A PERSPECTIVA KANTIANA ACERCA DO ENSINO DA FILOSOFIA Édison Martinho da Silva Difante1 Resumo: Kant tinha consciência das dificuldades referentes ao ensino da filosofia. De modo que, tanto no Anúncio do programa do semestre de inverno de 1765-1766, quanto na Crítica da razão pura (1787), coloca (de maneira implícita) a impossibilidade de tal ensino. Contudo, Kant não descarta a necessidade da atividade filosófica que requer, sobretudo, o exercício da razão. No final do Manual dos cursos de lógica geral (1800), ele procede definindo quais seriam os métodos (de ensino) mais adequados, tanto na elaboração dos conhecimentos, quanto no trato dos mesmos. Dentre “As diversas divisões do método”, o mais adequado à filosofia seria, pois, o método “erotemático” (Erotematisch), que pede por reflexão, pois é o método de alguém que, além de ensinar, também interroga (frägt). Segundo a perspectiva kantiana, somente é possível filosofar, envolvendo-se de fato com a filosofia, porque ela é uma disciplina diferente das demais. Um historiador de arte não carece de pintar para ser um bom historiador; para estudar a poesia não é necessário ser poeta e, da mesma forma podemos estudar música sem tocar um instrumento. Contudo, para estudar filosofia é necessário entregar-se à argumentação filosófica. Palavras-chave: Ensino. Filosofia. Kant. Algumas considerações relevantes Em Kant existe a necessidade de incrementar (até no sentido simplesmente quantitativo) os conhecimentos empíricos. Ele reconhece também, explicitamente, o mérito de uma disciplina historiográfica (não necessariamente a história da filosofia), que não só através de dados históricos, mas também pela sua preparação, categorização, análise e também interpretação conscienciosa, ajude o homem a se orientar e familiarizar-se, cada vez mais, com a sua situação no mundo. Na Notícia do Prof. Immanuel Kant sobre a organização de suas preleções no Semestre de Inverno de 1765-17662 Kant diz que: 1 Aluno do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria-RS. [email protected]. 2 É preciso considerar que esse anúncio foi escrito no século XVIII, dizendo respeito ao ensino universitário da época. Nos moldes atuais (até mesmo no ensino médio), a filosofia deve ser encarada, da mesma forma, não 2 De um professor espera-se, pois, que ele forme em seu ouvinte, primeiro o homem sensato, depois o homem racional e, por fim, o douto. Semelhante procedimento tem a vantagem de que o aprendiz, mesmo que jamais chegue ao último grau, como em geral acontece, ter sempre ganho alguma coisa com o ensino e se ter tornado mais exercitado e mais atinado, senão perante a escola, pelo menos perante a vida (Kant, 1992, p. 173)3. Em termos kantianos, o aluno não deve simplesmente aprender pensamentos, mas aprender a pensar. De maneira que (em breve) tenha a capacidade e expor suas próprias conclusões de um modo claro e preciso. Ele deve ser conduzido, se assim nos quisermos exprimir, mas não levado em ombros, de modo que no futuro seja capaz de caminhar por si, e sem tropeçar, ou seja, capaz de andar sozinho (Kant, 1992, p. 174). No que se reporta diretamente à filosofia, pode-se dizer que ela é diferente das muitas outras disciplinas (das letras)4, porque para estudar filosofia é necessário se fazer filosofia. Ora, para ser um historiador de arte não é necessário pintar; para estudar poesia não é necessário ser um poeta e, da mesma forma podemos estudar música sem tocar um instrumento. Contudo, para estudar filosofia é necessário que nos entreguemos verdadeiramente à “argumentação”5 filosófica. Kant tinha consciência das dificuldades em relação ao ensino da filosofia. Aliás, segundo ele, na Crítica da Razão Pura: Só é possível aprender a