Modelos e trajetórias institucionais na América Latina

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33º Encontro da ANPOCS
Caxambu, MG, 26 a 30 de outubro de 2009.
GT 12: Desafios e dimensões contemporâneas do desenvolvimento
Transferência de renda e política social:
Modelos e trajetórias institucionais na América Latina
Otavio Soares Dulci
(PPG em Relações Internacionais, PUC Minas)
A noção de desenvolvimento social emana de uma trajetória cuja origem remota
estaria na antiga concepção de assistência social, sucedânea da caridade e da
filantropia. Modernamente, evoluiu para a garantia de condições de vida e bem-estar
com base em uma noção ampliada de cidadania, que incorpora direitos sociais.
De modo similar, as políticas sociais – principais instrumentos de realização da
meta do desenvolvimento social – evoluíram de medidas assistenciais, relativamente
periféricas, para políticas compensatórias mais ambiciosas, e destas chegam a
abordagens estruturantes, que buscam integrar as ações nas diversas áreas de
intervenção governamental. Hoje se discute bastante, no tocante às políticas públicas, a
importância de uma orientação inter-setorial, ou seja, da conexão entre as áreas sociais:
a educação, a saúde, a habitação e a assistência aos necessitados.
Nos últimos tempos, tomou corpo a alternativa da transferência de renda. É
fórmula há muito utilizada na Europa, desde a Poor Law inglesa do século XVI, e que
tem sido aplicada em outras partes do mundo por meio de diversos desenhos
institucionais.
Na Europa, modalidades de garantia de renda mínima, no âmbito do Estado do
Bem-Estar, foram introduzidas na Dinamarca, na Alemanha e na Holanda, no começo
da década de 1960, e desde então se estenderam para o resto do continente. Na África,
a maior parte dos países está adotando mecanismos de transferência de renda a famílias
pobres, seja com foco na população idosa, seja com foco nas crianças, notadamente
órfãos de pais vitimados pela AIDS, que passam aos cuidados de outras famílias da
comunidade. O termo “pensões sociais” tem sido empregado para designar esse tipo de
apoio aos segmentos mais vulneráveis dos países africanos (Samson e Kaniki, 2008).
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Na Ásia, alguns programas nacionais estão começando a ganhar relevo, em países de
distintas configurações, como a China, a Índia, a Mongólia e Bangladesh.
Na América Latina uma estratégia característica é a da transferência de renda
mediante contrapartidas dos beneficiários. Os programas são introduzidos para reduzir
a pobreza, mas geralmente estipulam requisitos destinados a acumular capital humano
(educação e saúde) com o objetivo de promover a mobilidade social das famílias ao
longo do tempo. Têm, portanto, dois alvos, nem sempre fáceis de combinar numa
estratégia coerente.
O presente trabalho examina essa nova modalidade de proteção social à luz das
várias experiências em curso na América Latina. Interessa-se, em especial, pelas
distintas trajetórias da política social que foram percorridas no continente, de modo a
situar os esforços atuais.
É um tema multidisciplinar, que interessa à Economia, à Sociologia e à Ciência
Política, pois envolve geração de renda, dinamização das economias locais, redução dos
índices de pobreza e desigualdade e maior integração/coesão social, fortalecendo assim
uma ordem política eqüitativa. Ao mesmo tempo, abre boas possibilidades de análise
comparativa, pois se trata de uma área de políticas públicas em que ocorre um claro
efeito de demonstração entre os diversos países: experiências precoces influenciam a
estruturação de outras, inspirando-as e sugerindo inovações ou adaptações nos seus
desenhos estratégicos. Deve-se indicar, ainda, a atualidade do assunto, tendo em vista a
crise econômica global que estalou em 2008. Com efeito, a crise veio a acentuar a
relevância dos sistemas de transferência de renda como mecanismos anticíclicos,
colchões de sobrevivência social e de reanimação da economia. E com efeitos políticos
ponderáveis, de modo a evitar colapsos institucionais e retrocessos sociais funestos,
como ocorreu na esteira do crash de 1929.
