Discurso direto na aquisição da escrita: a perspectiva enunciativa

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DISCURSO DIRETO NA AQUISIÇÃO DA ESCRITA: A PERSPECTIVA ENUNCIATIVA
Giordana França Ticianel
RESUMO: Neste trabalho, propomos duas classificações para o estudo do discurso direto (DD):
normativa e enunciativa. A perspectiva normativa reúne abordagens do DD voltadas, de forma
quase exclusiva, a identificação de características e proposição de regras de uso dessa forma do
discurso relatado (Cf. BECHARA, 2006; CUNHA, 1985; GARCIA, 1985; NICOLA, 2014). A
perspectiva enunciativa, por sua vez, reúne abordagens que, a nosso ver, estariam mais
preocupadas com os efeitos de sentido provocados pelo uso do DD (Cf. AUTHIER-REVUZ, 1990,
1998, 2004; BAKHTIN, 2010; MAINGUENEAU, 1993, 1996, 2011). Essas duas perspectivas podem
ser utilizadas para a análise do DD produzido por escreventes em processo de aquisição da escrita;
entretanto, elege-se uma perspectiva enunciativa. Assim, nosso objetivo é investigar o DD em
produções textuais de escreventes dos antigos quatro primeiros anos do ensino fundamental.
Para essa investigação, elencaremos as principais características de funcionamento do DD nessas
produções, partindo, para isso, das contribuições de Ferreiro e Pontecorvo (1996), Ticianel (2012,
2013), Capristano e Ticianel (2014), Perroni (1989, 1992), Rojo (1990), Tfouni e Monte-Serrat
(2013). Nesse percurso, buscaremos evidenciar, principalmente, que uma perspectiva enunciativa
se mostra mais produtiva, já que investiga o DD como instância enunciativa e não como um mero
recurso gráfico.
PALAVRAS-CHAVE: Aquisição da escrita. Discurso direto. Perspectiva enunciativa.
1. Introdução
De forma genérica, o Discurso direto (doravante, DD) é definido como a reprodução fiel de
outra fala. Sua realização se daria quase sempre por escrito, a partir de certas marcas gráficas,
como, os dois pontos, travessão ou aspas. Definições como essa desconsideram o funcionamento
dessa forma do discurso relatado nos enunciados em que ela se manifesta, considerando mais
importante as regras que supostamente o identificariam do que sua importância na construção
do texto que o cita. Na investigação realizada nesta pesquisa, pôde-se perceber que essa não é a
única perspectiva de investigação do DD, autores como Authier-Revuz (1990, 1998, 2004),
Bakhtin (2010) e Maingueneau (1993, 1996, 2011) propõe um olhar para o DD, a partir da sua
função na construção do texto que o cita, independente das marcas gráficas que podem ou não o
caracterizar, pois o DD não se manifestaria exclusivamente na escrita.
Diante desses diferentes olhares para o DD, esta pesquisa parte de duas classificações
propostas por Ticianel (2016) para o estudo dessa forma do discurso relatado: a normativa e a
enunciativa. A primeira delas, reuniria trabalhos que partem para a definição do DD de suas
marcas de realização mais prototípicas, considerando-as como essenciais para a identificação do
DD (Cf. BECHARA, 2006; CUNHA, 1985; GARCIA, 1985; NICOLA, 2014). A enunciativa, por sua vez,
reúne estudos que estariam mais preocupadas com os efeitos de sentido provocados pelo uso do

Texto completo de trabalho apresentado na Sessão (Questões emergentes em língua e linguagem II) do
Eixo Temático (Estudos da língua e da linguagem II) do 4. Encontro da Rede Sul Letras, promovido pelo
Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem no Campus da Grande Florianópolis da
Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL) em Palhoça (SC).

Mestre em Letras (PLE/UEM). [email protected].
1
DD, sem desconsiderar que ele se manifesta a partir de certas características (CF. AUTHIERREVUZ, 1990, 1998, 2004; BAKHTIN, 2010; MAINGUENEAU, 1993, 1996, 2011).
