A “judicialização” da saúde: Provocações sobre o tema e o exemplo Petrolina-PE. “A medicina é a arte de distrair o paciente enquanto a natureza produz a cura” Voltaire Imagine que você está dirigindo seu carro em uma via rápida, cerca de 80Km/h, e avista uma bicicleta cruzando a avenida. Você percebe que pela velocidade em que está guiando e pela distância da bicicleta certamente não conseguirá frear e acabará atropelando a pessoa que está na bicicleta, também percebe que algumas pessoas transitam pela calçada ao lado. Em segundos você analisa as opções: 1. Frear e mesmo assim atingir a bicicleta ou 2. Jogar o carro para a calçada. O que você faria? Agora imagine este exemplo com as mesmas condições, só que percebe que há várias pessoas na calçada. Qual seria a conduta mais acertada nesta situação? Arriscaria frear e atingir a bicicleta ou jogaria o carro para a calçada podendo atropelar algumas pessoas? São dilemas morais que você certamente já enfrentou, mas não de forma tão óbvia, escolher entre uma pessoa na bicicleta ou várias na calçada. Esses dilemas morais normalmente surgem de forma mais indireta como no caso da “judicialização” dos medicamentos. De pronto, deve-se alertar que este texto não é uma apologia a não concessão de medicamentos pelo Poder Judiciário, mas uma forma de mostrar que, diante de recursos limitados, critérios são necessários e que o dilema moral que enfrentamos nestes casos não é um dilema exclusivo do juiz, mas também dos médicos, dos procuradores, do Estado (aqui me refiro a União e também aos Municípios) e, principalmente, de todo cidadão. O que se levanta aqui são questões que nem sempre terão respostas, mas nos farão refletir e alcançar uma melhor solução para a questão da concessão dos medicamentos pelo Poder Judiciário. A questão sobre o que você faria diante de uma situação extrema em que é necessário escolher salvar uma vida ou várias foi posta porque é o que hoje está acontecendo com os medicamentos, mas não tão claramente. Quando o Juiz determina a concessão de um medicamento X, por exemplo, o Herceptin, que custa cerca de R$ 9.300,00 (nove mil e trezentos reais)1 cada ampola, não há tempo para licitação e o Estado compra utilizando 1http://consultaremedios.com.br/substancia/trastuzumab verbas que, por vezes, iriam para reforma de hospitais ou compra de insumos que beneficiariam um número muito maior de pessoas. Então o que o juiz deveria fazer? Negar? Não. Obviamente este não é o caminho. O magistrado não é o algoz. Ele estudou em sua formação acadêmica, especificamente a ciência jurídica e quando se depara com uma receita ou um laudo médico, que embasa um pedido de medicamentos, não é competente para dizer que aquelas pessoas não necessitam daquele medicamento ou que há outras substâncias possíveis para a patologia de um paciente. Não lhe compete fazer isso e sim a um médico. O médico, por sua vez, ao prescrever um medicamento deveria (e com certeza, alguns o fazem) analisar as demais opções e verificar se, de fato, é necessário aquele medicamento mais caro para o caso em questão. A responsabilidade sobre a racionalidade no uso do dinheiro estatal deve também recair sobre os ombros do médico porque as indústrias farmacêuticas estão rapidamente desenvolvendo substâncias que melhoram a expectativa de vida do paciente em dois ou três meses, porém triplicam os efeitos colaterais e vão para o mercado com o preço cinco vezes maior que o anterior. E o problema não é só o preço. Os medicamentos são drogas e possuem efeitos colaterais seríssimos que devem ser analisados. Mas como foi dito o Juiz não se sente apto para tanto, por isso, faz-se imprescindível que nomeie um perito, com formação acadêmica, um médico, para que este responda todas as dúvidas e aí sim, com embasamento, determinar ou não a concessão dos medicamentos. O juiz não pode ficar refém do processo, lavar as mãos apenas porque é um caso de saúde e conceder a tutela antecipada imediatamente, por receio de demorar um dia para análise. Alguns dirão que é impossível nomear um perito. De fato, é difícil, mas não impossível. Apenas para exemplificar podemos destacar Ribeirão Preto, interior de São Paulo, que já realiza as concessões de medicamentos desta forma; Petrolina, interior de Pernambuco, onde Juízes Federais já estão atuando desta maneira, Recife, capital do mesmo estado, que está finalizando um processo em que foi formado um grupo de apoio com médicos e farmacêuticos que vão dar subsídios necessários para o Judiciário. Isso tudo sem falar de projetos mais avançados como o CIRADS2 implantado inicialmente no Rio Grande do Norte. 