Ricardo Onofre Prof. Adjunto – UFF O intestino há muito tempo deixou de ser apenas um órgão digestor e de absorção para assumir o seu importante papel imunológico: o de defesa contra as agressões do meio externo. Esta função depende de três componentes: a barreira intestinal, o sistema imune gastrointestinal (GALT, plasmócitos, linfócitos, imunoglobulina A-IgA) e da microflora intestinal. A microflora no homem adulto consiste em uma enorme biomassa viva composta de pouco mais de 10 bilhões de bactérias, de mais de 400 espécies diferentes, com intensa atividade fisiológica e metabólica, principalmente no cólon. Apenas pouco mais de 50% das observadas à microscopia podem ser cultivadas. Somente após o desenvolvimento da biologia molecular é que inúmeras cepas não cultiváveis puderam ser identificadas. A grande maioria dessas bactérias reside no colón e apenas 30 a 40 espécies respondem por 90% da população total. Elas podem ser nativas, adquiridas durante o nascimento e no primeiro ano de vida, ou transitórias, ingeridas pelos alimentos ou líquidos. O número de bactérias cresce a medida que se avança para o cólon, havendo também uma mudança da flora: de gram-negativos aeróbios no intestino delgado para uma predominância de anaeróbios no cólon. No delgado, embora com uma densidade bacteriana baixa e um trânsito rápido, a interação com o sistema linfóide é muito importante para a função imunológica, enquanto que no cólon com um trânsito lento e alta densidade de microorganismos há a possibilidade de proliferação desses e de fermentação de substratos não digeridos vindo da dieta ou de secreções endógenas. Os gêneros predominantes são: os Bacteróides, as Bifidobactérias, as Eubactérias, o Clostridium, os Lactobacilos, as Fusobactérias e vários cocos anaeróbios gram-positivos e, em menor número, as Enterobactérias e os Enterococcus (numa proporção de 100 a 1.000 de anaeróbios para 1 aeróbio). Espécies não-patógenas e potencialmente patógenas convivem simbioticamente: o hospedeiro provê os nutrientes e as bactérias propiciam inúmeros benefícios à saúde. Quando há desequilíbrio nesta relação ou alteração da integridade intestinal, ou ainda uma resposta inflamatória exacerbada contra a própria flora intestinal, uma patologia ou risco a saúde pode vir a ocorrer. Didaticamente podemos dividir as funções principais da microflora em metabólicas, protetoras e tróficas. As metabólicas consistem na fermentação de substâncias da dieta não digeridas e do muco endógeno, com a produção dos ácidos graxos de cadeia curta, principal fonte de energia para o cólon, o que acaba favorecendo a absorção de Ca, Mg e Fe no ceco. Também incluem a produção de algumas vitaminas (K, B12, biotina, acido fólico e pantotênico), além da síntese de aminoácidos da amônia e da uréia. A função protetora previne a invasão de germes patogênicos, formando uma verdadeira barreira de organismos vivos, uma linha de resistência aos germens exógenos e às bactérias oportunistas presentes no intestino, mas de crescimento restrito. O efeito barreira é obtido pela produção de substâncias bactericidas por certas bactérias como pela competição por nutrientes e por locais de adesão à superfície da mucosa intestinal. Por fim, o efeito trófico consiste no controle da proliferação e diferenciação das células epiteliais, na manutenção da estrutura dos linfócitos, das estruturas foliculares especializadas e na regulação da produção das imunoglobulinas. Há várias evidências da importância da microflora no trofismo intestinal. O turn-over das células epiteliais nas criptas do cólon é reduzido nos animais sem microbiota; quando se associam cepas específicas de bactérias ocorre a diferenciação celular. Animais sem microbiota mostram uma diminuição das estruturas linfóides e dos níveis de imunoglobulinas séricas; após exposição às bactérias, os linfócitos expandem-se e aumentam os níveis séricos da Ig. É sabido que a célula epitelial intestinal em íntimo contato com o conteúdo luminal tem um importante papel na mediação da resposta inata e adquirida do hospedeiro. Esta possibilidade de modulação e interferência na resposta imunológica desencadeou uma série de trabalhos científicos. A resposta inata envolve o rápido reconhecimento de estruturas mantidas em um grande grupo de microorganismos – modelos moleculares associados aos patógenos ou PAMP (polissacarídeos, peptideoglicans, DNA bacteriano, duplo espiral de RNA, etc.) – pelos receptores previamente instalados nas células e recentemente reconhecidos: os Toll-like receptors e NOD receptors. Em resposta à invasão bacteriana, ocorre ativação do fator NFkB, produção de citocinas pró-inflamatórias, de óxido nítrico, de prostaglandinas, de leucotrienos e a