Thomas Piketty, o profeta da distribuição

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Thomas Piketty, o profeta da distribuição
Nesta semana, o professor e acadêmico francês Thomas Piketty se viu no meio de controvérsia que transbordou
os limites da academia. Autor de um dos livros mais vendidos nos Estados Unidos, Le capital au 21e siècle,
Piketty foi acusado pelo prestigiado jornal econômico Financial Times de apresentar dados errados em seu livro
de mais de 500 páginas. Segundo o FT, Piketty errou na transcrição de números e não checou dados nas fontes
originais, especialmente nos valores sobre desigualdade social no Reino Unido. O jornal apresentou sua própria
interpretação dos dados, defendendo que os números corretos não sustentam as principais teses de Piketty. O
autor respondeu às críticas. Piketty disse que o FT estava sendo "desonesto" e "ridículo", e apresentou estudos
independentes que sustentam suas teses. Mas nem todas as explicações convenceram, e a polêmica continua.
Quais são as principais teses de Piketty e por que seu livro se tornou tão influente na política e no mundo dos
negócios? Confira nesta reportagem de ÉPOCA.
...
Por força da globalização, nos últimos 30
anos a economia mundial sofreu enormes
transformações. Na China e na Índia, na Ásia
e na África, na Rússia e na América Latina,
um contingente equivalente a dois terços da
população mundial foi subitamente integrado
ao mercado de trabalho e ao consumo. Foi a
maior inclusão econômica da história
humana – e produziu uma redução de
pobreza equivalente. Não resolveu os
problemas do planeta, mas provocou
avanços substanciais na vida de de 3,5
bilhões de pessoas. “Sob qualquer ponto de
vista, o mundo ficou muito melhor nos
últimos 30 anos”, afirma o economista
Samuel Pessôa, professor da Fundação
Getulio Vargas. “Melhoraram a renda, a
saúde, a educação. É um fenômeno que não
se pode ignorar.”
Curiosamente, não há notícia dessa grande
transformação nas 648 páginas do maior
best-seller econômico dos últimos anos. O
livro Le capital au 21ͤ siècle , do economista
francês Thomas Piketty, lançado em francês
no ano passado e agora traduzido para o inglês, vendeu nos últimos 60 dias mais de 100 mil exemplares
impressos, além de um número não divulgado (mas certamente expressivo) de cópias em e-book. Na loja digital
da Amazon, o livro ocupa o segundo lugar na lista de mais vendidos em papel (atrás apenas de A culpa é das
estrelas, de John Green) e a 65ª posição entre os e-books. Está na lista dos 100 mais vendidos desde que foi
lançado, embora conte uma história oposta ao sucesso da inclusão global.
>> Walter Friedman: "É impossível fazer previsões precisas"
Influenciado, provavelmente, pela lenta erosão das expectativas econômicas na França, assim como pela
recuperação em câmera lenta das economias do resto da Europa e dos Estados Unidos, Piketty descreve com
brilho, minúcia e típico mau humor francês a concentração de renda violenta em curso nas economias
desenvolvidas. É um fenômeno paralelo à crítica da globalização que, desde o movimento Occupy Wall Street,
de setembro de 2011, chegou ao centro do debate político e intelectual americano.
Apoiado na solidez e no ineditismo dos dados apresentados em seu livro, esse professor de 44 anos da Escola
de Economia de Paris tornou-se uma espécie incomum de celebridade. Ao viajar pelos Estados Unidos para
lançar seu livro, foi recebido pelo secretário do Tesouro, falou para os conselheiros econômicos da Casa Branca,
deu palestra ao lado de dois prêmios Nobel e foi objeto de reportagem até mesmo em programas matinais de TV.
Ao final da excursão, seu inglês com sotaque carregado e seu rosto sorridente já haviam se tornado familiares
não só aos americanos, mas ao mundo. Não se sabia, apenas, se ele era mais um economista pop a caminho do
esquecimento ou se – como chegaram a dizer – o intelectual francês mais influente nos EUA desde Alexis de
Tocqueville, autor de A democracia na América .
Como estudioso de desigualdade mais respeitado da última década nos meios acadêmicos, é improvável que
Piketty seja efêmero. Prodígio matemático, ele chegou aos Estados Unidos em 1993 para dar aulas de economia
no Instituto Tecnológico de Massachusetts (MIT), uma das universidades mais respeitadas do mundo. Tinha 22
anos. Três anos depois, voltou à França, convencido de que os americanos se preocupavam mais com
matemática e teoria do que com o mundo real. Admirador do historiador Fernand Braudel e do antropólogo
Claude Lévi-Strauss, sonhava testar com fatos as convicções que sobravam no seu meio. Mergulhou na
pesquisa histórica sobre renda e patrimônio e criou, em 15 anos de trabalho, com ajuda de colaboradores no
mundo todo, um banco de dados sobre a evolução da renda e da desigualdade que cobre 30 países. Esse
acervo é a base de seu livro.