As políticas sociais na América Latina: origens e desdobramentos
Foi justamente naquela fase crítica da história do século XX que se assentaram
as bases do sistema de bem-estar social na América Latina. A crise da década de 1930
interrompeu a dinâmica de exportação de commodities (produtos agrícolas, pecuários e
minerais) que vinha sustentando os países do continente e os empurrou no rumo da
substituição de importações. Por sua vez, o sucesso do modelo de “crescimento para
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dentro”, ancorado no mercado interno, requeria a incorporação de novos setores sociais
à esfera do consumo. Direitos trabalhistas e sociais foram introduzidos para regular esse
processo de inclusão. No campo social, os sistemas de proteção abrangiam tipicamente
o acesso à previdência (aposentadorias e pensões) e a serviços de saúde. Eram avanços
importantes, mas que alcançavam apenas uma parcela da população – aquela vinculada
ao mercado de trabalho formal, com contratos definidos de emprego e contribuição
regular aos fundos de previdência. Os demais segmentos, ou seja, os trabalhadores
rurais e os urbanos da esfera informal, permaneciam à margem. Em conseqüência disso,
os sistemas de proteção social latino-americanos foram marcados, desde o início, pela
segmentação da cobertura dos serviços. Nesse sentido, representaram um fator de
agravamento da desigualdade social.
A configuração do modelo de bem-estar social latino-americano é similar à dos
países da Europa Continental. Benefícios sociais foram aí adotados pelos governos para
contemplar setores selecionados (por exemplo, os militares e funcionários civis) e, com
o tempo, estenderam-se para outras categorias específicas. Esping-Andersen (1990)
qualificou de “corporativo” esse esquema de garantia de bem-estar, distinguindo-o de
outros dois modelos: o de estados com forte tradição liberal que limitam o direito à
assistência publica aos comprovadamente necessitados, e o de estados de orientação
socialista, onde o sistema de bem-estar é universal, montado para todos, com
financiamento público.
O legado dessa tradição corporativa permanece forte na América Latina, a
despeito de pressões cruzadas para levar as políticas sociais ora para o lado liberal, ora
para o lado socialista. Huber (1996, p. 142) registrou, com base em dados da década de
1980, que apenas em seis países a seguridade social cobria mais de 60% da população
(Argentina, Uruguai, Brasil, Chile, Costa Rica e Cuba). Em outros seis países a
cobertura alcançava de 30 a 60% dos habitantes (Colômbia, Venezuela, México, Peru,
Guatemala e Panamá). E nos demais países a percentagem de beneficiados era ainda
menor (Bolívia, Paraguai, Equador, República Dominicana, El Salvador, Honduras e
Nicarágua).
As insuficiências desse esquema – sobretudo no tocante à segmentação entre os
setores formal e informal – já eram perceptíveis mesmo antes que se esgotasse o
modelo de crescimento por meio da substituição de importações. Tanto assim que no
Brasil, em meados dos anos 1970, o regime ditatorial da época estendeu aos
trabalhadores rurais o direito a uma pequena pensão independentemente de
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contribuição anterior ao fundo de previdência. Era um passo inicial na direção de uma
transferência de renda mínima a todos os idosos pobres, a qual foi assegurada mais
tarde pela Constituição de 1988.
Os problemas já entrevistos ficaram plenamente expostos na década de 1980, a
chamada “década perdida”, quando a América Latina atravessou uma prolongada fase
de estagnação produtiva, conjugada com instabilidade financeira e onerosos
pagamentos de dívida externa. As políticas de ajuste agravaram enormemente o quadro
social, resultando em empobrecimento da população, o que gerou a necessidade de
formular políticas compensatórias.
Os esforços de ajuste econômico-financeiro se desdobraram gradualmente em
estratégias mais ambiciosas de reforma do Estado, de acordo com as idéias neoliberais
em ascensão. Na área social, a orientação neoliberal foi adotada pelo Chile como
diretriz de privatização do sistema de seguridade. A Argentina e a Colômbia também a
adotaram, mas só em parte, sem desmontar o seu tradicional sistema público de
previdência. Em outros países, como o Brasil, o roteiro foi inverso: buscava-se ampliar
os direitos sociais e instituir um estado de bem-estar de cunho universalista. Isso se
fazia ao mesmo tempo em que o repertório de reformas econômicas e institucionais era
introduzido com fundamento nas idéias de primazia do mercado e redução do Estado.
Essa coexistência de tendências diversas merece ser destacada. Com efeito, a
América Latina se destacou por certo pioneirismo em inovações institucionais de cunho
fiscal, somando medidas de responsabilidade fiscal com metas de equidade e
participação cidadã, como a transferência de renda em espécie e a proposta de
orçamento participativo.
