(ab)uso do álcool

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RODRIGO SOARES DE ALMEIDA
REVISÃO SISTEMÁTICA DA OCORRÊNCIA DE
ALTERAÇÕES NEUROLÓGICAS DECORRENTES DO
(AB)USO DO ÁLCOOL
JUIZ DE FORA
2011
ii
Rodrigo Soares de Almeida
REVISÃO SISTEMÁTICA DA OCORRÊNCIA DE ALTERAÇÕES
NEUROLÓGICAS DECORRENTES DO (AB)USO DO ÁLCOOL
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade
de Fisioterapia da Universidade Federal de Juiz de Fora
como requisito parcial para obtenção do título de bacharel
em Fisioterapia.
Orientadora: Profª Drª Cláudia Helena Cerqueira Mármora
JUIZ DE FORA
2011
iii
iv
Rodrigo Soares de Almeida
Revisão sistemática da ocorrência de alterações
neurológicas decorrentes do (ab)uso do álcool
O presente trabalho, apresentado como pré-requisito para aprovação na disciplina
Trabalho de Conclusão de Curso II, da Faculdade de Fisioterapia da UFJF, foi
apresentado em audiência pública à banca examinadora e aprovado no dia 07 de
Julho de 2011.
BANCA EXAMINADORA:
________________________________________
Profª Drª Cláudia Helena Cerqueira Mármora
________________________________________
Prof PhD Telmo Mota Ronzani
________________________________________
FST Ms Érica Cruvinel
v
DEDICATÓRIA
Por sempre ter acreditado em mim e investido
na minha formação, sendo muito mais do que
uma professora e sim uma mentora, dedico
este trabalho, com todo o carinho, à minha
orientadora, Profª Cláudia Mármora.
vi
AGRADECIMENTOS
À Neide, minha mãe. Base de tudo, me educou de forma plena e me mostrou
como tomar decisões, sendo capaz de distinguir entre o certo e o errado. A ela
todo o meu amor e admiração.
Às sete luzes que nortearam meu caminho durante esses anos de
universidade: Rosana Colombara, Ivone Salgado, Wilma Barbosa, Karina
Devito, Maria Lúcia Polisseni, Cyntia Corrêa e Cláudia Mármora. Nem toda
gratidão seria capaz de recompensá-las por tudo que fizeram por mim. Dizer
muito obrigado é pouco, mas já é um início.
À esplêndida banca de avaliação deste meu trabalho de conclusão de curso:
Cláudia Mármora, Telmo Ronzani, Carlos Alberto Mourão Jr., Érica Cruvinel e
Liliany Loures. A seriedade, presteza, generosidade e positividade com a qual
vocês me receberam e me aconselharam, conduziram este trabalho a um nível
muito acima do previsto. Foi um orgulho e uma honra contar com o apoio de
vocês.
À minha segunda família, minhas companheiras de curso: Amélia Deolinda,
Ana Clara Cattete, Ana Letícia Zanardi, Clarice Sinder, Débora Verneque,
Diene Schaefer, Elaine Moura, Juliana Doro, Lílian Atalaia, Lílian Verardo,
Pollyana Teixeira e Mariana Palermo. Nenhuma jornada é construída sozinha.
E ter a sorte de compartilhar a batalha com doze almas iluminadas por Deus é
mais que uma benção. Vocês moram no meu coração forever.
“Não importa o tempo que se passe. As verdadeiras amizades jamais
serão esquecidas”.
In special à minha orientadora Cláudia Mármora que, pra mim, é um espelho do
profissional que eu espero me tornar. Durante os cinco anos de curso
trabalhamos juntos em diversos projetos. E eu não me recordo de nenhum
aluno que tenho estado tanto tempo em atividade com um mesmo professor.
Só posso dizer que foi, pra mim, uma honra muito grande. O que aprendi com
você transcende os ensinamentos de uma única disciplina. E eu espero que
muitos outros cinco anos de parceria estejam pela frente. Não posso deixar de
vii
expor o quanto lhe sou grato por ter aceitado trabalhar este tema de conexão
alcoolismo – neurociências. Este trabalho só se iniciou porque você acreditou
em mim. Nem sei como agradecer isso.
Por fim, mas não menos importante, de um modo geral a todas as demais
pessoas que, às suas maneiras, contribuíram para que eu caminhasse rumo ao
final desta jornada, o meu mais sincero MUITO OBRIGADO!
[...]See, hear and feel the miracle of life
believe the signs and trust you’ll stay alive
dsecend to find the depth of your heart[...]
Tarja Turunen
Deus abençoe a todos!
Rodrigo Almeida
viii
RESUMO
O álcool é, dentre as drogas neurotóxicas, aquela com maior índice de usuários
em nível mundial. Do consumo de baixo risco ao abusivo, os efeitos nocivos do
alcoolismo são observados, durante todo o ciclo da vida, em diferentes
sistemas do organismo humano. O etanol, principal substância presente nas
bebidas, é um potencial agente depressor do Sistema Nervoso, alterando a
neuroanatomofisiologia
cerebral,
culminando
com
diversas
alterações
neuropatológicas na saúde do indivíduo bebedor. Frente ao exposto, o
presente estudo visou realizar uma revisão sistemática das publicações
recentes a respeito das alterações neurológicas decorrentes do (ab)uso do
álcool. Para tal, foi realizado um levantamento de artigos em quatro bases de
dados, através do pareamento de variáveis dicotômicas, seguido da análise de
conteúdo do material selecionado, da qual derivaram 13 categorias de
alterações neurológicas associadas ao consumo etílico. A baixa prevalência de
estudos que associam as alterações neurais com o consumo de álcool
encontrada neste trabalho fornece indícios para a premência de novas
investigações nesta linha de interação, de modo a possibilitar a implementação
de estratégias eficazes de prevenção e promoção em saúde.
Palavras-Chave: Álcool, sistema nervoso, revisão sistemática.
ix
ABSTRACT
Alcohol is, among the neurotoxic drugs, the one with the highest rate of users
worldwide. From low-risk drinking to the abusive, the harmful effects of alcohol
are observed, throughout the life cycle, in different body systems. Ethanol, the
main substance in drinks, is a potencial depressant agent from nervous system,
changing the brain neural-anatomy-physiology on the drinkers health. Based on
these, the present study aims to realize a systematic review of recent
publications about the neurological changes resulting from alcohol (over)use.
For this, an articles survey in four databases was realized, through
the pairings of dichotomous variables, followed by content analysis of selected
material, which derived 13 categories of neurological disorders associated with
alcohol consumption. The low prevalence of studies linking neural changes to
alcohol consumption found in this study, provides clues for the urgency of
further research in this line of interaction, to enable the implementation of
effective strategies for health prevention and promotion.
Keyworks: Alcohol, nervous system, systematic review.
x
LISTA DE FIGURAS, QUADROS E TABELAS
FIGURAS
Página
1. Estrutura molecular do metanol, em visões 2D e 3D,
respectivamente.
5
2. Estrutura molecular do etanol, em visões 2D e 3D,
respectivamente.
5
3. Estrutura molecular do acetaldeído, em visões 2D e 3D,
respectivamente.
6
4. Estrutura molecular do ácido acético, em visões 2D e 3D,
respectivamente.
6
5. Sinapse dos neurotransmissores, com destaque do local onde
o álcool se ligará aos receptores e promoverá interferência na
neurotransmissão.
17
6. Representação esquemática dos efeitos promovidos pelo álcool
na balança de neurotransmissão inibitória e excitatória cerebral.
19
7. Relações estabelecidas entre as alterações neurológicas e o
consumo de álcool, obtidas através da repetição de conteúdos,
observadas na análise qualitativa dos artigos.
29
8. Imagem de tomografia computadorizada mostrando
desmielinização da porção central do corpo caloso e da substância
branca.
32
9. Imagem de ressonância magnética evidenciando afecção
completa do corpo caloso e lesão cortical.
33
10. Dismorfismo fácil na FAS
36
11. Lesão cerebral por intoxicação metílica, mostrando atrofia
cortical e da substância branca subcortical, com necrose putâmica
bilateral.
40
12. Alterações na rede de neurotransmissão no uso crônico do
álcool e na síndrome de abstinência alcoólica.
42
13. Degeneração do cerebelo (atrofia do vérmis cerebelar).
49
xi
QUADROS
Página
1. Critérios para o abuso do álcool (DSM-IV-TR).
10
2. Critérios para a dependência do álcool (DSM-IV-TR).
11
TABELAS
1. Prevalência de associação entre os descritores na análise
quantitativa pelo método do pareamento de variáveis dicotômicas.
2. Resultado final do levantamento dos artigos.
3. Visão geral dos estágios de intoxicação alcoólica (e suas
sintomatologias).
Página
27
28
37
xii
SUMÁRIO
Página
1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
1
1.1 Dados iniciais: uma visão mundial sobre o consumo de
álcool
1
1.2 Conceitos sobre o álcool
3
1.3 A química do álcool
4
1.4 Padrões de consumo de álcool
7
1.4.1 Consumo moderado de álcool
8
1.4.2 Binge drinking e Beber pesado episódico
9
1.4.3 Uso nocivo/abuso
9
1.4.4 Dependência alcoólica
10
1.5 Um panorama do consumo de álcool no Brasil
11
1.6 Álcool e Sistema Nervoso
13
1.6.1 Hipóteses neurocientíficas
14
1.6.2 Interferência do álcool na neurotransmissão
16
1.6.2.1 Os sistemas neurais
17
1.6.2.2 Efeitos agudo e crônico do consumo de álcool
18
1.7 Justificativa do estudo
20
2 OBJETIVO
23
3 METODOLOGIA
24
3.1 Tipo de estudo
24
3.2 Busca dos artigos
24
3.3 Critérios para seleção dos artigos
25
xiii
3.3.1 Critérios de inclusão
25
3.3.2 Critérios de exclusão
25
3.4 Análise dos dados
25
4 RESULTADOS
27
5 DISCUSSÃO
30
5.1 Álcool Vs. Encefalopatias Alcoólicas
30
5.1.1 Síndrome de Wernicke-Korsakoff
30
5.1.2 Doença de Marchiafava-Bignami
32
5.1.3 Mielinólise Pontina Central e Mielinólise Extra-Pontina
33
5.2 Álcool Vs. Síndrome Alcoólica Fetal
34
5.3 Álcool Vs. Intoxicação alcoólica
37
5.3.1 Intoxicação por etanol
38
5.3.2 Intoxicação por metanol
39
5.3.3 Intoxicação por etilenoglicol
40
5.4 Álcool Vs. Síndrome de Abstinência Alcoólica
41
5.5 Álcool Vs. Neuropatia Ótica
43
5.6 Álcool Vs. Alterações do Córtex Pré-frontal
44
5.7 Álcool Vs. Aparelho Vestíbulo-Coclear
46
5.8 Álcool Vs. Transtorno Psicótico Induzido por Álcool
47
5.9 Demais categorias
48
5.10 Neuroplasticidade e reversibilidade dos déficits
50
6 CONCLUSÃO
52
7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
53
1
1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
1.1 Dados iniciais: uma visão mundial sobre o consumo de álcool
O ab(uso) do álcool, entendido como o uso indevido da substância
predispondo ao abuso, não necessariamente resultando em dependência, tem
se tornado cada vez mais uma prática rotineira na população global. Estima-se
que, a cada ano, o uso de bebidas alcoólicas seja consumado por cerca de
dois milhões de pessoas, correspondendo a aproximadamente 40% (ou duas
em cada cinco pessoas) da população mundial acima de 15 anos (ANTHONY,
2009).
No que concerne às consequências nocivas causadas pelo consumo
alcoólico, estima-se que dois a 2,5 milhões de pessoas morram, anualmente,
em decorrência de quadros de intoxicações alcoólicas agudas, cirrose
hepática, bem como violência e acidentes de trânsito. Traçando-se um
paralelo, a proporção entre os dados de consumo e de óbitos indica uma
relação de que a cada ano tais consequências são responsáveis por,
aproximadamente, 1,2 morte para cada 1.000 consumidores (Ibid.).
Segundo dados estatísticos disponibilizados pela Organização Mundial
de Saúde (OMS) no ano de 2010, países como Hungria, Irlanda e Luxemburgo
apresentaram consumo de álcool per capita registrado acima de 11 litros de
etanol puro para habitantes acima de 15 anos. Em outro extremo estão países
como Afeganistão, Líbia, Mauritânia e Paquistão, onde os baixíssimos valores
para o consumo per capita são menores que 0,5 litros. Registros medianos são
encontrados em países como EUA e Brasil, com valores per capita de 8,5 e 6,2
litros, respectivamente, apresentando estes dois taxas cotadas acima da média
mundial, qualificada em 4,4 litros per capita (WHOSIS, 2010).
Durante a década passada, uma crescente preocupação com os
problemas decorrentes do ab(uso) no consumo do álcool estimulou o
renascimento de ideias sobre a regulação internacional de bebidas alcoólicas,
incluindo a possibilidade de adicionar o álcool em medidas que direcionam
esforços coletivos contra a repressão de mercados ilegais para outras
2
substâncias psicoativas, como a cocaína e a heroína (ROOM, 2006, 2008).
