POSSIBILIDADES E LIMITES DO TRATAMENTO PSÍQUICO NO SERVIÇO DE ASSISTÊNCIA DOMICILIAR UNIMED – GV Camila de Souza Andrade 1 Resumo: A Assistência Domiciliar, na qual o paciente recebe os cuidados necessários à sua condição clínica no próprio domicílio, é considerada, hoje, uma alternativa à desospitalização. Apesar de, à primeira vista, ir para casa parecer uma solução diante dos desgastes de uma internação no hospital, muitas vezes surgem impasses no que diz respeito ao ato de cuidar, considerando todos os envolvidos nesse processo. Dessa forma, a psicologia hospitalar se insere no contexto domiciliar, enfocando as possibilidades e trazendo os limites encontrados no Serviço de Assistência Domiciliar Unimed-GV. Palavras-chave: Assistência Domiciliar; Psicologia Hospitalar; Possibilidades; Limites. 1 - Aluna do Curso de Especialização em Psicologia Hospitalar do Centro Universitário Newton Paiva; Psicóloga do Serviço de Assistência Domiciliar Unimed-GV. 1. SOBRE A ASSISTÊNCIA DOMICILIAR A Assistência Domiciliar (AD) pode ser considerada hoje uma realidade no Brasil. De acordo com Ramallo e Tamayo (1998. apud REHEM & TRAD, 2005), esse modelo de assistência surgiu nos Estados Unidos (1947) e foi inserido nos demais países ao longo dos anos à medida que os resultados divulgados indicavam benefícios aos envolvidos nesse processo. Segundo os mesmos autores, contrapondo o modelo tradicional de hospitalização, a Assistência Domiciliar propõe aos pacientes e seus familiares um ambiente psicológico favorável à saúde. Além disso, possibilita também o descongestionamento de hospitais, a economia em procedimentos hospitalares e a diminuição do risco de infecções. A Organização Mundial de Saúde define Assistência Domiciliar como: A provisão de serviços de saúde por prestadores formais e informais com o objetivo de promover, restaurar e manter o conforto, função e saúde de pessoas num nível máximo, incluindo cuidados para uma morte digna. Os serviços de assistência domiciliar podem ser classificados nas categorias preventivos, terapêuticos, reabilitadores, acompanhamento por longo prazo e cuidados paliativos. (OMS apud LOPES, 2003, p. 10). Nesse contexto, a psicologia hospitalar foi inserida entre a equipe de saúde da Assistência Domiciliar Unimed-GV, a fim de oferecer um suporte aos pacientes, aos familiares e à própria equipe em relação à escolha pela desospitalização, e a todo o processo decorrente dessa escolha. Apesar de, a princípio, a ideia de ir para casa seja bem-vinda aos familiares, alguns impasses surgem: quem vai assumir os cuidados com o paciente? O que fazer caso ocorra uma situação de urgência ou emergência? Como se deve prosseguir os cuidados em regime paliativo? E se o paciente morrer? Do lado da equipe também existem demandas e dificuldades, como, por exemplo, os “pacientes-problema”, que não aderem ao tratamento proposto. Pensando nisso, o desejo de saber mais sobre os limites e as possibilidades do tratamento psíquico no serviço de Assistência Domiciliar emerge com a questão: o que pode a psicologia hospitalar contribuir aos envolvidos nesse processo que vai além da desospitalização? 2. A PSICOLOGIA NO SERVIÇO DE ASSISTÊNCIA DOMICILIAR – INSERÇÃO E POSSIBILIDADES DE ATUAÇÃO O serviço de Assistência Domiciliar Unimed-GV é um programa da Casa Unimed – Centro de Promoção à Saúde. Foi formalizado em 2006, inicialmente com 33 pacientes atendidos por uma equipe composta de um médico, um gerente assistencial, um assistente social, um enfermeiro e dois fisioterapeutas. A princípio, os pacientes beneficiados com a assistência domiciliar eram os exclusivamente acamados, mas, com o desenvolvimento do serviço, foi ampliada a rede de cobertura e passou-se a oferecer acompanhamento aos pacientes com os seguintes diagnósticos: sequelas de AVC, alzheimer, parkinson, esclerose múltipla, fraturas de fêmur, câncer, DPOC, pacientes em regime de antibioticoterapia, pacientes com doenças crônicas mais comprometidos clinicamente, entre