É interessante constatar-se que a alternativa da transferência de renda como
forma de combate à pobreza tenha se expandido na América Latina em plena fase de
afirmação do modelo neoliberal. No entanto, esta abordagem é consistente com o
modelo liberal. Milton Friedman, um dos principais expoentes do liberalismo
econômico, ao tratar do problema da pobreza, defendeu a fórmula do imposto de renda
negativo, visto como o mecanismo que menos distorce o mercado e alcança os
melhores resultados para reduzir as diferenças sociais (Friedman, 1985, cap. XII). Seu
argumento é que o repasse de uma renda mínima é mais adequado que os subsídios
frequentemente concedidos pelos governos. Além do sentido cidadão da garantia de
renda mínima, ela apresenta a vantagem da efetividade do gasto: os recursos são
dirigidos diretamente para os mais pobres, em vez de se espalharem por diversos
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segmentos sociais que nem sempre deles necessitam – como ocorre com preços
subsidiados, por exemplo.
Mas não é só. Na mesma época em que se afirmava o modelo neoliberal,
conforme o receituário do Consenso de Washington, a América Latina vivia uma fase
de renascimento da democracia, que envolvia não apenas a instauração de um ambiente
de liberdade política, mas também a ampliação de direitos sociais. Portanto, coexistindo
com a agenda liberal de reformas pró-mercado, estava em pauta uma agenda
democrático-social, com duas vertentes principais. Uma apontava para a expansão da
cidadania, com ênfase na participação; a restauração do Estado de Direito se enriquecia
com a perspectiva de uma democracia participativa a complementar as instituições
representativas tradicionais. Outra vertente apontava para a universalização dos
mecanismos de proteção social, com a modernização da estrutura de assistência,
englobando a infância, os idosos e outros segmentos carentes de apoio.
Políticas de assistência constituíam o ponto fraco dos sistemas de proteção
social na América Latina, que, como já mencionamos, tinham como preocupação maior
a previdência (aposentadorias e pensões) e o provimento de serviços de saúde. A
assistência social era tradicionalmente prestada por entidades filantrópicas, muitas delas
ligadas à Igreja Católica, cuja influência na formação das sociedades latino-americanas
foi sabidamente importante. Mais modernamente, entidades empresariais e cívicas
assumiram papéis assistenciais, conforme as idéias contemporâneas da responsabilidade
social das empresas.
Os governos ajudavam, mas sem estruturar políticas efetivas. Até que, no
cenário de ajuste e de reformas pró-mercado do fim do século XX, o problema da
pobreza se colocou no centro da agenda política. No entanto, dadas as dificuldades em
que estavam mergulhadas as economias da região, como poderiam elas financiar
políticas sociais de maior alcance? A resposta a esse dilema estaria na aplicação de
políticas focalizadas de combate à pobreza, que tivessem como alvo os setores mais
vulneráveis.
Os programas de assistência social que foram lançados para atender aos
segmentos pobres tinham características semelhantes em todos os países da região,
conforme acentuou Draibe (1997, p. 241-242): apoiavam-se em formas mistas de
parceria público/privada; situavam-se sob sistemas decisórios fortes e nacionais; não
contavam com redes de interesses fortes de sustentação, salvo partidos e altas
autoridades políticas, dado o potencial clientelista que detinham; tendiam a ser
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operados descentralizadamente, por meio de municípios, organizações de beneficiários
e ONGs; as transferências de recursos governamentais tendiam a ser fracas e
insuficientes; e eram focalizados, ainda que variassem muito os critérios de focalização.
Convém mencionar ainda que se constituíram em vários países os denominados
Fundos Sociais de Emergência para operar programas de assistência dirigidos aos mais
pobres. Tais fundos sociais deveriam garantir os programas compensatórios que
acompanharam as políticas de ajustamento. Nesse caso, a canalização de recursos se
fortalecia e ocorria com maior regularidade para sustentar os programas assistenciais. A
concepção dos fundos sociais de emergência e seu formato similar indicam o
intercâmbio de modelos entre países que estava a caracterizar as políticas públicas da
América Latina em fins do século XX – e que torna a discussão do nosso objeto
particularmente interessante do ponto de vista comparativo.
