, NEUROPSIQUIATRIA I o problema da localização cerebral das funções psíquicas segundo A. R. Luria* GILBERTO LOURENÇO OoMES * * 1. Introdução; 2. O localizacionismo; 3. O antilocalizacionism0 t 4. Superação do localizacionismo estrito e do antilocalizacionismo: a abordagem neuropsicológica; 5. Revisão do conceito de função: o conceito de sistema funcional; 6. Revisão do conceito de localização; 7. Revisão do conceito de sintoma: 8. A análise. sindrômica e a organização sistêmica das funções psíquicas; 9. Conclusões. As concepções de Luria sobre o problema da localização cerebral das funções psiquicas são apresentadas sinteticamente. O localizacionismo estrito e o antilocalizacionismo são ambos superados por uma concepção sistêmica. Os sistemas funcionais, estabelecidos ao longo da ontogênese através da interação com o meio, envolvem um conjunto mutável de várias áreas cerebrais, cada uma das quais podendo participar de diferentes sistemas funcionais. 1. Introdução O objetivo deste trl(tbalho é apresentar de forma resumida e didátitla as concepções do neuropsicólogo russo A. R. Luria sobre o' problema ,da localização cerebral das funções psíquicas, baseado nas expo,sições mais extensas e completas apresentadas por Luria nos capí4üos iniciais de dois de seus livros (Luria, 1973, capo 1; 1977, capo 1). Algumas referências a trabalhos de outros autores visam melhor .esclárecer certos pontos abordados. Preliminarmente, queró observar que o primeiro ponto a ser considerado em relação ao problema da IQcalização cerebral das funções • Artigo apresentado à Redação em 24.5.82.. ** Psicólogo e médico. (Endereço do autor: Rua Visconde de PiraJá, 577/802 - 22410 - Rio de Janeiro; RJ.) Arq. bras. Palc. Rlo de Janelro 35(4) :118-124 out./dez. 1983 psíquicas é o de saber se admitftnos ou não a existência de uma substância imaterial espiritual, a qual seria responsável pela vida mental, pelo menos no que se relere ao seu nível superior. Se admitimos isto, torna-se evidentemente sem sentido falar em "localização" de algo que não ~ria localização no espaço, nem dependeria de um substrato materialmente extenso. Seria cabível, no máximo, falar em localização de funções psíquicas elementares e, além disso, indagar em que ponto se dá a interação espírito-cérebro. Sabemos que Descartes localizava na glândula pineal (epífise) este ponto de interação e, em nossos dias, Eccles postula a existência do que chamou de "cérebro de ligação" ("liatson brain") , localizado no hemisfério esquerdo, para realizar tal interação (Eceles, 1977, capo 6). Entretanto, mesmo deixando de lado a questão da intervenção de uma substância espiritual independente de um substrato material, a questão da localização cerebral do psiquismo apresenta dificuldades próprias, que Luria situa historicamente na oposição entre posições localizacionistas e antilocalizacionistas. 2. O localizacionismo ". As primeiras tentativas de localização das funções psíquicas ultrapassaram na verdade os limites do cérebro. Segundo Hip6crates (século V. a.C.), enquanto o· raciocíni0 cabia ao cérebro, os· sentimentos cabiam ao coração (concepção que perdura na linguàgem cotidiana) . Nemésio (século IV d.C.) considerava o "ventrículo cerebral anterior" recipiente da percepção e imaginação (cellulaphantastica), o "ventrículo médio" recipiente do intelecto (ceUula logtstka) , e o "posterior", da memória (cellula memorialts). Mayer (1779) apresentou a hipótese de que a memória se localizaria no córtex, a imaginação e a razão na substância branca do cérebro, a percepção e a vontade nas porções cerebrais basais, cabendo ao corpo caloso e ao cerebelo a integração de todas essas funções. Gall (1810), com sua "frenologia", é um exemplo típico do loca- ' lizaciontsmo estrito. Para ele, cada faculdade mental tinha uma localização preéisa no córtex: "o cérebro é composto de tantos órgãos especificos e independentes quantas sejam as capacidades fundamentais da mente" (Gall, 1825, apud Garcia-Roza, 1975, p. 18). Acreditava, além disso, que as proeminências do crânio indicavam um maior . ou menor desenvolvimento desta ou daquela área. Nos "mapas frenológicos', de sua época, encontram-se localizações precisas e delimi-' . tadas até para "faculdades" como a sociabilidade, a modéstia, o amorpróprio, a noção de causalidade, a justica, etc. Em 1861, Broca demonstrou que a lesão de uma área delimitada do córtex frontal esquerdo (o terço posterior do giro frontal inferior) causava afasia motora; Wernicke, em 1873, demonstrou que a compreensão da fala era atingida pela lesão 4e uma área delimitada do córtex temporal esquerdo (o terço posterior do giro temporal superior). Estas descobertas deram grande impulso às concepções loca11, , Localização cerebral 119 zaeionistas. Em 1934, baseado no estudo de paciente.scom lesões cerebrais provocadas por armas de fogo, durante a I Guerra Mundial, K1eist construiu um mapa cortical no qual "localizava" desde a atenção visual e a percepção da linguagem até a "eficiência do pensamento" e o "ego corporal e social", entre muitas outras "funções". 3. O antilocalizacionismo Já em 1824, Flourens colocava objeções ao localizacionismo. Baseado em experimentos de lesões corticais em aves, concluiu que não importava a ãrea da lesão e que. o córtex seria um todo homogêneo: "a massa dos hemisférios cerebrais é tão equivalente e homogênea fisiologicamente quanto a massa .de qualquer glândula, do fígado, por exemplo" (Flourens, 1842, apud Luria, 1977, p. 9). Lashley (1929), após extirpação de diferentes áreas do cérepro de ratos, concluiu que o grau de alteração da função da aprendizagem dependia da quantidade de cérebro lesiona~a ("lei da ação de massa"), e não da localização da lesão. As diversas ãreas cerebrais não teriam uma especialização;, haveria ~a "eqüipotencialidade" entre elas (Blundell, 1976, capo 3) \. Os psicólogos gestaltistas, influenciados pelas teorias de c~po da física, levantaram a hipótese de que o cérebro funcionaria como um "campo", que podemos definir como um todo no qual cada ponto influencia e é influenciado, a distância, por todos os outros pontos (Guillaume, 1966, capo 2, seção 4, e capo 4, seção 6). Monakow (1914) e Goldstein (1927), embora admitindo a localização para as funções mais elementares (sensoriais e motoras), conside_ravam que a atividade "simbólica" ou "categorial" dependeria do cérebro como um todo, no qual cada parte não teria funções especializadas. Tanto Monakow (1928) quanto Sherrin~ton (1942) invocavam ainda um espírito imaterial para dar conta dos' fenômenos psíquicos superiores. 4. Superação do locallzacionismo estrito e do antilocaliza.,cionismo: a abordagem neuropsicológica LUria salienta que tanto no localizacioIÚ$lmo quanto no antilocalizacionismo busca-s~ a confrontação direta de "funções" psíquicas com o cérebro (seja com o cérebro como um todo, seja com alguma área delimi,tada do mesmo). Ou então, numa variante espiritualista do antilocalizacionismo, nega-se por princípio a possibilidade de tal confrontação. Historicamente. ambas as posições tiveram resultados empíricos em seu apoio e outros contra elas. Luria sustenta que a superação desse problema depende da revisão dos conceitos de função, de localização e de sintoma. A abordagem neuropsicológica procurará analisar quais os fatores que constituem a estrutura psicológica da função psíquica considerada e quais as áreas cerebrais responsáveis por cada um· desses fatores. 120 A.B.P.4/83 5. RevJsão do conceito de função: o conceito de sistema funcional Em fisiologia, o termo "função" é certas vezes u~o para indicar aquilo que resulta da atividade de um tecido ou grupo celular espe- cífico. A.s$im, por exemplo, a secreção de insulina é a função das células p das ilhotas de Langerhans do pâncreas. Outras vezes,entfe.. tanto, o termo "funçio" é usado em referência à obtenção de uma certa meta, para a qual concorrem diferentes grupos celulares, tecidos e mesmo diferentes órgãos. Assim, por exemp1o, a função da CCres_ piraçãou envolve alvéolos, capilares, músculos, brônquios, nervos, centros nervosos, etc. AIs funções psíquicas (como a percepção, a linguagem, o pensamento, etc.) encaixam-se muito mais no segundo conceito de função, embora as tentativas localizacionistas e antUocalizacionistas as tratassem muito mais no modelo do primeiro conceito. Sem fazer uma análise psicológica das tunr;ões fJsfquicas, nem uma an.1lise fisiológica do funcionamento cerebral, tentava-se correlacionar diretamente os conceitos de uma psicologia puramente descritiva com dados da anatomia. Luria se vale do conceito de "sistema funcional~' de$envolvido pelo fisiologista russo P. K. Anokhin (1935) para fundamentar o entendimento dos processos psíquicos superiores enquantcl> funções , complexas. O sistema funcional se caracteriza, em primeiro lugar, por