Essas duas perspectivas podem ser observadas, também, quando se investiga o DD na
aquisição da escrita. Há uma perspectiva normativa que se preocupa em ensinar/cobrar como
questão central do DD o uso das suas marcas gráficas mais prototípicas (CF. PCN’s, 1997). Em
contrapartida, outras pesquisas têm mostrado que essa visão ignora o fato de que os escreventes
já utilizam proficuamente o DD na construção de suas produções textuais, mesmo que muitas
vezes ainda não dominem as suas marcas gráficas mais prototípicas de realização (Cf.
CAPRISTANO; TICIANEL, 2014; FERREIRO; PONTECORVO, 1996; PERRONI, 1989, 1992; ROJO,
1990; TFOUNI; MONTE-SERRAT, 2013; TICIANEL, 2012, 2013).
Nesse interim, o objetivo deste estudo é mostrar que uma investigação do DD na aquisição
da escrita se faz verdadeiramente produtiva apenas quando se considera uma perspectiva
enunciativa, que investiga o DD como instância enunciativa e não como um mero recurso gráfico.
Para cumprir com esse objetivo, serão investigadas produções textuais de escreventes dos antigos
quatro primeiros anos do ensino fundamental, a partir das quais serão apresentadas as principais
características de funcionamento do DD, buscando evidenciar que os escreventes, desde as
primeiras séries, já utilizam de forma profícua essa forma do discurso relatado. A pesquisa tem
um caráter qualitativo, interessando-se não por quantificar as principais formas de realização do
DD nessas produções textuais, mas sim propor reflexões a partir delas, buscando evidenciar como
constroem sentido(s) nas produções textuais.
Uma investigação dessa natureza pode contribuir não só com pesquisadores interessados
em investigar como escreventes em processo de aquisição da escrita lidam com diferentes
instâncias enunciativas em suas produções textuais, mas, também, com professores que tem a
oportunidade de repensar sua prática em sala de aula propondo uma nova abordagem do DD,
possibilitando um trabalho com a produção escrita mais eficaz, a partir da compreensão das
funções dessa forma do discurso relatado.
O DD: da perspectiva normativa para a enunciativa
Na literatura, quando se investiga o DD são encontrados materiais de diferentes naturezas,
os mais recorrentes são gramáticas, livros didáticos e materiais teóricos tanto mais voltados para
a linguística quanto para a literatura. A partir das leituras desses materiais, Ticianel (2016), pôde
perceber que eles poderiam ser agrupados em duas perspectivas distintas: normativa e
enunciativa. Para essa categorização, Ticianel (2016) partiu principalmente dos postulados de
Bakhtin (2010) acerca do discurso relatado, aproximando-os, em específico, de uma abordagem
do DD, a partir da afirmação do autor: “O discurso citado é o discurso no discurso, a enunciação na
enunciação, mas é, ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a
enunciação (BAKHTIN, 2010, p.150, grifos do autor)”.
A primeira categorização proposta pela autora, a normativa, agrupa principalmente as
definições do DD advindas de gramáticas e livros didáticos. Ela é assim denominada, pois suas
definições voltam-se para a descrição de marcas gráficas prototípicas, voltadas, em grande medida
para as realizações escritas do DD. Essa perspectiva define o DD, por exemplo, como um dos
“moldes” de que dispõe o narrador para dar “a conhecer os pensamentos e as palavras de
personagens reais ou fictícios” (CUNHA, 1985, P. 617). Para essa perspectiva, uma característica
do DD seria a sua possibilidade de ser fiel ao trecho que relata. Essas definições sinalizam para o
DD, apenas, como, “discurso no discurso, enunciação na enunciação”.
Em perspectiva oposta, a partir de uma visão nomeada como enunciativa, Ticianel (2016)
observou que outros trabalhos ao abordarem o DD tinham por interesse, principalmente, o
funcionamento dessa forma do discurso relatado. Essas pesquisas, em grande medida, seriam
aquelas desenvolvidas por Authier-Revuz (1990, 1998, 2004) e Maingueneau (1993, 1996, 2011).
