APRENDIZAGEM E FORMAÇÃO

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APRENDIZAGEM E FORMAÇÃO:
aprofundamentos e conexões contemporâneas
Roberto Sidnei Macedo*
RESUMO
O presente artigo apresenta como sua argumentação central, a perspectiva da
aprendizagem imbricada ao fenômeno irredutível e complexo da formação.
Argumenta sobre os pressupostos que norteiam essa imbricação, bem como realça
como a formação é perspectivada como uma irredutibilidade experiencial. Projeta-se
na caracterização do que seja uma aprendizagem formativa, contribuindo para que
esse fenômeno humano amplamente sistematizada nas organizações educacionais
e seus curricula seja melhor compreendido, e suas mediações se qualificam em
função das expectativas que a sociedades contemporâneas vêm colocando diante
de uma educação eivada de desconfianças técnicas, éticas, políticas, estéticas,
culturais e formacionais. Conclui com a ideia de que para ser qualificada a
aprendizagem deverá entrar no mérito do que seja formativo, valor a ser
(in)tensamente discutido pela pluralidade dos interesses socioculturais.
PALAVRAS-CHAVE: aprendizagem, formação, currículo.
Poderíamos nos autorizar a acreditar que ao aprender estamos formados
e que formação é apenas aprender algo? Que toda aprendizagem é formativa? Que
os modelos a nós ensinados pelas ciências da educação, lideradas em grande parte
pela psicologia e pela pedagogia modernas são pertinentes para compreendermos e
mediarmos a aprendizagem como experiência significativa?
Este texto caminha tentando elucidar desde o seu início, o argumento de
que a aprendizagem é um dos fatores fundamentais da formação, mas a formação
não se reduz ao processo de aprendizagem simplesmente.
*
FORMACCE FACED-UFBA. Possui graduação em Psicologia Clínica e Educacional pelo Centro
Ensino Unificado de Brasília (1975), Mestrado em Educação pela Universidade Federal da Bahia
(1988), Doutorado em Ciências da Educação - Universidade de Paris VIII (1995), Pós-doutorado em
Currículo e Formação pela Universidade de Fribourg na Suíça (2007).
Nestes termos, a formação puxa a aprendizagem para uma dimensão que
não se reduz à memória, ao perceptivo ou ao intelectual, aos caprichos do desejo,
como é comum encontrarmos nos cenários educacionais. É aqui que imaginamos
uma existência cidadã em aprendizagem, até porque, se a aprendizagem é, de
algum modo, uma invariante humana, como a psicologia do desenvolvimento já
cansou de demonstrar (somos programados para aprender e condenados a
aprender), seu aparecimento é sempre humanamente plural e, com isso, essa
condição a torna uma pauta e uma opção biopsicológica, social, cultural e política.
Portanto, fenômeno que varia entre nós humanos (se estamos programados para
aprender, estamos, por consequência, condenados a aprender de fora biológica,
psicológica, social, cultural e política). Essa condição acaba por demandar uma
atenção refinada sobre o que seria uma aprendizagem que forma.
Como uma atividade humana extremamente complexa, a aprendizagem
se caracteriza por um processo em que o sujeito busca, e é desafiado a buscar,
compreender a realidade em que vive e a si, através da sua capacidade perceptocognitiva e de interação estruturantes, (nem sempre conscientes), mediadas por
suas intenções, interesses, desejos e escolhas, modificando, portanto, seu meio e a
si próprio (toda aprendizagem envolve mudanças, deslocamentos, retomadas,
ressignificações e possibilidade de rupturas), onde a resultante desse processo (o
aprendizado), se configura na aquisição de saberes e fazeres, em níveis intelectuais,
cognitivos, psicomotores, psicossociais, culturais, como dimensões relativamente
integradas, implicando aí um inacabamento infinito, até porque, em face de
existirmos
nos
colocando
constantes
problemas
para
compreendermos
e
solucionarmos, estaremos sempre condenados a aprender. Tal processo acontece e
se realiza, em meio a uma cultura e a uma realidade social e histórica, implicando
relações estruturantes, onde atividades e conteúdos a seremaprendidas configuram
escolhas socialmente referenciadas.
