1 CAPÍTULO 53 – CUIDADOS PALIATIVOS AUTORES: Cleyton Angelelli (revisor) Médico Pediatra - Serviço de Assistência Domiciliar Hospital Israelita Albert Einstein Endereço: Avenida Albert Einstein, no. 627/701, 3º andar – Bloco D - Morumbi – CEP 05652-900 – São Paulo, SP, Brasil Telefones: +55(11) 2151-2955 E-mail: [email protected] Simone Brasil de Oliveira Iglesias Médica Pediatra Intensivista - Unidade de Cuidados Intensivos Pediátricos do Hospital São Paulo - Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP Mestre em Pediatria pela Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP Especialista em Bioética pela Universidade de São Paulo – FMUSP Endereço: Rua Napoleão de Barros, 715 – 9º. Andar – Vila Clementino – CEP: 04024002 – São Paulo, SP, Brasil Tel: + 55 (11) 5576-4121 / 5576-4119 E-mail: [email protected] 2 CAPÍTULO 53 – CUIDADOS PALIATIVOS INTRODUÇÃO O conceito de paliar sempre esteve na essência do cuidado em saúde, como a busca do alívio do sofrimento humano. Mais que uma aparente nova ciência ou corrente filosófica, tal esforço vem integrando a história da medicina desde tempos remotos. Porém, com o avanço da tecnologia aplicada à medicina contemporânea, ampliou-se a capacidade de prolongar a vida de portadores de doenças crônicas, limitantes e incuráveis. Em particular nas Unidades de Cuidados Intensivos Pediátricos (UCIP), e a partir dos anos 80, crianças e adolescentes portadores de doenças graves tiveram sua mortalidade reduzida de 15 a 20% para 3 a 10%, com freqüente sobrevida de pacientes com sérias co-morbidades. Tal conjuntura trouxe dilemas éticos concernentes à autonomia do paciente e seus familiares e à humanização na fase final da vida. A dificuldade clínica em identificar e delimitar as diferenças entre o que são abordagens adequadas e o que se pode considerar como futilidade terapêutica, procedimentos inúteis, obstinados e desproporcionais, tornou necessário o aprofundamento no tema cuidados paliativos. A equipe de saúde, além da assistência adequada com responsabilidade ao preservar a qualidade de vida, também se engaja no processo de assegurar uma morte digna para seus pacientes, quando inexistem chances para a cura. CUIDADOS PALIATIVOS – DO REINO UNIDO PARA A AMÉRICA LATINA O termo “Cuidados Paliativos” (CP), cunhado há quase 40 anos, define a atenção interdisciplinar pela qual se provê cuidado físico, psicológico, social e espiritual à 3 pacientes e seus familiares, desde o diagnóstico de uma condição ameaçadora à vida até a resolução da mesma ou à morte (22). Historicamente, o conceito atual de CP nasceu dentro do movimento hospice moderno, iniciado no Reino Unido por Cicely Saunders, com a criação do St. Christopher’s Hospice (1967). Dali estendeu-se para a América do Norte, outros países da Europa e o Japão ao longo da década de 70, e chegou à América Latina no início dos anos 80. O desenvolvimento da filosofia paliativista na América Latina seguiu heterogêneo e fragmentado, diferindo em velocidade e alcance em cada país. Até recentemente, em dados de 2006, enquanto Chile, Argentina e Costa Rica já apresentavam uma maior integração dos Serviços de CP em nível nacional, em outros locais a oferta de CP seguia de forma localizada, em fase inicial de construção do atendimento, ou em atividades incipientes e pouco documentadas (31). Dentro da realidade latino-americana, questões como a dificuldade de acesso a medicações opióides, a grande vinculação do cuidado paliativo a hospitais e serviços terciários de saúde, a falta de políticas públicas e a escassez de centros de formação e ensino são alguns dos obstáculos ao processo de plena implantação desse modo de cuidar. Ainda assim, a oferta de CP em nosso meio cresce em abrangência e representatividade. (22,31). DEFINIÇÃO E PRINCÍPIOS DOS CP Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o termo cuidado paliativo, freqüentemente associado apenas a pacientes terminais, pode ser aplicado em qualquer estágio da doença (29). Qualquer ação direcionada à melhoria da qualidade de vida e à 4 busca do alívio do sofrimento, em todas as suas vertentes, pode ser considerada uma ação em cuidado paliativo. Crianças portadoras de doenças limitadoras (DLV) ou ameaçadoras à vida (DAV) são candidatas a esta abordagem. Com os CP, busca-se a reafirmação da vida e a compreensão da morte enquanto processo de evolução natural, que não deve ser apressado ou adiado. Por meio de uma equipe multiprofissional, composta por médicos, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos e capelães, entre outros profissionais de saúde, o cuidado em CP inclui não apenas o paciente mas também sua família. Trabalhando integrativamente, a equipe cria um sistema de apoio às questões psicológicas e espirituais, dá suporte à tomada de decisões para uma vida a mais digna e ativa possível, e auxilia no processo de luto dos familiares (29). Para os pacientes que ainda estão recebendo terapias curativas ou modificadoras do curso da doença, aqui incluídos cirurgias, quimioterapias, cuidados intensivos, entre outros, não são excluídos os CP, sendo ao contrário aplicáveis e bem-vindos. Existem evidências de que, quando oferecidos em tempo precoce, estes cuidados agregam qualidade de vida e influenciam positivamente o curso da doença (25,29). Segundo a American Academy of Pediatrics (Committee