outros. Hoje o serviço cresceu, expandiu o número de pacientes beneficiados para 320 e conta com o apoio de uma equipe também maior, em número e em especialidades, em virtude das demandas que surgiram no decorrer da trajetória da AD. TABELA 1 – Profissionais que compõem a atual equipe de Assistência Domiciliar Unimed-GV. PROFISSIONAIS Diretor (médico) Gerente (assistente social) Médicos Assistente social Enfermeiros Téc. enfermagem Psicóloga Fisioterapeutas Fonoaudióloga Nutricionista Total: N 1 1 4 1 3 1 1 6 1 1 20 Fonte: Unimed-GV, 2010. Em janeiro de 2009, a proposta de inserção da psicologia no quadro de profissionais da AD tornou-se concreta. Foram destinadas 15 horas semanais do profissional psicólogo para acolher as demandas iniciais e implantar a clínica de psicologia. Em 2010, a carga horária dobrou. Em princípio, a clínica de psicologia da AD atua de forma a garantir a avaliação psicológica de 100% dos encaminhamentos feitos pelos profissionais que compõem o serviço. Os encaminhamentos chegam com várias demandas: indícios de ansiedade e/ou depressão, angústia perante a doença, risco eminente de morte, desorganização familiar em relação ao momento que vivenciam, entre outras. Tais demandas devem ser acolhidas e, após a avaliação psicológica domiciliar, deve-se definir a melhor intervenção e/ou conduta a ser adotada no caso. A prática mostrou também que trabalhar apenas o paciente atendido em domicílio não é viável diante das demandas que surgem, uma vez que outras pessoas estão envolvidas nesse processo do cuidar. Assim, é primordial que os familiares e cuidadores também sejam incluídos na avaliação psicológica e no tratamento psíquico, atendendo às particularidades de cada caso. O suporte à equipe multidisciplinar e o retorno dos casos em tratamento psíquico são feitos em reuniões quinzenais, nas quais os assuntos pertinentes são discutidos com a equipe, avaliando e determinando condutas e intervenções apropriadas a cada um. Outra forma de atuar em relação à equipe são os estudos continuados – implantados pela coordenação do serviço –, em que cada especialidade traz sua contribuição teórica e prática. Algumas necessidades foram normatizadas pela instituição, como a implantação do Curso de Cuidadores. Neste, o cuidador familiar ou contratado pela família do paciente participa de algumas palestras e atividades desenvolvidas por toda a equipe de saúde, voltadas para a prática diária do cuidado ao paciente. O objetivo desse curso é oferecer aos participantes maior desenvoltura com o seu fazer diário e possibilitar maior envolvimento com a equipe multidisciplinar no que diz respeito a esse processo. Nessa perspectiva, a psicologia aborda o cuidado e o que ele implica, a escolha por esse lugar de referência e outras questões que sejam pertinentes ao que é proposto, por meio de palestras e dinâmicas. Existe também o protocolo de prioridade para acompanhamento ao paciente em fase terminal. Neste, a psicologia está inserida de modo a oferecer, quando for indicado, o apoio necessário ao paciente e seus familiares. Toda a equipe multidisciplinar se faz presente, oferecendo ao paciente e à família o trabalho de cada especialidade em relação aos cuidados paliativos. A psicologia se insere então na AD de forma a acolher as principais demandas desse serviço, mas algo escapa às possibilidades de atuação e alguns limites surgem. O que fazer com eles? 3. OS LIMITES NO SERVIÇO DE ASSISTÊNCIA DOMICILIAR Quando nos deparamos com a palavra limite, logo pensamos em algo que restringe e que impossibilita. Dentre algumas das definições trazidas pela versão eletrônica do Novo Dicionário Aurélio (2009), a palavra “limite” tem o significado de “ponto que não se deve ou não se pode ultrapassar; fronteira, raia”, e também “momento, data, época, etc. que marca o começo e/ou o fim de um espaço de tempo”. É interessante como essa palavra, que, a princípio, parece ter significado de restrição, pode, de outra forma, ressignificar-se, apontando a