Entretanto,
sabe-se
que
atualmente
há
uma
discussão
acerca
do
fortalecimento de políticas públicas que restrinjam o acesso ao álcool, ao passo
que permeiam uma abertura para práticas compreensivas e não moralizadas
de prevenção e tratamento.
Os argumentos apresentados tornam oportuno e necessário um olhar
minucioso para os dados epidemiológicos mundiais sobre uma seleção de
danos nocivos causados pelo abuso do álcool, com foco direcionado a tópicos
como a Carga Global de Doenças (Global Burden of Disease – GBD) atribuídas
ao consumo de bebidas alcoólicas, bem como às informações dispostas no
recente Consórcio Mundial de Pesquisas sobre Saúde Mental (World Mental
Health Surveys Consortium – WMHS) disponibilizado em arquivo pela OMS
(incluindo o site da WHO Statistical Information System – WHOSIS) e as
Síndromes de Dependência do Álcool (ANTHONY, 2009).
Torna-se útil recordar que estas consequências poderão estar
relacionadas a uma única ocasião de intoxicação (exemplo: uma intoxicação
aguda e possivelmente fatal, como parte do ritual de um trote dos calouros no
ingresso à universidade) e, algumas vezes, a um comportamento de risco,
como dirigir alcoolizado, causando uma fatalidade no trânsito ou um ferimento
não-letal. Outras, porém, necessitarão de acontecimentos em longo prazo, por
exemplo, a cirrose hepática induzida por álcool ou a síndrome da dependência
alcoólica (Ibid).
Do consumo de baixo risco ao abusivo, o álcool é a droga mais
consumida no mundo, consumo este que pode ser compreendido por múltiplas
perspectivas (LARANJEIRA et al, 2007; UNODCCP, 2010; WHO, 2004). No
que concerne à saúde pública, o consumo alcoólico pode ser um potencial
causador de doença e mortalidade, sendo um dos principais fatores
contribuintes para a diminuição da saúde mundial: o uso indevido do álcool tem
sido responsável, globalmente, por 3,2% de todas as mortes e por 4% de todos
os anos de vida útil perdidos (LARANJEIRA et al, 2007; MELONI e
LARANJEIRA, 2004; REHM et al, 2006).
3
1.2 Conceitos sobre o álcool
Desde épocas remotas, a definição de alcoolismo sempre esteve
associada ao status social, considerando o álcool um elemento que provê uma
espécie de suporte e facilitação das relações e das interações sociais.
Entretanto, foi somente com Magnus Huus, em 1849, que o termo alcoolismo
recebeu uma de suas primeiras definições, sendo considerado:
O conjunto de manifestações patológicas do sistema nervoso (SN),
nas esferas psíquica, sensitiva e motora, observadas nos sujeitos que
consumiam bebidas alcoólicas de forma contínua e excessiva,
durante um longo período de tempo (HECKMANN e SILVEIRA,
2009).
Mais tarde, com Morton Jellinek, a definição de alcoolismo foi
reestruturada e o comportamento do alcoólico passou a ser classificado como
doença, o que gerou uma noção de repercussão negativa e social (JELLINEK,
1960; MARQUES, 2001).
Atualmente, segundo a definição da OMS, o alcoolista é “um bebedor
excessivo, cuja dependência em relação ao álcool é acompanhada de
perturbações mentais, da saúde física, da relação com os outros e do
comportamento social e econômico” (WHO, 2004).
Em 2007, o Governo de Madrid, Espanha, publicou informe sobre o
álcool, destacando conceitos importantes para o entendimento do universo
acerca desta substância. De acordo com esta publicação, o termo álcool:
Refere-se ao álcool etílico ou etanol, líquido claro, incolor, volátil,
inflamável, de infinita solubilidade em água e miscível em clorofórmio
e éter. Sua lipossolubilidade é cerca de 30 vezes menor que sua
hidrossolubilidade. [...] 1 grama de álcool aporta ao organismo 7,1
Kcal, aporte energético não acompanhado de aporte nutritivo
(minerais, proteínas ou vitaminas).
A mesma publicação conceitua bebida alcoólica como aquela bebida na
qual o etanol está presente em concentração igual ou superior a 1% do seu
volume. As bebidas alcoólicas podem ser subagrupadas em duas categorias
conforme sua produção, bebidas fermentadas e bebidas destiladas, e é de
suma importância ter ciência de suas definições no momento de compreender
os hábitos etílicos de uma população específica (MSC, 2007):
4
Bebidas fermentadas são precedentes de frutas ou cereais, os quais são
convertidos em álcool através da adição de substâncias microscópicas
(leveduras). Nesta categoria se encontram duas das principais bebidas
consumidas mundialmente, a cerveja e o vinho;
Bebidas destiladas são obtidas através da eliminação por intermédio do
calor, por um processo de destilação, de uma parte da água contida nas
bebidas fermentadas. Destacam-se, neste grupo, bebidas como o
whisky e a vodka.
De suma relevância, outrossim, é o conhecimento do teor alcoólico, fator
de grande importância ao considerarmos os efeitos deletérios ocasionados pelo
(ab)uso do álcool, que expressa a quantidade absoluta de álcool presente em
uma determinada bebida. As bebidas destiladas apresentam teores alcoólicos
mais elevados em relação às fermentadas: o teor alcoólico da cerveja varia
entre 4 a 6 graus e o do vinho entre 10 a 13 graus, ao passo que a taxa
alcoólica do whisky e da vodka encontra-se em torno de 30 a 50 graus. Dizer
que o teor alcoólico da cerveja é entre 4 a 6 graus, significa dizer que 4 a 6%
daquela bebida é composta de etanol. Logicamente, as bebidas com maiores
teores alcoólicos representam maior nocividade ao organismo humano (MSC,
2007).
1.3 A química do álcool
Os álcoois são compostos que têm grupos hidroxilo (-OH) ligados a
átomos de carbono sp3. Podem ser vistos como derivados orgânicos da água
em que um dos hidrogênios foi substituído por um grupo orgânico (McMURRY,
2007).
Os
principais
componentes
desta
função
química,
ambos
representativos de grande toxicidade orgânica, são, em ordem de importância,
o etanol e o metanol (IRADI, 2008).
O metanol é o mais simples dentre os álcoois (FIG. 1). Apresenta a
menor estrutura orgânica (CH3-OH) e o menor peso molecular (M = 32 g/mol).
É utilizado como solvente industrial e como combustível (McMURRY, 2007).
Sua inalação ou ingestão são altamente tóxicas ao sistema orgânico. Os
sintomas da exposição incluem dor de cabeça, náusea, vômito, cegueira, coma
5
e, inclusive, a morte. A ingestão de baixa dose, da ordem de aproximadamente
100 a 125 mL, já é potencialmente letal ao ser humano (IRADI, 2008)
.
Figura 1 – Estrutura molecular do metanol, em visões 2D e 3D, respectivamente (FONTE:
Wikipedia, 2011).
O mais comum dentre os álcoois, o etanol (FIG. 2) é a principal
substância presente na composição das bebidas alcoólicas. Quimicamente é
uma molécula simples, de baixo peso molecular (H3C-CH2-OH, M = 46 g/mol),
obtida pela fermentação alcoólica de açúcares (glicose), hidratação do etileno
(eteno) ou degradação orgânica a acetaldeído (McMURRY, 2007).
Figura 2 – Estrutura molecular do etanol, em visões 2D e 3D, respectivamente (FONTE:
Wikipedia, 2011).
É uma molécula altamente hidrossolúvel, o que possibilita sua migração
para todos os tecidos, intra e extracelularmente, conforme a concentração de
água. Desta forma, o etanol atinge o SN por conseguir facilmente ultrapassar a
barreira hematoencefálica, principal estrutura membranosa de proteção do SN
frente a substâncias químicas presentes no sangue (IRADI, 2008).
A eliminação orgânica do álcool ocorre principalmente no fígado, onde a
enzima álcool desidrogenase (ADH) converte o etanol a etanal (acetaldeído),
produto intermediário do metabolismo do álcool. O produto final é a conversão
do etanol em ácido etanoico (McMURRY, 2007).
6
O acetaldeído (FIG. 3), composto pertencente à função orgânica aldeído,
apresenta fórmula química simples e baixo peso molecular (H3C-COH, M = 44
g/mol) (McMURRY, 2007). Um dos principais responsáveis pela sensação de
ressaca, quando a quantidade de álcool ingerida é superior à capacidade de
metabolização do etanal, esta substância se acumula no organismo, podendo
gerar sintomas como vermelhidão facial, cefaléia, taquicardia, tontura e
náuseas (IRADI, 2008).
Figura 3 – Estrutura molecular do acetaldeído, em visões 2D e 3D, respectivamente (FONTE:
Wikipedia, 2011).
Produto final do metabolismo do etanol, o ácido etanoico (H3CCOOH, M
= 60 g/mol) é um ácido carboxílico fraco e altamente corrosivo. Também
chamado de ácido acético (FIG. 4) e, popularmente conhecido como vinagre
(McMURRY, 2007), este ácido libera vapores que causam irritação e ardor nos
olhos, nariz, garganta e levam à congestão pulmonar (IRADI, 2008). Tem
ampla utilização na indústria química, sendo importante na produção de
politereftalato de etileno (PET), composto integrado na produção das garrafas
de bebidas (McMURRY, 2007).
Figura 4 – Estrutura molecular do ácido acético, em visões 2D e 3D, respectivamente (FONTE:
Wikipedia, 2011).
7
1.4 Padrões de consumo de álcool
Entender o padrão de consumo de álcool é um fator crucial ao se
analisar as interferências que este causa na saúde de determinada população.
Populações que bebem apenas ocasionalmente se apresentam menos
susceptíveis às alterações alcoólicas do que aquelas nas quais o ato de beber
se mostra uma prática constante e abusiva.
Recentemente,
evidências
científicas
tem
demonstrado
o
quão
importante é o conhecimento do padrão de uso do álcool que, associado ao
volume alcoólico total consumido, tem sido importante fator indicativo de
problemas no campo da saúde, bem como em outros setores (REHM et al,
2006).
Segundo o exposto no estudo de Elisson e Martinic (2007):
A definição do padrão de consumo é multidimensional, englobando
aspectos relacionados ao contexto do beber, à relevância cultural, à
bebida consumida, à frequência de consumo, à quantidade, ao local
da ingesta alcoólica, ao consumo durante as refeições ou não e,
finalmente, às características individuais do bebedor, sejam estas
biológicas / genéticas, sociodemográficas ou socioeconômicas.
Apesar de haver um nível de consumo etílico considerado de baixo risco,
o chamado consumo moderado de álcool, em geral, os dados epidemiológicos
mundiais tem dado grande ênfase às alterações observadas após consumos
de longo prazo. Especificamente, tem havido um foco nos transtornos
relacionados ao uso de álcool (alcohol use disorders – AUD), como
originalmente determinado na revisão textual da quarta edição do Diagnostic
and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-IV-TR) da American
Psychiatric Association (APA) em relação às duas categorias diagnósticas que
se sobrepõem, abuso de álcool e dependência de álcool, atualmente
convertidas em duas categorias não-sobreponentes, dependência de álcool e
uso de álcool não-dependente (ANTHONY, 2009; APA, 2000).
Com um desenvolvimento análogo, a OMS incorporou à sua
International Classification of Diseases, em sua décima edição (ICD-10), os
conceitos anteriormente definidos pela APA, utilizando conotações menos
pejorativas e não-moralistas, evitando os estigmas do termo abuso usado pela
8
associação americana, definindo as categorias de dependência alcoólica e uso
nocivo de álcool (ANTHONY, 2009; WHO, 2006).
De
acordo
com a literatura,
podemos
distinguir quatro níveis
diferenciados segundo os padrões de consumo de álcool. São estes o
consumo moderado (ou de baixo risco), o binge drinking e o beber pesado
episódico (BPE), o uso nocivo/abuso e a dependência alcoólica (APA, 2000;
GUNZERATH et al, 2004; LARANJEIRA et al, 2007; MSC, 2007; WHO, 2006).
1.4.1 Consumo moderado de álcool
De acordo com o exposto pela OMS, o termo consumo moderado de
álcool se mostra impreciso, definindo um padrão de consumo no qual a ingesta
alcoólica, por si só, não acarreta malefícios à saúde do indivíduo. Este é o
padrão considerado de baixo risco (GUNZERATH et al, 2004).
O National Institute on Alcohol Abuse and Alcoholism (NIAAA / USA), se
refere ao uso moderado como o consumo incapaz de causar problemas
individuais ao bebedor, nem problemas à sociedade. Aprofundando, define, em
termos de unidades de bebida, que o uso moderado corresponde ao consumo
de até 14 unidades alcoólicas (UA)/semana para homens e sete para mulheres,
tendo como unidade-padrão alcoólica a taxa de 14 g de etanol puro. Para um
consumo diário, traduz um limite de duas UA (28 g) para homens e apenas
uma (14 g) para mulheres (Ibid.).
O NIAAA aponta que existem dificuldades relacionadas à definição de
uso moderado e o consumo de álcool, concernentes às características
individuais do bebedor, como a quantidade de álcool que uma pessoa tolera
consumir, o tempo demorado para alcançar o estado de embriaguez, a
tolerância ao álcool, metabolismo e genética, estilo de vida, bem como a forma
de consumo (três doses consumidas num intervalo de uma hora, por exemplo,
acarretam maior concentração sanguínea de álcool do que o mesmo número
de doses consumidas num prazo de três horas) (Ibid.).