2
Para essa perspectiva, o DD, jamais seria um relato fiel, bem como, sua realização não estaria
relacionada a presença ou ausência de marcas gráficas, na verdade, “(...) seria mais exato ver nele
[DD] uma espécie de teatralização de uma enunciação anterior e não uma similitude absoluta”
(MAINGUENEAU, 1993, p. 85). Ou seja, não se trata, de uma reprodução fiel, mas de uma espécie
de encenação da enunciação anterior, que, por se caracterizar como tal, ganha outros sentidos fora
de sua realização original: “O discurso sobre o discurso, a enunciação sobre a enunciação”1.
A partir dessas definições do DD, o que o caracterizaria não seria o fato de apresentar dois
pontos, travessão ou aspas, bem como o fato de ser um relato fiel, mas sim de que ele mesmo
fazendo “menção”, isto é, trazendo as palavras do outro tal qual teriam sido produzidas, é o texto
citante que construirá o sintagma que a introduz, que produzirá a nova situação de uso dessas
palavras, que, como já mencionado, pode adquirir inúmeros outros e novos sentidos (AUTHIERREVUZ, 1998). Novamente, há uma ilusão de fidelidade como princípio fundante do DD. Destacase ademais, a partir da proposição de Romualdo (2003), que o DD buscaria recuperar o “colorido
da enunciação original”.
Para essa perspectiva independente da realização no DD nos modos de enunciação falado
ou escrito, a estrutura linguística do DD busca: indicar que houve um ato de fala e marcar as
fronteiras entre o discurso citante e o citado. Especificamente na escrita – foco de interesse desta
investigação – segundo Risso (1978), a estrutura mais prototípica que o interlocutor tem na língua
para isso é a seguinte: a fala relatada
(...) vem precedida por uma frase do narrador, que concentra em si duas funções
fundamentais: uma “função designativa”, preenchida geralmente por um nome
ou um pronome que encerra a identificação do locutor e uma “função
declarativa”, preenchida por um verbo de elocução, também chamado verbo
dicendi ou declarandi, que anuncia o discurso desse mesmo locutor (RISSO,
1978, p. 19).
Toda essa estrutura é, conforme citado, denominada por Authier-Revuz (1998) de
sintagma introdutor. Destaca-se que ele também pode ser observado após a fala relatada.
Esses verbos que constituem a fala relatada são determinantes para a interpretação da fala
citada, pois denotam diferentes cargas valorativas e, por isso, não devem ser negligenciados: “de
fato, em função do verbo escolhido (sugerir, afirmar, pretender...), toda a interpretação da citação
será afetada” (MAINGUENEAU, 1993, p. 88). É válido destacar que a perspectiva enunciativa não
deixa de elencar as principais características linguísticas do DD, a diferença está no foco que é
dado para essas marcas gráficas: como determinantes; na perspectiva normativa e como
característica; na perspectiva normativa.
A partir dessas duas perspectivas, elege-se a enunciativa como mais produtiva, pois
possibilita considerar o DD não apenas como um mero recurso gráfico, mas sim como uma
instância enunciativa2. Essas duas perspectivas também são observadas quando se investiga o DD
na aquisição da escrita, foco de interesse da presente investigação.
Essas definições advêm de uma concepção de linguagem como constitutivamente heterogênea que foi
proposta por Authier-Revuz (1990, 1998, 2004). Essa perspectiva foi elaborada a partir das contribuições
da tríade: dialogismo bakhtiniano, psicanálise – via leitura Lacaniana de Freud – e AD de linha francesa, via
Pêcheux. Nesse viés, a linguagem, em todos os seus usos, seria constituída por outros dizeres, não apenas
quando há menção ao autor de outra fala/escrita, especificamente o DD seria uma das formas marcadas da
heterogeneidade mostrada. Para maior detalhamento, cf. Authier-Revuz (2004).
2 Por instância enunciativa, nesta pesquisa, compreende-se, a partir de definição proposta por Capristano e
Ticianel (2014, p. 35) como “as diferentes vozes que, no decurso da narrativa, [o sujeito] assume para poder
narrar/escrever. Em sua tarefa de narrar, [o sujeito], como autor empírico, assume o papel de enunciador
que, por sua vez, ora assume a voz de narrador, responsável pelo agenciamento do relato e pela citação (...)