Nos últimos dias, a popularidade tem cobrado seu preço. Ele foi xingado de “marxista” por quem não leu seu livro
– Piketty é, ao menos formalmente, socialista, ligado ao partido do presidente François Hollande. Os tabloides
europeus divulgaram que ele foi preso em 2009 por bater na amante, a atual ministra da Cultura e Imprensa
francesa, Aurélie Filippetti, de 40 anos. Piketty é casado desde 1996 com a economista Julia Cage, com quem
tem três filhos. Francês meio típico, já se sabe que ele é. Marxista, ele jura que não. “Nunca consegui ler Marx”,
disse numa entrevista nos Estados Unidos. “Nos livros dele, não há dados. Para mim, não teve influência
nenhuma.” Em seu próprio livro, Piketty conta que tinha 18 anos quando caiu o Muro de Berlim e que “não tem
paciência” com o anticapitalismo. Em outra passagem, refere-se aos regimes criados à sombra da Revolução
Russa como “tragédias”.
“Os marxistas tentam se apropriar das conclusões dele, mas o que Piketty escreve nada tem de marxista”, diz o
economista Antonio Delfim Netto, ex-ministro da Fazenda e da Agricultura no regime militar. “O olhar dele é muito
otimista. Acredita que está nas nossas mãos organizar o processo político para que o desenvolvimento seja
palatável.” Piketty provocou artigos de respeitosa contestação da revista britânica The Economist, de orientação
mais liberal. Arrancou de Paul Krugman, prêmio Nobel de Economia, de orientação menos liberal, a afirmação
que “mudará tanto a maneira como pensamos a respeito da sociedade como a forma como fazemos economia”.
O que ele diz, afinal?
Primeiro, Piketty apresenta um problema. Afirma que a distribuição de renda, marca da prosperidade no século
XX, estancou e hoje regride. Desde os anos 1970, as curvas de desigualdade começaram a subir na Europa e
nos Estados Unidos. Na última contagem, em 2010, o 1% mais rico dos EUA detinha 20% da renda total,
percentual equivalente ao da Europa em 1910 – época de privilégios hereditários, em que a mobilidade social era
pífia; a meritocracia, mínima; e os mais pobres, estruturalmente condenados a continuar assim – a menos que
casassem com a fortuna.
Entre 1915 e 1970, diz Piketty, ocorreu uma mudança. Duas guerras mundiais e o cenário econômico que elas
criaram reprimiram a concentração do capital em poucas mãos. A prosperidade se disseminou dos dois lados do
Atlântico. Foi nesse cenário economicamente harmonioso, segundo ele, que americanos e europeus viveram até
há pouco. Com a desaceleração das economias ocidentais e a suspensão dos controles sobre as finanças,
Piketty afirma que a força da concentração voltou a prevalecer – e sugere, polidamente, que a tendência é piorar
no século XXI. Se alguma providência não for tomada, diz ele, poderemos chegar rapidamente a um cenário em
que 0,1% da população mundial – cerca de 4,5 milhões de pessoas – detenha entre 40% e 60% da riqueza
global. Seria a volta ao mundo econômico de Charles Dickens e Machado de Assis, em que herdeiros
afortunados viviam cercados de aproveitadores ou dependentes. Nesse universo, havia pouco espaço para o
mérito pessoal, para a iniciativa empreendedora ou para uma vida estável de classe média. “Essa situação seria
incompatível com nossos valores e politicamente insustentável”, diz Piketty.
A principal diferença entre a visão dele e de seus antecessores que previram problemas para o capitalismo é que
Piketty parece ter arrumado duas explicações engenhosas – e economicamente consistentes – para justificar
suas previsões. A primeira cabe numa fórmula, “r > g”. Ela traduz, simplificadamente, uma das conclusões que
Piketty extraiu de seu manancial de dados: toda vez que a taxa de retorno sobre o capital dos investidores (“r”) é
expressivamente maior que a taxa de crescimento da economia (“g”), o dinheiro herdado cresce mais rápido que
a produção e que os salários. É fácil entender. Se uma economia cresce a menos de 2%, como a brasileira, mas
os investimentos, os aluguéis ou os lucros dos negócios rendem um percentual maior, digamos 4%, os donos de
investimentos, imóveis e negócios tendem a acumular mais rápido do que quem recebe salário. Piketty afirma
que a fórmula “r > g” explica, sobretudo, a atual situação na Europa, onde as taxas de crescimento têm sido
baixas, e as heranças ganharam um peso maior no acúmulo da riqueza. Lá, em 2010, o valor agregado da
riqueza privada equivalia a entre quatro e seis anos de toda a renda anual do trabalho. Em 1950, no auge do
período de distribuição de renda, essa relação variava entre dois e três anos. Em 1910, a medida era de seis a
sete anos.