on Bioethics, 2000), “os componentes dos CP são oferecidos no diagnóstico e mantidos ao longo do curso da doença, mesmo que o resultado seja a cura ou morte” (1). Entende também que devem se estender a todos os ambientes da vida da criança, incluindo a casa, a escola e o hospital. CP APLICADOS À MEDICINA INTENSIVA PEDIÁTRICA Aspectos Bioéticos 5 Na evolução de determinadas doenças, identifica-se um momento em que, apesar do investimento tecnológico e terapêutico, a cura não é mais possível e a morte é esperada. Desta forma, investimentos obstinados podem levar a um lento e doloroso processo de morte. Este momento é impreciso e influenciado por vários fatores (21). A atuação médica deve levar em conta o estágio evolutivo da doença e os princípios bioéticos a ele relacionados. Considerando a linha da vida, podem-se identificar dois momentos distintos: a fase inicial da vida, onde o foco recai sobre a medicina preventiva e curativa, e o momento em que a morte torna-se inevitável. Inicialmente, a conduta médica deve fazer prevalecer a beneficência, sem esquecer a autonomia do paciente e sua família (Figura 53.1). A nãomaleficência situa-se como um valor ético secundário neste momento: aqui se justificam medidas invasivas, ainda que causem algum grau de sofrimento, pois o primeiro objetivo neste momento é a preservação da vida. Na fase em que a morte torna-se inevitável, prevalece a medicina paliativa e a prioridade se torna o alívio do sofrimento, a não-maleficência. No caso de crianças e pacientes com incapacidade mental, o princípio da autonomia deve ser exercido pela família ou seu responsável legal, buscando a defesa dos melhores interesses da criança. O princípio da justiça, considerado um mínimo ético, deve sempre reger as condutas médicas, havendo bom senso na priorização e indicação dos recursos terapêuticos em cada fase. A indicação de cuidados paliativos se estende inclusive ao período neonatal. Mesmo tendo em mente as diretrizes éticas nestes dois momentos da vida, na prática da UCIP é difícil definir o limite entre o tratamento razoável e o fútil. São inúmeras decisões que cabem à equipe de saúde, ao paciente e à família. Neste processo, há um contato direto ou indireto com inúmeros aspectos da bagagem pessoal, emocional, cultural, 6 religiosa e de valores – nem sempre expostos e óbvios – de todos os envolvidos. Por isso é necessária uma relação de confiança e um canal de comunicação aberto entre as partes, em um ambiente seguro para se exporem tais questões. A equipe de cuidados paliativos tem a função de garantir a autonomia do paciente e sua família: Auxiliando na construção de um plano de diretrizes de cuidados a serem aplicados ao paciente, e sua formalização; Garantindo a aplicação deste plano nos diferentes ambientes (domicílio, unidades de saúde, hospitais, hospices) pelos quais o paciente irá transitar até o final de sua vida, de acordo com os objetivos previamente acordados (10,13). Prática de CP em UCIP Os Cuidados Paliativos devem ser oferecidos no momento do diagnóstico e durante todo o curso de doença com pouca expectativa de cura, qualquer que seja seu desfecho. Para o desenvolvimento de serviços de CP às crianças (4), as condições clínicas que devem ser consideradas incluem: 1) Doenças para as quais o tratamento curativo é possível, mas pode falhar. Exemplos: doenças oncológicas progressivas, avançadas ou com prognóstico reservado e cardiopatias congênitas complexas ou adquiridas; 2) Doenças que necessitam de tratamento prolongado com o objetivo de manter a qualidade de vida. Exemplos: infecção pelo HIV, fibrose cística, distrofia muscular progressiva, insuficiência respiratória crônica, imunodeficiências graves e epidermólise bolhosa grave; 3) Doenças crônicas progressivas para as quais o tratamento é exclusivamente paliativo. Exemplos: Doenças metabólicas progressivas, mucopolissacaridoses, anormalidades cromossômicas graves e osteogênese imperfeita; 7 4) Deficiências neurológicas graves, não progressivas, que tornam o paciente vulnerável a complicações e morte prematura. Exemplos: seqüela neurológica de doença infecciosa, lesão cerebral hipóxica ou anóxica, acidente vascular cerebral, malformação cerebral importante e paralisia cerebral grave com infecções recorrentes. Na medicina intensiva, os CP adquirem aspectos particulares, uma vez que o momento da morte está, em geral, próximo e isto traz angústia para familiares, pacientes e profissionais. São considerados como princípios fundamentais dos CP em UCIP (20): Aceitação da morte como um processo natural do fim da vida; Priorizar sempre o melhor interesse do paciente; Repudiar futilidades: diagnóstica e terapêutica; Não encurtar a vida nem prolongar o processo da morte; Garantir a qualidade da vida e do morrer; Aliviar a dor e outros sintomas associados; Cuidar dos aspectos clínicos, psicológicos, sociais, espirituais dos pacientes e de seus familiares; Respeitar a autonomia do doente e seus representantes legais; Avaliar o custo-benefício a cada atitude médica assumida; Estimular a Interdisciplinaridade como prática assistencial. Nas UCIPs, a Initiative for Pediatric Palliative Care identificam importantes domínios referentes aos cuidados centrados na família, visando dar suporte à unidade familiar, com decisões compartilhadas e suporte à dor e ao luto (5,8). 