9
1.4.2 Binge drinking e Beber pesado epísódico
O binge drinking, termo frequentemente mal compreendido, é definido
como o consumo que pode implicar em alta probabilidade de danos futuros à
saúde física ou mental, porém não se traduzindo em problemas médicos ou
psiquiátricos atuais (MSC, 2007).
Não existe um consenso mundial sobre o nível de consumo alcoólico
que caracteriza este padrão de uso. Em virtude do exposto, a OMS
estabeleceu critérios rigorosos na tentativa de nortear tal parametração:
classifica o binge drinker como o sujeito que consome um volume alcoólico
excessivo em um curto espaço de tempo, quantificado pelo consumo de cinco
UA para homens ou quatro para mulheres em uma única ocasião (MSC, 2007;
LARANJEIRA et al, 2007).
Na tentativa de melhor elucidar este padrão de consumo, o termo beber
pesado episódico (BPE) tem sido atualmente utilizado como um substituto para
o confuso binge drinking. Caracterizado pelo consumo de pelo menos 60 g de
etanol em uma única ocasião, o BPE não qualificaria o bebedor para o
diagnóstico de uso nocivo do álcool. Porém, implicitamente, promoveria uma
situação de exposição do indivíduo a uma série de prejuízos álcool-induzidos
(ANTHONY, 2009).
Beber nestas quantidades, bem como acima delas, pode predispor o
indivíduo a episódios de intoxicação alcoólica, os quais frequentemente
culminam em importantes modificações neurofisiológicas, como desinibição
comportamental, comprometimento cognitivo, déficit de atenção, falta de
discernimento e de julgamento e diminuição da coordenação motora
(LARANJEIRA et al, 2007).
1.4.3 Uso nocivo/abuso
O consumo alcoólico prejudicial ou uso nocivo, segundo sua definição no
ICD-10, é entendido como o consumo de um volume de álcool que causa
danos à saúde, tanto mental quanto física (WHO, 2006), mensurado pelo
consumo regular médio de 60 g diárias de etanol para homens e 40 para
mulheres (REHM, et al, 2004), que pode ser mantido e reprisado, apesar das
10
consequências negativas que a substância tem causado ao indivíduo (MSC,
2007).
O DSM-IV-TR categoriza o abuso de álcool, entendido como a repetição
de problemas decorrentes do uso de álcool em pelo menos uma das quatro
esferas relacionadas ao viver: esferas social, legal, interpessoal e problemas
ocupacionais, ou persistência do uso em situações perigosas, por exemplo, ao
dirigir (APA, 2000). Ainda, define critérios que, preenchidos, enquadram o
indivíduo no padrão de abuso de álcool (QUAD. 1).
Quadro 1 – Critérios para o abuso do álcool (DSM-IV-TR).
A – Um padrão mal-adaptativo de uso de substância levando a um prejuízo ou sofrimento
clinicamente significativo, manifestado por um (ou mais) dos seguintes aspectos, ocorrendo
dentro de um período de 12 meses:
1. Uso recorrente da substância resultando em um fracasso em cumprir obrigações
importantes relativas a seu papel no trabalho, na escola ou em casa (por ex.,
repetidas ausências ou fraco desempenho ocupacional relacionados ao uso de
substância; ausências, suspensões ou expulsões da escola relacionadas a substância;
negligência dos filhos ou dos afazeres domésticos);
2. Uso recorrente da substância em situações nas quais isto representa perigo físico (por
ex., dirigir um veículo ou operar uma máquina quando prejudicado pelo uso da
substância);
3. Problemas legais recorrentes relacionados à substância (por ex., detenções por
conduta desordeira relacionada a substância);
4. Uso continuado da substância, apesar de problemas sociais ou interpessoais
persistentes ou recorrentes causados ou exacerbados pelos efeitos da substância (por
ex., discussões com o cônjuge acerca das conseqüências da intoxicação, lutas
corporais).
B – Os sintomas jamais satisfizeram os critérios para dependência para esta classe de
substância.
1.4.4 Dependência alcoólica
Considerada o estado mais crítico no uso do etanol, a dependência
alcoólica é traduzida pela OMS (2006) como:
Um conjunto de fenômenos comportamentais, cognitivos e
fisiológicos que se desenvolvem após repetido consumo do álcool,
tipicamente associado ao desejo poderoso de tomar a droga, à
dificuldade de controlar o consumo, à utilização persistente apesar
das suas conseqüências nefastas, a uma maior prioridade dada ao
uso da droga em detrimento de outras atividades e obrigações, a um
aumento da tolerância pela droga e, por vezes, a um estado de
abstinência física.
11
De acordo com a definição da APA, a dependência do álcool é
caracterizada pela repetição de problemas do uso recorrente do álcool em pelo
menos três das sete áreas de funcionamento, ocorrendo conjuntamente, em
um período mínimo de 12 meses (QUAD. 2). Maior ênfase é atribuída à
tolerância e/ou sintomas de abstinência, condições associadas a um curso
clínico de maior gravidade (APA, 2000).
Quadro 2 – Critérios para a dependência do álcool (DSM-IV-TR).
Um padrão mal-adaptativo de uso de substância, levando a prejuízo ou sofrimento
clinicamente significativo, manifestado por três (ou mais) dos seguintes critérios, ocorrendo a
qualquer momento no mesmo período de 12 meses:
1. Tolerância, definida por qualquer um dos seguintes aspectos:
a. Uma necessidade de quantidades progressivamente maiores da substância
para adquirir a intoxicação ou efeito desejado;
b. Acentuada redução do efeito com o uso continuada da mesma quantidade de
substância.
2. Abstinência, manifestada por qualquer dos seguintes aspectos:
a. Síndrome de abstinência característica para a substância;
b. A mesma substância (ou uma substância estreitamente relacionada) é
consumida para aliviar ou evitar sintomas de abstinência.
3. A substância é frequentemente consumida em maiores quantidades ou por um
período mais longo que o pretendido;
4. Existe um desejo persistente ou esforços mal-sucedidos no sentido de reduzir ou
controlar o uso da substância;
5. Muito tempo é gasto em atividades necessárias para a obtenção da substância (por
ex., consultas a múltiplos médicos ou fazer longas viagens de automóvel), na
utilização da substância (por ex., fumar em grupo) ou na recuperação de seus efeitos;
6. Importantes atividades sociais, ocupacionais ou recreativas são abandonadas ou
reduzidas em virtude do uso da substância;
7. O uso da substância continua, apesar da consciência de ter um problema físico ou
psicológico persistente ou recorrente que tende a ser causado ou exacerbado pela
substância (por ex., uso atual de cocaína, embora o indivíduo reconheça que sua
depressão é induzida por ela, ou consumo continuado de bebidas alcoólicas, embora
o indivíduo reconheça que uma úlcera piorou pelo consumo do álcool).
1.5 Um panorama do consumo de álcool no Brasil
Estudos recentes, com foco nas populações dos países da América
Latina e região do Caribe (ALC), onde se encontram México, Chile e Brasil,
proveram apoio à produção científica destinada a evidenciar a carga crescente
de doenças mentais, incluindo o consumo alcoólico, nesta região (KOHN et al,
2005).
12
Segundo o estudo de Lopez (2006), “o álcool é considerado um dos
principais fatores de risco para a Carga Global de Doenças, particularmente na
ALC, onde 10% das mortes e incapacitações são atribuídas ao seu consumo”.
O Brasil está contido na região B estabelecida pela OMS, na qual há baixas
taxas de mortalidade infantil e em adultos e onde o álcool é observado como o
principal fator de risco para a carga de doenças (REHM e MONTEIRO, 2005).
Conforme dados recentes disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil, país de poder aquisitivo médio, o maior
dentre o grupo ALC com população atual de aproximadamente 190 milhões de
habitantes, vive um momento de transição epidemiológica, decorrente do
processo de urbanização, aumento na taxa de expectativa de vida
populacional, redução dos níveis de pobreza e modificação dos padrões de
morbidade e mortalidade (IBGE, 2010). Tais mudanças culminam em gastos
mais dispendiosos com a saúde, aumentando os custos, diretos e indiretos,
estimados com o consumo de álcool e outras drogas, geralmente gastos
direcionados a tratamentos.
O Brasil apresenta pontuação 3 de 4 no critério criado para a Avaliação
de Risco Comparativo (Comparative Risk Assessment – CRA), módulo da
GBD, projetado para avaliar mudanças na saúde da população, resultantes da
exposição ao consumo nocivo de álcool, situando-se num panorama que
caracteriza um comportamento prejudicial no que concerne ao consumo de
álcool (REHM e MONTEIRO, 2005).
Em nosso país não existe um consenso sobre o consumo moderado de
álcool. Um levantamento epidemiológico realizado no estado de São Paulo no
ano de 2005 propôs como consumo moderado o uso de, aproximadamente,
três doses alcoólicas por ocasião, em uma base semanal (KERR-CORRÊA et
al, 2005).
Em 2007 foi realizado o I Levantamento Nacional sobre os Padrões de
Consumo de Álcool na População Brasileira, estudo que permitiu esclarecer
algumas questões ainda em aberto acerca de como o bebedor brasileiro se
relaciona com o álcool. Este estudo contemplou tópicos que avaliam o quanto e
13
como bebe o brasileiro, tanto adulto como adolescente (LARANJEIRA et al,
2007).
Segundo os dados publicados por este levantamento, 52% dos
brasileiros adultos (acima de 18 anos) consomem bebida alcoólica ao menos
uma vez ao ano. A porcentagem restante, 48%, reflete a porção da população
enquadrada no grupo dos abstêmios (indivíduos que não bebem ou o fazem
menos de uma vez ao ano). Dos adultos que bebem 38% dos homens e 17%
das mulheres consumiram cinco ou mais doses alcoólicas em cada ocasião, o
que representa um número expressivo de usuários de álcool em quantidades
potencialmente prejudiciais. Dentre os adolescentes, 9% bebem mais que uma
vez por semana, sendo que aproximadamente 1/5 destes se enquadra no
padrão binge drinking (Ibid.).
No que concerne ao tipo de bebida alcoólica consumida, a cerveja
mostrou-se como opção de escolha em ambos os grupos: nos adultos, a
cerveja (ou chopp) é consumida a uma taxa de 65%, seguida pelo vinho (25%).
O padrão se repete no consumo alcoólico entre os adolescentes, no qual a
cerveja (ou chopp) é consumida a uma taxa de 52% e o vinho 35% (Ibid.). Tais
valores apontam que as bebidas fermentadas são a opção de escolha na hora
do consumo de álcool, sendo as principais responsáveis pelos efeitos
deletérios decorrentes do (ab)uso de álcool dentre os bebedores brasileiros.
Analisando um padrão que considera as variáveis frequência de
consumo alcoólico e quantidade consumida, observou-se que 48% da
população são abstinentes, 24% bebem frequentemente e pesado e 29% são
bebedores pouco frequentes e não fazem uso pesado (Ibid.).
1.6 Álcool e Sistema Nervoso
O álcool é uma substância com ação depressora das funções cerebrais
e do sistema nervoso, podendo tanto alterar sua estrutura quanto seu
funcionamento,
de
modo
considerável,
promovendo
uma deterioração
neurofisiopsicológica (Ibid.). Estudos in vitro evidenciaram que o etanol é um
potente tóxico celular, susceptível de promover a morte das células, bem como
de afetar a sua proliferação, apresentando efeitos graves sobre as células
14
neurais em desenvolvimento, sendo igualmente prejudicial às células
diferenciadas (BOTELLA, 2003).
O álcool consumido de forma aguda pode levar à alteração das funções
cognitivas, as quais podem persistir nas fases iniciais da abstinência. Já o
consumo crônico contínuo culmina em deterioração das funções neurológicas,
produzindo alterações morfológicas e neuroquímicas no Sistema Nervoso
Central (SNC). De outro lado, o consumo crônico intermitente, equivalente ao
consumo de fim de semana, promove uma queda do metabolismo energético
dos sistemas neuronais, contribuindo para o processo de neurodegeneração e
deterioração das funções cerebrais (GARCÍA-MORENO et al, 2008).
Considerando o exposto acima, o aumento do consumo de álcool por
parte dos adolescentes (13 a 17 anos) torna-se um fator neurologicamente
preocupante. A adolescência compreende um período crítico de maturação
cerebral. É nessa etapa da vida onde as áreas corticais se mostram mais
susceptíveis aos processos de remodelamento e desenvolvimento da
plasticidade cerebral, buscando promover adaptação dos circuitos neuronais e
suas conexões sinápticas às necessidades do ambiente no qual se
desenvolvem os adolescentes. Com o processo de maturação ainda
incompleto, estruturas como o córtex frontal, hipocampo e sistema límbico,
cerebelo e hipotálamo se mostram altamente vulneráveis às agressões
externas (Ibid.).
1.6.1 Hipóteses neurocientíficas
Buscando explicar o padrão de deterioração cerebral ocasionada pelo
consumo de álcool, três hipóteses foram fundamentadas, a saber: (1)
vulnerabilidade do hemisfério direito, (2) dano cerebral difuso e (3)
vulnerabilidade
diferencial
do
lobo
frontal
(ou
circuito
fronto-límbico-
diencefálico) (BOTELLA, 2003; LANDA et al, 2006). Essas hipóteses devem
ser vistas como três modelos distintos de interpretação da ação e do efeito do
álcool sobre o SNC (IRUARRIGAZÁ et al, 2001).