Faz-se necessário acrescentar, ademais, que aprender num cenário
curricular, por exemplo, é aprender em meio a uma cultura densa, estruturante e
opcionada; é aprender num contexto social e cultural onde um determinado tipo de
conhecimento e de atividade se apresenta e se organiza como relevante em termos
de aprendizado e formação. Ou seja, é aprender em espaços onde seelege um
conhecimento relativamente sistematizado como formativo. Quem elege e para quê?
Essa
é
uma
pergunta
crucial
no
campo
das
reflexões
e
explicitações
sociocurriculares e formativas, porque envolve intenção, interesse e construção de
poder. Daí a importância de se exercitar nos processos formativos e no processo de
configuração dos atos de currículo por consequência, uma certa metaformação, ou
seja, reflexões formativas a respeito da própria formação em processo e reflexões
curriculares a respeito dos atos de currículo em construção.
Podemos ainda acrescentar a esse conjunto de reflexões que
fundamentam parte deste texto, a seguinte provocação: a educação desconhece em
grande parte o que é aprendercomo experiência formativa.
Vale ressaltar que a aprendizagem curricular se tornou depois dos
estudos de Ausubel, Bruner e Gagné e suas “teorias instrucionais” da segunda
metade
do
século
XX,
um
fenômeno
pouco
aprofundado
nas
teorias
contemporâneas do currículo e da formação; foi esquecida após esse momento
histórico. Tomando esse contexto de produção e reflexão, a aprendizagem se tornou
nos meios educacionais, em grande parte, de forma reduzida, objeto privado das
psicologias, das neuropsicologias e da psicopedagogia.
Vale dizer que o fenômeno da aprendizagem não pode ser visto apenas
por uma perspectiva psicológica, biopsicológica ou psicopedagógica, até porque,
aprender num processo formativo implica a mediação pedagógica, social, cultural,
política, estética, e econômica.
Inspirado em Clyde Kluckhohn, em termos contemporâneos, Jerome
Brunernos fala, em suas obras recentes, que os seres humanos não terminam em
suas próprias peles, eles são expressões de uma cultura. Pautado em Geertz, este
autor afirma que não existe coisa tal como uma natureza humana independente da
cultura. Desta perspectiva, em virtude da participação na cultura, o significado
aprendido é tornado público e compartilhado (BRUNER, 1997). Compreendemos,
assim, que as realidades resultam de processos prolongados e intrincados de
construção e negociação, profundamente imbricados na cultura. Mas também, que a
cultura é constitutiva do psíquico; assim, o significado atinge uma forma que é
pública e comunal, em vez de privada e autista.
Por consequência, é a cultura que talha a vida e a mente humana, que dá
significado à ação, situando seus estados intencionais subjacentes em um sistema
interpretativo e experiencial de aprendizagem.
Aprender não é apenas aprender isso ou aquilo; é descobrir novos meios de
pensar e de fazer diferente; é partir à procura do que poderá ser este
“diferente”. É por isso que me arriscaria a dizer que o acto de aprender
transformado em “acto de investigação” poderia permitir aos aprendentes
desenvolver a sua criatividade, as suas habilidades, a sua capacidade de
avaliação (auto-avaliação e co-avaliação, valor extraído e atribuído a...), a
sua capacidade de comunicação e de negociação [...] (JOSSO, 2002, p.
184).
Vale dizer ainda, que aprender solidariamente e por uma ética da
mutualidade, como querem as abordagens ético-culturais, não significa ausentar-se
do conflito de interpretações e de soluções, é bom que se frise. É antes de tudo um
exercício que experimenta o fato de que não aprendemos de forma igual e nem
chegamos às soluções dos problemas apenas de forma reprodutivista, e que em
muitos momentos lutamos por significados, ou seja, por aquilo que acreditamos ter
sentido; tem a ver com o poder significativo da crença, que muitas vezes, por
exemplo, faz um professor escolher como trabalhar.