A segunda explicação de Piketty para a concentração de renda não tem a ver com a transmissão de herança ou
retorno sobre investimentos, mas com a remuneração de uma parcela privilegiada da população, que recebe
supersalários. Nos Estados Unidos, essa parcela é representada por diretores de grandes empresas, operadores
de fundos de investimento e outros trabalhadores superqualificados – ou bem situados na hierarquia das
decisões. Postados entre os 10% mais bem pagos na pirâmide de renda, eles abocanham hoje em dia algo entre
45% e 50% da massa salarial nos Estados Unidos. Nos anos 1950, esse percentual era inferior a 35%.
Piketty diz que esse crescimento aconteceu por dois motivos. Primeiro, muitos desses executivos têm poder de
estabelecer seus próprios rendimentos, sem conexão com a produtividade real de seu trabalho. Segundo, a
redução de impostos feita por sucessivos governos americanos desde os anos 1980 os incentivou a tomar mais
para si. No passado, com impostos altos, era inútil ganhar acima de um certo patamar. O Fisco engoliria o
excesso. Sem esse freio, diz Piketty, compensa apropriar-se de parte maior dos ganhos da empresa. “O
crescimento espetacular da desigualdade nos Estados Unidos reflete uma explosão sem precedentes da renda
dos administradores”, diz Piketty. Ele pondera, porém, que é cedo para prever se esse fenômeno americano – e,
em menor medida, britânico – se reproduzirá com a mesma intensidade em outros países.
Muito do que Piketty diz não é novidade. No final de 2012, uma edição especial da mesma The Economist que
criticou Piketty apontava a “dramática concentração de renda dos últimos 30 anos”. Dizia que ela já alcança ou
excede aquela registrada nos decênios finais do século XIX. Os economistas também discutem há anos os
efeitos deletérios da desigualdade de renda. Gente potencialmente talentosa pode ser privada de educação por
falta de recursos. A demanda cai (quantos carros ou geladeiras uma mesma família rica é capaz de comprar?). O
endividamento em massa de quem ganha pouco propicia crises financeiras como a de 2008. Até o crescimento
econômico arrefece, pela falta de um mercado ebuliente, sempre movido pela robustez da classe média.
Segundo um relatório do Banco de Desenvolvimento da Ásia citado pela The Economist, se a distribuição de
renda na região não tivesse piorado tanto nos últimos 20 anos, outros 240 milhões de pessoas poderiam ter sido
tirados da pobreza. Mesmo no Fórum Econômico de Davos, onde se reúne anualmente a elite econômica
mundial, a desigualdade já foi identificada como o problema mais urgente da próxima década. Existe, portanto,
uma audiência ávida para debater o tema. Nos EUA, onde a prolongada recessão encolheu os horizontes
econômicos de milhões de famílias, a questão está ainda mais viva. Pela primeira vez em várias gerações, os
filhos acham que não terão as mesmas oportunidades que seus pais tiveram. A classe média encolhe. A
meritocracia que fundamenta o sonho americano está ameaçada. “É por isso que o livro de Piketty fez tanto
sucesso nos EUA”, afirma o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, da Unicamp. “Os americanos sentiram que a
conversa sobre desigualdade diz respeito a eles.”
No Brasil, a situação é diferente. Assim como no resto da América Latina, a desigualdade aqui vem caindo
acentuadamente nos últimos anos, na contramão do que ocorre na maioria dos países. O economista Marcelo
Neri, ministro da Secretaria de Estudos Estratégicos da Presidência, diz que, entre 2001 e 2012, a renda dos
10% mais pobres cresceu 120%, enquanto a renda dos 10% mais ricos cresceu 26%. Os dados brasileiros não
são perfeitos. Baseiam-se em entrevistas domiciliares por amostragem, enquanto Piketty usa declarações de
Imposto de Renda e declarações de espólio. (No Brasil esses dados são sigilosos, como o próprio Piketty
descobriu ao tentar obtê-los.) É provável, portanto, que o Brasil desconheça a extensão precisa da concentração
de renda por aqui. Mesmo assim, o ganho dos mais pobres identificado por Neri é inequívoco, e a explicação
para sua existência é bastante simples. “Educação, educação e educação, mesmo de baixa qualidade”, diz Neri.