A primeira hipótese, vulnerabilidade do hemisfério direito, fundamenta
que o consumo de álcool promove alterações neurodegenerativas ou
15
eletrofisiológicas que são mais pronunciadas no hemisfério direito (LANDA et
al, 2006). Segundo esta hipótese, ocorre uma diminuição nas funções
visuoespaciais e perceptivomotoras, condicionadas pelo hemisfério cerebral
direito, ao passo que nota-se escassa afetação das capacidades verbais,
controladas pelo hemisfério cerebral esquerdo (BOTELLA, 2003).
Esta hipótese apresenta duas vertentes: a primeira aponta que o álcool
promove alterações eletrofisiológicas e neurodegenerativas, expressas de
modo assimétrico e mais pronunciado no hemisfério direito do cérebro. A
segunda sustenta a ideia de que, apesar de as alterações biológicas de ambos
os hemisférios serem comparáveis em tipo e em extensão, os processos
mediados pelo hemisfério direito são mais vulneráveis e susceptíveis aos
efeitos deletérios do álcool que os do hemisfério esquerdo (IRUARRIGAZÁ et
al, 2001).
O dano cerebral difuso, segunda hipótese fundamentada, defende que o
consumo crônico de álcool produz efeitos neurotóxicos em todo o cérebro,
ocasionando uma afetação cognitiva generalizada, de intensidade leve a
moderada (LANDA et al, 2006). O álcool promove uma alteração simultânea
em várias regiões cerebrais, comprometendo as funções neuropsicológicas a
estas associadas, sendo muito possível que, mesmo que existam áreas mais
vulneráveis ao efeito neurotóxico do álcool, o dano ocorra de modo difuso,
dado que o cérebro não está composto de compartimentos isolados, mas sim
de áreas com elevada e complexa conexão entre si (BOTELLA, 2003).
A terceira e última hipótese, vulnerabilidade diferencial do lobo frontal,
afirma que a região frontal, em detrimento de suas características específicas,
é mais sensível aos efeitos tóxicos do álcool (LANDA et al, 2006),
apresentando déficits em uma grande variedade de suas funções. De acordo
com o estudo de Botella (2003): “os bebedores crônicos são passíveis de
apresentar um pensamento rígido e pouco flexível, deficiência da resolução de
problemas, elaboração de planos e alternativas de conduta, e diminuição da
fluidez verbal”.
16
1.6.2 Interferência do álcool na neurotransmissão
O álcool é enquadrado dentro do grupo de drogas psicotrópicas,
substâncias que atuam no SNC do organismo promovendo modificações
neuroanatomofisiológicas
e/ou
comportamentais.
Tem
caráter
dose-
dependente, uma vez que em diferentes dosagens o álcool pode ter ação tanto
estimulante quanto inibitória. Apesar desta dualidade, esta droga é considerada
como depressora, com ação bloqueadora do funcionamento cerebral
adequado: o córtex cerebral atua de modo integrador de estímulos e ações,
estando esta função inibida sob o efeito alcoólico (ZALESKI et al., 2004).
O sistema nervoso, de modo metafórico, atua como um eixo de
equilíbrio, com dois pratos em suas extremidades: de um lado desta balança
encontram-se os neurotransmissores excitatórios, de atuação estimulante; do
outro, os inibitórios, de atuação depressora. O etanol representa um potencial
agente desregulador desta balança de equilíbrio, enfatizando o poder de
atuação depressora dos neurotransmissores, inibindo a ativação excitatória ou
promovendo uma ação combinada de ambos os mecanismos, enfatizando o
poder de inibição (VALENZUELA, 1997).
O etanol é um agente capaz de alterar funcionalmente todas as células
do organismo, tendo poderoso foco de ação neuronal. Apresenta a propriedade
de interação com a camada bilipídica da membrana neuronal, modificando
suas características de permeabilidade, fluidez e função proteica. Tais
alterações desregulam a normal atividades das bombas de Na+/K+ e das
ATPases, comprometendo a condução elétrica e os Potenciais de Ação celular
(PA’s). Apesar do exposto, são as interferências promovidas pelas interações
do álcool com os neurotransmissores as mais elucidadas até o presente
momento (Ibid.).
O álcool tem como sítios de ação uma extensa variedade de alvos nas
membranas celulares (FIG. 5), apresentando a propriedade de alterar as
funções dos receptores através de interações dose-dependentes em diversos
sistemas
neurais,
destacando
preferencialmente
os
GABAérgico
e
glutamatérgico e, secundariamente, os dopaminérgico, serotoninérgico e
colinérgico, muitos dos quais encontram-se ainda em processo de maturação
17
durante a adolescência, fato que potencializa o efeito neurotóxico do álcool
durante esta faixa etária (CARVALHO, 2009).
Figura 5. Sinapse dos neurotransmissores, com destaque do local onde o álcool se ligará aos
receptores e promoverá interferência na neurotransmissão (FONTE: Espaço Comenius, 2011).
1.6.2.1 Os sistemas neurais
O sistema GABAérgico é o principal mediador inibitório do sistema
nervoso, estando seus receptores GABA (ácido gama-aminobutírico) entre os
principais sítios de ligação para os efeitos comportamentais decorrentes do
ab(uso) do álcool, com destaque para os efeitos ansiolíticos e, no consumo em
altas dosagens, sedação alcoólica (CARVALHO, 2009; LENT, 2010).
O sistema glutamatérgico é o principal mediador excitatório do SN.
Controlado pelos receptores NMDA (N-metil D-aspartato), este sistema tem
característica dose-dependente, podendo ser alterado desde a ingestão de
diminutas concentrações de etanol (da base de 1,74-8,65 mM), as quais
aumentam a probabilidade de abertura do canal iônico em células hipocampais,
sem interferirem no tempo de abertura do canal, até o consumo alcoólico em
altas concentrações (86,5-174 mM), promovendo diminuição da probabilidade
de abertura dos canais, bem como do tempo de abertura destes. Desta forma,
a inibição da via excitatória glutamatérgica pelo etanol contribui sensivelmente
para a potencialização dos seus efeitos ansiolíticos e neurotóxicos, com ênfase
na intoxicação, nos sintomas de abstinência e nos episódios de amnésia
alcoólica (Ibid.).
18
A interferência do álcool nos demais sistemas, conforme o observado na
literatura, não se encontra tão bem elucidada quanto ao exposto acerca dos
dois sistemas principais vistos acima. Os sistemas dopaminérgico e
serotoninérgico tem sido considerados envolvidos na resposta de recompensa
cerebral frente ao consumo alcoólico. O sistema colinérgico, atualmente
reconhecido como importante sítio de ligação do etanol, tem demonstrado
grande aumento na liberação sináptica de GABA, glutamato e outros
neurotransmissores, de modo que a modulação de seus receptores causada
pelo álcool pode promover uma cascata de eventos sinápticos envolvendo
diversos
neurotransmissores,
culminando
em
inúmeras
alterações
comportamentais (CARVALHO, 2009; LENT, 2010).
1.6.2.2 Efeitos agudo e crônico do consumo de álcool
O
consumo
alcoólico
agudo
deprime
a
atuação
cerebral
desestabilizando a balança entre a neurotransmissão inibitória e excitatória
(PÉREZ-RIAL et al, 2003; VALENZUELA, 1997). Seu efeito depressor neuronal
pode
estar
inicialmente
associado
a
alterações
comportamentais
de
intoxicação, sendo as mais comumente observadas: diminuição da atenção,
alterações memoriais, variações de humor e sonolência. Prosseguindo no
consumo agudo, o indivíduo pode entrar em estado de letargia, confusão,
amnésia alcoólica, perdas sensoriais, dificuldade respiratória e, em alguns
casos, ir à morte. As atitudes excitatórias, frequentemente experimentadas
durante o consumo alcoólico agudo, são, em parte, causadas por uma
supressão dos sistemas de neurotransmissão inibitória (VALENZUELA, 1997).
Atuando no sistema neural GABAérgico, o consumo de álcool a médio
prazo potencializa a ação inibitória dos receptores GABA localizados no córtex
cerebral. Ainda, incrementa a função dos receptores de glicina, principal
neurotransmissor
inibitório
da
medula
espinhal
e
a
ativação
de
neuromodularores inibitórios, como a adenosina. Tal ativação promove um
estado de sedação (a inibição deste neuromodulador causa o efeito oposto)
(PÉREZ-RIAL et al, 2003; VALENZUELA, 1997).
O efeito sedativo observado no consumo agudo de álcool também pode
ser resultante da redução da neurotransmissão excitatória, atuando o etanol
19
como um inibidor da atividade do ácido glutâmico e do aspartato, deprimindo a
ação
do
sistema
neural
glutamatérgico
(PÉREZ-RIAL
et
al,
2003;
VALENZUELA, 1997).
Quando o consumo de álcool se cronifica, as alterações neuroquímicas
cerebrais tendem a inverter-se. O cérebro entra em um padrão de busca do
restabelecimento
do
equilíbrio
inibição-excitação,
reduzindo
a
função
GABAérgica por uma diminuição da expressão do receptor GABA e
aumentando a atividade excitatória glutamatérgica, posto que o consumo
prolongado de álcool promove uma adaptação dos receptores glutâmicos ao
estímulo inibitório, potencializando sua ação excitatória (Ibid.). Ainda, um
decréscimo compensatório na ativação da adenosina é observado no consumo
alcoólico crônico (VALENZUELA, 1997).
A figura 6 abaixo exemplifica, de modo didático, as alterações ocorridas
nos sistemas de neurotransmissão GABAérgica e glutamatérgica, quando dos
consumos agudo e crônico do álcool.
Figura 6 – Representação esquemática dos efeitos promovidos pelo álcool na balança de
neurotransmissão inibitória e excitatória cerebral (FONTE: Martins, 2011).
20
1.7 Justificativa do estudo
O ab(uso) no consumo de álcool expõe o indivíduo a um conjunto de
sintomas físicos e/ou psicológicos. Os sintomas físicos manifestam-se como
pequenos sinais de abstinência, os quais podem apresentar múltiplas origens,
a saber: neuromusculares, cujos sintomas são caracterizados por tremores,
cãibras ou parestesias; digestivos, caracterizados por náuseas ou vômitos;
neurovegetativos, por suores, taquicardia ou hipotensão ortostática; e
psíquicos, tais como ansiedade, humor depressivo, irritabilidade, insônias ou
pesadelos. A tolerância também é sintoma latente e caracteriza-se pela
resistência aos efeitos do álcool (HECKMANN e SILVEIRA, 2009).
Os sintomas psicológicos são percebidos por intermédio de três pontos
principais: a alteração do comportamento face ao álcool, a perda do controle e
o desejo intenso de consumi-lo (Ibid.).
Esses importantes acometimentos, tanto físicos quanto psíquicos, que a
dependência alcoólica traz ao indivíduo podem, na maioria das vezes, causar
prejuízos laborais e ocupacionais, desestruturação do núcleo familiar,
comportamentos violentos (por exemplo, homicídios), acidentes de trânsito,
exclusão social, dentre tantos outros (Ibid.).
Sabe-se que o álcool atua como grande depressor da função hepática,
sendo responsável por inúmeros casos de gastrite e de cirrose, sendo este um
foco importante de atenção à saúde do indivíduo alcoolista. Entretanto, o álcool
também atua como um potencial depressor das ações do sistema nervoso,
tanto central quanto periférico, exacerbando a atuação do neurotransmissor
GABA (ácido gama-aminobutírico), forte inibidor do SN, levando ao
relaxamento e sedação do organismo (CISA, 2011).
Os efeitos do álcool no organismo são percebidos invariavelmente com a
quantidade. Em pequenas quantidades, o álcool promove desinibição e
sensações de
conforto
e liberdade. Porém,
com o aumento desta
concentração, o indivíduo passa a apresentar uma importante diminuição da
resposta aos estímulos, alteração da fala (a qual se torna confusa e, por vezes,
arrastada), dificuldade na deambulação, bem como amnésias anterógradas
21
(blackouts alcoólicos) e déficits cognitivos temporários, inclusive dificuldades de
resolução de problemas, abstração, memorização e aprendizado (CISA, 2011).
O abuso, entendido como o uso problemático de álcool, e sua posterior
dependência, são os transtornos comumente relacionados ao consumo
alcoólico. Relativamente comuns, são potencialmente letais, pois podem
mimetizar e exacerbar as condições psicológicas individuais pré-existentes,
podendo diminuir, em até 10 anos, a expectativa de vida das pessoas afetadas
(Ibid.).
Sintomas neurobiológicos como o delirium tremens, assim como as
alterações e perturbações psicóticas do humor, da ansiedade ou do sono, a
disfunção sexual e demências induzidas pelo álcool (por exemplo, síndrome ou
demência de Korsakoff) também estão intimamente associados ao consumo
alcoólico abusivo (APA, 1994; CISA, 2011; ZUBARAN et al, 1996).
