Relato de caso Granulomatose de Wegener: Apresentação Clínica e Tratamento Wegener´S Granulomatosis: Clinical Features and Management Cláudia Ribeiro1, Milton Soares Campos Neto1, Gustavo Mario Capanema Silva1, Adriana Albarez Santos2, Maria Goretti Moreira Guimarães Penido1,3 1Nefrologista do Serviço de Nefrologia da Santa Casa de Belo Horizonte, MG; 2Residente do Serviço de Nefrologia da Santa Casa de Belo Horizonte, MG; 3Professora Adjunta do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, Membro da Unidade de Nefrologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais RESUMO Granulomatose de Wegener (GW) é uma vasculite necrotizante granulomatosa sistêmica de pequenos vasos, que acomete principalmente o trato respiratório superior e rins. É enfermidade rara, tem altas taxas de morbidade e mortalidade, e pacientes com comprometimento renal têm pior evolução. Relatamos um caso desta relativamente rara enfermidade com o objetivo de revisar, na literatura, as opções terapêuticas, discutir o tratamento instituído e suas complicações e enfatizar sua apresentação clínica. Paciente do sexo masculino, 69 anos, com quadro de rinossinusite crônica, epistaxe e ulceração de mucosa nasal acompanhadas de lesões purpúreas, hematúria, e insuficiência renal avançada de um mês de evolução apresentou ANCA-c positivo (até diluição de 1:640) e histologia renal com glomerulonefrite crescêntica esclerosante. Foi instituído tratamento agressivo com pulsoterapia (metilprednisolona), seguida de corticoterapia oral, porém, o paciente evoluiu para óbito com 15 dias do tratamento devido a choque séptico. A apresentação clínica do paciente está de acordo com os relatos prévios da literatura, entretanto, o tratamento instituído foi diferente do recomendado: pulso de ciclofosfamida (CFA) e corticóide. Entretanto, questiona-se: a imunossupressão com CFA era a melhor opção terapêutica, diante da gravidade do processo infeccioso? (J Bras Nefrol 2006;28(2):114-117) Descritores: Vasculite. Glomerulonefrite crescêntica. Insuficiência renal. Imunossupressão. ABSTRACT Wegener Granulomatosis (WG) is a rare disorder characterized by vasculitis of small arteries, arterioles and capillaries, necrotizing granulomatous lesions of both upper and lower respiratory tract and glomerulonephritis. The entity carries high morbidity and mortality rates; renal involvement aggravates its prognosis. A case of this relatively rare disease is reported aiming to review the literature regarding the therapeutic alternatives and discuss our treatment choice and the drug-associated complications emphasizing the clinical picture of the patient. A 69 year old man with chronic sinusitis, epistaxis, nasal ulcerations, purpura, hematuria, and advanced renal insufficiency for one month, showed high c-ANCA level (positive until 1/640) and focal segmental glomerulonephritis with crescent formation and necrosis on renal histology. The patient was aggressively treated with methylprednisolone followed by oral corticosteroids. Despite 15 day therapy he died from septic shock. The patient’s clinical presentation agreed with the one found in previous studies, but the treatment chosen was different from the most frequent recommendation: cyclophosphamide and corticosteroids. Based on the course of the patient, a questions remains unanswered: would it be immunosuppressive therapy with cyclophosphamide the best choice in face of a severe infectious disease? (J Bras Nefrol 2006;28(2):114-117) Keywords: Vasculitis. Crescentic glomerulonephritis. Renal failure. Immunosuppressive therapy. Recebido em 20/07/05 / Aprovado em 15/03/06 Endereço para correspondência: Cláudia Ribeiro Rua Perdões, 336 - Padre Eustáquio 30720-280 Belo Horizonte, MG E-mail: [email protected] J Bras Nefrol Volume XXVIII - nº 2 - Junho de 2006 INTRODUÇÃO Granulomatose de Wegener (GW) é uma vasculite granulomatosa que acomete pequenas e médias artérias, envolvendo principalmente sistema respiratório e rins1. O acometimento renal anuncia pior prognóstico e aparece em 80% dos pacientes1,2. O prognóstico