2http://www.agu.gov.br/sistemas/site/TemplateImagemTexto.aspx?idConteudo=97046&id_site=1180 Mas se ainda assim, não for possível nomear um perito, há coisas básicas que o juiz pode fazer para evitar decisões absurdas que comprometem o erário da saúde, como consultar o site da Anvisa e verificar se o fármaco está registrado, se o registro é válido e o medicamento é prescrito para a doença que possui o autor/paciente. São medidas básicas mas que servem para evitar os abusos. Sobre o tema, indicamos a leitura da Recomendação do Conselho Nacional de Justiça, de número 31/20103, que discorre sobre como os Magistrados deveriam atuar para minimizar a atuação dos aproveitadores e, principalmente, oferecer a prestação jurisdicional adequada. A questão dos medicamentos é delicada porque é impossível conceder tudo a todos, o Estado não é um mantenedor universal, pois os recursos são escassos. Mas a Constituição assegura a todos esses direitos e então? O que fazer? Mudar a Constituição Federal? A Constituição quando usa a expressão “todos”, no art. 196, a quem se refere? Quem são “todos”? Estaria tratando de mim, de você, da senhora que vende lanche na cantina da escola, do motorista de uma empresa de ônibus, do dono da empresa de ônibus? Estamos todos no mesmo compartimento? São perguntas que diante de um orçamento que é limitado devem ser enfrentadas pela jurisprudência. O direito sem a capacidade econômica da sociedade é um não direito. É retórico achar que o artigo 5º está acima dos demais artigos da Constituição Federal e que por isto deveria ser plenamente atendido, sem qualquer desculpa de ordem financeira, pois isto desequilibraria o Estado, interferiria nos orçamentos e fragilizaria a separação dos poderes. Em especial quando lembramos que os direitos sociais surgiram para evitar a expropriação dos povos. A vida não tem preço, mas tem custos. Precisamos como procuradores e, principalmente, como cidadãos, nos debruçar sobre esta questão. Quanto se pode gastar com a saúde? Alguns países já discutiram sobre esse tema. No Reino Unido, por exemplo, o NHS - National Health Service, Serviço Nacional de Saúde (tradução livre) elaborou um Manual4 que delineia quem prescreve os medicamentos, como deve ser feito tal prescrição e estabelece com exatidão como o prescritor (que pode ser o médico, o dentista e, às vezes, o famacêutico e o enfermeiro) deve se pautar: 3http://www.cnj.jus.br/atos-­‐administrativos/atos-­‐da-­‐presidencia/322-­‐recomendacoes-­‐do-­‐ conselho/12113-­‐recomendacao-­‐no-­‐31-­‐de-­‐30-­‐de-­‐marco-­‐de-­‐2010 4http://www.npc.nhs.uk/resources/nhs_guide_for_managers.pdf “Generally, prescribers seek to maximise the effectiveness of treatment, minimise the risks associated with it, minimise cost and respect the patient’s choices. Each prescribing decision is a balance between all these elements.”5 Seria perfeito se fosse, de fato, desta forma, mas infelizmente não funciona assim nem mesmo no Reino Unido, conforme foi noticiado pelo The Telegraph6 em abril de 2011, alguns medicamentos, devido ao elevado custo, estão sendo inseridos nas “red lists”, só podendo ser prescritos por médico especialista e não mais por um General Practitioner (médico clínico geral, em tradução livre), o que significa dizer, de forma simples, dificuldade no recebimento destes medicamentos. Isso porque o sistema de sáude no Reino Unido, apesar de se assemelhar ao Brasil, uma vez que todos podem utilizá-lo, se diferencia na medida em que o paciente é atendido inicialmente por GP, próximo de sua residência, e só irá a um especialista se aquele indicar. Diante de tudo o que foi dito, o que se pode fazer? Algumas medidas podem ser tomadas, como por exemplo, a perícia social. Uma investigação detalhada sobre outros aspectos da vida do paciente, pois apenas a concessão do fármaco não lhe garantirá saúde, sendo preciso tomar o