“Ela responde por 54% da redução da desigualdade.” Depois vem o resto – Bolsa Família, salário mínimo e
pensões. Essa explicação é parecida com a de Piketty. Ele escreve que “as principais forças para reduzir a
desigualdade são a difusão do conhecimento e o investimento em treinamento e habilidades”. Em uma única
palavra, educação.
Piketty esquece em seu livro alguns fatos fundamentais. Primeiro, que a globalização tem acelerado e
disseminado essa transmissão do conhecimento. Os bons governos fornecem boas escolas e boa educação,
mas são as empresas que constroem fábricas e laboratórios. São elas que treinam caixas ou programadores.
São elas que transformam estudantes talentosos em profissionais remunerados. É o capital que cria as
oportunidades – e só costuma criá-las quando a taxa de retorno (“r”) é atraente para o capitalista, ou maior que o
crescimento da economia como um todo (“g”). A mesma força que, segundo Piketty, gera desigualdade também
pode gerar distribuição de renda.
Piketty, estranhamente, parece ignorar isso. Também esquece que a globalização pode ter gerado desigualdade
nos países mais ricos, mas não no planeta como um todo. “A entrada de 3,5 bilhões de trabalhadores miseráveis
na economia global nos últimos 30 anos fez desabar os rendimentos do trabalho e aumentar o rendimento do
capital. Isso se entende no primeiro ano do curso de economia”, afirma o economista Paulo Guedes. “Não
discuto o que Piketty diz sobre a desigualdade na Europa e nos Estados Unidos. Só que ele deveria levantar a
cabeça e olhar para o equilíbrio geral. A desigualdade entre os países cai, e a riqueza total cresce. Essa é a
novidade.”
Krugman, um dos maiores admiradores de Piketty, diz que ele tampouco explica bem a questão dos
supersalários. É possível que muitos executivos se atribuam salários descolados dos ganhos de produtividade,
afirma Krugman. Mas, no setor financeiro, onde se pagam fortunas, a produtividade é medida com precisão.
Sabe-se exatamente quanto o gestor de um fundo de investimento produziu para seus clientes. Seus salários e
bônus podem parecer exorbitantes, mas não deveriam ser considerados imerecidos ou tratados como
apropriação da produtividade alheia.
Há, finalmente, uma questão técnica referente ao coração do argumento de Picketty. A lógica econômica prevê
que os rendimentos sobre o capital (o “r” da fómula de Piketty) tendem a cair quando há excesso de capital, como
acontece com qualquer ativo. É uma questão de oferta e demanda. Piketty, contudo, antevê um cenário de
acumulação crescente de capital, em que seus rendimentos continuarão, não obstante, subindo sempre mais que
o PIB ou a renda do trabalho. Economistas sérios enxergam nisso uma aparente inconsistência.
Não é, porém, no diagnóstico da situação presente que residem os pontos realmente controversos da tese de
Piketty. Como seu livro olha adiante, na direção do fim do século XXI, é possível que dentro de 50 anos “r > g”
ainda se mostre tão clarividente quanto “e = mc2”. O que desde logo está fadado a tropeçar é sua proposta de
solução imediata para a concentração de renda: impostos internacionais. Ele propõe um imposto progressivo
anual sobre as grandes fortunas, cobrado mundialmente. “Esse imposto é a única forma de controlar
democraticamente um processo potencialmente explosivo, preservando, ao mesmo tempo, o dinamismo
empresarial e a abertura econômica internacional”, afirma.
Uma longa lista de considerações poderia ser feita sobre a dificuldade prática e a ineficácia teórica dos impostos
sobre fortunas – sobretudo os internacionais que, por boas razões, nunca foram criados. Na economia mundial,
seria impossível – e indesejável – cobrar uma taxa desse tipo, capaz de colocar uma focinheira intercontinental
no espírito empreendedor do capitalista. Piketty reconhece as dificuldades, mas insiste que esse é o caminho a
seguir. As evidências mostram que não é – a começar pelas experiências do governo que ele apoia, em seu
próprio país. O presidente Hollande tentou em 2012 impor uma alíquota de 75% sobre a renda dos franceses
mais ricos. Conseguiu, além de um veto judicial, que um dos atores mais famosos do país, Gérard Depardieu,
pedisse e conseguisse cidadania russa, para escapar do Fisco. O governo de Vladimir Putin o recebeu de braços
abertos. Provavelmente fará o mesmo por quantos milionários procurem a proteção de seus passaportes em
troca de investir seu capital no país que os acolhe. Quando Piketty defende os impostos internacionais, deveria
lembrar que o planeta está repleto de governantes como Putin – e de gente como Depardieu. Eles não
esperarão por decisões de governo que avancem sobre seu patrimônio. A despeito de fórmulas sedutoras, como
“r > g”.
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