tem melhorado com o uso de altas doses de corticosteróides (COR) e ciclofosfamida (CFA). Relatamos evolução clínica de um paciente com GW e discutimos tratamento e complicações. RELATO DE CASO Homem, 69a, branco, hipertenso há 10a, usando propranolol e hidroclorotiazida foi admitido na Santa Casa de Belo Horizonte, em 09/05/03, com história de emagrecimento (9kg/2meses), hematúria, coriza, mal estar, febre não medida e epistaxe volumosa há 45 dias. Havia relato de aumento dos níveis de uréia e creatinina e anemia grave. Etilista, ex-tabagista, com história familiar positiva para câncer gástrico e epilepsia. Em 21/05/03 tinha ultrasonografia de rins e vias urinárias e cistoscopia normais. Apresentava-se consciente, orientado, estado geral regular, 56,9kg, hipocorado, hidratado, membros inferiores edemaciados com petéquias e teleangiectasias, anictérico, acianótico, boa perfusão capilar, lesão ulcerada e necrótica em extremidade do hálux esquerdo e ainda, teleangiectasias em tórax. PA=140x65mmHg, FC=88bpm, sem alterações às auscultas pulmonar e cardíaca. Exames: uréia= 129mg/dl; creatinina=3,2mg/dl; hemoglobina=5,7g/dl; hematócrito=18,6%; potássio=4,4mEq/L; leucócitos= 13900/mm3 com desvio; plaquetas= 611.000/mm3. Exame otorrinolaringológico: lesões ulceradas em palato duro, mucosa nasal com grande quantidade de crostas, friável e sangrante, grande quantidade de secreção purulenta em meato médio e superior com retenção de secreção no cavum, sem granulomas. RX tórax=opacidade heterogênea com lesões císticas de permeio, difuso e bilateralmente, algumas com áreas de confluência. Iniciou-se pulsoterapia com metilprednisolona 3 dias após tratamento preventivo com albendazol e clindamicina e ciprofloxacin para sinusite dia 12/06/03. Em 16/06/03 iniciou-se prednisona oral (2mg/kg/ dias alternados-DA). Paciente apresentava-se assintomático, melhora do edema, bom volume urinário (1600ml/24h). PA=140x80mmHg em decúbito e 115x70 em ortostatismo, peso=54,8kg. Fundo de olho=exsudatos hemorrágicos em olho direito. Uréia=280mg/dl; creatinina=4,3mg/dl; hemoglobina=8,3g/dl; hematócrito= 24,7%; ANCA (anticorpo anticitoplasma de neutrófilo) p 115 NEGATIVO e ANCAc POSITIVO 1:640; ultrassonografia renal e de vias urinárias: rins com parênquima de espessura e ecogenicidade aumentadas, exacerbando a diferenciação cortiço-medular. Alta hospitalar em 18/06/03 em bom estado geral usando ciprofloxacin 500mg/dia, clindamicina 900mg/dia, prednisona 110mg/DA, propranolol 80mg/dia. Em 23/06/03 retornou para controle clínico e apresentava-se prostrado, com obstrução nasal e tosse seca, dispnéia em repouso, desidratado, hipotensão postural, sonolento, hipocorado, desidratado, petéquias em maior número, úlceras labiais, sem linfadenomegalias ou edemas, ausculta respiratória com diminuição do murmúrio e crepitações bilaterais, sendo novamente internado. Exames 23/06/03: uréia=279mg/dl; creatinina= 4,6mg/dl; hemoglobina=8,0g/dl; hematócrito=26,0%; leucócitos=25300 (Bast6% Seg 88% Linf4%); plaquetas= 377.000/mm3. Houve suspeita de sepse com provável foco pulmonar. Suspendeu-se ciprofloxacin e iniciou-se oxacilina. Paciente evoluiu com piora progressiva, hipotensão sem resposta necessitando dopamina. Mantinha-se torporoso, taquipnéico, PA=110x60mmHg, sopro sistólico III/VI borda esternal esquerda. Em 24/06/03 transferido para o CTI necessitando ventilação mecânica. Evoluiu com piora hemodinâmica, distúrbio de coagulação grave culminando em óbito em 27/06/03 por falência de múltiplos órgãos. DISCUSSÃO A maioria dos pacientes com GW apresenta-se com rinorréia persistente, epistaxe ou coriza purulenta, e/ou úlceras nasais, poliartralgias, mialgias e sintomas de sinusite aguda. Outras queixas incluem tosse, dispnéia, hemoptise e dor pleurítica. Achados radiológicos são variáveis: consolidações pulmonares, derrame pleural, nódulos, opacidades alveolares, pleurais algodonosas e difusas, que podem refletir hemorragia alveolar1. Sinais e sintomas não específicos abrangem: febre, suores noturnos, anorexia, perda de peso, fraqueza, inflamação oftálmica, congestão nasal, dor articular com ou sem derrame, e rash cutâneo. Lesões de pele tais como púrpura palpável, úlceras, vesículas, pápulas e nódulos subcutâneos podem ocorrer. O paciente do presente caso apresentava sintomas do trato respiratório superior, sinais sugestivos de vasculite sistêmica como as lesões de pele descritas, doença renal ativa, sedimento urinário rico (hematúria e cilindrúria) e insuficiência renal, como descrito na literatura1-3. 