Trajetórias institucionais na América Latina – como as políticas de transferência
de renda começaram e evoluíram
Nesse contexto é que foram introduzidos os primeiros programas de
transferência de renda, no México e no Brasil. Eles foram os pioneiros e têm servido de
pontos de referência para os países que se lhes seguiram. Uma informação sobre as
experiências dos dois países será útil para compreendermos o panorama geral das
políticas de garantia de renda básica na América Latina.
O programa mexicano se chama Oportunidades. Foi criado em 1997 com o
nome de Progresa, tendo como finalidade ajudar a quebrar a transmissão
intergeracional da pobreza. A provisão de benefícios condicionais visa a construir o
capital humano de famílias extremamente pobres, o que é um objetivo de longo prazo,
exigindo assim um tempo de execução também longo para fazer diferença na vida das
crianças apoiadas.
Os benefícios são os seguintes: transferência de renda para consumo de
alimentos; suplementos nutricionais para crianças pequenas, mulheres grávidas e
nutrizes; acesso a serviços primários de saúde; bolsas de estudos do 3º ao 12º ano;
incentivos monetários adicionais para passar da escola secundária para a média;
incentivos do mesmo tipo, para concluir o nível médio; e transferências de renda para
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idosos. Para receber esses benefícios, as condições são o comparecimento à escola, a
sessões de educação para a saúde e a exames de saúde.
O programa começou em comunidades rurais muito marginais e se expandiu
para áreas rurais e urbanas através do país. Agora fornece benefícios para 5 milhões de
famílias extremamente pobres em todos os municípios do México.
O desenho do esquema mexicano, bem como sua experiência, representa uma
ferramenta importante de aprendizado para outros países e para instituições
internacionais. Essa relevância se mede pelo fato de que em 2001 o Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID) aprovou o maior empréstimo de sua história
para apoiar a extensão do programa Oportunidades às áreas urbanas.
No Brasil, a proposta de garantia de renda mínima surgiu como idéia que se
afinava com o sistema de seguridade social instituído pela Constituição de 1988. Uma
de suas diretrizes resultou no Benefício de Prestação Continuada (BPC), modalidade
não-condicional que transfere, desde 1995, uma renda básica (de um salário mínimo)
aos deficientes e idosos pobres. Faltava, contudo, focalizar as famílias pobres de modo
geral. Aos poucos a idéia foi divulgada, e a discussão evoluiu para combinar a
transferência de renda com o estímulo à educação básica. Essa foi a fórmula pela qual
a garantia de renda mínima se popularizou no Brasil, concretizando-se pela Bolsa
Escola.
A Bolsa Escola foi implantada em vários municípios importantes, desde meados
da década de 1990, e se tornou programa nacional em 2001. Representava verdadeiro
“ovo de Colombo”, pois era capaz de responder a questões que vinham preocupando
especialistas e responsáveis por diferentes áreas: a repetência e evasão escolar, o
trabalho infantil, a delinqüência precoce e a má distribuição de renda. O avanço das
pesquisas sociais levou a focalizar a família como objeto de análise, não apenas a
criança que some da escola e vai para a rua ganhar uns trocados para ajudar em casa
(quando não tem que lidar com tarefas insalubres e pesadas, muito além de suas forças).
Daí a idéia de dar uma bolsa à família, em troca da permanência da criança na escola.
Era um programa de distribuição de renda, mas que aliava este objetivo com o de
melhorar o quadro educacional, oferecendo chance de maturação adequada para
meninos e meninas que precisam trabalhar precocemente com enorme prejuízo para si
próprios e para a sociedade.
A questão do trabalho infantil entrou fortemente na pauta devido a pressões de
organismos internacionais sobre o Brasil para tomar medidas definitivas a respeito.
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Nisso a Bolsa Escola podia ajudar bastante, mas, para tanto, foi concebido um
programa específico, o PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil), que
começou em 1996 e permanece em vigor.
Em 2002 funcionavam no Brasil quatro programas de âmbito nacional que
realizavam transferência de renda: além da Bolsa Escola e do PETI, havia a Bolsa
Alimentação e o Auxílio Gás. A coexistência de tais programas acabou por gerar
superposição e imprecisão no foco, uma vez que eles eram executados por diferentes
órgãos que não atuavam de modo coordenado. E esse aspecto se acentuou um pouco
mais com a mudança de governo. Em 2003, a nova administração começou por atribuir
grande ênfase à questão da segurança alimentar, lançando o programa Fome Zero.