ter uma estrutura complexa, que inclui uma série de componentes diferenciados, muitas vezes distantes entre si, que atuam' em. eonjunto. O sistema funcional pressupõe a existência de uma tarefa ou meta invariante, a qual pode entretanto ser obtida através de mecanismos variáveis. Além disso, o sistema funcional é dotado de uma auto-regulação, obtida através de uma interação complexa entre formações centrais e periféricas. Além da aferéncia (ou seja, do fiuxo de informações da periferi" para o centro) é da eferéncia (ou' seja, do fi~o de informações do centro para a periferia), é preciso haver uma captaçãopor parte de receptores periféricos de informações sobre os resultados da ação do sistema. Estas informações, transmitidas às formações centrais, constituem a afertncia de retorno, a qual vai ser confrontada ai com o aceptor da ação. Este último é uma formação central aferente (hipotética), a qual se forma antes da obtenção de informações sobre os resultados da ação e que const~tui, na verdade, uma previsão desses resultados, em função da meta visada pelo sis. tema. A discordância entre o previsto e' o obtido permitirá uma autocorreção em função da meta (Anokhin, 1975, capo 3 e 6). 6. Revisão do conceito de localização filo Concebidas como sistemas funcionais complexos, as funções psíquic~ não podem evidentemente ter uma localização numa ârea delimitada do córtex, mas estão organizadas em sistemas de diversas. áreas cerebrais, muitas vezes distantes entre si, que atuam em conjunto. Por outro lado, uma mesma área cerebral pode participar de 121 diferentes sistemas funcionais (conceito de "pluripotencialismo funcional", de Filimônov). Fica claro como esta concepção supera simultaneamente o 1ooaUzacionismo estrito e o eqüipotencialismo antilocalizacionista. A "organização cerebral" (conceito que se substitui áo de localização) das funções mentais, além disso, muda ao longo da ontogênese e em sucessivas etapas de adestramento. Luria cita o exemplo do ato de assinar o nome, que numa criança que começa a escrever inclui uma análise de cada "fonema" e de cada "grafema" que compõem o nome (envolvendo as correspondentes áreas corticais), para se transformar no adulto numa "melodia. cinética", ou seja, numa seqüência motora automatizada (não envolvendo mais aquelas áreas corticais) . Luria enfatiza ainda, seguindo Vygotski, que a organização cerebral das funções psíquicas depende, para sua formação, das influências externas, principalmente sócio-culturais, recebidas durante a ontogênese. 7. Revisão do conceito de sintoma o sintoma de uma lesão cerebral, entendido simplesmente como perda de uma função, pode indicar a localização da lesão somente em relação às funções mais elementares. Em relação às mais complexas, a simples perda da função nada diz sobre a localiZação da lesão. Isto porque diversas lesões, em diferentes áreas, podem igualmente levar à perda de uma determinada função. Torna-se necessário, então, uma análise psicológica da estrutura do distúrbio, ou seja, o que Luria chama de qualificação do sintoma. Só a partir da análise psicológica, que diz quais os fatores envolvidos na função considerada, torna-se possível a análise neuropsicológica, que estuda quais as áreas cerebrais responsáveis por cada fator. Exemplificando, tomemos o sintoma da "apraxia", ou seja, a incapacidade de realizar movimentos voluntários de forma coordenada e eficaz (sem que haja paralisia ou anestesia). Ora, Luria mostra que a função da "prâxis" motora depende de diversos fatores (ver quadro 1). A realização dos movimentos voluntários depende, em primeiro lugar, da aferência cinestésica (ou proprioceptiva), ou seja, aquela que informa o cérebro sobre a posição e o movimento das diversas partes do corpo. É esta aferência que permite a correção e o controle dos movimentos musculares. Por outro lado, os diversos movimentos que compõem um ato têm que se suceder na ordem certa. .Além disso, a orientação correta dos movimentos no espaço depende da existência de um sistema interno de coordenadas espaciais. Sem este, torna-se impossível dirigir os movimentos com acerto para a direita ou para "a esquerda,. para frente ou para trás. Finalmente, toda a execução de um ato motor depende da formulação de uma intenção, da capacidade de manter esta intenção e de .verificar os resultados tomando-a como base. 122 A.B.P.4/83 Quadro 1 Análise neuropsicológica da apraxia (resumida) Sintoma: apraxia Qualificação do sintoma Apraxia cinestésica Apraxia espacial Fator da estrutura psicológica Aferencia cinestésica Sistema de coordenadas espaciais Apraxia cinética Apraxia da "ação dirigida a um objetivo" Encadeamento dos movimentos Intenção motora Localização da lesão Córtex pós-central Zonas terciârias da região parietoccipital Areas pré-motoras Lóbos frontais Cada um desses fatores depende de âreas diferentes e específicas do córtex (quadro 1). O prejuízo de qualquer um deles causa. apraxia, mas esta se distingue, em cada caso, por peculiaridades próprias e Luria oferece os métodos de exame neuropsicológico que permitem diferenciar cada um dos quatro quadros cUnicas (Luria, 1977, parte lU, capo 3, p. 410-35). Os mesmos princípios são aplicados por Luria na anâlise neuro:psicológica dos distúrbios da percepção, da atenção, da memória, da linguagem e do pensamento (Luria, 1973; 1977). 8. A análise slndrômica e a organização sistêmica dss funções psiquicas .. Dada uma lesão localizada, a anâlise neuropsicológica procurarâ verificar quais as funções que são afetadas (e como) e quais as que não são afetadas por essa lesão. Importa, portanto, uma anâlise de stn-dromes (conjunto de sintomas). Embora Luria afirme que a anâlise psicológica da estrutura da função considerada deve preceder a tentativa de estabelecer sua base cerebral (Luria, 1973, p. 34), podemos ver Que muitas vezes Muma verdadeira interação entre as duas. O dado relativo à organização cerebral de diferentes funções muitas vezes permite melhor conhecer a estrutura psicológica dessas funções. Assim, a cUnica neuropsicológica mostra que lesões da região parietocclpital do cortex perturbam simultaneamente a orientação espacial, a realização de câlculos aritméticos e a compreensão de eStruturas gramaticais logicamente complexas. Isto nos faz ver a existência de um "fator espacial" comum nessas atividades mentais aparentemente tão diversas (Luria, 1973, p. 40). ' 123 9. ConclUsões Como vimos, as funções psíquicas dependem de sistemas funcionais integrados por várias areas cerebrais que atuam em conjunto, cada uma das quais é responsável por um fator especifico da estrutura psicológica da função considerada. Por outro lado, a mesma área pode participar de diferentes sistemas funcionais psíquicos, contribuindo com um mesmo fator, comum à estrutura desses diferentes sistemas. A organização cerebral das funções psíquicas depende de influências ambientais para a sua formação e apresenta (qonforme o sistema em questão e a idade) um grau maior ou menor de plasticidade. Supera~e assim tanto a concepção de localizacionismo estrito quanto a do antilocalizacionismo. Restaura-se a possibilidade deinvestígar o papel de cada estrutura cerebral dentro dos fenômenos psíquicos, sem negar a especificidade própria desses últimos, nem sua co-dependência dos fatores s6cio-cwturais. Os dados da. neuropsicologia atual são ainda consistentes com o postulado (que nunca poderá ser "provado" ou "refutado", mas cuja aceitação ou rejeição pode ser mais ou menos favorecida) de que os fenÔmenos psíquicos derivam, não de uma substância espiritual imaterial, mas do funcionamento de estruturas materiais, constituídas pelo cérebro. Abstract Luria's views on the problem of the cerebral localization of psychic function are synthetically presented. Narrow localizationism and anti.localizationism are both supersed.ed by a systemic view. Functional systems, established in ontogenesis through interaction with the environment, involve a changeable set of various areas of the brain, each of which may participate in different functional systems. Referências bibliográficas Anokhln, P. K. Btologte et neurophllstologie elu réfleze coneltttonné. Moscou, MIr, 1975. Blundell, J. Psicologia fisiológica. Rio de Janeiro, Zahar, 1976. Eccles, J. C. The unclerstancltng of the brain. 2. ed. New York, McGraw-Hill, 1977. Garcla-Roza, L. A. Esboço ele uma história elo saber psicológiCO. Dissertação de mestrado. PUC/RJ, 1975. GulUau.me, P. Psicologia ela forma. São Paulo, Nacional, 1966. Luria, A. R. The working bratn, Harmondsworth, Penguln, 1973. (Trad. bras. LUrla, A. R. Fundamentos ele neuropsicologta. São Paulo, Edusp, 1981.) ---o La3 funciones corttcaZes superiores deZ hombre. Havana, Or]:)e, 1977. (Trad. lngl.· Lurla, A. R. Higher corttcal functtons in mano New York, Basic Books, 1966.) A.B.P.4/83