116 O Colégio Americano de Reumatologia propôs critérios diagnósticos facilitando a classificação dos pacientes com GW, ainda hoje utilizados, embora anteriores aos testes laboratoriais que demonstraram a utilidade do ANCA no diagnóstico. São eles: inflamação nasal ou oral, infiltrados, nódulos ou cavidades no RX de tórax, sedimento urinário anormal e granulomas inflamatórios na biópsia de artéria ou área perivascular4. O achado de ANCAc, principalmente contra proteinase-3 sugere o diagnóstico de GW e 65 a 90% dos pacientes o têm positivo. Knut e colaboradores mostraram positividade de 95,8% do ANCA em uma série de 108 pacientes1. Estudos têm mostrado que há correlação entre os títulos de ANCA e atividade da doença ou freqüência de recidivas durante o tratamento5. O diagnóstico histológico é feito por biópsia de tecido acometido, geralmente o rim (BR). O paciente em questão apresentava à BR alterações compatíveis com GW revelando 14/24glomérulos com esclerose global avançada associada a volumosas crescentes fibrosas, circunferenciais, nefrosclerose vascular hialina com arteríolas e pequenas artérias mostrando espessamento fibrilar e hialino da parede e redução da luz. A imunofluorescência era negativa para IgA, IgG, IgM e C3 (Figura 1 e 2). Estas alterações não são específicas da GW sendo vistas em outras vasculites como Poliangiíte Microscópica(PAM) e Doença de Churg Strauss e outras glomerulonefrites crescênticas necrotizantes idiopáticas. Estudo mostrou necrose glomerular e crescentes mesmo na ausência de dano clínico obvio da função renal6. Este estudo correlacionou significativamente a porcentagem de glomérulos com crescentes e glomérulos com necrose com a creatinina sérica, porém o melhor preditor de função e de prognóstico renais foi a fração de glomérulos não acometidos. Entretanto, esta correlação é fraca e não é preditiva para prognóstico da função renal, embora a biópsia precoce informe sobre o grau de acometimento renal. Mais de 90% dos pacientes com GW generalizada morrem nos primeiros dois anos de diagnóstico, geralmente devido à insuficiência renal ou respiratória3,7. O uso de COR associados com agentes citotóxicos, como CFA, contribuiu para redução da mortalidade. A sobrevida em oito anos de pacientes tratados chega a 80%3. Fauci e colaboradores induziram remissão em 93% de 85 pacientes, e 88% estavam vivos após seguimento médio de 52meses8. Knut e colaboradores obtiveram sobrevida geral em 5 anos de 74%1. Prednisona isolada está associada com menor taxa de remissão, alta taxa de recidiva e maior taxa de mortalidade do que combinada com CFA7. Início precoce do tratamento é extremamente importante pois, a necrose tissular não é reversível. Complicações extra-renais Granulomatose de Wegener incluem hipoacusia, deformidades funcionais e estéticas de nariz e estenose de traquéia. Pacientes que necessitam diálise no início da doença ou ao diagnóstico anunciam pior prognóstico. Knut e colaboradores encontraram sobrevida renal média de 2 e 5 anos de 86% e 75%, respectivamente, e a diálise precoce e creatinina sérica tiveram significância estatística no desenvolvimento de insuficiência renal crônica terminal (IRCT)1. A dose de CFA é 1,5 a 2,0mg/kg/dia oral. Seu uso venoso em pulsoterapia tem menos efeitos colaterais entretanto, há maiores taxas de recidivas, estando reservada a pacientes com doença menos agressiva ou contra-indicação a imunossupressão excessiva1,7. Usa-se meio a 1,0mg/kg/dia de Prednisona até que a CFA comece seu efeito, e mantidos até que a doença esteja sob controle. A retirada é lenta e progressiva (5mg/semana), até