marca de um início, de um começo, de algo novo. No serviço de Assistência Domiciliar, podemos verificar alguns impasses, e foi nesse contexto que a psicologia foi inserida na equipe de saúde. Muitos profissionais relatam dificuldades em relação ao tratamento de alguns pacientes, os chamados “pacientes-problema”. São aqueles que não seguem as orientações da equipe, que insistem em continuar incluindo na dieta carboidratos e açúcares (no caso dos pacientes diagnosticados diabéticos), ou aqueles que não abandonam o tabagismo e o etilismo. Há também os desencontros com os responsáveis pelos cuidados – os cuidadores –, que, estressados e sobrecarregados com o trabalho diário, deixam de responder como deveriam em relação à higiene do paciente, aos horários de medicação e à alimentação. Existem também os cuidadores ou familiares que não conseguem identificar o estado geral do paciente, solicitando consulta de intercorrência “para nada”, sem um motivo real para a equipe. A angústia dos profissionais da saúde diante dessas questões é muito grande, e o desejo de muitos é abandonar os casos que “não têm jeito”. Frequentemente eles relatam a sensação de frustração em relação ao trabalho que desempenham, pois não é possível acompanhar a evolução do tratamento como ela é esperada, havendo até, algumas vezes, regressões nesse aspecto. Outra saída que encontram é buscar o apoio dos outros profissionais da equipe, porque “é difícil estar naquela casa sozinho”. À primeira vista, a angústia da equipe multiprofissional parece mais evidente do que a angústia experimentada pelos pacientes, seus familiares e cuidadores no que diz respeito ao tratamento em domicílio. Voltar para casa pode resgatar muitas coisas que foram perdidas, ou não incluídas, durante o processo de hospitalização; como, por exemplo, a liberdade de horários e a maneira como proceder na higiene e nos cuidados gerais com o paciente. A casa do paciente, em detrimento do hospital – com todas as normas e horários característicos da instituição –, passa a ser a referência, revertendo o processo de despersonalização que o paciente frequentemente sofre ao ser hospitalizado. O domicílio do outro é para nós, cuidadores, como uma região desértica, não sabemos o que e quando vamos encontrar algo. É preciso o desejo de percorrê-lo com muito respeito. Necessita do acolhimento de outros valores, sem perder de vista os nossos valores e os limites da relação. Aliás, estar na casa do outro é mais que simplesmente acolher e ser acolhido.” (AMARANTE apud MOURA, 2005, p.144). O posicionamento ético do psicólogo diante desses impasses é fundamental para conduzir o tratamento. Sabemos que, muitas vezes, os pacientes e os envolvidos no processo do cuidado necessitam de acolhimento e acompanhamento psicológico, porém, o psicólogo deve cuidar para não ocupar o lugar de mais um elemento invasivo no domicílio do paciente, onde ele está sendo assistido. Esse olhar possibilita uma abertura para além do que é mostrado explicitamente, pois é quando se suspende as evidências dos fatos que podem surgir as verdadeiras questões do sujeito. Na AD, trata-se de pessoas que sofrem de algo da ordem do real, em que o sofrimento se apresenta como doença. Dessa forma, a angústia daqueles que sofrem pode emergir sob as mais variadas formas, inclusive como resistência ao tratamento. No processo de hospitalização, há um rompimento do sujeito com uma vida anterior, com hábitos e costumes que lhe são constituintes de identidade. A situação da doença ou impossibilidade traz uma série de novas condutas que devem ser incorporadas ao dia a dia do sujeito, e lidar com isso não parece ser algo fácil, mesmo que, racionalmente falando, seja para o bem da saúde e da integridade física do sujeito. Recordo-me de alguns casos em que pacientes são surpreendidos, como, por exemplo, a necessidade da implantação de bolsa de colostomia – abertura cirúrgica realizada na parede do abdome para ligar parte do intestino com o meio externo, como