Fome Zero é uma marca poderosa, com grande potencial de mobilização. No
entanto, o programa enfrentou dificuldades operacionais, sem contar o fato, já indicado,
da superposição de ações governamentais dirigidas a famílias pobres. Tais vicissitudes
levaram o governo, em outubro de 2003, a dar uma guinada que se revelou estratégica:
aglutinar as modalidades existentes de transferência de renda em um novo programa
condicional, denominado Bolsa Família. Essa inovação constituía ampliação e síntese
da trajetória anterior. A partir daí o projeto deslanchou e hoje atende a mais de 11
milhões de famílias, cobrindo praticamente toda a população pobre do país.
A partir desses dois exemplos, vejamos como esse formato se expandiu pela
América Latina. A maior parte dos programas de transferência de renda foi introduzida
nos últimos anos, mas de fato a primeira experiência do gênero foi implantada em
Honduras, em 1990: o PRAF (Programa de Asignación Familiar). Era uma tentativa
relativamente precária, dadas as dificuldades orçamentárias do governo hondurenho,
que ganhou corpo em 1998 com o chamado PRAF-2, este financiado pelo BID e
apoiado por outros órgãos internacionais.
Na Colômbia, o Programa Famílias em Acción começou em 2000, na esteira de
uma recessão econômica que o país tinha atravessado no ano anterior. O propósito era
prestar assistência a famílias com as piores condições de vida, presumindo que tais
famílias tivessem sofrido o maior impacto do retrocesso econômico. A idéia se
encaixou no marco do Plano Colômbia estabelecido em conjunto com os Estados
Unidos, com o objetivo principal de equacionar a questão da produção e
comercialização de drogas. O tempo estipulado de duração do programa de assistência
social se subordinava à duração do Plano Colômbia – em torno de três anos. (Villa,
2008). Nesse sentido, o programa social funcionava como complemento de um
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ambicioso programa de segurança. Contudo, Famílias em Acción foi além do seu papel
original: granjeou forte apoio político interno e passou a percorrer uma trajetória
própria. .
Em 2002, surgiram a Red de Protección Social, na Nicarágua, o programa Jefes
de Hogar, na Argentina, e o Chile Solidário. Em 2003, o Equador lançou o Bono de
Desarrollo Humano. Em meados desta década, a idéia se estendeu aos demais países. O
ano de 2005 foi especialmente pródigo em iniciativas de transferência de renda: o Peru
implantou o programa Juntos; El Salvador, a Red Solidária; a Republica Dominicana, o
programa Solidaridad; Trinidad e Tobago, o Target Conditional Cash Transfer
Programme. Na Argentina, a província de Buenos Aires começou o programa
Ciudadania Porteña.
Outras experiências em curso são o programa Avancemos, na Costa Rica; a Red
de Oportunidades, que o Panamá iniciou em 2006; o PATH (Programme of
Advancement through Health and Education), na Jamaica; a Social Safety Net, no
Suriname; o Tekoporã, projeto-piloto do Paraguai; e o Ingreso Ciudadano, que o
Uruguai estabeleceu em 2007.
Pode-se observar uma semelhança de propósitos que se espelha inclusive nos
nomes desses projetos. De modo geral, são programas que visam combater a pobreza,
com foco nos setores mais vulneráveis de cada país (especialmente os habitantes do
meio rural), e incorporam o objetivo mais amplo de promover a acumulação de capital
humano. Em função desse objetivo mais amplo é que se fixam as contrapartidas
requeridas dos beneficiários, as quais compreendem tipicamente cuidados com a saúde
(de crianças, mulheres grávidas e nutrizes) e escolarização das crianças e adolescentes.
Avanços, desafios e problemas pendentes
Qual é o impacto desse esforço? Os resultados têm sido registrados em
múltiplos estudos de avaliação, que mostram um saldo bastante positivo na redução dos
níveis de pobreza. Veja-se, por exemplo, o caso do Brasil. Tomando-se como indicador
a variação de renda, ocorreu uma melhoria considerável durante a década atual. Uma
evidência dessa evolução foi apresentada em estudo sobre a dinâmica da pobreza e da
riqueza nas seis principais regiões metropolitanas do país:
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A taxa de pobreza nas seis Regiões Metropolitanas caiu de 35% da população em
2003 para 24,1% já em 2008. Ou seja, uma redução de quase um terço da
pobreza em termos proporcionais. A indigência segue o mesmo ritmo e, em
termos percentuais, sua participação na população cai para a metade. (IPEA,
2008, p. 5).