8 Na tabela 53.1 são apresentadas sugestões de intervenções para implantação de cuidados de final de vida em Unidades de Cuidados Intensivos Pediátricos (26). (Tabela 53.1). Aspectos da Comunicação e Tomada de Decisões Comunicação Comunicar (do latim: communicare) significa “tornar comum” e pressupõe a compreensão e entendimento entre as partes envolvidas. Pôr em contato ou relação; ligar; unir. Capacidade de trocar ou discutir idéias, de dialogar, com vista ao bom entendimento entre pessoas. Contrapõe-se a informar, que significa dar informe ou parecer; instruir, avisar e cientificar. A comunicação eficaz dá-se a partir de uma relação médico-paciente/família harmônica, equilibrada, respeitosa e tolerante. O comunicador deve ser capaz de ouvir, respeitar os valores e incluir o outro nas decisões referentes à sua própria vida. Humildade, transparência, paciência, segurança e boa didática são elementos para uma boa comunicação (20). O profissional de saúde deve respeitar e reconhecer o grau de compreensão e absorção do paciente e sua família; enfim, sua competência. Deve favorecer a tomada de decisões autônomas, livres e sem influências externas, quando estas se tornarem necessárias. Seu papel é auxiliar o paciente e/ou família a eleger, dentre todos os valores relacionados com a saúde, aqueles que forem os melhores para eles, aceitando suas escolhas e acompanhando-os durante o tratamento, ainda que estas escolhas estejam embasadas em valores e crenças diversas das do profissional. 9 A comunicação entre seres humanos é complexa e ocorre em três níveis: O verbal (as palavras); O paraverbal (como falamos – silêncios, sons, ênfases, pausas entre frases e palavras); O não-verbal (expressões faciais, posturas corporais, toque, distâncias interpessoais, gestos). Não há comunicação verdadeira se existe incoerência entre as palavras e a comunicação não-verbal. Os sinais corporais concomitantes ao discurso verbal podem trazer ambigüidade, mas a percepção desta ambigüidade é valiosa para se identificar (e manejar) as situações de angústia, dúvida e demais sentimentos do paciente e sua família. Alguns sinais podem ser identificados como ausência de compreensão da mensagem: negar com a cabeça, desviar o olhar, reclinar-se para trás, cruzar os braços, expressões como “não” e “mas”. Outros sinais podem ser percebidos como de compreensão da informação e boa escuta, como: afirmar com a cabeça, olhar atento e com empatia, inclinar o corpo para frente e o uso de expressões como “sim e “claro”. Geralmente, não temos controle voluntário de todos os sinais não-verbais e, mesmo quando não dizemos tudo o que pensamos ou sentimos, a sinalização não-verbal não consciente expressa as emoções ocultas. Silva propõe uma tabela esquemática de modelos não-verbais de comunicação dos profissionais de saúde que podem ser eficazes ou ineficazes para uma comunicação adequada (24). (Tabela 53.2). 10 Vários são os ruídos na comunicação hospitalar. Dentre eles, o nível de insatisfação pelos cuidados hospitalares, que podem desencadear processos judiciais; a qualidade da assistência prestada; o grau de esperança do paciente/família em relação à cura; as dificuldades na relação médico-paciente/família; e os conflitos éticos. Barreiras pessoais são consideradas os principais ruídos na comunicação hospitalar (24), quais sejam: Uso de linguagem inadequada (por exemplo: termos técnicos e omissões), que pode trazer incompreensão da informação pelo paciente; Ausência de habilidade de comunicação e atitudes corporais inadequadas; Impedimentos físicos (surdez, mutismo); Fatores psicológicos (personalidade, sentimentos, ânimo e emoções); Diferenças educacionais (formação profissional ou cultural); Barreiras organizacionais (status das pessoas em uma determinada organização) A comunicação de más notícias é freqüentemente uma situação delicada em UCIP. Ser honesto, porém sem anular as esperanças do paciente, é considerado o aspecto mais difícil referente a este processo (3). Entretanto, é possível melhorar a abordagem ao paciente evitando alguns erros muito comuns, quais sejam (19): Ser demasiado brusco; Discutir más notícias em momento e local inapropriado para uma conversa séria; Transmitir a sensação de que não há esperanças; Falar apenas sobre os diagnósticos, e não sobre o prognóstico; Abordar esta discussão crítica sem preparação prévia; Dar informações erradas, especialmente sobre retardo mental, expectativa de vida, ou outros assuntos sérios; Falar com apenas um parente do paciente sozinho; 11 Parecer estar com pressa; Estar bem humorado, irreverente, ou desrespeitoso; Usar linguagem técnica. Na tabela 53.3 são descritas as necessidades dos familiares de pacientes em fase terminal (14). Existem protocolos desenvolvidos para auxiliar os profissionais na tarefa de dar más noticias, visando diminuir os riscos e prejuízos da comunicação não empática. A abordagem SPIKES, um protocolo de comunicação em seis passos, coordenada por um grupo de oncologistas americanos, sintetiza as principais diretrizes a serem seguidas pelos profissionais de saúde (3). A seguir, o conceito inerente a cada um destes seis passos: 1) Primeiro passo: “Setting up the interview” (S) Diz respeito ao setting, que aqui pode ser traduzido como contexto. A preparação (preparar a família/paciente dizendo ter um assunto difícil para discutir), o momento (em que a família, o paciente e o médico estejam descansados e tenham tempo para conversar), o local (adequado, reservado, sem que ocorram interrupções) e a diligência (a comunicação deve ser feita o mais precocemente possível, evitando a angústia da espera) fazem parte do setting ideal. 