Chamamos a atenção para o pensamento de Bernard Charlot (2000), ao
nos dizer que qualquer que seja a figura do aprender, o espaço do aprendizado é,
portanto, um espaçotempo partilhado com as outras pessoas. Nesse sentido, não
está em jogo apenas o didático e a nossa relação com o conhecimento eleito como
formativo por alguém. Há um processo identitário em fluxo na relação com o saber.
Desta forma, aprender significa, também, entrar numa dinâmica relacional, apropriarse de uma forma intersubjetiva, construir de forma auto-reflexiva, uma imagem de si.
É partindo também desta perspectiva que Humberto Maturana (1995) dissemina a
ideia de que aprender não é a aquisição de algo que está lá. É, por outro lado, uma
transformação em coexistência com alguém.
Ao refletir a realidade curricular pautada predominantemente no currículo
prescritivo, herança histórica da imposição disciplinar imposta pelo poder que se
produz nas estruturas simbólicas e materiais das classes dominantes, Goodson,
(1992; 2000; 2007) aponta suas atuais lentes analíticas em termos sócio-curriculares
para o que chama de “identidades narrativas”.
O que esse autor deseja é perspectivar um futuro social ajudado pelas
políticas
e
práticas
curriculares
onde
as
aprendizagens
se
configurem
predominantemente como “aprendizagens narrativas”, desenvolvidas no seio de um
“currículo como narrativa”.
O que se percebe nesta perspectiva é uma crítica ao mesmo tempo
pedagógica e política aos modelos e suas lógicas de validade e aplicação, através
de um olhar extremamente atento às consequências político-pedagógicas advindas
daí.
Por outro lado, para Goodson, essa lógica prescritiva já tem os seus dias
contados em face de um mundo portador de uma dinâmica que em nada se ajusta a
essa rígida e iníqua maneira de pensar o curricular.
Se o currículo prescritivo está acabando, a nova era do currículo no novo
futuro social ainda está, temos de admitir, longe de ser bem definida. Acredito que os
esboços sobre a aprendizagem narrativa e o capital narrativo fornecidos aqui são o
início de uma nova especificação para o currículo. Estamos apenas no começo. É
um início que traz a esperança de que possamos, finalmente, corrigir a “mentira
fundamental” que se situa no âmago do currículo prescritivo. No novo futuro social,
devemos esperar que o currículo se comprometa com as missões, paixões e
propósitos que as pessoas articulam em suas vidas...Isso seria, verdadeiramente um
currículo para empoderamento (GOODSON, 2007, p. 251).
Neste sentido, foi que elaboramos perspectivas de aprendizagem que
apontam para uma abordagem à aprendizagem vinculada ao contexto curricular e
formativo visando ademais, ecologizar a aprendizagem, fazê-la comunicante no
sentido de aprender aprofundando, distinguindo, relacionando, globalizando,
problematizando, num ambiente educacional de intenção e elucidação formativas:
 Trabalhar intensamente a produção de sentidos no aprender, visto que toda e
qualquer via de possibilidade para se realizar o fenômeno da aprendizagem
apresenta-se como estruturada e estruturante, mesmo a partir das
elementaresexperiências sensíveis;
 Ouvir sensivelmente as aprendizagens e acolher os seus processos honestos
de errância e de ambivalência.
 Compreender os etnométodos dos processos de aprendizagem – métodos,
maneiras práticas, construídos na cultura específica de qualquer ator social
aprendente, para todos os fins práticos - para não fazer das ações da
formação uma barbárie de culto à univocidade cultural e pedagógica, pois
ninguém aprende de forma igual;
 Compreender que aprender significa transformação co-construída, seja nos
âmbitos intelectual, cognitivo e afetivo;
 Tensionar via as histórias e os contextos de produção, os materiais e
situações a serem aprendidos;
 Colocar em diálogo o tradicional e o novo, evitando a lógica simplista do
descarte e da substituição do conhecimento durante o processo de
aprendizagem;
 Distinguir e relacionar conhecimento e competência qualificada, pois, nos
cenários de aprendizagem, o conhecimento por si não garante a qualificação
que implica conhecer com autonomia para uma prática técnica e
politicamente reflexiva;
 Desconstruir a hierarquização das aprendizagens em termos socioculturais,
mesmo no necessário reconhecimento de que existem aprendizagens
prioritárias em determinados campos e tempos, visando a humanização e a
historização do aprender;
 Nutrir a curiosidade, que é a mais viva das características da ação de
aprender;
 Instituir
a
aprendizagem
solidariamente
transgressiva,
divergente,
questionante;
 Relativizar os modos de aprender, porque a diferença faz parte do ser em
aprendizagem e suas inteligibilidades, como formas de compreender e agir no
mundo;
 Garantir a aprendizagem para a vida, implicando o exercício profissional,
político, estético e da cidadania democraticamente enraizada;
 Reconhecer que se aprende pelos sentimentos e que os sentimentos
aprendem, compreendendo que o fenômeno da aprendizagem é também do
âmbito do estético e do desejo;
 Instaurar vigorosamente uma aprendizagem pela inteligência e para a
inteligência, aquela que ao lidar com as especificidades, as especializações, é
também capaz de produzir conhecimento relacional e globalizado.