1
3
O DD na aquisição da escrita: as duas perspectivas
Ticianel (2016), a partir da leitura que fez de pesquisas que mencionavam o DD na
aquisição da escrita, também conseguiu agrupá-los em duas perspectivas distintas: normativa e
enunciativa. Para a perspectiva enunciativa, interessariam principalmente o
ensino/aprendizagem – bem como, a consideração da marcação gráfica do DD. Essa perspectiva
pode ser observada, por exemplo em documentos de conteúdo escolar, por exemplo, os PCN’s.
Para esses documentos, o conteúdo a ser ensinado quando se considera o DD seria a “separação,
no texto, entre discurso direto e indireto e entre os turnos do diálogo, utilizando travessão e dois
pontos, ou aspas” (BRASIL, 1997, p. 69-79). Essa característica descrita é a que parece guiar,
muitas vezes, o trabalho do professor em sala de aula, que pode ser observada, por exemplo, em
exercícios em que os escreventes precisam passar formar no Discurso indireto para o DD, por
exemplo. Atividades como essa tem por objetivo, apenas, a “decoreba” das marcas visuais da
presença do DD, não suscitam reflexão do uso do DD para a construção das produções textuais,
reduzindo o DD a um mero recurso gráfico. Para essa perspectiva o DD é única e exclusiavemente:
“discurso no discurso, enunciação na enunciação”.
Em perspectiva oposta pesquisas como as de Ferreiro e Pontecorvo (1996), Ticianel
(2012, 2013), Capristano e Ticianel (2014), Perroni (1989, 1992), Rojo (1990), Tfouni e MonteSerrat (2013) ao investigarem outras questões, mencionaram algumas características principais
do funcionamento do DD na aquisição da escrita. Destaca-se que essas pesquisas foram
consideradas por Ticianel (2016) como pertencentes à perspectiva enunciativa, pois não tem
como intuito identificar marcas gráficas prototípicas no DD observado na aquisição da escrita,
com o intuito de postular algum tipo de relação entre essas marcas e a presença ou ausência de
DD, mas sim compreender o funcionamento dessa forma do discurso relatado, buscando
compreender como elas “funcionam” em cada uma das produções textuais.
A própria forma como os autores dessa perspectiva definem o DD, afasta-se de um olhar
normativo. Para Tfouni e Monte-Serrat (2013, p. 183), por exemplo, o DD é um “recurso um pouco
mais complexo da escrita”, pois os escreventes que o utilizam – independente da sua manifestação
mais ou menos prototípica – precisam aprender a lidar com o uso de instâncias enunciativas
distintas. Assim, o que caracteriza o DD para as autoras é o “jogo de vozes” que o escrevente
precisa aprender a agenciar, e não as marcas gráficas impostas para constitui-lo3.
Para a investigação do DD na aquisição da escrita, neste estudo considera-se, então, uma
perspectiva enunciativa, por considerarmos essa perspectiva mais produtiva, pois ela considera a
função e usos do DD, para assim pensar nas suas realizações linguísticas, isto é, a ênfase está no
“discurso sobre o discurso, na enunciação sobre a enunciação”. Assim, a ênfase está naquilo que
os escreventes já fazem, no uso do DD para a construção de suas produções textuais. Opondo-se a
uma perspectiva que privilegia a marca gráfica prototípica, que atribui uma relação direta entre o
uso e a marcação visual, ignorando o funcionamento.
Os trabalhos que investigam o DD sob uma perspectiva enunciativa (TICIANEL, 2016),
destacam que as crianças já constroem narrativas orais compostas por DD desde os três anos de
das vozes imputadas às personagens da narrativa, ora assume diretamente a voz dos personagens da sua
narrativa, por meio de discurso direto.”
3 Tfouni e Monte-Serrat (2013) investigam a produção de textos orais e escritos de adultos não alfabetizados
ou em seus anos iniciais de escolarização. Mesmo assim, considera-se que, por serem momentos de
aquisição, alguns de seus postulados podem contribuir com a presente pesquisa, que aborda a aquisição da
escrita de crianças.