O álcool, evidenciado como a droga psicotrópica de maior consumo em
âmbito global atualmente, é uma substância potencialmente depressora das
funções orgânicas. O desenvolvimento cerebral em todo o ciclo de vida, desde
a fase intra-uterina até o envelhecimento, encontra-se prejudicado pelos efeitos
neurotóxicos promovidos pelo consumo etílico, trazendo repercussões nas
esferas pessoal, familiar, ocupacional e social. Não obstante, é extensa a gama
de possibilidades de efeitos deletérios que esta droga pode causar ao sistema
nervoso independente da etapa da vida, com transtornos decorrentes de seu
uso prejudicial e/ou dependência. Frente a estes pressupostos, o entendimento
das interações neuroquímicas e das alterações neurológicas decorrentes do
(ab)uso de álcool traduz-se como elucidações fundamentais para o
desenvolvimento de políticas públicas e programas de combate à droga,
possibilitando a definição de estratégias que visam ao fortalecimento da rede
de assistência aos usuários de álcool, com ênfase na reabilitação e reinserção
social destes indivíduos. Deste modo, uma análise sistemática da literatura
científica, objetiva e criteriosa, pode se constituir em uma ferramenta valiosa
para verificar em que medida este tema encontra-se elucidado, bem como para
possibilitar novos rumos de pesquisa nesta temática do alcoolismo, sempre tão
22
contemporâneo, ainda assumido como um dos grandes problemas da saúde
pública mundial.
23
2 OBJETIVO
O objetivo desse estudo foi realizar uma revisão sistemática da literatura
científica sobre as alterações neurológicas decorrentes da exposição da
população ao consumo de álcool.
24
3 METODOLOGIA
3.1 Tipo de estudo
Trata-se de um estudo de revisão sistemática de artigos científicos
segundo descritores referentes ao sistema nervoso e ao alcoolismo.
3.2 Busca dos artigos
As
bases
eletrônicas
de
dados
utilizadas
foram
quatro
das
disponibilizadas pela Bireme (Biblioteca Virtual da Saúde), a saber: Biblioteca
Cochrane, IBECS (Índice Bibliográfico Espanhol de Ciências da Saúde), Lilacs
(Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde), e SciELO
(Scientific Electronic Library Online). A busca, realizada por um único
pesquisador, restringiu-se a um prazo de 10 anos para publicação na base de
dados, com início em janeiro do ano 2000 e finalização em dezembro do ano
2010, considerando apenas o material publicado nas línguas portuguesa,
inglesa e espanhola.
Os descritores mais apropriados à pesquisa foram selecionados dentre
ampla lista e são estes, em ordem alfabética, a saber: 1. alcoolismo, 2. ataxia,
3. deficiência de tiamina, 4. deficiência de vitaminas do complexo B, 5.
degeneração neural, 6. degeneração walleriana, 7. delirium por abstinência de
álcool, 8. doenças do nervo vestibulococlear, 9. doenças do sistema nervoso
periférico, 10. encefalopatia de Wernicke, 11. intoxicação alcoólica, 12. neurite
óptica, 13. neuropatia alcoólica, 14. polineuropatias, 15. polirradiculoneuropatia,
16. psicoses alcoólicas, 17. síndrome alcoólica fetal, 18. síndrome de Cushing,
19. síndrome de Korsakoff, 20. transtorno amnésico alcoólico, 21. transtornos
da consciência, 22. transtornos induzidos por álcool, 23. transtornos
neurológicos da marcha e 24. transtornos nutricionais. Todos os descritores
estão em conformidade com a base DeCS e nesta definidos.
25
3.3 Critérios para seleção dos artigos
3.3.1 Critérios de inclusão
Os artigos foram analisados primeiramente através de seus resumos e
títulos e, posteriormente, por meio da leitura integral, sendo selecionados
aqueles que relacionavam as alterações do sistema nervoso, tanto central
quanto periférico, ao consumo etílico. Somente foram considerados os artigos
de revisão (sistemática e literária) e de dados empíricos.
3.3.2 Critérios de exclusão
Foram desconsiderados os artigos publicados nas bases de dados fora
da margem de tempo estipulada, bem como aqueles que apenas citavam o
álcool como um agente depressor neural, sem tê-lo como foco central de
estudo ou sem estabelecer uma relação entre as alterações neurológicas e o
alcoolismo. Foram excluídos livros, capítulos de livros, teses e dissertações.
Entretanto, tais publicações foram utilizadas para a fundamentação teórica
deste trabalho.
3.4 Levantamento e análise dos dados
O levantamento dos artigos foi realizado sob duas óticas distintas.
Primeiramente, cada descritor foi pesquisado isoladamente em cada uma das
bases de dados citadas (por exemplo, uma pesquisa para o descritor 1,
alcoolismo, outra pesquisa para o descritor 2, ataxia, e assim sucessivamente).
Posteriormente, associou-se o primeiro descritor, alcoolismo, a cada um dos
demais 23 descritores, realizando uma busca por pareamento de variáveis
dicotômicas
(exemplo:
alcoolismo
AND
ataxia,
descritores
1
e
2,
respectivamente). Por meio deste segundo método, que objetivou verificar a
ocorrência de associação entre as duas variáveis (descritores), os dados
obtidos foram analisados quantitativamente.
Esses dois métodos distintos de levantamento de artigos apresentaram
divergência no referente ao número de artigos encontrados:
Pesquisa por descritor isolado: 52 artigos obtidos;
26
Pesquisa pelo método de pareamento de variáveis dicotômicas: 18
artigos encontrados, todos constando do resultado da pesquisa pelo
método anterior.
Frente ao exposto, consideramos como amostra total deste estudo os 52
artigos obtidos pelo levantamento através dos descritores isolados (primeiro
modo de pesquisa).
Seguidamente, os dados foram submetidos à análise qualitativa de
conteúdo seguindo o critério de frequenciamento ou quasi-quantitativo, que
visou o agrupamento, mediante repetição, de conteúdos comuns encontrados
nos artigos selecionados, os quais serviram de base para a formação de
subcategorias que se relacionavam entre si, de onde derivaram as treze
categorias específicas de alterações neurológicas associadas ao (ab)uso de
álcool explicitadas neste trabalho, a saber: encefalopatias alcoólicas, síndrome
alcoólica fetal, intoxicação alcoólica, síndrome de abstinência alcoólica,
neuropatia óptica, alterações do córtex pré-frontal, aparelho vestíbulo-coclear,
transtorno psicótico induzido por álcool, dano cerebral (AVE ou TCE), distúrbios
nutricionais, alterações cerebelares, síndrome de Cushing e alterações da
memória.
27
4 RESULTADOS
A análise quantitativa evidenciou que nem todos os descritores
demonstraram associação quando pareados ao descritor principal, alcoolismo.
Dos 23 pareamentos, oito não se relacionaram (TAB. 1).
Tabela 1 – Prevalência de associação entre os descritores na análise quantitativa pelo método
do pareamento de variáveis dicotômicas.
PAREAMENTO
Ataxia
Deficiência de tiamina
Deficiência de vitaminas do
complexo B
Degeneração neural
Degeneração walleriana
Delirium por abstinência de
álcool
Doenças do nervo
vestibulococlear
Doenças do sistema nervoso
periférico
Encefalopatia de Wernicke
Intoxicação alcoólica
Neurite óptica
Neuropatia alcoólica
Polineuropatias
Polirradiculoneuropatia
Psicoses alcoólicas
Síndrome alcoólica fetal
Síndrome de Cushing
Sindrome de Korsakoff
Transtorno amnésico
alcoólico
Transtornos da consciência
Transtornos induzidos por
álcool
Transtornos neurológicos da
marcha
Transtornos nutricionais
ALCOOLISMO
Houve
associação?
Frequência (ƒ) de artigos
que se associaram
Sim
Não
Não
2
0
0
Porcentagem (%)
de associação
para n = 52
3,8
0
0
Sim
Não
Sim
1
0
4
1,9
0
7,7
Não
0
0
Sim
1
1,9
Sim
Sim
Sim
Sim
Não
Não
Sim
Sim
Sim
Sim
Sim
2
2
1
2
0
0
2
4
1
2
1
3,8
3,8
1,9
3,8
0
0
3,8
7,7
1,9
3,8
1,9
Não
Sim
0
1
0
1,9
Sim
1
1,9
Não
0
0
28
É igualmente importante atentar à baixa prevalência de associação entre
o descritor alcoolismo e os quinze demais. As maiores taxas de relação foram
observadas para os descritores delirium por abstinência de álcool e síndrome
alcoólica fetal, com o levantamento de quatro artigos para cada, numa amostra
total de 52, o que representa uma taxa de aproximadamente 8% de associação
para cada um desses dois pareamentos. Os demais tiveram taxas de relação
variando em 2 ou 4%.
Em números totais, foram encontrados 8.928 artigos, dos quais apenas
52 atenderam aos critérios de inclusão deste estudo (TAB 2). Este dado remete
a um descarte de, aproximadamente, 99,4% de todo o material encontrado,
evidenciando uma baixa porcentagem de estudos que associam a ocorrência
de alterações neurológicas ao (ab)uso de álcool.
Tabela 2 – Resultado final do levantamento dos artigos.
ARTIGOS / BASES DE
DADOS
Total
Encontrados
Selecionados
Descartados
Biblioteca
Cochrane
IBECS
LILACS
SciELO
Todas as
Bases
898
0
898
1587
32
1555
5807
17
5790
636
3
633
8928
52
8876
Apesar da baixa prevalência de associação na análise quantitativa, os
artigos selecionados evidenciaram uma sensível variedade de alterações
neurológicas álcool-induzidas, traduzidas nas treze categorias anteriormente
citadas. O material selecionado permitiu, ainda, observar que o álcool não
demonstra nenhuma predileção por qualquer área específica do SN, estando
todas passíveis de sofrerem seus efeitos deletérios, desde o córtex até os
nervos periféricos.
A repetição ou semelhança de conteúdos em diferentes artigos
evidenciou algumas alterações como um foco de maior frequência de
investigação, destacando-se as encefalopatias alcoólicas, a síndrome alcoólica
fetal, as intoxicações alcoólicas e as síndromes de abstinência do álcool. A
síndrome de Cushing, as alterações da memória e as alterações cerebelares
foram, dentre as treze categorias, aquelas com menores índices de relação
com o consumo de álcool (FIG. 7).
29
Figura 7 – Relações estabelecidas entre as alterações neurológicas e o consumo de álcool,
obtidas através da repetição de conteúdos, observadas na análise qualitativa dos artigos..
30
5 DISCUSSÃO
A extensa variabilidade de alterações neurológicas mediadas pelo
consumo etílico, somada ao fato de que o comprometimento de diferentes
áreas do SN produzirá sintomas os mais distintos, torna necessária a
discussão das categorias anteriormente mencionadas de modo a expor
claramente o caráter deletério do álcool.
5.1 Álcool Vs. Encefalopatias Alcoólicas
As
encefalopatias
alcoólicas
(EA)
constituem
um
grupo
de
acometimentos específicos que alteram estruturalmente o encéfalo, traduzidos
em danos cognitivos e comportamentais. Destacam-se, dentre as EA, a
síndrome de Wernicke-Korsakoff, a doença de Marchiafava-Bignami e as
mielinólises pontina central e extra-pontina (MARTÍNEZ e GUTIÉRREZ, 2002).
5.1.1 Síndrome de Wernicke-Korsakoff
Caracterizada como uma deficiência de origem metabólica, a síndrome
de Wernicke-Korsakoff (SWK) ocorre em resposta a um déficit de tiamina
(vitamina B1), relacionada ao uso crônico de álcool, acompanhada de má
nutrição e insuficiência na absorção intestinal de nutrientes (BLANCO-MUÑEZ
et al, 2006; BOTELLA, 2003; JOVER et al, 2004).
Descrita inicialmente como duas entidades distintas, a encefalopatia de
Wernicke e a psicose de Korsakoff (MACIELl e KERR-CORRÊA, 2004), a
síndrome é caracterizada por uma tétrade de sinais: amnésia anterógrada,
desorientação temporoespacial, confabulação e falsos reconhecimentos
(GARRIDO e FERNÁNDEZ-GUINEA, 2004).
A encefalopatia de Wernicke (EW) surge de modo agudo ou subagudo,
secundário ao déficit vitamínico, cursando habitualmente com alterações
oculomotoras (oftalmoplegia e nistagmo), ataxia e alterações da marcha,
transtornos da consciência (episódios de desorientação, agitação e inversão do
ciclo sono-vigília), com possibilidade de evolução ao estado comatoso. No SNC
31
ocorre lesão simétrica e bilateral no diencéfalo, promovendo afastamento dos
corpos mamilares (BLANCO-MUÑEZ et al, 2006; BOTELLA, 2003).
Considerada um quadro de urgência de atendimento, a EW é
potencialmente reversível em suas fases iniciais com o tratamento agudo de
reposição tiamínica. A ausência de tratamento pode evidenciar a evolução da
lesão e seu caráter irreversível (BLANCO-MUÑEZ et al, 2006; BOTELLA, 2003;
MARTÍNEZ e GUTIÉRREZ, 2002).
A síndrome de Korsakoff (SK) é uma evolução da EW não tratada,
podendo aparecer por motivo isolado e progressivo em resposta ao alcoolismo,
como sequela de transtornos neuropsiquiátricos (como o delirium tremens) ou
por alguma etiologia sem relação com o consumo de etanol (BOTELLA, 2003).