Para tal evolução concorreram diversos fatores, entre eles o crescimento
econômico do período, a estabilidade dos preços devida ao controle da inflação e a
elevação gradativa do salário mínimo em termos reais, mas é certo que os programas de
transferência de renda desempenharam papel de destaque. Cerca de 25% da redução da
pobreza extrema no Brasil podem ser atribuídos à Bolsa Família, segundo um
documento recente preparado para a Organização Internacional do Trabalho, e por ela
divulgado (OIT, 2009)
Paralelamente, os programas de renda básica têm contribuído para a redução da
desigualdade social medida pelo índice de Gini. Embora o alvo principal dos programas
seja a redução da pobreza, a elevação de renda das famílias pobres pode afetar
positivamente a escala de desigualdade. Isso foi verificado tanto no Brasil quanto no
México:
As transferências de renda oriundas dos PTCRs (isto é, programas de
transferência condicionada de renda) tiveram um papel muito relevante na
redução das desigualdades no México e no Brasil. Nesses dois países,
apenas a renda do trabalho foi mais importante que a das transferências
para a queda do Gini. Porém, o fato mais relevante é que sua contribuição
para a redução da desigualdade foi desproporcional ao seu peso na renda
total: com menos de 1% da renda total, os PTCRs foram responsáveis por
21% da redução da desigualdade no Brasil e no México. (Soares et al.,
2007, p. 23-24).
Quanto à promoção do capital humano, o impacto é variável, notando-se altos e
baixos. O ponto principal, nesse âmbito, diz respeito à equação entre demanda e oferta.
Os programas de transferência condicional de renda criam demanda – por serviços de
saúde e por escolas. A oferta nem sempre corresponde à demanda. Daí a necessidade de
articulação entre a política de assistência e outras políticas sociais, particularmente as
de educação e saúde. A articulação com a política econômica é também importante, na
medida em que a meta, a longo prazo, é a autonomia das populações vulneráveis por
meio de sua participação no mercado de trabalho, com capacidade de gerar renda por si
próprias. E para isso é preciso crescimento econômico – mas crescimento integrativo,
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combinado com desenvolvimento social.
A literatura enfatiza certa tensão entre os objetivos dos programas: o alívio da
pobreza e a acumulação de capital humano. Nesse terreno situa-se o debate sobre
mecanismos de focalização (targeting) e emancipação através das “portas de saída”. No
tocante à focalização há um trade-off entre una cobertura mais ampla dos pobres
(eficácia) e uma redução ao mínimo da inclusão de não-pobres ou menos pobres no
programa (eficiência).
As “portas de saída” representam um dilema real. Por um lado, podem ajudar a
aumentar o apoio político aos programas de transferência de renda, mas a saída
prematura dos beneficiários é inconsistente com o objetivo de longo prazo de
acumulação de capital humano. Este problema é visível em El Salvador, conforme
estudo de Britto (2008). O programa Red Solidária, implementado naquele país,
expressa um claro compromisso com a acumulação de capital humano, mas limitações
financeiras/orçamentárias e limitações institucionais (por exemplo, sua dependência do
atual governo) podem comprometer a sua sustentação por prazo suficientemente longo
a ponto de efetivamente fazer diferença para as crianças que dele se beneficiam. Além
disso, há a preocupação com a possibilidade das famílias que saíram caírem de novo
nas condições de pobreza que resultaram em sua entrada no programa.
Há, portanto, necessidade de sustentar as iniciativas a despeito das resistências
das classes altas e médias ao gasto governamental com os pobres. Nesse cenário é que
se situa o problema do financiamento e a alternativa do apoio externo. As modalidades
de financiamento têm implicações distintas para a sustentabilidade financeira dos
programas, e também para sua sustentabilidade política.