2) Segundo passo: “Accessing the patient’s perception” (P) Acessar as expectativas, percepções e crenças do paciente é possível quando o profissional da saúde coloca-se disponível para ouvir. Aqui procuramos descobrir o que a família/paciente sabe e o quanto quer saber sobre a doença. Busca-se a 12 compreensão da maneira como o paciente percebe o que está acontecendo com ele e seu grau de prontidão para ouvir as más notícias. 3) Terceiro passo: “Obtaining the patient’s invitantion” (I) Estar em sintonia com os desejos do paciente permite ao médico informar na medida em que seja dada abertura para isso. O objetivo é compartilhar a informação de forma gradual, observando a compreensão da família/paciente, verificando como eles se sentem depois de receber a notícia, atentando para a comunicação verbal e nãoverbal. Quando existe negação e ambivalências, o médico não deve discutir ou se colocar em embate com a família. As ambivalências são comuns neste momento, e o médico deve aceitá-las. No caso de crianças, a comunicação de notícias exige concordância e cumplicidade dos pais. Algumas vezes, estes podem desejar que informações sejam omitidas na intenção de proteger seus filhos. O pediatra deve compreender a situação, ser solidário aos pais, ajudá-los nesta decisão, avaliar o nível de compreensão da criança e facilitar a comunicação entre os pais e a criança. 4) Quarto passo: “Giving knowledge and information to the patient” (K) É função do medico dizer a verdade ao paciente, mas da melhor maneira possível. A linguagem deve ser clara e simples, se necessário recorrendo a materiais audiovisuais para facilitar a compreensão, e a atitude deve ser realista, evitando minimizar o problema mas jamais recorrendo a palavras negativas que demonstrem desesperança. Ao informar, procura-se dar apoio ao paciente, utilizando habilidades de comunicação que permitam reduzir o impacto emocional e a experiência de isolamento que a má notícia desencadeia no receptor. 13 5) Quinto passo: “Addressing the patients emotions with empathic responses” (E) Avaliando a todo o momento o estado emocional e psicológico da família/paciente, o profissional deve expressar empatia pela sua dor, ser humanitário e ter compaixão, assegurando que haja suporte emocional de outras pessoas, se necessário. A empatia também se expressa em ações, na medida em que estar atento às opiniões e solicitações da família/paciente implica no compromisso do médico em atendê-las sempre que possível. 6) Sexto passo: “Strategy and summary” (S) Ao desenvolver um plano de tratamento que tenha plena cooperação do paciente, não devemos estabelecer limites nem prazos. As decisões devem ser tomadas com cumplicidade e colaboração. Programar encontros posteriores com a família/paciente faz parte do compromisso de envolvimento no processo, dando-lhes segurança da continuidade do cuidado ativo durante todos os estágios da doença, não importando o que houver. Tomada de Decisão No processo de tomada de decisão, a primeira questão que se estabelece é: a quem cabe a decisão? O processo decisório envolve todos os indivíduos comprometidos com o bemestar da criança, desde os profissionais envolvidos na assistência direta (equipe de saúde), familiares, instâncias administrativas, instituições governamentais, e até os profissionais de comitês hospitalares de bioética. Os pais Os pais geralmente possuem fortes vínculos afetivos e preocupações com seus filhos, por isso, acredita-se que sejam as pessoas mais capazes de reconhecer e lutar pelos seus 14 interesses. Estão também comprometidos com a dinâmica familiar e com o desenvolvimento biopsicossocial, afetivo, espiritual e cultural de suas crianças. Segundo Fleischmann, “a escolha parental promove o valor da integridade familiar, garante a possibilidade de identificação dos decisores e reconhece que os pais desempenham um papel legítimo na formação e desenvolvimento de seus filhos”. Os pais possuem ainda o “instinto de consciência individual” capaz de identificar a escolha moralmente mais adequada (9). Quando as decisões são compartilhadas com as famílias, observa-se que são considerados outros aspectos além da sobrevivência da criança, como a sua qualidade de vida, o nível de dor e desconforto, e o que elas imaginam ser a vontade do filho (17). Entretanto, a reflexão sobre a morte, o risco de vida ou o sofrimento de um filho é de profunda complexidade e dolorosa para os pais. Os pais freqüentemente se encontram em fase de negação, e podem experimentar sentimentos contraditórios, tristeza, raiva e culpa. Por estarem envolvidos no processo decisório lidando com a incerteza e sem qualquer vivência prévia deste tipo de situação, precisam ter confiança na equipe de saúde. Diferenças sócio-culturais e religiosas entre os pais e os profissionais podem dificultar o processo de comunicação e, em uma relação assimétrica de poder, pode haver desvalorização das opiniões da família (14). Conversar com a família respeitando as diferenças, sem