4
idade (PERRONI, 1983, 1992). Na escrita, elas trariam muitas dessas características, que
ajudariam a compor suas narrativas.4
As observações de Perroni (1983, 1992) acerca do DD na aquisição do discurso narrativo
oral aproximam-se daquelas voltadas para o DD na aquisição da escrita, por partirem, também, de
uma concepção de instância enunciativa como “discurso sobre o discurso”. Para Perroni (1983),
as crianças, em suas narrativas, nos momentos de diálogo, utilizariam preferencialmente o DD,
com a função principal de “dar vida” e “voz” aos personagens. De início, elas apenas o utilizariam
em momentos denominados pela autora como “clássicos”, isto é, situações em narrativas mais
conhecidas em que a presença de uma fala relatada já seria esperada, fala essa que tende a
aparecer por meio do DD. Um exemplo seria quando a Chapeuzinho Vermelho questiona o Lobo
que está vestido de vovó: “... e Chapeuzinho vermelho disse: - Por que esses olhos tão grandes...”.
Segundo Perroni (1983), é a partir dos quatro anos, aproximadamente, que elas passam a utilizar
essa instância enunciativa em outras situações.
Ainda abordando as funções do DD, Rojo (1990), ao investigar narrativas escritas,
observou que o DD nesses enunciados é um mecanismo que colabora com a expansão das
narrativas, especificamente suas categorias de ação. Ou seja, a função do DD seria também a
progressão dos enunciados, especialmente em acontecimentos na narrativa que podem ser
construídos por meio de diálogo, que ocorrem entre os personagens e podem ser relatados via
instância enunciativa do DD.
Acerca das realizações gráficas do DD, Capristano e Ticianel (2014) e Ticianel (2012,
2013) ao investigarem hipossegmentações e sua relação com o DD, puderam observar que o DD
se realizava linguisticamente de três formas principais: 1) sem marcas gráficas e verbos dicendi,
2) sem marcas gráficas e com verbos dicendi e 3) com marcas gráficas e verbo dicendi. Em cada
forma de realização, as autoras puderam observar que os escreventes utilizam o DD de forma
profícua na construção das suas produções textuais, independente da presença de marcas
prototípicas ou não.
Em síntese, pode-se destacar que uma perspectiva enunciativa na investigação do DD na
aquisição nos parece a mais acertada, pois, considera o funcionamento dessa forma do discurso
relatado. Na sequência, a partir dessa perspectiva, apresentamos a análise de três produções
textuais que pertencem ao corpus, buscando evidenciar o quanto a análise via perspectiva
enunciativa se mostra mais produtiva.
O DD na aquisição da escrita: a perspectiva enunciativa – Análise
O corpus a ser considerado nessa investigação advém de um dos bancos de produções
textuais dos grupos de pesquisa Estudos sobre a linguagem (GPEL/CNPq) e Estudos sobre a
aquisição da escrita (CNPq). Tratam-se de 3113 produções textuais coletadas nos anos de 2001 a
2004 – que correspondiam as antigas primeira a quarta série – em duas escolas municipais de São
José do Rio Preto (SP). Como interessavam apenas produções textuais em que se observasse a
presença de DD, foi realizado um recorte, após isso, foram contabilizadas 493 produções que
apresentavam DD. Nesses enunciados foram identificadas três realizações principais do DD: 1)
sem marcas gráficas e verbos dicendi, 2) sem marcas gráficas e com verbos dicendi e 3) com
marcas gráficas e verbo dicendi. Na sequência, apresenta-se exemplos dessas realizações do DD
acompanhado de discussões.
Destaca-se que esses trabalhos não compreendem que há uma interferência da fala na escrita na
construção desses enunciados narrativos, mas sim uma relação, isto é, o escrevente utiliza-se de seus
conhecimentos acerca da fala – especificamente de narrativas orais – mas, também, de seus conhecimentos
acerca da escrita – narrativas escritas.