Sobre isso, assinalaram Hamda e Davis (2006, p. 514):
Em apenas dois casos (Progresa/Oportunidades e Bolsa Escola, predecessor
da Bolsa Família) podem eles ser considerados endógenos, no sentido de
que foram inicialmente desenhados e financiados sem a ajuda de bancos de
desenvolvimento. Contudo, em ambos os casos a expansão subseqüente foi
financiada por empréstimos. Progresa representou uma mudança
fundamental de subsídios alimentares universais para transferências
focalizadas, ao passo que a Bolsa Família reuniu diversos programas
separados de transferência condicional de renda, cujas origens derivam de
iniciativas em nível estadual. Em Honduras, Jamaica e Nicarágua a
introdução de transferências condicionais de renda é claramente ligada ao
financiamento externo e faz parte do objetivo mais amplo de consolidar a
rede de seguridade social e fortalecer sua capacidade administrativa e
operacional. O programa da Colômbia surgiu em parte como resposta à
crise econômica do país. O empréstimo do BID/Banco Mundial que
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financiou Familias en Acción também procurava estabelecer uma rede de
seguridade coerente para substituir um leque fragmentado de programas
existentes.
A dualidade de financiamento, por sua vez, gera problemas institucionais, como
foi observado no caso de Honduras. O PRAF tem uma natureza dual, com uma parte
financiada externamente e outra parte domesticamente. Conforme o estudo de Moore
(2008), essa estrutura tem impedido a evolução institucional do programa,
enfraquecendo sua sustentabilidade de longo prazo, para não falar do seu controle
nacional.
O apoio externo tem sido importante para impulsionar as experiências e trazer
para elas uma base de conhecimentos a partir de projetos anteriormente implantados em
outros países. No entanto, é um mecanismo temporário, e em alguns países menores o
esforço de redução da pobreza é bastante ameaçado pela vinculação dos programas de
renda básica ao cronograma do financiamento por agências internacionais. Nesse caso,
o efeito é paliativo, e não se consegue avançar em termos mais estruturais.
Por isso, a sustentação política interna é decisiva. Ela é ajudada, como
sugerimos, pela imposição de contrapartidas às famílias pobres. Além da finalidade de
promoção dessas famílias, as contrapartidas atendem às preocupações (ou preconceitos)
das elites e das classes superiores com a situação dos pobres. Trata-se de uma relação
de reciprocidade que confere maior legitimidade aos programas entre os contribuintes.
Tais condições políticas permitem levar adiante a política de redução da
pobreza, com base num consenso interno suficiente. Sobre esse fundamento, um passo
estratégico é a institucionalização dos programas: eles devem se situar como políticas
de Estado, não só de um governo ou de um governante, como ocorre em alguns casos
na América Latina. E a razão é óbvia: a associação dos programas com determinados
governos, governantes ou partidos políticos põe em risco a sua continuidade quando
mudam os governos e os partidos no poder.
Isso só se pode resolver pela institucionalização, adotando-se uma legislação
clara de definição de direitos e deveres dos cidadãos e do Estado no tocante à garantia
de renda básica. Na América Latina, a maior parte dos programas está baseada em
fundamentos legais suficientes, mas o mesmo não acontece em outros continentes. Esse
aspecto oferece interesse para a análise comparativa de políticas públicas, no que diz
respeito à comparação entre as bases legais dos programas e ao intercâmbio de
formulação dos mesmos entre os diversos países.
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Um último ponto a lembrar se refere à integração dos mecanismos de renda
básica com as políticas sociais mais amplas, em uma estratégia nacional de proteção
social. Trata-se, com isso, de superar a clássica dualidade da proteção social na
América Latina: um sistema de previdência restrito ao setor formal, junto com
iniciativas residuais de assistência que protegem os muito pobres em situações de crise.
Esse objetivo se torna ainda mais necessário em um período, como o atual, de
instabilidade na economia internacional. Para atravessá-lo, todos os países, inclusive os
mais ricos, têm que reforçar seus mecanismos de proteção social, e para tanto as
experiências latino-americanas de transferência de renda podem oferecer uma boa
contribuição em idéias, desenhos institucionais e avaliação de resultados.
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Villatoro, Pablo S. (2008). “CCTs in Latin America: human capital accumulation and
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Resumo
Políticas de garantia de renda mínima têm ganhado importância como
mecanismos de combate à pobreza na América Latina, assim como em
outros continentes. Elas combinam transferências incondicionais para
certos segmentos com transferências condicionais a famílias pobres. Os
requisitos mais comuns são em educação e saúde. O trabalho apresenta
uma análise de diferentes modelos de transferência de renda
implantados em países da América Latina, com destaque para as
respectivas trajetórias institucionais.
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