pré-julgamento e com empatia, independente do diagnóstico ou prognóstico do paciente, é fundamental para a construção uma relação de confiança mútua. Os profissionais de saúde Em nossa cultura, o modelo paternalista de relação profissional de saúde-paciente/família nos faz crer que devemos “proteger” os pais das situações complexas e dos dilemas éticos 15 que envolvem seus filhos. Esta atitude protetora procura evitar sentimentos de culpa ou remorso dos pais em situações de desfechos fatais ou indesejáveis. Alguns acreditam que, em momentos difíceis de decisão, os profissionais de saúde estão menos vulneráveis ao estresse e aos distúrbios emocionais do que os pais, pouco familiarizados com as opções terapêuticas e com a complexidade dos casos (14). Entretanto, serão os pais e familiares que lidarão diariamente com as decisões que não lhes couberam inicialmente e com todas as suas implicações médicas e não-médicas. Neste contexto, a qualidade da relação entre pais e equipe depende dos princípios éticos que a regem, como: respeito à autonomia e à dignidade do paciente e de seus familiares, respeito à sua competência, capacidades e recursos; beneficência/não-maleficência; compromisso com a verdade e a justiça; e o respeito aos direitos humanos. O sujeito do tratamento (paciente e família) deve ser percebido como um ser biopsicossocial e cultural singular, com suas expectativas, susceptibilidades, angústias e temores neste momento de grande vulnerabilidade. No Modelo Deliberativo da relação médico-paciente/família, a atitude ideal do profissional de saúde é integrar informação e valores para realizar uma recomendação terapêutica, favorecendo o diálogo, a autonomia do paciente e a reflexão. Durante este processo de deliberação conjunta e humanizada, o desenvolvimento moral de cada indivíduo é favorecido. Vale ressaltar que os valores dos profissionais de saúde são importantes para o paciente e servem como base para que o eleja como seu cuidador. A criança Do ponto de vista legal, no Brasil, as crianças são consideradas autônomas para tomar decisões sobre suas vidas apenas após os 18 anos. A determinação deste limite de idade pode não estar em equilíbrio com o desenvolvimento etário, cognitivo e maturidade. 16 Embora as crianças não possam “consentir”, porque o consentimento verdadeiro inclui pleno entendimento, profissionais de saúde e pais devem ser encorajados a ouvi-las, solicitando seu assentimento ou concordância em relação aos tratamentos propostos. Contudo, os responsáveis têm a obrigação de proteger os interesses da criança e do adolescente e minimizar os danos à saúde a que eles possam se expuser, não devendo oferecer opções consideradas inaceitáveis (17). A percepção da autonomia da criança e do adolescente, permitindo-lhes a manifestação de sua plena capacidade, trouxe vários dilemas entre beneficência e autonomia, quer na prática clínica diária, quer em situações de investigação clínica. Crianças com doenças crônicas encontram-se em situação ainda mais delicada, pois é comum que pais e profissionais negligenciem sua crescente habilidade em participar de decisões. Entretanto, é essencial o acompanhamento desta evolução, levando em conta a maturidade e percepção para conceder o adequado respeito à autodeterminação destes indivíduos. Os limites entre a dependência e a independência e a competência e a incompetência são freqüentemente pouco nítidos (14). Além dos desejos dos pais e da criança, os profissionais de saúde possuem a obrigação ética e legal de salvaguardar o “melhor interesse” de seu paciente, de acordo com sua idade e maturidade. Qualquer discussão relacionada aos cuidados às crianças deve incluir os aspectos éticos, legais, sociais, contextuais, culturais e do desenvolvimento individual. Segundo a Academia Americana de Pediatria, a complexidade médica e moral de tais decisões podem tornar as normatizações imprudentes (1). Entretanto, algumas normas baseadas nos princípios bioéticos devem ser seguidas: o julgamento criterioso, a nãodiscriminação, o balanço da situação, suas perspectivas e alternativas. 17 O processo decisório, realizado de forma compartilhada entre pais e profissionais de saúde, é considerado a estratégia ideal para promover as melhores escolhas possíveis em situações complexas e difíceis (1,17). Esta atitude requer respeito e compreensão pelo momento delicado e difícil da família, bem como plena consciência de seus direitos de decisão (14). Ordens de ressuscitação/reanimação Dentro do contexto da formalização das decisões tomadas por pacientes e familiares acerca dos objetivos do cuidado a ser dispensado ao final da vida, diversos países latinoamericanos vêm adotando conceitos legais, na forma de documentos com diretrizes antecipadas de vontades (testamento vital, living will, Patient Self-Determination Act), ordens de não-ressuscitar/permitir morte natural (DNR/AND) e consentimentos para doação de órgãos/tecidos. A necessidade da documentação das decisões pactuadas é um ato formal com conseqüências legais, e também uma busca para honrar os desejos do paciente ou seus responsáveis de acordo com sua crença, cultura e religião. Porém, o momento e cumprimento dessa formalização causam freqüentemente confusão e ansiedade para familiares e médicos, especialmente quando não há regulamentação específica local. Quando adotado, o registro de tais diretrizes não exclui toda e qualquer medida curativa, restauradora ou de suporte à vida, e pode ser rescindido em caso de alteração do estado clínico. É papel da equipe de saúde fornecer informações detalhando claramente a situação clínica, o prognóstico da criança e os objetivos do cuidado, no intuito de redimir questionamentos (16). 