema? Uma vez
que Deus desmistificou-se, desnudou-se, uma vez que não há metafísica alheias à própria
realidade, os padrões culturais impostos pela própria religião tradicionalmente convivida não
3
A análise de José Clécio Basílio Quesado, O Constelado Fernando Pessoa, p. 55-58, é bem esclarecedora sobre
este conceito.
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fazem mais sentido. Em termos de cristianismo (o principal alvo de Caeiro na sua crítica
religiosa), é, pois, o Cristo de todo o mundo – o Presépio, o Calvário – o dos mitos e das
lendas, o único que conhecemos; no fundo o único que importa; mas liberto da religião, não
prometendo nada mais do que tudo e não outro reino além deste mesmo onde já estamos. Este
Cristo, mesmo heterodoxo (mas que vale a doxa nesses domínios?), mesmo inventado, não
deixa de se relacionar com os textos do Novo Testamento, ao menos com alguns deles. Por
exemplo, no Evangelho segundo São Lucas (Lc 18:20-23): “Tendo-lhe os fariseus perguntado
quando viria o Reino de Deus, ele lhes respondeu: ‘O Reino de Deus está em vós’” (entos
humôn), ou entre vós, ou no meio de vós. Esta grande revelação-divulgação que o nazareno
trazia põe fim a qualquer religião revelada e mesmo a qualquer religião. Se o Reino de Deus
está entre nós, e se estamos no Reino, para que serve a fé e a esperança? Mão se deve crer em
nada, deve se conhecer tudo. Não se deve ter esperança em mais nada; deve-se amar tudo.
Isso coincide com a lição dos místicos, em todos os países. Por exemplo, Nagarjuna4:
“Enquanto fazes uma diferença entre o nirvana e o samsara, estás no samsara.”, isto é,
enquanto fazes uma diferença entre o Reino e este mundo de miséria, estás neste mundo de
miséria.
Entretanto, ter esperança é mais fácil; ter religião é mais fácil, afinal, o poeta se
redimiu: “(...) Então acredito nele [Deus]”! Há ainda a necessidade da remissão do pecado
original do nosso fato de existir. A humanidade tem que se redimir de tamanha ousadia: ser
criada à imagem e semelhança d’Ele (“Vós sois deuses!”). Mas cumpre ater-se ao difícil, e
isso indica o caminho onde já estamos: no cansaço, no sofrimento, na angústia e na alegria, às
vezes. Nada para crer, nada para ter esperança. Não há outra salvação senão viver, não há
outra salvação senão amar: o Reino (árvores, flores, montes, luar e sol) é aqui na terra; a
eternidade é agora.
4
O BHAGAVAD-GÍTÁ – Como ele é – capitulo 8 “Alcançando o Supremo”, texto 3, p. 339-340.
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As idéias muito claras e objetivas de Caeiro, acerca do sentido religioso, casam com
as dúvidas e as necessidades do homem da atualidade. O Deus distante e inatingível, o que faz
sempre questão de nos mostrar o quanto somos inferiores e infelizes, este deus não educa, não
provê, não ama. O homem contemporâneo não tem mais como acreditar neste deus. Seu
caráter transcendente deve se ater, apenas, como na visão do poeta, nas maravilhas que pode
fazer, nas suas “divinas” características. Mas, em nós (entos humôn) ele tem que ser imanente,
ou seja, Caeiro em nenhum momento objetivou profanizar o religioso, apenas quis mostrar
que o religioso estaria dentro do mundo, pulsante, aberto, explícito, palpável. Bastava ao
homem, então, como tarefa divina, perceber-se criação-criador (“filho do homem) e
transcender no mundo: “E por isso eu obedeço-lhe, / (Que mais sei eu de Deus que Deus de si
próprio?). / Obedeço-lhe a viver, espontaneamente, / Como quem abre os olhos e vê,”.
Esse novo sentido religioso, que aparece por meio da estética (na poesia, na prosa, na
música, etc.) para os homens hodiernos, chama-nos atenção para desvencilhar-se da muleta da
religião institucionalizada para, com nossas próprias pernas, caminharmos seguros pelas vias
da auto-percepção e da percepção (janela) do mundo lá fora; faze-lo de modo aberto e
receptivo ao aprendizado mesmo com as coisas (sem cortinas) é tarefa santa,
verdadeiramente, mundanamente santa. Tal tarefa pretende que tentemos habitar um pouco
este reino onde estamos, ou que está em nós, enquanto desejamos coisa diferente do que o que
é, enquanto amamos coisa diferente do que tudo. As beatitudes, a parábola do filho pródigo, a
do bom samaritano, o relato da mulher adúltera... expressam o essencial: Jesus, homem doce e
humilde de coração, foi o israelita que substituiu o amor à Lei pela lei do amor, que fez do
amor o único absoluto, o único mandamento, ou aquele ao menos que justifica todos os
outros. As prostitutas precedem os fariseus no reino, e aquele que diz “amo a Deus” e que não
ama o irmão ou o inimigo é um mentiroso. Como é possível viver esse amor, senão no
mundo?
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Por isso, como uma oração, como um creio-em-Deus-Pai, como uma missa interna, o
poeta finaliza:
(...)
“E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.“
Eis a verdadeira mensagem, em todo caso aquela que destaco como a principal: o
amor vale mais que religião; o amor é a única religião que vale. Que importam, mesmo, a
recompensa ou o castigo? A fé? A esperança? Cristo não tinha nem uma nem a outra, pois que
apenas se pode crer e esperar com a condição de não saber. Acordado com isso, o poeta
português no ensina5:
“O Mundo não se faz para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...”
5
Cf. nota 1, poema nº 207, p. 205.
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