PAGANISMO E CRISTIANISMO NA ROMA ANTIGA I — A INSCRIÇÃO DO ARCO DE CONSTANTINO A batalha na Ponte Mílvia (em 23 de Outubro de 312) entre Maxêncio, o pretendente pagão à hegemonia absoluta, e Constantino, que, embora não estivesse ainda convertido ao cristianismo, não assumia uma posição hostil aos seguidores de Cristo, teve um desfecho favorável a este último. Constantino atribuiu a sua vitória ao deus dos cristãos. Era costume que um general, antes de uma batalha, elegesse uma divindade protectora e invocasse o seu auxílio. Já Augusto Octaviano, antes da batalha de Áccio (em 31 a. C.), se havia colocado sob a protecção de Apolo. Em sua opinião, foi a esta divindade que a vitória sobre António se ficou a dever. A visão que Constantino teve num sonho e que o levou a confiar no deus dos cristãos é relatada por Lactâncio e pelo biógrafo grego do imperador, o bispo Eusébio de Cesareia. É ela que está na base da famosa expressão IN HOC SIGNO VINCES (ou VINCE), que o filho de Santa Helena terá visto em sonhos sob uma cruz. A alegria do povo de Roma com a vitória de Constantino encontrou a sua expressão arquitectónica no levantamento de um arco de triunfo com três portas. O monumento em honra de Constantino é o mais grandioso dos três arcos ainda existentes e encontra-se junto ao Coliseu, na via por onde os cortejos triunfais chegavam ao forum. A sua construção terminou 3 anos depois da batalha, no décimo aniversário do governo de Constantino, a 25 de Julho de 315. O arco constantiniano é igualmente famoso pela inscrição monumental (CIL 6.1139) nas duas faces (a Norte e a Sul). É um exemplo bem ilustrativo de uma linguagem que procura não gerar dissídios na cidade de Roma entre seguidores dos deuses pagãos e adoradores de Cristo, o que seria inconveniente para as pretensões políticas do imperador. Pelo contrário, a escolha cuidadosa das 108 António Manuel Ribeiro Rebelo ________________________________________________________ palavras denota uma intenção clara de conciliar a interpretação cristã da vitória, tal como Constantino a revelou, com a filosofia pagã que os senadores romanos consideravam legítima. INSCRIÇÃO IMP(ERATORI) CAES(ARI) FL(AVIO) CONSTANTINO MAXIMO P(IO) F(ELICI) AVGVSTO S(ENATVS) P(OPVLVS) Q(VE) R(OMANVS) QVOD INSTINCTV DIVINITATIS MENTIS MAGNITVDINE CVM EXERCITV SVO TAM DE TYRANNO QVAM DE OMNI EIVS FACTIONE VNO TEMPORE IVSTIS REM PVBLICAM VLTVS EST ARMIS ARCVM TRIVMPHIS INSIGNEM DICAVIT Tradução: Ao pio, feliz e augusto imperador César Flávio Constantino, o Grande, dedicou o Senado e o Povo de Roma este arco em sinal do seu triunfo, porque sob inspiração da Divindade e pela grandeza do seu espírito, vingou de um só golpe, com o seu exército e com armas justas, o Estado, tanto sobre o usurpador, como sobre toda a sua facção. ________________________________________________________ Boletim de Estudos Clássicos — 44 Paganismo e Cristianismo na Roma Antiga 109 ________________________________________________________ Notas: ll. 1-2: a antecipação do complemento indirecto ao próprio sujeito da oração é característica das dedicatórias e tem por objectivo colocar logo no início da inscrição o nome da pessoa celebrada. l. 1: MAXIMO – uma superlativização do título de magnus, como em Alexander Magnus ou Pompeius Magnus. Na tradução, basta o grau normal. l. 2: PIO FELICI – Os atributos assindéticos fazem parte, já desde o séc. II, do título do imperador e exprimem um bom relacionamento do imperador com a divindade. Felix é uma tradução do grego eutychês, i. e. ‘favorecido pela deusa Tyche-Fortuna’ AVGVSTO – título do imperador principal. l. 3: QVOD – causal. INSTINCTV DIVINITATIS – O substantivo abstracto diuinitas foi propositado e é típico da linguagem filosófica. Obtém-se, desta forma, uma expressão neutra, aceitável aos olhos tanto de cristãos, como de pagãos. Para uma análise mais erudita e pormenorizada desta problemática, segundo o prisma da tradição católica, vd. Rodolfo Lanciani in Pagan and Christian Rome que pode ser consultado em: <http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Gazetteer/Places/Europe/Italy /Lazio/Roma/Rome/_Texts/Lanciani/LANPAC/1*.html#Constantine_ inscription>. ll. 3-4: MENTIS MAGNITVDINE – esta expressão, que se encontra em quiasmo assindético com a anterior INSTINCTV DIVINITATIS, é uma tradução do aristotélico ideal ético da megalophrosynê, que em latim também é expresso pelo termo magnanimitas. l. 4: CVM EXERCITV – em vez do clássico ablativo instrumental simples. l. 5: TAM... QVAM... = et... et... DE... DE... – dependem de ultus est. TYRANNO – ‘usurpador’, i. e. Maxêncio. ________________________________________________________ Boletim de Estudos Clássicos — 44 110 António Manuel Ribeiro Rebelo ________________________________________________________ l. 6: VNO TEMPORE – ‘a um tempo’, ‘simultaneamente’, ‘de um só golpe’. l. 6-7: IVSTIS ... ARMIS = iusto bello. Bellum pium et iustum gerere era, já desde os tempos republicanos, uma exigência moral e política na sociedade romana. ANTÓNIO MANUEL R. REBELO ________________________________________________________ Boletim de Estudos Clássicos — 44