18 MANEJOS DE SINTOMAS EM CP PEDIÁTRICOS Um dos pilares do CP pediátrico reside no alívio do sofrimento através de adequado manejo de sintomas físicos e estressores emocionais de pacientes e familiares, cujos principais aspectos abordaremos a seguir. Segundo a AAP (1), o sofrimento social, espiritual e emocional pode influenciar a experiência dos sintomas, especialmente na criança, cuja autoexpressão deve ser valorizada por meio de uma comunicação adequada à sua compreensão. Criar uma parceria com a criança e os pais sobre os objetivos do tratamento melhora a adesão ao mesmo e reduz a ansiedade que cerca a doença e o processo terapêutico. Quando há dificuldade neurológica ou cognitiva para a descrição, o relato dos pais deve ser considerado na avaliação do sofrimento de seu filho. Uma postura antecipatória dos sintomas, com pronta reação e freqüente reavaliação, permite acompanhar adequadamente a evolução de seu controle ou detectar quando esse não está sendo alcançado. Dor Muitas crianças com DLV sofrem de dor no final de suas vidas. Mas de 70% dos pais apresentam a percepção de que suas crianças tiveram controle insuficiente nessa fase (28). É também freqüente a insegurança dos médicos no manejo dos opióides, com conseqüente falha em ajustar as doses de maneira rápida o suficiente (28), já que dor intensa ou fora de controle devem ser consideradas emergências médicas e requerer pronta intervenção. 19 A avaliação da dor deve ser realizada de forma regular, com o uso de escalas de medição da dor. A escala “CRIES”, adequada ao período neonatal; a “Face, Legs, Activity, Cry, Consolability” (FLACC), para crianças com dificuldade de verbalização da dor; a Escala Facial de Dor - Revisada (FPS-R) e a “Wong-Baker Faces Pain Rating Scale”, para crianças acima de 3-4anos, entre outras, são usadas para uma mensuração aproximada da dor sentida pelo paciente (que nem sempre corresponde à inferida pelo profissional de saúde) (12). O controle da dor é baseado na Escada Analgésica proposta pela OMS (30), que contempla medidas farmacológicas e não-farmacológicas de acordo com: a) A intensidade da dor medida (“by analgesic ladder”); b) A dose apropriada de analgésico que efetivamente alivia a dor, não de forma padronizada, mas individualizada (“by the child”); c) O uso de vias dolorosas ou inapropriadamente invasivas para administrar a medicação deve ser evitado sempre que possível (“by appropriate route”); d) Intervalos de administração devem ser regularmente definidos, com doses adicionais para tratar a dor incidental quando necessário (“by the clock”). Uma dose suficiente de fármaco, escolhida em formulação apropriada (por exemplo, preparação de liberação lenta ou infusão contínua), deve ser escolhida para, por exemplo, permitir à criança e sua família dormir tranquilamente durante toda a noite sem acordar por dor ou necessidade de ser medicada (12). As Tabelas 53.4 e 53.5 citam as principais medicações analgésicas utilizadas na faixa etária pediátrica. A escolha da medicação deve seguir critérios clínicos individuais. Efeitos colaterais das medicações são freqüentes e devem ser antecipados e tratados de maneira proativa. Os 20 principais encontrados na faixa pediátrica são: constipação, náusea e vômito, prurido, retenção urinária, depressão respiratória, alucinação, sedação e mioclonia. A terapia com opióides em crianças com DLV ou DAV não leva à dependência física, mas pode levar à tolerância física. Quando a redução da dose for apropriada, deve ocorrer de forma gradual para evitar sintomas físicos relacionados à retirada. Nunca se deve usar opiódes exclusivamente, sem considerar terapias não-opióides e/ou não-farmacológicas de forma integrada. Certos tratamentos adjuvantes, como o uso de radioterapia e corticosteróides para a dor óssea oncológica e de anticonvulsivantes, anestesia regional e antidepressivos para a dor neuropática, entre outros exemplos, são freqüentemente importantes para o adequado controle de dor. A abordagem por meio de terapias integrativas, como métodos físicos (posicionamento de conforto, massagens, calor/frio local, estimulação nervosa elétrica transcutânea – TENS, aromaterapia) e comportamentais (técnicas de relaxamento e respiração, biofeedback e hipnose) são importantes na busca para o alívio da dor (18). Fadiga Fadiga é um sintoma complexo e multifacetado, relatado pelo paciente de variadas formas, com manifestações físicas, cognitivas e emocionais, isoladas ou associadas. Esse sintoma é definido pelo The National Comprehendive Cancer Network (NCCN) como uma “sensação subjetiva de cansaço ou exaustão, desconfortável e persistente, relacionada ao câncer ou ao seu tratamento, que não é proporcional à atividade recente e interfere nas atividades habituais” (27). Quase que unanimemente, pacientes referem-se à 21 experiência de fadiga como um sintoma não responsivo ao descanso; de fato, pode se tratar de um sintoma que persiste por meses ou anos após o