filosofar, ou seja, exercitar o talento da razão, fazendo-a seguir os seus princípios universais em certas tentativas filosóficas já existentes, mas sempre reservando à razão o direito de investigar aqueles princípios até mesmo em suas fontes, confirmando-os ou rejeitando-os (Kant, 1983, p.407-408). Na Notícia de 1765-1766, Kant afirma que a filosofia é uma ocupação apenas para aqueles que atingem a maturidade, ou “para a idade adulta apenas” (Kant, 1992, p.174), ou seja, para aquelas pessoas que já têm alguma formação escolar. Segue-se, segundo ele, que o jovem que completou a sua instrução escolar básica habilitou-se para tal aprendizado. Então, apenas, como mais uma disciplina comum, mas como um saber para a vida. Dado à constatação, a seguinte passagem de Kant não se faz inconveniente. 3 Na referente passagem (parece que) Kant não se refere necessariamente ao professor de filosofia, mas aos professores de um modo geral. 4 Com a expressão (disciplinas das letras) nos referimos a todas as disciplinas teóricas (somente ficam excluídas as exatas ou matemáticas). 5 Argumentar é apresentar razões ou indícios que conduzem a uma conclusão. 3 agora pensa que vai aprender filosofia, mas isso, segundo as palavras de Kant, “é impossível, pois agora ele deve aprender a filosofar” (Kant, 1992, p. 174) apenas. A metodologia mais apropriada à filosofia a partir do livro da Lógica (1800) A atividade filosófica requer, sobretudo, o exercício da razão. Segundo Kant, na Notícia de 1765-1766, o “método peculiar de ensino na Filosofia é Zetético” (Kant, 1992, p.175), ou seja, é um método baseado na investigação; de modo que, deveria conduzir o aluno a investigar fatos (dogmas estabelecidos), mas também a refletir sobre os mesmos e fazer inferências por si próprio, independentemente de qualquer tipo de imitação (Kant, 1990, p.33)6. Segundo consta na introdução ao Manual dos cursos de Lógica geral (obra editada entre os anos 1779 e 1800): A razão é, sem dúvida, um princípio ativo que não deve tomar nada emprestado da autoridade alheia e, em se tratando de seu uso puro (reinen Gebrauch), nem se quer da experiência. A indolência faz, porém, que um número muito grande de homens prefira seguir as pegadas de outrem ao invés de empenhar as forças da própria inteligência. Homens desse jaez só podem se tornar sempre cópias de outros, e, se todos fossem dessa espécie, o mundo permaneceria eternamente em um só e mesmo lugar. É, por isso, de alta necessidade e importância que a juventude não se mantenha, como costuma ocorrer, a imitar pura e simplesmente (Kant, 2003, p.155). Segundo Kant, são muitas as coisas que fazem com que o homem se habitue à imitação, e que por isso, tornam a razão um solo fértil para que os preconceitos se perpetuem. Entre os meios auxiliares da imitação, Kant enumera alguns no Manual dos cursos de Lógica geral (Kant, 2003, p. 157): as fórmulas (regras cuja expressão serve de modelo para imitação), os ditos (enunciações com uma fórmula muito exata e concisa), as sentenças (proposições que pelo vigor de pensamentos que contém, recomendam-se e conservam sua autoridade), os cânones (que podem ser expressos de modo sentencioso para que agradem mais) e os provérbios (regras populares do intelecto comum ou então expressões que designam juízos populares) que não são encontrados entre as pessoas de educação mais apurada, pois servem de sentenças e de cânones somente às pessoas de pouca instrução. 6 Na passagem mencionada, da Antropologia Prática, Kant está se referindo ao ensino moral propriamente dito. Dado que, o presente trabalho diz respeito ao ensino de filosofia, não é, contudo, inconveniente usá-la nesse contexto. Segundo a tradução espanhola: “Al principio conviene habituarles a obrar conforme a reglas em cosas insignificantes, apartándoles sobre todo de la imitación” (Kant, 1990, p.33). 