O quadro de lesão do SNC se estende a além dos corpos mamilares,
podendo comprometer o sistema ventricular e zonas adjacentes a este,
especialmente tálamo e hipotálamo, além de cerebelo e tronco cerebral
(BLANCO-MUÑEZ et al, 2006; FORN-FRÍAS e SANCHIS-SEGURA, 2003;
HIDALGO et al, 2009). Também é verificado um déficit na perfusão cerebral
(BOTELLA, 2003; HERVÁS-BENITO e PÉREZ-VELASCO, 2001).
Além dos sintomas expostos na EW, a SK causará déficit na memória
anterógrada e retrógrada, mantendo intacta a memória imediata. Nas
evoluções mais significativas, o indivíduo poderá apresentar deterioração
cognitiva aguda, com prejuízos da razão, do pensamento abstrato, do juízo e
da atenção, em conjunto com alterações comportamentais, como labilidade
afetiva, variações do humor, perda da autocrítica e conduta explosiva,
caracterizando um quadro de demência alcoólica (BOTELLA, 2003).
Os mecanismos que levam à deficiência de tiamina cerebral ainda são
incertos. As mortes neuronais, bem como os processos por estas
responsáveis,
englobam
deficiência
energética
cerebral,
excitoxicidade
mediada pelo glutamato, acidose láctica focal e alteração da barreira
hematoencefálica. Estes são possíveis mediadores da diminuição da
permeabilidade à tiamina no cérebro, propiciando o surgimento da síndrome de
Wernicke-Korsakoff (MACIEL e KERR-CORRÊA, 2004).
32
5.1.2 Doença de Marchiafava-Bignami
A doença de Marchiafava-Bignami (DMB), complicação rara do
alcoolismo
crônico
e
intenso,
é
caracterizada
neurologicamente
por
desmielinização e necrose do corpo caloso (RODRÍGUEZ-FERNÁNDEZ et al,
2005) e da substância branca subcortical (RAMÍREZ et al, 2008). De incidência
brusca e rapidamente progressiva, causando transtornos de consciência, de
cognição e psiquiátricos, em associação a uma gama de sinais neurológicos
característicos de dano do corpo caloso, como apraxia unilateral, anosmia,
desconexão auditiva e visual, sinais conhecidos como síndrome da
desconexão inter-hemisférica (VÁZQUEZ et al, 2008).
Figura 8 – Imagem de tomografia computadorizada mostrando desmielinização da porção
central do corpo caloso e da substância branca (FONTE: Martínez e Gutiérrez, 2002).
São evidenciadas três possibilidades de evolução clínica da doença: (1)
aguda, de início súbito, caracterizada por transtornos da atenção, epilepsias e
morte rápida; (2) subaguda, ocasionando alterações neuropsiquiátricas,
confusão, disartria, hipertonia, alterações da marcha e sinais de desconexão
inter-hemisférica; e (3) crônica, causando a síndrome de desconexão
associada à demência progressiva (VÁZQUEZ et al, 2008).
Apesar de o corpo caloso ser a principal estrutura neurológica
danificada, outras áreas encefálicas podem ser acometidas, com destaque
para a comissura anterior, o nervo e o quiasma óptico, o putâmen e os
pedúnculos cerebelares, além de lesões corticais (MARTÍNEZ e GUTIÉRREZ,
2002; VÁZQUEZ et al, 2008).
33
Figura 9 – Imagem de ressonância magnética evidenciando afecção completa do corpo caloso
e lesão cortical (FONTE: Ramírez, et al, 2008).
Considerada uma doença irreversível, a DMB leva a maioria dos
indivíduos acometidos à morte, devido a complicações de caráter infeccioso e
quadros de sepse (RODRÍGUEZ-FERNÁNDEZ et al, 2005).
5.1.3 Mielinólise Pontina Central e Mielinólise Extra-Pontina
As mielinólises são acometimentos desmielinizantes do encéfalo,
comprometendo a ponte no tronco cerebral, mielinólise central pontina (MCP),
ou estendendo-se às demais regiões do tronco cerebral, cerebelo e córtex,
mielinólise extra-pontina (MEP). Apresentam como principais fatores etiológicos
os
distúrbios
hidro-eletrolíticos
(hiponatremia) e
o
abuso de
drogas
(GERMINIANI et al, 2002; SANZ-BAENA et al, 2004).
Os sintomas iniciais são o mutismo, a disartria, estados de confusão e
letargia. Porém, as mielinólises apresentam como sintomatologia clássica a
tetraparesia espástica e a paralisia pseudo-bulbar, decorrentes da afecção dos
tractos córtico-espinhal e córtico-bulbar na base da ponte (Ibid.), além de
prejuízos nos níveis de consciência e lesão em pares de nervos cranianos por
danos no segmento pontino (GERMINIANI et al, 2002).
Na MEP pode ser observado comprometimento do mesencéfalo,
causando alterações oculomotoras e pupilares, gânglios da base, tálamo e
cerebelo, culminando com quadro de ataxia, coreoatetose, parkinsonismo e
distonia (Ibid.).
34
Os pacientes diagnosticados com algum dos tipos de mielinólise
apresentam evolução imprecisa, variando desde a recuperação completa à
morte. Muitos permanecem com sequelas da disfunção bulbar e tetraparesia,
podendo evoluir com distúrbios cognitivos e do movimento (GERMINIANI et al,
2002).
A inexistência de tratamento definitivo torna a prevenção e a correção
das situações predisponentes a única forma de combate favorável aos quadros
de mielinólise (SANZ-BAENA et al, 2004).
5.2 Álcool Vs. Síndrome Alcoólica Fetal
A síndrome alcoólica fetal (fetal alcohol syndrome - FAS) é uma
embriofetopatia que se origina devido ao consumo de álcool durante a
gravidez, expondo o desenvolvimento do embrião e o feto a um amplo espectro
de alterações (BOTELLA, 2003; GONÇALVEZ et al, 2009). O etanol é,
atualmente, o agente teratogênico fetal de maior utilização, sendo considerado
o principal causador de retardo mental e anomalias congênitas não
hereditárias, com quase 100 destas catalogadas e relacionadas à FAS
(PERSON et al, 2005; MESQUITA e SEGRE, 2010).
Os
efeitos
causados
pelo
álcool
podem
ser
totais,
com
o
desenvolvimento da FAS, ou parciais, não chegando a constituir a síndrome
por completo (Botella, 2003). Neste segundo caso, as alterações são
designadas como defeitos congênitos relacionados com o álcool (alcoholrelated birth defects – ARBD) ou distúrbios do neurodesenvolvimento
relacionados com o álcool (alcohol-related neurodevelopmental disorders –
ARND). Atualmente, as alterações resultantes do consumo de etanol durante a
gestação foram unidas em um único grupo denominado espectro de distúrbios
alcoólicos fetais (fetal alcohol spectrum disorders – FASD), os quais englobam
os dois casos acima expostos (EVRARD, 2010; MESQUITA, 2010).
As ARND englobam as alterações na estrutura do SNC, anormalidades
cognitivo-comportamentais, sem explicação genética ou por antecedentes
familiares e ambientais. Os ARBD constituem as anomalias congênitas,
malformações, displasias e os transtornos ocorridos nos demais sistemas do
35
organismo, como o esquelético, o cardíaco e o renal (MESQUITA e SEGRE,
2010).
O risco para o desenvolvimento da FAS frente ao consumo de álcool
está presente não somente durante o período gestacional. A fase de lactância,
durante a qual o cérebro não se encontra previamente formado, também
representa um período de risco, uma vez que o etanol, excretado no leite
materno e ingerido pelo neonato, poderá comprometer o desenvolvimento
cerebral normal produzindo, num grau mínimo de acometimento, atraso no
desenvolvimento motor do lactente (BOTELLA, 2003).
Por ser uma molécula de composição química simples, baixo peso
molecular e hidro e lipossolúvel, o etanol atravessa bidirecionalmente a barreira
placentária sem sofrer quaisquer alterações, resultando em nível de álcool fetal
equivalente ao materno. Porém, a imaturidade do sistema hepático fetal leva à
ineficácia do metabolismo e da degradação da molécula de etanol,
exacerbando a exposição fetal ao álcool. Não obstante, o líquido amniótico é
um potencial reservatório das moléculas de etanol e acetaldeído expondo,
ainda mais, o feto aos efeitos do álcool (CANCINO e ZEGARRA, 2003;
JERÔNIMO et al, 2008; MESQUITA, 2010).
O diagnóstico da FAS é feito através da identificação de uma tríade de
elementos semiológicos que constituem o conjunto nuclear de manifestação da
síndrome, a saber: (1) déficit do crescimento; (2) dismorfismo facial
característico; e (3) alterações morfofuncionais do neurodesenvolvimento no
SNC (BOTELLA, 2003; EVRARD, 2010; GARRIDO e FERNÁNDEZ-GUINEA,
2004). Além destas alterações principais, outras podem estar associadas, tais
como malformações cardíacas, geniturinárias e esqueléticas (BOTELLA, 2003;
CHAUDHURI, 2006; MARTÍNEZ e GUTÍERREZ, 2002).
O déficit do crescimento pode ser constatado já na fase intra-uterina e
confirmado no pós-natal, onde são observados peso e tamanho abaixo do
esperado para a idade gestacional, sendo este segundo um fator irreversível. A
criança com FAS diagnosticada será sempre pequena, mesmo que o primeiro
fator, peso, esteja controlado (EVRARD, 2010).
36
As alterações faciais, consideradas o indício mais claro de ocorrência
da síndrome, são bem características durante a primeira infância: microcefalia,
microftalmia e aproximação dos olhos, com alterações palpebrais e maior
tendência a ptoses, orelhas mais baixas e hipoacusia, nariz curto,
aplainamento facial, micrognasia, com adelgaçamento labial e aplainamento /
inexistência do sulco nasolabial e malformação dentária, com dentes
pequenos, hipoplásicos e esmalte defeituoso, e afasia, tanto em nível de
recepção quanto de expressão (BOTELLA, 2003; EVRARD, 2010; PERSON et
al, 2005). A figura abaixo ilustra a malformação facial decorrente da FAS.
Figura 10 – Dismorfismo facial na FAS (FONTE: Barboza, 2011).
Os transtornos do neurodesenvolvimento relacionados com o álcool
englobam os danos morfológicos ou funcionais ocorrido no SNC, desde as
malformações anatômicas, onde se verificam disrafias (defeitos no tubo
neural), holoprosencefalia e esquizencefalia, hipoplasias do corpo caloso e
vérmis cerebelar e displasias corticais, até alterações cognitivas, como atraso
mental moderado (QI variando entre 50 e 80), déficits no funcionamento de
memorização,
aprendizagem
comportamentais,
como
e
execução,
irritabilidade,
e
(a)praxia,
hiperatividade
e
transtornos
comportamentos
socialmente desadaptados, e déficits no desenvolvimento motor, como
hipotonia e dificuldade de coordenação (BOTELLA, 2003; EVRARD, 2010).
Defeitos na neurocondução (neurotransmissão) são sinalizados, ocorrendo
disfunção migracional dos neurônios (AVERSI-FERREIRA e PENHA-SILVA,
37
2005; JERÔNIMO et al, 2008) e inibição das vias neuronais específicas
(AVERSI-FERREIRA et al, 2004).
Não existe uma quantidade de álcool específica para o desenvolvimento
da síndrome, que já pode ser propiciado com o consumo de pequenas doses.
A ingestão de maiores concentrações ocasionará uma potencialização dos
efeitos (CHAUDHURI, 2006). A ocorrência vai depender, além do teor ingerido,
do padrão de consumo e da sensibilidade metabólica ao álcool. Frente ao
exposto, a única medida segura de prevenção é a abstinência durante a
gestação e, indo além, desde o momento em que se planeja, e se tenta, a
gravidez (BOTELLA, 2003).
Em 2008, Jerônimo realizou um estudo com 20 ratos Wistar cujas mães
haviam sido tratadas com água ou etanol. A prole da mãe que recebeu
tratamento
com
etanol
sofreu
prejuízos
na
neurocondução
e
no
neurodesenvolvimento, atuando o álcool de modo negativo na rede neural.
5.3 Álcool Vs. Intoxicação Alcoólica
A toxicidade do álcool causa estados variáveis de estimulação do SN
produzindo
efeitos
excitatórios,
inibitórios,
transtornos
de
humor
e
comportamento e, em casos de intensa intoxicação, depressão e estupor,
podendo o indivíduo entrar em coma alcoólico e, nos casos de maior
gravidade, ir a óbito (MARTÍNEZ e GUTIÉRREZ, 2002), como observamos na
tabela abaixo.
Tabela 3 – Visão geral dos estágios de intoxicação alcoólica e suas sintomatologias.
Concentração de álcool no
sangue (g / 100 mL de sangue)
Estágio da
intoxicação
Sintomas clínicos
0.01 – 0.05
Subclínico
0.03 – 0.12
Euforia
0.09 – 0.25
Excitação
Comportamento normal.
Dificuldade de concentração;
Indivíduo falante;
Baixa inibição;
Cor mais clara no rosto;
As habilidades motoras finas diminuem.
Os sentidos estão confusos;
Coordenação motora deficiente;
Sonolência;
Comportamento errático;
Tempo de reação prejudicado;
Discernimento prejudicado.