medicamento corretamente, se alimentar adequadamente, incorporar hábitos saudáveis de vida e etc. O Estado anda muito preocupado em acabar com as doenças, quando estas já existem, no entanto, deveria investir mais em saúde através de campanhas de incentivo a prática de exercícios físicos, higiene ou formas adequadas de alimentação por se tratarem de medidas simples e eficientes na preservação da saúde. É preciso aumentar a eficiência em gastos públicos, rever a legislação, ampliar a informação a população. O Juiz deve acompanhar o fornecimento do medicamento, suspender a entrega caso o paciente deixe de buscar o mesmo por um ou dois meses, vincular a entrega do medicamento a apresentação atualizada de receita médica. É necessária uma reestruturação do Estado neste aspecto e isso não é apenas responsabilidade do gestor público, é nossa que o escolhemos! E como Procuradores também é nossa, na medida em que lhe representamos judicialmente. Não podemos ser reféns da “indústria da saúde” que é uma das mais lucrativas do mundo. Mas como nos libertar? É imprescindível o apoio dos médicos, pois quando falamos 5 Em traduçãolivre: De modo geral, os prescritores procuram maximizar os efeitos do tratamento, minimizar os riscos associados a ele, minimizar os custos e respeitar as escolhas dos pacientes. Cada decisão ao prescrever é um equilíbrio entre todos esses elementos. 6 http://www.telegraph.co.uk/health/healthnews/8446782/Patients-­‐are-­‐denied-­‐high-­‐cost-­‐drugs-­‐by-­‐ NHS-­‐trusts.html em medicina estamos falando em alternativas e são estes profissionais que escolhem entre o medicamento de maior eficácia e maior reação adversa, entre medicamentos com diferença ínfima de eficácia e com preços absurdamente distintos. Também é necessário o apoio dos farmacêuticos que nos embasam com informações técnicas as possibilidades e capacidades curativas para cada fármaco prescrito. Conseguir esse apoio não é simples, mas relataremos nossa experiência em Petrolina-PE, 2ª Procuradoria Regional do Estado de Pernambuco. A maior demanda de ações, na área de saúde, perante o Estado, em números e em custos, são os medicamentos para o câncer. Estes viam sendo demandados, na esmagadora maioria, perante a Justiça Estadual, em face somente do Estado e do Município e com concessão imediata da tutela antecipada. A 2ª Regional da PGE trabalha como ofício geral, mas para facilitar a defesa e para que o Procurador possa aprofundar a matéria, quando possível, os temas são direcionados. Ficamos na atribuição de responder também pelas demandas da Regional relacionadas ao assunto saúde e, obviamente, com todas as ações que envolvem a concessão de medicamentos. Conhecíamos a realidade das ações de medicamento e sabíamos que o Estado de Pernambuco não poderia ser um mantenedor universal de todos os cidadãos, como estava acontecendo, por isso nossa preocupação principal foi sair do gabinete e tentar resolver estas questões fora dele. Com a instalação da Defensoria Pública da União na região conversamos com o Chefe da 2ª Regional da PGE e resolvemos fazer uma reunião com o Ministério Público Estadual, Magistratura Estadual, Secretaria de Saúde do Município, Procuradoria do Município e a Denfensoria Pública da União com o objetivo principal de deslocar as ações de saúde para a Justiça Federal, já que nunca tínhamos conseguido, através de contestação, o ingresso da União nos feitos e deslocamento da competência para a Justiça Federal. A reunião foi extremamente positiva e restou acordado que todos os medicamentos de alto custo pleiteados seriam feitos através da Defensoria Pública da União. Após a reunião, quando um paciente que necessitava destes medicamentos de alto custo buscava o MP Estadual era encaminhado para a DPU. O Objetivo principal deste deslocamento não foi apenas repartir os gastos com a União, mas mostrar a todos os entes (União, Estado e Município) quais os medicamentos mais buscados com a finalidade de que possam ser incluídos em listas ou em TACs e o número de demandas reduzido, além, é claro, do tratamento diferenciado que as ações de saúde recebem na Justiça Federal, já que lá ocorrem realizações de perícia, muitas vezes insdispensáveis para verificar a real necessidade do fármaco, a