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Figura 1: Exemplo de DD sem marcas gráficas e verbos dicendi5
A figura 1 corresponde a uma produção textual elaborada a partir de uma proposta em
que os escreventes deveriam relatar um sonho que tiveram para outro colega, esse
posteriormente, deveria escrever esse sonho e, em seguida, uma possível interpretação para ele.
Não se observa na figura nenhuma marca gráfica prototípica da presença do DD – como os dois
pontos, travessão ou aspas – entretanto, é possível que se identifique na produção textual a
presença de DD. Os fatores que permitem essa identificação são a consideração da proposta de
produção textual e todas as suas condições de produção, bem como a observação de marcas
linguísticas que possibilitam a identificação de diferentes vozes no jogo de instâncias
enunciativas.
Em primeiro lugar, recorda-se que a produção textual foi elaborada a partir de uma
proposta ligada ao relato de um sonho. Para esse relato espera-se, possivelmente, um relato em
que não haja uma narração de forma que haja uma relação lógico/verossímil entre os fatos
narrados (como se pode observar nos trechos: “eu quase fui atropelado por que eu estava vendo
as coisas tudo aucontrario...”). Ademais, a proposta de produção textual é composta pela descrição
do sonho de uma terceira pessoa, situação em que possivelmente poder-se-ia esperar a presença
de diferentes vozes, pelo menos duas: a do “narrador do sonho” e da pessoa que relata o sonho
que escutou. Além dessas características, outras marcas linguísticas da produção textual sinalizam
a presença de diferentes vozes: “eu fui/eu estava vendo X ele estava no cemitério”. Nota-se, então,
que a produção textual se inicia com a estrutura clássica de narrativas “era uma vez” (forma
linguística utilizada pelo narrador para iniciar o relato), posteriormente, a partir de marcas
linguística de primeira pessoa observa-se a presença de outra voz (“eu fui na mercearia”). Na
sequência, após a narração do fato, pode-se observar o retorno a voz do narrador, que fica
marcado linguisticamente pela estrutura na terceira pessoa (“e quando acordou ele estava no
cemitério com vários defuntos”). Nota-se, que apesar da ausência dos dois pontos, do travessão
ou da mudança de linhas é possível identificar a presença de diferentes vozes, com ênfase para o
DD, fato que possibilita afirmar que a presença de marcas gráficas está relacionada, muito mais, a
uma cobrança escolar conteudística do que a compreensão do funcionamento do DD nas
produções textuais.
A análise como a proposta a seguir não seria realizada caso partíssemos de uma
perspectiva normativa de investigação do DD na aquisição da escrita, pois sob essa perspectiva
esse uso do DD seria apenas considerado como equivocado, pela ausência das marcas gráficas.
Desconsiderar-se-ia todo o funcionamento dessa forma do discurso relatado
No corpus, conforme já citado, também foram observadas produções textuais em que
havia a presença de DD sem marcas gráficas, mas com a presença de verbos dicendi, como pode
ser observado na figura a seguir:
Leitura preferencial: Era uma vez... “Eu fui na mercearia e quase fui atropelado, por que eu estava vendo
as coisas tudo ao contrário”. E quando acordou, ele estava no cemitério com vários defuntos.
5
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Figura 2: Exemplo de DD com verbos dicendi6
A figura 2, corresponde a uma produção textual elaborada a partir da proposta “piada”,
em que os escreventes deveriam escrever piadas que conhecessem. Nota-se, a presença dos
verbos dicendi “fala” e “gritou desesperado” – circulados – introduzindo falas em DD
(sublinhadas), apesar de não haver outras marcas prototípicas como os dois pontos, travessão ou
aspas, por exemplo. Na piada, é possível notar que há diferentes vozes, três delas aparecem
relatadas por meio do DD, trata-se da voz do personagem “homem”, da “garçonete” e do
“papagaio”. É possível identifica-las a partir da própria construção da narrativa, mesmo com a
ausência de marcas gráficas prototípicas.