38
0.18 – 0.30
Confusão
0.25 – 0.40
Estupor
0.35 – 0.50
Coma
> 0.45
Morte
Emoções exageradas;
Dificuldade de caminhar;
Visão turva;
Fala arrastada;
Sensação de dor diminuída.
Não é possível ficar de pé ou andar;
Vômitos;
Possibilidade de inconsciência;
Diminuição da resposta a estímulos;
Apatia.
Inconsciência;
Baixa temperatura do corpo;
Possibilidade de óbito;
Respiração superficial;
Pulso lento.
Bloqueio respiratório central.
Os principais álcoois que levam à intoxicação orgânica humana são o
etanol, o metanol e o etilenoglicol (ROLDÁN et al, 2003).
5.3.1 Intoxicação por etanol
Principal constituinte das bebidas alcoólicas, o etanol é responsável pela
grande maioria dos casos de intoxicação alcoólica. O sintomas iniciais incluem
mudanças comportamentais (excitação e desinibição), déficits cognitivos
(memória e atenção), variações de humor, alterações da linguagem e da
marcha, prejuízo do discernimento comprometendo as atividades sóciolaborais, até casos de desânimo, prostração e depressão pós-consumo de
álcool (ROLDÁN et al, 2003).
A sintomatologia de intoxicação etílica variará conforme a quantidade
consumida (Ibid.):
De 20 a 30 mg/dL: alteração do controle fino e do tempo de reação,
prejuízo do senso crítico e do estado de humor;
De 50 a 100 mg/dL: comprometimento cognitivo de leve a moderado,
com dificuldade para realizar atividades motoras grandiosas;
De 150 a 200 mg/dL: ataxia, disartria, com início do quadro de
deterioração mental, além de euforia e comportamentos de relutância;
39
De 200 a 300 mg/dL: náuseas, vômitos, diplopia e alterações do estado
mental;
De 300 a 400 mg/dL: indução ao coma alcoólico, com quadros de
hipotensão e hipotermia em bebedores não frequentes;
Acima de 400 mg/dL: possivelmente o indivíduo evoluirá à óbito.
5.3.2 Intoxicação por metanol
O álcool metílico, ou metanol, é um líquido claro, incolor, altamente
inflamável, de sabor e odor semelhante ao do etanol. Os casos de intoxicação
metílica mais verificados são por exposição (inalação ou ingesta) acidental ou
tentativas de suicídio (PASCUAL et al, 2003; TURPÍN-FENOLL et al, 2005).
Rapidamente absorvido e distribuído na água corporal, o metanol se
torna altamente tóxico já em pequenas concentrações, 100-125 mL (IRADI,
2008), evidenciando seu maior nível na concentração sanguinea decorridos 30
a 90 minutos do início da ingestão. Sua principal ação tóxica deriva de sua
conversão à ácido fórmico, composto responsável por ocasionar um quadro
profundo de acidose metabólica (PASCUAL et al, 2003).
Os sintomas iniciais da intoxicação metílica, verificados ainda na
primeira hora da ingesta, consistem de embriaguez, sonolência e vertigem,
sendo mais brandos se comparados com os efeitos ocasionados pela ingesta
de mesma quantidade de etanol (Ibid.).
Segue-se uma fase assintomática e, após, um estado de reintoxicação
severa, promovendo alterações oftalmológicas, gastrintestinais, pulmonares e
cardíacas (PASCUAL et al, 2003) e lesões neurológicas isquêmicas ou
hemorrágicas (em gânglios basais, em especial o putâmen, substância branca
subcortical, neoestriado, hipotálamo e córtex cerebral) as quais promovem
cefaleia, maresia, letargia, ataxia, convulsões, atrofia cortical e edema cerebral
(ROJAS-VERA, 2003; ROLDÁN et al, 2003), que podem induzir o bebedor ao
estado comatoso e, nos casos de intoxicação severa, à morte (TURPÍNFENOLL et al, 2005), dependendo a evolução do grau da intoxicação e do
tempo de toma de providências terapêuticas. (PASCUAL et al, 2003).
40
Figura 11 – Lesão cerebral por intoxicação metílica, mostrando atrofia cortical e da substância
branca subcortical, com necrose putâmica bilateral (FONTE: Pedrejón, et al, 2006).
5.3.3 Intoxicação por etilenoglicol
Líquido incolor, inodoro e não volátil, com estrutura semelhante à do
etanol, o
automotivo
etilenoglicol é principalmente utilizado
e
adulterante
de
bebidas
alcoólicas.
como anticongelante
Embora
consumido
volutariamente como um susbtituto do etanol nos casos de depenência
alcoólica, a causa mais frequente de intoxicação é a ingestão acidental do
líquido antecongelante baseado no etilenoglicol. (ROLDÁN et al, 2003).
Os sintomas iniciais da intoxicação são semelhantes aos da intoxicação
etílica, produzindo uma fase de euforia (Ibid.). Entretanto, o etilenoglicol
apresenta evolução sintomatológica rápida e, conforme o grau de ingestão,
bastante danosa, ocasionando (IRADI, 2008):
De 0,5 a 12 horas após ingestão: depressão do SN, alteração
metabólica e distúrbios gastrintestinais;
De 12 a 24 horas após ingestão: comprometimento cardiopulmonar
associado a um quadro de acidose metabólica;
De 24 a 72 após a ingestão: insuficiência renal, com necrose tubular,
edema e deposição de sais de oxalato de cálcio nos rins;
Seis dias após a ingestão: lesão em nervos cranianos, causando surdez,
paralisia facial e outras alterações neurológicas.
41
O tratamento vai depender do grau de intoxicação, compreendendo
correção da acidose metabólica, prevenção de absoração digestiva, diálise
para eliminação do álcool e reposição vitamínica, favorecendo a metabolização
do ácido glioxálico produzido nos rins (ROLDÁN et al, 2003).
5.4 Álcool Vs. Síndrome de Abstinência Alcoólica
A síndrome de abstinência alcoólica (SAA) é um quadro agudo, que se
caracteriza por um conjunto sintomatológico autolimitado, de comprometimento
variável, secundário à interrupção parcial ou total do consumo de álcool.
Apresenta o delirium tremens e os quadros convulsivos/epilépticos como as
principais complicações neuropsiquiátricas associadas ao abandono do álcool
(HERNÁNDEZ-FUESTES et al, 2002; MACIEL e KERR-CORRÊA, 2004;
SECADES et al, 2010).
A clínica da SAA está diretamente relacionada à neuroadaptação do
SNC frente à exposição crônica do álcool, comprometendo seu efeito
depressor. A queda brusca dos níveis etílicos no organismo promove uma
resposta cerebral de hiperexcitabilidade característica do quadro de privação
alcoólica (SECADES et al, 2008).
Os sintomas iniciais da SAA (nas primeiras 24 horas) variam entre
agitação, ansiedade, alterações de humor (disforia), tremores, náuseas,
vômitos, taquicardia e hipertensão arterial (MACIEL e KERR-CORRÊA, 2004;
SECADES et al, 2010; ZALESKI et al, 2004).
As convulsões decorrentes de abstinências do álcool são bastante
nocivas, sendo chamadas de mal epiléptico, caracterizado por descargas
excessivas dos neurônios cerebrais (HERNÁNDEZ-FUESTES et al, 2002), de
alta taxa de mortalidade (aproximadamente 10% dos casos). Incidentes
somente nas primeiras 48 horas após a suspensão do uso de álcool, suas
recorrências estão associadas a quadros de aumento da severidade dos
sintomas da abstinência (MACIEL e KERR-CORRÊA, 2004; ZALESKI et al,
2004).
O kindling, quadro de alteração secundária da excitabilidade cerebral
decorrente da repetição de crises convulsivas, é tido como um fator
42
intermediário entre a convulsão inicial e a evolução máxima dos sintomas ao
estado de delirium tremens (DT) (MACIEL e KERR-CORRÊA, 2004).
O DT é um caso específico de delirium associado ao consumo de álcool,
com início nos primeiros sete dias pós-abstinência, com sintomatologia inicial
variada, envolvendo episódios de confusão mental e quadros alucinógenos,
tremores, febre (mesmo em ausência de infecção) e hiperreatividade
autonômica, causando hipertensão, taquicardia e sudorese (Ibid.).
A sintomatologia pode evoluir ocasionando alterações cognitivas
(memória
e
atenção),
desorientação
têmporo-espacial,
distúrbios
do
pensamento que, combinados com os déficits memoriais, resultam em
incoerência da fala, perdas senso-perceptivas, com episódios de alucinação
visual e delírios propriamente ditos. Ainda, são constantes as variações de
humor, desde um estado de ansiedade intensa à completa apatia, e alterações
no ciclo sono-vigília (Ibid.).
As mudanças neurofisiológicas ocasionadas pelo DT resultam de
interferências na rede de neurotransmissão decorrentes ora do aumento da
atividade
neuronal
excitatória
(sistemas
glutamatérgico,
colinérgico,
dopaminérgico, serotoninérgico e catecolaminérgico), ora da diminuição dos
mecanismos
inibitórios
da
função
neuronal
(sistema
GABAérgico)
(HERNÁNDEZ-FUESTES et al, 2002), como exposto na figura abaixo.
Figura 12 – Alterações na rede de neurotransmissão no uso crônico do álcool e na síndrome
de abstinência alcoólica (FONTE: Zaleski, et al, 2004).
43
As alucinações e os episódios de delírios propriamente ditos decorrem
de uma expressão de hiperreatividade do sistema dopaminérgico, com
aumento do número de receptores pós-sinápticos. Estados de ansiedade e
depressão são devidos à redução de receptores serotoninérgicos (VALDÉSSTAUBER, 2003).
Nem toda abstinência evoluirá ao quadro de DT, sendo este pouco
constante, verificado em menos de 5% dos casos. Entretanto, apresenta alta
morbimortalidade, já que as progressões ao delirium são raramente
diagnosticadas,
tendo
como
principal
causa
de
morte
as
falências
cardiopulmonares (MACIEL e KERR-CORRÊA, 2004).
Secades, em 2008, publicou os resultados de um estudo desenvolvido
em um hospital geral com 436 pacientes, dos quais 71,1% apresentavam a
SAA em seu estado mais grave, evoluindo para crises epilépticas em 41% dos
casos e delirium tremens em 59, 7%, com taxa de mortalidade de 6,6%,
concluindo que o pior curso de evolução da SAA é a ocorrência do estado
alucinatório.
5.5 Álcool Vs. Neuropatia Óptica
A neuropatia óptica é definida como uma lesão no nervo óptico, situada
em nível anterior ao quiasma óptico (MORALES et al, 2010), tendo como uma
de suas causas a toxicidade alcoólica por exposição pré ou pós-natal ao etanol
(neuropatia ótpica tóxica, NOT), fator que altera e prejudica o desenvolvimento
do nervo óptico (PONS et al, 2007), interferindo na expressão genética e
molecular essenciais no processo de neuroretinogênese (PINAZO-DURÁN et
al, 2005). Além da NOT, são comuns as neuropatia ópticas por deficiências
nutricionais (NON), por déficit vitamínicos e de ácido fólico (LÓPEZHERNÁNDEZ et al, 2003; MORALES, 2010).
De evolução crônica, progressiva, indolor e acometimento bilateral, a
NOT se inicia com sintomas de perda visual em intensidades variadas,
comumente citadas como visão borrada ou turva, podendo evoluir para a
amaurose (ou cegueira completa) nos quadros mais graves (MORALES et al,
2010; PASCUAL et al, 2003). Acromatopsia, defeitos pupilares, edema e atrofia
44
do nervo óptico e escotomas bilaterais são sinais clínicos comumente
verificados (MORALES et al, 2010).
O diagnóstico precoce da NOT leva a um bom prognóstico de melhora e
previne a instalação de sequelas tardias, sendo necessários para tal tratamento
reposição vitamínica e abstinência alcoólica (Ibid.).
Pinazo-Durán, em 2005, estudou as modificações ocorridas no nervo
óptico por exposição ao álcool em 20 ratas Wistar, alimentadas diariamente
com álcool (grupo experimental) ou carboidratos (grupo controle) durante o
período final da gestação e a lactância e observou que a prole das ratas
tratadas com álcool apresentou alterações morfológicas e funcionais no nervo
óptico, ocasionadas pela exposição ao consumo de álcool.
5.6 Álcool Vs. Alterações do Córtex Pré-frontal
Uma das hipóteses neurocientíficas sobre a deterioração neurocognitiva
induzida pelo (ab)uso do álcool defende a ideia de que o córtex pré-frontal
(CPF), em detrimento de suas características específicas, é especialmente
submetido aos efeitos neurotóxicos do etilismo, conforme foi exposto no início
deste trabalho (LANDA et al, 2006).
O CPF é a região cortical mais elaborada nos humanos, possibilitando
um amplo repertório de condutas e ações, flexível e adaptativo, ocupando uma
posição de destaque na coordenação da ampla rede de processos neurais,
uma vez que recebe projeções de regiões corticais sensitivo-motoras e de
áreas subcorticais (GARCÍA-MORENO et al, 2008).