tratamento de câncer. É um dos sintomas mais prevalentes em câncer pediátrico avançado, e dos que maior sofrimento acarreta (27,28). Devido a sua alta correlação tanto com a doença de base quanto com seu tratamento, já que é efeito adverso comum ao uso de doses crescentes de opióides, o reconhecimento da fadiga pela equipe de saúde e a busca pelo seu controle constituem um grande desafio. O screening para esse sintoma pode ser iniciado por meio de questionamento regular da criança, e monitorado com escalas, como a FACIT-F, a PedsQL Multidimensional Fatigue Scale, entre outras (11). A abordagem da fadiga envolve análise atenta da doença de base e comorbidades associadas como potenciais fatores causais ou de manutenção desse sintoma. Condições físicas como, por exemplo, caquexia, anemia, infecções, disfunções orgânicas, disfunções endócrinas, distúrbios eletrolíticos, desidratação e desnutrição; causas psicológicas, como depressão e ansiedade; distúrbios do sono; e tratamentos em vigência (quimioradioterapia, opióides, benzodiazepínicos, antieméticos, antihistamínicos, psicotrópicos) devem fazer parte da investigação e tratamento da fadiga. Todos os fatores passíveis de controle que estão contribuindo para a fadiga devem ser abordados. Isso pode envolver: Orientação para a realização de exercícios; Intervenções psicossociais (psicoterapia individual ou de grupo); Medicações para ansiedade, depressão e distúrbios do sono, com atenção à higiene do sono; 22 Técnicas de medicina integrativa; Uso de estimulantes. O metilfenidato tem sido aplicado com bons resultados na fadiga secundária à opióides em crianças com câncer, com descrição também de melhora na obnubilação, dor e humor depressivo. Outros estimulantes, como modafinil, e medicações como corticosteróides, acetato de megestrol, adenosina trifosfato e carnitina, aguardam dados para uso em cuidados paliativos pediátricos. A correção da anemia, por meio de transfusões ou eritropoetina, necessita de melhor comprovação na melhoria da qualidade de vida em crianças (27). Dispnéia A dispnéia, referida como sensação subjetiva de respiração desconfortável, requer abordagem multidimensional e é sintoma freqüentemente desafiador em cuidados paliativos em UCIPs. As intervenções e procedimentos invasivos devem ser avaliados sob a ótica dos objetivos estabelecidos individualmente junto a cada paciente e seus familiares. Sua abordagem engloba as eventuais doenças de base com possibilidade de tratamento (infecções, acidose, congestão, anemia, metástase pulmonar, embolia pulmonar, derrame pleural, insuficiência cardíaca, dor e ansiedade). A instituição de medidas de suporte, como posicionamento no leito ou na poltrona, circulação de ar ambiente e diminuição da temperatura ambiente pode se mostrar bastante eficaz para crianças que experimentam a sensação de dispnéia. Também uma abordagem tranqüila do paciente quebra a progressão do ciclo “dispnéia – ansiedade”, com alívio do 23 sintoma, além de exercícios respiratórios, técnicas de relaxamento e visualização, hipnose e contação de estórias, entre outras opções (11,27). Os opióides têm sido amplamente utilizados no alívio da dispnéia. Seu uso tem por base uma série de mecanismos, como o de redução da percepção de desconforto respiratório, redução do drive respiratório e do consumo de oxigênio, além de um efeito vasodilatador em pacientes com insuficiência cardíaca e/ou hipertensão pulmonar (27). A dose comumente empregada é de um quarto a metade da dose analgésica habitual. O uso inalatório de opióides também vem sendo descrito, mas a conduta ainda não é amplamente estudada e aceita. O uso adjuvante de benzodiazepínicos como ansiolíticos é comum. O uso de oxigênio ainda é controverso, na medida em que a melhora da saturação de oxigênio pode não refletir na melhora da criança de sua sensação subjetiva de desconforto, sendo que muitas se agitam pelo uso de máscaras ou cateteres nasais (27). Outras abordagens incluem nebulização com solução salina para fluidificação do muco, broncodilatadores para o broncoespasmo, diuréticos para sobrecarga hídrica e transfusões para anemia. A ocorrência do estertor da morte (death rattle), a respiração muito ruidosa nos estágios finais de vida, é fonte de intenso estresse para os familiares, principalmente se não advertidos de sua freqüente ocorrência. A intervenção nesse caso, com drogas anticolinérgicas (glicopirrolato, escopolamina) e sucção de secreções, geralmente está indicada apenas se houver sinais de desconforto por parte da criança, ou se os familiares não puderem tolerar ruídos por vezes extremamente intensos. Líquidos administrados excessivamente podem intensificar o estertor da morte. Sintomas gastrointestinais/metabólicos 24 A maioria das crianças sofre de problemas gastrointestinais nos estágios avançados de doenças incuráveis, com incidências elevadas de anorexia e caquexia (71-100%), náusea e vômito (50-57%), constipação (39-50%) e diarréia (21-40%) entre crianças portadoras de câncer (11,28). Presume-se também elevada incidência em pacientes portadores de outras condições ameaçadoras à vida. A ocorrência de náuseas e vômitos por causas tratáveis incluem, entre outros: 1) Problemas gastrointestinais primários (constipação, obstrução intestinal, mucosite, úlcera gástrica, íleo paralítico); 2) Efeitos colaterais