 Acolher as diversas inteligibilidades e experiências de aprendizagem, que não
se reduzem ao uno, ao cálculo e suas políticas de controle, que não se
plasmam no normativo, no simplesmente esperado, como forma de
reconhecimento da heterogeneidade da aprendizagem (MACEDO, 2000, p.
78). Nestes termos, faz-se necessário acolher a originalidade que aponta para
experiências aprendentes autônomas e autorizantes.
Neste contexto de argumentos sobre a aprendizagem e sua relação com
a problemática da formação, vale a pena reforçar nosso diálogo com as palavras de
Marie Christine Josso.
A questão do sentido do processo de aprendizagem não reenvia apenas
para o trabalho de articulação com o universo das referências do
pensamento e da acção dos aprendentes em termos de significação e de
projecto. Ela reenvia também para a questão das finalidades do processo e
para o que está em jogo na aprendizagem para pessoa... A compreensão
pelo próprio aprendente das dinâmicas que constituem o seu processo de
formação dá aos processos de aprendizagem e de conhecimento uma
“consistência”, uma “coluna vertebral” que reforça a energia psíquica e
afectiva do aprendente, o seu sentimento de coerência e a sua
disponibilidade para a aprendizagem propriamente dita... Para o
aprendente, compreender o que está em jogo da sua identidade em devir
numa aprendizagem é colocar-se em posição de determinar melhor as
inevitáveis desaprendizagens, os pontos de resistência à mudança, os
recursos à disposição, as experiências a questionar, as escolhas já feitas a
considerar... Finalmente, é colocar os processos de aprendizagem e de
conhecimento simultaneamente em relação com as aquisições do passado
e com as mudanças que preparam um futuro mais ou menos próximo
(JOSSO, 2002, p. 186).
Além disso, há uma afirmação tão simples quanto extremamente
importante em termos contemporâneos: no seio do direito à aprendizagem, do direito
à formação, é preciso aprender a se formar. Esse direito e essa experiência são, em
geral, negligenciados, fica nos níveis do impensado, transformado na resultante de
uma concessão da autoridade pedagógica, com consequências éticas e políticas
significativas para quem está implicado num processo institucional de formação e
para o próprio exercício da cidadania.
Aprender a formar-se é parte importante na construção da autonomia
cidadã.
Como recomenda Dominicé (2007, p. 124), inspirado em J. Mezirow, “a
aprendizagem formadora deve vir junta com uma mudança de ponto de vista, uma
transformação de perspectiva”.
Podemos acrescentar a essas contribuições sobre a aprendizagem de
uma perspectiva formativa, os argumentos de Christine Délory-Monberger (2008, p.
138), quando nos diz que aprender e apropriar-se dos saberes, seja qual for a sua
natureza, é, em graus diversos, retocar, revisar, modificar, e transformar um modo
de ser no mundo, um conjunto de relações com os outros e consigo mesmo; é lançar
novos olhares sobre seu passado e sobre suas origens, projetar ou sonhar, de outro
modo, seu futuro, “biografar-se de outro modo”. Acrescentamos, é pensar também
de forma problematizadora na construção de um projeto histórico mais digno para
uma sociedade em que a educação ainda se constitui num certo privilégio.
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