Dentre os vastos circuitos de conexões realizadas no CPF, dois
apresentam importante destaque neuropsicológico (GARCÍA-MORENO et al,
2008; VERDEJO et al, 2004):
O circuito dorsolateral, responsável pelas habilidades cognitivas, como a
memória de trabalho (working memory), a atenção seletiva, a formação
de conceitos e a flexibilidade cognitiva;
O circuito ventromedial, responsável pelo processamento dos sinais
sómatico-emocionais, os quais atuam como indicadores motivacionais
45
nos processos de toma de decisão (decision-making) e planejamento de
objetivos socialmente adaptados.
Existe um especial interesse recente pelo entendido do funcionamento
das chamadas funções executivas, estas comandadas pelo CPF e definidas
como os processos mentais postos em prática nas tentativas de resoluções de
problemas próprios do indivíduo e de sua interação social, através de medidas
eficazes e práticas, aceitáveis às duas partes envolvidas, pessoal e social
(GARCÍA-MORENO et al, 2008).
As funções executivas compreendem tarefas de iniciar ações com
proposição de metas e antecipação das consequências, planejamento, inibição
de respostas inapropriadas, seleção adequada de condutas e organização
têmporo-espacial, maleabilidade cognitiva na elaboração de estratégias, o
auto-controle frente a alterações de ordem emocional e o processo de tomada
de decisão (Ibid.).
O
etilismo
é um potencial depressor da atividade pré-frontal,
desregulando os processos de geração, migração e conexão neuronal
(AVERSI-FERREIRA et al, 2004). levando ao surgimento de uma síndrome de
não-execução. O consumo agudo de álcool compromete a memória, a atenção,
as funções executivas e visuo-espaciais. A cronicidade do alcoolismo, além das
alterações anteriores, promove déficits de aprendizagem, de velocidade
psicomotora e do processo de decision-making, podendo evoluir a transtornos
persistentes da memória e demência alcoólica (CUNHA e NOVAES, 2004;
VERDEJO et al, 2004).
As alterações cognitivas pioram conforme o tempo de uso e o grau de
consumo,
chegando
à
instalação
de
transtornos
neurodegenerativos
permanentes. Porém, tendo em vista ós disturbios envolvidos e o grau de
acometimento, bem como a idade do indivíduo, há a possibilidade de reversão
dos prejuízos neuropsicológicos com a busca de tratamento e a abstinência
(CUNHA e NOVAES, 2004).
Em 2008, García-Moreno realizou um estudo buscando verificar os
déficits neuropsicológicos na atividade pré-frontal ocasionados pelo consumo
46
abusivo de álcool em 62 adolescentes com idade média de 19 anos. Por meio
de tarefas comandadas pelo CPF direcionadas a três grupos distintos,
categorizados pelo grau de consumo ou abstinência, observou que o consumo
abusivo de álcool provoca deteriorações na neurotransmissão e na cognição,
qualificando o álcool como um agente que promove um menor rendimento na
realização de tarefas comandadas pela atividade pré-frontal.
5.7 Álcool Vs. Aparelho Vestíbulo-Coclear
O aparelho vestíbulo-coclear é um órgão de dupla funcionalidade: a
cóclea é responsável pelo controle auditivo e o vestíbulo (labirinto) pelo
equilíbrio. É extremamente sensível aos efeitos deletérios drogo-induzidos,
sendo o álcool um dos principais agentes depressores deste sistema (BELLÉ et
al, 2007).
A sintomatologia cursa conforme a área comprometida podendo, o
álcool,
prejudicar
ambas
as
partes
do
aparelho
vestíbulo-coclear,
individualmente ou associadamente (Ibid.).
A lesão coclear varia desde a percepção de ruídos, zumbidos e
disacusias, (Ibid.) até a perda auditiva neurossensorial completa, surdez
(RIBEIRO et al, 2007).
O comprometimento labiríntico implica em déficits no equilíbrio corporal,
capacidade de manutenção na postura ereta e realizar movimentos rotatórios e
de aceleração sem desvios, oscilações e quedas. Tal orientação espacial
(estática e dinâmica) é consequência da integração entre áreas vestibulares,
sistema visual, tronco cerebral e cerebelo, possibilitando o reconhecimento da
posição corporal e do movimento de cabeça e olhos por parte do SNC
(SCHMIDT et al, 2010).
As tonturas e vertigens são os principais sinais de déficit no controle do
equilíbrio corporal. Não se pode afirmar que o prejuízo esteja certamente
relacionado à ação vestibular. Entretanto, os quadros de origem labiríntica
representam 85% dos casos (Ibid.).
47
O comprometimento do aparelho vestíbulo-coclear, e o decorrente
prejuízo de sua função, reduz a capacidade de comunicação direta e reação a
estímulos sonoros e espaciais, minimiza as habilidades motoras e de
coordenação, influenciando desfavoravelmente na vida sócio-laborativa do ser
humano (BELLÉ et al, 2007; SCHMIDT et al, 2010).
Bellé, em 2007, desenvolveu um estudo que objetivou verificar as
influências do alcoolismo no aparelho vestíbulo-coclear, submetendo 74
indivíduos
(50%
alcoólicos)
a
avaliações
audiológica
e
vectoeletronistagmográfica. Em seus resultados, observou que dentre os 37
indivíduos alcoolistas, 67,57% apresentaram alteração na audiometria e
24,32%
na
vectoeletronistagmografia,
porcentagens
elevadas
quando
comparadas aos resultados dos indivíduos não alcoolistas, 27,03 e 10,81%,
respectivamente para cada um dos testes. Desta forma, evidenciou o álcool
como substância interferente na audição e no equilíbrio humano.
5.8 Álcool Vs. Transtorno Psicótico Induzido por Álcool
O termo alucinação alcoólica foi criado de forma a denominar os quadros
de psicoses alucinatórias álcool-dependentes, ou seja, induzidas pelo estado
de consumo alcoólico crônico. Sua descrição inicial diferenciava duas fases da
psicose, uma aguda, compreendendo os estados alucinatórios de curta
duração temporal (poucos dias ou semanas) e outra subaguda, quando as
alucinações permaneciam por dois meses ou mais. Atualmente, este quadro é
descrito como um transtorno psicótico induzido por álcool (MUÑOZ e
CASTELLANOS, 2002).
Principalmente nos casos de alucinações por tempo prolongado, foi
percebida a semelhança entre o quadro alucinógeno e o esquizofrênico, sendo
a
ação
tóxica
do
álcool
considerada
como
um
fator
influente
no
desenvolvimento da esquizofrenia, sobretudo frente à predisposição genética,
na qual o álcool seria um agente potencializador (Ibid.).
A esquizofrenia é considerada um transtorno mental grave, de incidência
considerável, com curso crônico, quadro clínico complexo e ruim prognóstico.
Em associação ao consumo alcoólico, seu curso torna-se ainda mais
48
desfavorável, com prejuízo das funções sociais, somáticas e cognitivas
(SOLTER et al, 2004).
A adição alcoólica potencializa o nível de monoaminas no organismo,
com destaque para a dopamina, incrementando a regulação dos receptores
NMDA, considerados a origem neuroquímica do processo esquizofrênico
(Ibid.).
A clínica da fase aguda compete com estado claro de consciência, ainda
que presentes transtornos senso-perceptivos no campo auditivo, sob os
aspectos de fenômenos ilusórios e alucinatórios, desde a audição de ruídos até
a percepção de vozes punitivas (MUÑOZ e CASTELLANOS, 2002).
Secundariamente, se associa um estado de delírio e sensação de
perseguição, que leva a um desequilíbrio de caráter emocional, predispondo o
indivíduo ao pânico, o que pode conduzi-lo à autodefesa e/ou ao suicídio
(Ibid.).
Solter, em 2004, publicou os resultados de um estudo realizado com 794
pacientes psiquiátricos diagnosticados com esquizofrenia associada ao
consumo alcoólico. Por meio de entrevistas clínicas estruturadas realizadas
com o paciente e seus familiares, da investigação do diagnóstico de
esquizofrenia e abuso de álcool segundo os critérios do DSM-IV e da aplicação
do questionário CAGE (método de screening de problemas relacionados ao
uso de álcool), este autor observou que o consumo de álcool potencializa a
neuroestimulação excitatória, intensificando o quadro clínico da esquizofrenia,
sendo um fator de mau prognóstico para esta doença.
5.9 Demais categorias
As categorias restantes apresentaram baixo índice de associações, uma
vez que pouco material foi encontrado a respeito durante a busca revisional
(vide figura 12). Desta forma, apenas serão mencionadas uma vez que
constam
do
resultado
final
do
levantamento
de
artigos.
Além
dos
acometimentos neurológicos já expostos ao longo deste trabalho, o (ab)uso do
álcool pode:
49
Induzir ao dano cerebral, compreendido como a ocorrência de acidentes
vasculares encefálicos (AVE) ou traumatismos crânioencefálicos (TCE),
ambos passíveis de afetar o funcionamento neuropsicológico do
indivíduo alcoolista de modo temporário ou permanente (BOTELLA,
2003). O álcool é um importante fator de risco para o desenvolvimento
de complicações metabólico-vasculares, podendo gerar quadros de
hipertensão craniana e interrupção do aporte sanguíneo cerebral,
predispondo ao AVE (HERRERA et al, 2009). Ainda, por comprometer
os sistemas responsáveis pelo equilíbrio corporal, o consumo etílico
predispõe o indivíduo a quedas da própria altura, fator que pode
culminar com lesão cerebral traumática, ou TCE (BRAGA et al, 2008);
Promover degeneração do cerebelo, causando atrofia no vérmis e nos
hemisférios cerebelares (MARTÍNEZ e GUTIÉRREZ, 2002), além de
redução das células de Purkinje, fator que compromete a motricidade
promovendo déficits de equilíbrio e incoordenação motora (MITRA e
NAGARAJA, 2008);
Figura 13 – Degeneração do cerebelo evidenciando atrofia do vérmis cerebelar (FONTE:
Martínez e Gutiérrez, 2002).
Ocasionar estados de pseudo-Cushing, doença que compartilha das
características da síndrome de Cushing verdadeira, patologia rara
resultante do excesso de cortisol no organismo. O consumo desregulado
50
de álcool pode promover uma hiperresponsividade no eixo hipotálamohipófise-adrenal (HHA) caracterizando um quadro de hipercortisolimo
álcool-dependente, revertido com a abstinência do consumo etílico
(ROMANHOLI e SALGADO, 2007).
Alterar o metabolismo de aminoácidos, enzimas, vitaminas, sobretudo
nas do grupo B e nas lipossolúveis, e ácido fólico, gerando quadros de
deficiências nutricionais que promovem deterioração neurológica de
origem tóxico-nutricional (LÓPEZ-HERNÁNDEZ et al, 2003; PRIOSTE et
al, 2003);
Déficits cognitivos decorrentes de prejuízo da memória imediata, função
que se refere ao que ocorreu ou foi apresentado no momento anterior ou
segundos antes ao tempo presente, de relação estreita com as
capacidades de atenção, percepção e consciência. O álcool prejudica a
noção de discernimento, interferindo no processo de entrada de
informações (memória imediata), podendo expor o indivíduo a riscos
conforme a situação vivenciada no momento do consumo (OLIVEIRA et
al, 2002).
5.10 Neuroplasticidade e reversibilidade dos déficits
Conforme foi demonstrado ao longo deste trabalho, o álcool é um
potencial depressor neuronal, causando inúmeros déficits ao SN. O consumo
progressivo potencializa os prejuízos, podendo causar danos neurológicos
irreversíveis.
Entretanto, o oposto também é esperado. Se o consumo prolongado de
álcool tende a exercer efeitos cada vez mais danosos ao sistema
neuropsicológico, a abstinência do álcool tende a reverter estes processos.
Com a suspensão do consumo etílico e a permanência neste estado de
abstinência, o SN passa por um processo de neuroplasticidade, no qual ocorre
uma reorganização funcional dos sistemas cerebrais (neuroadaptação) na
tentativa de reversão dos danos e volta ao funcionamento adequado da função
neuropsíquica humana, através do restabelecimento das corretas conexões
neuronais e recuperação do metabolismo cerebral (BOTELLA, 2003).
51
Tanto as alterações neuromorfológicas quanto as neurocognitivas tem
remissão rápida já nas primeiras semanas de abstinência, prosseguindo a
regressão ainda por vários meses após a suspensão dos hábitos etílicos (Id.),
podendo a recuperação ser total ou, nos casos de menor sucesso, parcial sem
sequelas significativas (GARRIDO e FERNÁNDEZ-GUINEA, 2004), permitindo
aos indivíduos em abstinência viverem de modo equivalente aos abstêmios.
52
6 CONCLUSÃO
Considerado a droga psicotrópica de maior consumo mundial, o álcool é
um potencial depressor das funções orgânicas, prejudicando sensivelmente o
funcionamento do sistema nervoso. Este fator, somado às diferentes
possibilidades de acometimentos neurológicos álcool-induzidos, bem como à
potencial remissão das alterações neuromorfocognitivas (neuroplasticidade),
norteia a necessidade de um olhar um tanto quanto minucioso para esta íntima
relação. A baixa prevalência de estudos associativos das alterações
neurológicas ao consumo de álcool, demonstrando e/ou comprovando tais
efeitos deletérios, observada neste trabalho, aponta para a premência de novas
investigações nesta linha de interação, de modo a possibilitar a implementação
de estratégias eficazes de prevenção e promoção em saúde.
53
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