forma de eliminar fezes. Além das limitações do próprio diagnóstico, o paciente também se vê diante de adaptações que, por um lado, são necessárias à vida, mas, por outro, trazem restrições a ela própria, ficando impossibilitado do direito de escolher por esta alternativa ou não. Nesse sentido, também pode ser considerada a função do cuidador. É ele o responsável direto pelos cuidados, podendo ele ser contratado ou membro da própria família. A maioria dos pacientes da AD passou a necessitar de ajuda para realizar as atividades diárias básicas após o período de hospitalização, como a administração medicamentosa, o banho, a alimentação, a mudança de decúbito enquanto acamados, entre outros. Dessa forma, o cuidador participa quase que 24 horas da rotina e também da vida familiar do paciente. É uma relação próxima, muitas vezes permeada por malentendidos como qualquer relação, mas os efeitos disso são mais evidentes, uma vez que estão envolvidos a dependência do sujeito e os cuidados com o paciente. Um exemplo pode ser ilustrado: ao realizar a primeira visita na casa de uma paciente, percebi a cuidadora com olhar desconfiado, demonstrando nitidamente que não estava se sentindo à vontade com a minha presença naquele lugar. Quando a chamei para conversar, a princípio, a respeito da paciente que ela cuidava, a mesma relatou que, se não estivéssemos satisfeitos com ela, era só falar, que ela iria embora. Para ela, algo dizia que o trabalho que ela desempenhava ali não estava sendo reconhecido, e mais: não estava dentro daquilo que deveria ser. A rotina dos domicílios também sofre modificações –apesar da desospitalização – não apenas no fluxo das pessoas que passam a frequentar o ambiente, especialmente a equipe de Assistência Domiciliar, mas também na utilização de aparelhos hospitalares (cama, aparelhos de ventilação mecânica, sondas e outros) e na adoção de medidas e procedimentos de cuidado, orientados pela equipe. Percebemos então que, muitas vezes, a desospitalização é possível, mas, na maioria dos casos, retomar a rotina anterior do paciente e da família não é possível. A equipe de saúde e os envolvidos nesse processo encontram nas diferenças muitos impasses e, por isso mesmo, suas possibilidades: Nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia / tudo passa, tudo sempre passará / a vida vem em ondas, como um mar / num indo e vindo infinito / tudo que se vê não é igual ao que a gente viu há um segundo / tudo muda o tempo todo no mundo / não adianta fugir nem mentir pra si mesmo / 2 agora / há tanta vida lá fora / aqui dentro sempre / como uma onda no mar. 2 - SANTOS, Lulu; MOTTA, Nelson. Como uma onda no mar. IN: Lulu Acústico. 2000. BIBLIOGRAFIA AMARANTE, Cláudia. Psicanálise e Ciência, Psicanálise no hospital: ainda uma questão de hospitalidade? IN: MOURA, Marisa Decat de (org.). Psicanálise e Hospital – 4. Novas versões do pai: reprodução assistida e UTI. Belo Horizonte: Autêntica/FCHFUMEC, 2005. ANGERAMI-CAMON, Valdemar Augusto (org.) et al. Psicologia Hospitalar: teoria e prática. 2 ed. São Paulo: Pioneira, 1995. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Guia prático do cuidador. Brasília: Ministério da Saúde, 2008. Novo Dicionário Eletrônico Aurélio versão 5.0. 3ª ed. 1ª impressão da Editora Positivo; 2009. OMS – Organização Mundial da Saúde. Definição de Assistência Domiciliar. IN: LOPES, José Mauro Ceratti (org.). Manual de assistência domiciliar na atenção primária à saúde. Porto Alegre: Serviço de Saúde Comunitária do Grupo Hospitalar Conceição, 2003. Disponível em: <http://www.scribd.com/doc/29554451/ManualCuidadores-Pro-Fission-a-Is> Acessado em: 24/4/2010. REHEM, Tânia Cristina Morais Santa Bárbara and TRAD, Leny Alves Bomfim. Assistência domiciliar em saúde: subsídios para um projeto de atenção básica brasileira. Ciênc. saúde coletiva [online]. 2005, vol.10, suppl., pp. 231-242. ISSN 1413-8123. Disponível em: <http:// http://www.scielo.br/pdf/csc/v10s0/a24v10s0.pdf>. Acessado em: 24/3/2020.