possibilidade de manifestação, em alguns casos, antes da concessão de tutela antecipada. Um ponto importante e que merece destaque é que esses medicamentos de alto custo, normalmente oncológicos, em sua maioria, são injetáveis e precisam ser manipulados cuidadosamente, além de necessitarem de um armazenamento adequado e de um acompanhamento médico. Ocorre que nas ações judiciais não havia como garantir o manuseio e armazenamento correto do fármaco, que era entregue diretamente ao paciente, dando cumprimento as ordens judiciais. Com essa reunião e toda a modificação que relatamos, os Juízes atentos a essa peculiaridade determinam em suas decisões e sentenças que a entrega destes medicamentos sejam feitas no Centro Oncológico e não diretamente ao paciente. Isso terminou garantindo o uso correto do medicamento pelo paciente, a armazenagem correta do fármaco, além de proporcionar a ele o acompanhamento de um médico durante a aplicação do fármaco. Também possibilitou o compartilhamento do medicamento, já que nem sempre os pacientes utilizam um ampola ou unidade completa em cada aplicação. Esse compartilhamento reflete em racionalidade e economia para o Estado, o que significa eficiência nos gastos e, ainda, redução no desperdício do medicamento. E não é só isso, o descarte dos materiais (ampola vazia, caixas de medicamentos) ocorre corretamente, o que não é garantido quando se entrega o medicamento ao paciente, já que muitos sequer sabem que não se devem colocar as ampolas utilizadas em lixo comum. Após a reunião que ocorreu em meados de 2011, já fizemos outras reuniões e estabelecemos um procedimento de parceria extrajudicial para lidar com estas questões. Na última reunião que realizamos participaram todos os Magistrados Federais na subsecção Petrolina, a Defensoria Pública da União, a Procuradoria do Estado, a Advocacia Geral da União e a Secretaria de Saúde do Município. A reunião mais recente ocorreu apenas com o objetivo de “apararmos as arestas” e realizar o “ajuste fino” sobre algumas questões. Conversamos sobre o cumprimento das decisões (o Estado de Pernambuco cumpre religiosamente todas as decisões) e assuntos pontuais que alguns Juízes tinham dúvida para operacionalizar decisões. O que se percebe com este é exemplo é que ações simples podem ter resultados excelentes. Hoje trabalhamos juntos, quando um medicamento eventualmente não é entregue ao paciente, a DPU entra em contato com a Procuradoria, verificamos o que ocorreu. Antes de qualquer requerimento judicial, averiguamos se pode ser feito administrativamente. O importante nas ações de saúde, já que estamos diante de ações delicadas, por vezes, que tratam sobre vida e morte, é saber que estamos todos do mesmo lado, cidadão e Estado, já que a “quebra” do Estado não é interessante para ninguém e, também porque o Estado não pretende se furtar às suas obrigações, mas deve fazê-lo com eficiência e economicidade. A “judicialização” da saúde é uma realidade que não retrocederá, porém é possível trabalhar de forma que os melhores resultados sejam alcançados, garatindo medicamento eficaz a quem, de fato, precisa desses medicamentos, redução de disperdício e maior eficiência nos gastos públicos. Os resultados obtidos em Petrolina só foram alcançados graças a um grupo de pessoas conscientes e empenhados em fazer a diferença. Não posso deixar de mencionar neste trabalho a atuação conjunta da Farmácia de Petrolina, Juízes Federais da subsecção Petrolina, Defensoria Pública da União e Procuradoria do Estado e apoio do Núcleo de Saúde que compõe a Procuradoria, Ministério Público Estadual, Juiz Estadual da Vara da Fazenda Pública de Petrolina e Advocacia Geral da União. Para concluir destaco os resultados importantes alcançados: 1. Levar as ações de medicamento para a Justiça Federal e repartir com a União despesas e responsabilidades. 2. Entrega dos medicamentos oncológicos injetáveis no Centro de Oncologia e não diretamente ao paciente, resultando em: acompanhamento por um médico na aplicação do medicamento, garantia de uso pelo paciente do medicamento, redução de desperdício, descarte correto dos vasilhames, compartilhamento de dose, este último refletido para o Estado economia nos recursos e eficiência nos gastos.