A piada inicia-se com a apresentação de uma situação inicial (“um omem entrou em um
restaurante), seguida da apresentação de um sintagma introdutor de DD (“e fala com garçonete”)
– ambos os trechos produzidos por meio da “voz” do narrador. Na sequência, é trazida a voz do
“homem” por meio do DD (“o que dá...”), acompanhada da voz da personagem garçonete, que
responde (“por cinco reais...). Não há uma introdução dessa última fala, como poderia exigir uma
perspectiva normativa, cobrada principalmente, pela escola, independente disso, nota-se o
diálogo entre os personagens. Destaca-se que caso houvesse a presença da estrutura: “e a
garçonete respondeu”, por exemplo, poderia haver uma quebra na cadência narrativa,
principalmente por se tratar de uma narrativa curta, como é essa piada. O jogo de
pergunta/resposta fica a cargo da própria sequência narrativa, o que é observado com qualidade
na figura.
Na sequência da narrativa, há, ainda, a apresentação dos fatos (“O homem fez as contas...”)
e novamente, a estrutura pergunta/resposta, dessa vez, sem a presença de verbo dicendi. Pela
própria sequência de ações da narrativa, com destaque para a estrutura que se repete, é possível
compreender a presença das falas relatadas em DD (“o que dá pra mim...”/ “só o papagaio...” / “eu
aceito”). Em seguida, há mais uma apresentação da sequência de fatos feita pelo narrador
(“quando a mulher foi despenar...”). A narrativa encerra-se com a fala em DD do papagaio –
introduzida pelo verbo dicendi acompanhado do determinante circunstancial (“gritou
desesperado”) – é desse trecho que vem o mote para o riso. Nota-se que o uso do DD dessa piada
compõe a construção da narrativa, a ausência de marcas gráficas não interfere na compreensão e
bom uso do DD.
Na figura 2, é preciso que se destaque, também, o uso profícuo que é feito dos verbos que
introduzem as falas em DD, em específico, do verbo “gritou” acompanhado do determinante
circunstancial (RISSO, 1978) desesperado. Nota-se que na produção textual aparecem, apenas,
dois verbos dicendi (“fala” e “gritou desesperado”), esses verbos são estrategicamente utilizados
na construção da produção textual. O primeiro introduz a fala do homem para a garçonete e fica
Leitura preferencial: Um homem entrou em um restaurante e fala com garçonete: “o que dá para mim
comer com isso?” “Por cinco reais, dá para comer um frango.” O homem fez as contas e só tem a metade do
preço. “O que dá para mim comer com isso?” “Só o papagaio que está na gaiola!” “Eu aceito!” Quando a
mulher foi despenar o bichinho, o papagaio gritou desesperado: “Pare! Pare! Eu pago a outra metade!”
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subentendido como se estivesse presente nos outros trechos de diálogo entre os dois. Já o verbo
“gritou desesperado” aparece em um momento “decisivo” da piada, isto é, o momento em que há
a introdução do momento de desvio que causa o riso: Quando a mulher foi despenar o bichinho, o
papagaio gritou desesperado: “Pare! Pare! Eu pago a outra metade!”. A escolha pelo verbo não é
arbitrária, caso fosse o escrevente poderia manter o uso de “fala” – por ser o introdutor de fala
por excelência, mais conhecido pelos escreventes e considerado mais neutro – mas “a escolha” é
por um verbo de matizes afetivas (sentiendi) (RISSO, 1978), verbo que também vem acompanhado
por determinantes circunstancial que reforça um sentido para o verbo. O papagaio, na piada, está
prestes a ser despenado, para impedir o que está para acontecer não pode apenas “falar” algo, mas
precisa gritar, não apenas gritar, mas “gritar desesperado”. A escolha desse verbo corrobora na
construção de sentidos da narrativa, especificamente, interferem na compreensão da fala citada:
“Pare! Pare! Eu pago a outra metade!”. Esses verbos que constituem a fala relatada são
determinantes para a interpretação da fala citada, pois denotam diferentes cargas valorativas e,
por isso, não devem ser negligenciados: “de fato, em função do verbo escolhido (sugerir, afirmar,
pretender...), toda a interpretação da citação será afetada” (MAINGUENEAU, 1993, p. 88). Esse
uso dos verbos na construção das falas relatadas em DD, permite considerar, mais uma vez, que
os escreventes mesmo não dominando as marcas gráficas prototípicas de realização do DD, já
sabem utilizá-lo nas suas produções textuais, bem como, sabem utilizar com excelência os verbos
que o compõem.