manutenção em dias alternados ou suspensão. Em pacientes com doença respiratória grave ou doença renal agressiva o tratamento mais eficaz é metilprednisolona em pulsoterapia venosa nos primeiros 3 dias. Um dos efeitos pode ser a diminuição da liberação de espécies reativa de oxigênio pelos neutrófilos ativados7. Micofenolato de mofetil (MMF) foi usado por Nowack e colaboradores em 11 pacientes com GN pauciimune necrotizante (9 com GW) como tratamento de manutenção após terapia de indução com os regimes tradicionais. Não houve piora da função renal durante o período de manutenção com poucos efeitos colaterais, sugerindo que será uma droga importante no futuro9. A 15-deoxipergualina (Gusperimus) desenvolvida para quimioterapia em câncer e usada para rejeição em transplante, foi usada em estudo piloto com 20 pacientes com GW e PAM refratários ou com contra-indicações a imunossupressão convencional com resultados também promissores10. A plasmaferese é útil em pacientes que se apresentam com IRCT em diálise ou com hemorragia pulmonar grave, principalmente associada à presença de anticorpo anti-membrana basal glomerular (anti-GBM). O uso de sulfametoxazol-trimetoprin profilático reduz a recidiva de infecção respiratória e os fatores de risco são: uso prévio de COR, administração de azatioprina ou infecção superposta7,11. A maioria das recidivas ocorre no primeiro ano após suspensão da terapia imunossupressora e afeta geralmente o mesmo órgão que na apresentação inicial da doença. Progressão tardia para IRCT não é incomum e é freqüentemente devida a recidiva da vasculite. Dois fatores não imunológicos podem ser importantes na ausência de doença ativa: isquemia glomerular e glomeruloesclerose subseqüente resultante de progressiva obliteração do lúmen vascular J Bras Nefrol Volume XXVIII - nº 2 - Junho de 2006 durante a fase de cicatrização; e secundária a fatores hemodinâmicos e metabólicos induzidos pela perda de néfrons, tais como hipertensão intraglomerular nos glomérulos normais remanescentes. Os títulos de ANCA acompanham o curso da doença. Seu desaparecimento está freqüentemente associado com remissão clínica, e títulos negativos ou em queda após terapia têm menor risco de recidiva5,7. Haubitz e colaboradores avaliaram a sobrevida de pacientes com GW e IRCT e não encontraram diferença significativa entre a população com ou sem necessidade de tratamento dialítico. A taxa de recidiva foi semelhante nos dois grupos11. A toxicidade devida à administração prolongada de CFA é responsável por cistite, câncer de bexiga e amenorréia, além de mielodisplasia e linfoma. Complicações infecciosas podem ser fatais em pacientes em uso de citostáticos. Pneumonia por Pneumocystis carinii é rara porém freqüentemente grave. Knut e colaboradores relataram de um a três episódios de infecção necessitando internação em 35 dos 108 pacientes estudados, incluindo pneumocistose e varicela zoster1. Quatro pacientes desenvolveram câncer: carcinoma espinocelular, carcinoma basocelular, sarcoma de Kaposi e câncer de bexiga. O paciente em questão evoluiu com quadro de sepse fulminante grave após 8 dias da terapia com corticoterapia venosa, embora não tenha recebido o tratamento tradicional com CFA. CONCLUSÃO A GW é uma vasculite sistêmica que pode se manifestar com diferentes graus de gravidade, requerendo por vezes tratamento imunossupressor agressivo. Assim sendo, cada caso deve ser analisado de forma específica e, pesados os riscos e os benefícios do tratamento, escolhida a melhor opção terapêutica para cada paciente objetivando evitar complicações precoces ou tardias. 117 REFERÊNCIAS 1. Aasarod K, Iversen BM, Hammerstrom J, Bostad L, Vatten L and Jorstad S. Wegener’s Granulomatosis: clinical course in 108 patients with renal involvement. Nephrol Dial Transplant 2000; 15:611-618. 2. Rose BD, King TE, Hoffman GS. Clinical manifestations and diagnosis of Wegener’s granulomatosis and microscopic polyangiitis. Up to Date 2002; 10:1. 3. Hoffman GS, Kerr GS, Leavitt RY et al. 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