4 No final do Manual dos cursos de Lógica geral, Kant define quais seriam os métodos (de ensino) mais adequados, “tanto na elaboração dos conhecimentos científicos como no trato deles” (Kant, 2003, p.293). Levando em conta a atividade filosófica, a partir dessa divisão, salientam-se dois métodos: o “erotemático” e o “acroamático”. Para a instrução filosófica, pode-se dizer que o método “erotemático” é o mais apropriado, uma vez que, o “acroamático” é aquele método de alguém que unicamente ensina. Segue-se, que o método “erotemático” (Erotematisch), pede por reflexão, pois é o método de alguém que, além de ensinar, também interroga (frägt). Este, por sua vez pode ser dividido em “dialógico” ou “socrático” (dialogische oder sokratische) e em “catequético” (katechetische), conforme as perguntas se dirijam ao “intelecto” (Verstand) ou meramente à “memória” (Gedächtniss) (Kant, 2003, p.295). A partir da última subdivisão, pode-se inferir que o método “erotemático dialógico” ou “socrático” é o mais apto à filosofia7. Pois segundo Kant, somente é possível ensinar erotematicamente pelo diálogo socrático, no qual ambos os interlocutores (professor e aluno) devem mutuamente interrogar e responder. Com efeito, o diálogo socrático por perguntas ensina o aprendiz a conhecer seus próprios princípios racionais e aguça sua atenção para eles. Por meio da “catequese” comum, porém, não se pode ensinar, e sim apenas indagar sobre o que foi acroamaticamente ensinado. De modo que o método catequético vale tão-somente para os conhecimentos empíricos e históricos, ao passo que o dialógico vale, ao oposto, para os racionais (Kant, 2003, p.297). Enfim, a partir de Kant pode-se dizer que os grandes filósofos foram os pensadores que argumentaram a favor daquilo que pensaram. Dado que (para Kant, sobretudo), não é possível ensinar filosofia, mas filosofar apenas (exercitar a razão). Em outras palavras, podese dizer que filosofar é pensar e questionar racionalmente, e qualquer homem (na qualidade de ser racionalmente humano), na medida em que pensa e questiona de forma coerente, está filosofando, ou seja, fazendo filosofia. 7 Segundo a Notícia do Prof. Immanuel Kant sobre a organização de suas preleções no Semestre de Inverno de 1765-1766, anteriormente mencionada, Kant identifica o método de instrução próprio da filosofia como Zetético. Em outras palavras, é o método baseado na investigação. Entretanto, a partir do Manual dos cursos de Lógica geral, pode-se inferir que este método pode ser também “erotemático dialógico”, sem que, com isso, possa haver contradição alguma. Posto que, o primeiro baseia-se na investigação filosófica e o segundo no diálogo socrático. 5 Referências bibliográficas GEACH, P.T. Reason and Argument. Berkeley and Los Angeles. University of Califórnia Press, 1976. KANT, Immanuel. Antropología Práctica (Según el manuscrito inédito de C.C. Mrongovius, fechado em 1785). Trad. Roberto Rodríguez Aramayo. Madrid: Tecnos, 1990. . Crítica da Razão Pura. Trad. Valerio Rohden e Udo B. Moosburger. 2. ed. São Paulo: Abril cultural, 1983. . Manual dos cursos de Lógica geral. Trad. Fausto Castilho. 2. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003. . “Notícia do Prof. Immanuel Kant sobre a organização de suas preleções no Semestre de Inverno de 1765-1766”. In: Lógica. Trad. Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1992. . Sobre a Pedagogia. Trad. Francisco Cock Fontanella. Piracicaba: UNIMEP, 1999. ROCHA, Ronai. “Filosofia no vestibular?”. In: Filosofia e Ensino em Debate. Org. Américo Piovesan ... et. alli. Ijuí: Ed. UNIJUÍ, 2002.