expressão de moléculas MHC classe II. Ocorre em seqüência o recrutamento do sistema linfóide para a indução de vias de memória da imunidade adquirida. Nesse sistema, reside a resposta indutora e efetora do sistema imune.Vale a pena aqui assinalar o trabalho de Mazmanian e cols. (2005) que demonstrou a base molecular para a simbiose bactéria-hospedeiro, utilizando um polissacarídeo do Bacteroides fragilis em animais sem germes. Ocorria uma maturação física e celular do sistema imune, ao contrário de quando utilizava um mutante deste polissacarídeo. Isto abre a possibilidade de desenvolvimento de moléculas de bactérias comensais, com diversas atividades imunoestimuladoras para uso clínico e terapêutico. Assim, a flora é essencial para a homeostase e o desenvolvimento do sistema imunológico. Aqui se enquadra a “hipótese da higiene”: a incidência aumentada de alergias no mundo ocidental pela falta de contato com micróbios na tenra infância. Até a nutrição inicial, por mamadeiras ou no seio exerceria um papel na formação da flora bacteriana endógena e na saúde do sistema imune. Algumas doenças, já se sabe, estão bem associadas à disfunção da microflora intestinal: diarréia associada aos antibióticos, doença do intestino irritável, doença inflamatória intestinal, pouchitis (inflamação da anastomose íleo-anal), câncer do cólon, e nos doentes críticos, em que ocorre perda da integridade da barreira intestinal (pós-choque, trauma, queimaduras, pancreatite grave, infarto entero-mesentérico, etc.). Dos conhecimentos acima, nasceu a proposta de que a oferta de alguns tipos de microorganismos viáveis, dados em grande quantidade, consumidos como componentes alimentares ou em preparações específicas, poderiam exercer efeitos terapêuticos, além dos nutricionais. Em contrapartida ao termo antibiótico, denominou-se para estes agentes o termo Probióticos. Vários trabalhos foram conduzidos com diferentes preparações, tornando as conclusões um pouco confusas. Algumas recomendações, porém parecem bem estabelecidas: a)Grau A de recomendação (nível 1A de evidência) -Tratamento da diarréia infecciosa aguda na infância -Prevenção da diarréia associada aos antibióticos -Prevenção da diarréia infantil comunitária -Tratamento da diarréia associada à deficiência da lactase b)Grau A de recomendação (nível 1B de evidência) -Prevenção e manutenção da remissão da pouchitis -Prevenção das infecções pós-operatórias -Prevenção e manejo das doenças atópicas pediátricas c)Grau B (nível 2B de evidência) -Prevenção da diarréia do viajante -Prevenção da sepse associada à pancreatite severa -Manutenção da remissão da colite ulcerativa -Diminuição dos níveis de colesterol Na doença inflamatória intestinal, há evidências clínicas que sugerem uma ativação anormal do sistema imune da mucosa contra a flora entérica (trigger event). Em 2003, Seksik e cols. demonstraram que a microbiota intestinal na Doença de Crohn difere em relação à dos adultos saudáveis. Posteriormente, em 2005, Swidsinski e cols. demonstraram, através de lanças de nucleotídeos marcados com material fluorescente específicos a grupos de RNA, a organização espacial específica na doença de Crohn diferente da colite ulcerativa e da síndrome do intestino irritável. Isso sugere fortemente a participação da microbiota nestas doenças embora o uso de probióticos na doença de Crohn não tenha bons resultados. Concluindo, uma melhor compreensão da relação do organismo humano com a microbiota intestinal e dos mecanismos imunológicos envolvidos no intestino, além do avanço da biologia molecular, permitirão a prevenção e o tratamento de várias patologias humanas como a atopia, o câncer de cólon, as doenças inflamatórias intestinais e outras ainda desconhecidas. Bibliografia 1 - Guarner F.. Enteric Flora in Health and Disease. Digestion. 2006; 73(suppl 1): 5-12. 2 - Limdi J K , O’Neill C, Mclaughlin J. Do probiotics have a therapeutic role in gastroenterology ? World J. Gastroenterol. 2006; 12(34): 5447-5457. 3 - Cario E.. Bacterial interactions with cells of the intestinal mucosa: toll-like receptors and NOD2. Gut. 2005; 54;1182-1193. 4 - Mazmanian SK, Liu CH, Tzianabos AO, Kasper DL. An Immunomodulatory Molecule of Symbiotic Bacteria Directs Maturation of the Host Immune System; Cell. july 2005;vol 122,107-118. 5 - Swidsinski A, Weber J, Loening-Baucke V, Hale LP, Lochs H. Spatial organization and composition of the mucosal flora in patients with inflammatory bowel disease; J. Clin. Microbol. july 2005, 3380-3389. 6 - Backhed F et al. Host-bacterial mutualism in the human intestine; Science. march 2005;307,1915-1920. 7 - Gill, HS, Guarner, F. Probiotics and human health: a clinical perspective. Postgrad. Med. J. 2004; 80; 516-526.