Mais uma vez, destaca-se que uma perspectiva normativa do DD na aquisição da escrita,
desconsideraria toda a análise apresentada, ignoraria o fato de que escreventes já sabem utilizar
o DD, mesmo que ainda não dominem as suas marcas gráficas mais prototípicas de realização.
Foram encontradas, também, produções textuais que apresentavam as marcas gráficas mais
prototípicas, como pode ser observado na figura a seguir:
Figura 3: Exemplo de DD com marcas gráficas e verbos dicendi7
A Figura 3 corresponde a uma produção textual elaborada a partir da proposta “História a
partir de uma parte do corpo”, em que os escreventes deveriam elaborar narrativas que fossem
contadas pela perspectiva de uma parte do corpo; a parte escolhida foi o cabelo. Nesse enunciado,
os trechos em DD são introduzidos com verbos dicendi (“disse” e “respondeu”), além dos
travessões, que introduzem as falas em outras linhas (– O que voce quer ser quando crecer/ – Eu
quero ser um cabelo famoso).
Destaca-se que produções textuais como essa foram encontradas principalmente, no ano
de 2004, correspondente a quarta série. Poder-se-ia afirmar que seria “esperado”, pois os
escreventes estão há mais tempo em contato com a escola e, consequentemente, com certas
normas cobradas pela escola, neste caso, em específico, o uso de marcas gráficas prototípicas para
7 Leitura
preferencial: Era uma vez um Cabelim que todos os dias e todas as horas sua dona não parava de
penteá-lo. Era cabelo pra lá, cabelo pra cá. Todas as horas mexendo no cabelo. Um dia, o seu colega Cabelão
disse: “O que você quer ser quando crescer?” Ele respondeu: “Eu quero ser um belo cabelo famoso”. E esse
foi o pensamento do Cabelim.
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indicação da presença do DD. O fato a ser destacado não é o de que o uso dessas marcas gráficas
não deve ser ensinado ou cobrado pela escola, mas que esse não deve ser a questão mais
importante na abordagem do DD pelos professores. Ao se considerar, em primeiro lugar, o
funcionamento do DD, qual a sua importância na construção das produções textuais, quais os
efeitos de sentido ele pode provocar – recuperar o colorido da enunciação original, fazer a
produção textual progredir, dentre outros –, bem como outros aspectos ligados ao
funcioanamento, deixa-se de lado o mero ensino de estruturas linguísticas, para o ensino do uso
real. Perspectiva que aproxima as aulas de português dos usos reais e as afasta dos usos mecânicos
propagados por modelos tradicionais.
Em síntese, buscou-se apresentar os ganhos que uma investigação do DD sob uma
perspectiva enunciativa tem especificamente na investigação na aquisição da escrita. Na
sequência, apresentam-se as considerações finais deste estudo.
Considerações finais
O objetivo da presente pesquisa foi apresentar o quanto uma perspectiva enunciativa é
essencial para a investigação do DD na aquisição da escrita, isto é, uma perspectiva que considere
o funcionamento do DD nas produções textuais dos escreventes e não a sua realização apenas a
partir de certas marcas gráficas. Pôde-se observar que os escreventes utilizaram o DD de forma
profícua em suas produções textuais mesmo quando o seu uso não estava ligado a essas marcas
gráficas, fator que comprova que o “bom” uso do DD – sobretudo na aquisição da escrita – não se
relaciona com marcas visuais, mas sim com o funcionamento dos enunciados.
Por fim, destaca-se que uma mudança de perspectiva na investigação do DD na aquisição
da escrita – bem como no DD de forma geral – pode contribuir com professores, pesquisadores e
demais interessados no DD, possibilitando, principalmente, que se passe a compreender essa
forma do discurso relatado não como um mero recurso gráfico, mas sim como uma instância
enunciativa.
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