de radioterapia e drogas (antibióticos, anticolinérgicos, AINH, opióides, quimioterápicos, esteróides). Opióides são causa freqüente de náusea e vômito nos estágios terminais, quer pelo efeito direto na zona de gatilho quimiorreceptora do SNC, quer pela redução da motilidade gastrointestinal, com gastroparesia e constipação; 3) Infecções; 4) Disfunções metabólicas (hipercalcemia, insuficiência hepática e renal); 5) Alterações centrais (metástase cerebral com hipertensão intracraniana; distúrbios vestibulares); 6) Dor; 7) Hipogeusia/disgeusia; 8) Irritação faríngea; 9) Ansiedade. (Tabela 53.6) 25 Intervenções não-farmacológicas, como o controle de odores do ambiente, refeições a intervalos curtos e regulares, acupuntura e hipnose, e manejo do estresse podem contribuir para controle desses sintomas e aumento do conforto geral do paciente. Também prevenção e tratamento efetivos da constipação são importantes para a qualidade de vida do paciente em CP (11,12). Quando induzida pelo opióide (mecanismo de redução do trânsito e das secreções intestinais), a constipação geralmente não cessa com o tempo. Outras causas para este sintoma desconfortável devem ser conhecidas e evitadas quando possível: baixa ingestão hídrica e dietética, imobilismo, tumores abdominais obstrutivos, hemorróidas e fissuras anais, alterações metabólicas, uso de medicações e compressão medular. (Tabela 53.7) O uso de laxantes retais (supositórios, fleet enema, clisteres) é indicado na impactação fecal ou quando os laxantes orais provocam intolerância ou são ineficazes. Seu uso regular não é indicado por comprometerem a qualidade de vida do paciente, e são contraindicados em pacientes neutropênicos. O uso de antagonistas de opióides (naloxone, metilnaltrexone) para reverter a constipação induzida por opióides pode ser eficaz, mas com risco de reversão também da analgesia e indução de sintomas de abstinência. A ocorrência de caquexia no contexto de uma doença ameaçadora à vida, associada ou não à anorexia, tem forte correlação com pior qualidade de vida e maior morbimortalidade. Comum em pacientes com neoplasias incuráveis (>80%), ocorre também em fases avançadas da síndrome da imunodeficiência adquirida, doenças pulmonares crônicas, insuficiência cardíaca congestiva, entre outras condições crônicas debilitantes (23). 26 A caquexia é um complexo processo que altera o estado metabólico, neuro-hormonal e emocional do paciente. É considerada uma desordem mediada por alterações anabólicas e catabólicas que derivam em estado consumptivo, com perda muscular (protéica) e lipídica. Pode ser classificada em: Primária – quando ligada à produção de citocinas inflamatórias pelo paciente (alterações metabólicas) ou pelos tumores (principalmente sólido, por meio de fatores mobilizadores de lipídios e proteínas); Secundária – quando relacionada ao tratamento (xerostomia, disfagia, mal absorção, dor severa, inflamação crônica) ou ao estado psicológico (depressão, aversão à comida). Excluídas causas possivelmente reversíveis (obstrução intestinal, dor severa, constipação grave), são tomadas medidas não-farmacológicas para tratar a anorexia/caquexia, como técnicas de relaxamento e sugestão por imagens, oferta de alimentos favoritos em porções reduzidas, eliminando alimentos com odor desagradáveis e abordagem das questões emocionais e espirituais ligadas à perda de peso. O uso de suplementos nutricionais, por via parenteral ou enteral, dentro de um plano terapêutico com ganhos em qualidade de vida pode servir de opção, embora não haja benefício evidente no uso de nutrição parenteral total no ganho de peso (ao contrário, há evidência de aumento da morbidade). O controle farmacológico é feito por meio de estimulantes de apetite, com algum beneficio no ganho de peso mais por reposição adiposa que muscular. As opções disponíveis são os progestágenos, corticosteróides e canabinóides. O uso de 27 antipsicóticos, imunomoduladores antiinflamatórios, inibidores de prostaglandinas, melatonina e complementação com amino-ácidos e ácidos graxos essenciais para tratar a caquexia ainda carecem de mais estudos em crianças. Sintomas psíquicos A ocorrência de ansiedade é comum em DAV, mesmo quando não se preenchem os critérios psiquiátricos dos transtornos de ansiedade. São freqüente causa de aflição para pacientes e familiares, com grande impacto no adequado manejo dos demais sintomas. Seu manejo é pautado no desenvolvimento neuropsicomotor da criança e do adolescente, uma vez que a causa pode ser associada a variáveis emocionais pertinentes a diferentes fases da vida do indivíduo (16). Assim, enquanto adolescentes sofrem pelo isolamento de seus pares, questões de auto-imagem, perda do controle e pela percepção que têm de seus sintomas, crianças menores padecem pela antecipação da separação de sua família, pela sensação desagradável do sintoma per se, e o significado que os sintomas adquirem (por exemplo: como punição, etc.), além da perda do controle. A abordagem da ansiedade envolve, portanto, em devolver à criança certo controle sobre seu corpo e seu cuidado, através de uma abordagem antecipatória, adequada à compreensão do indivíduo. Cientes de todos os passos vigentes e futuros no curso da doença e do tratamento, pais e crianças participam do plano terapêutico, evitando-se situações de separação. O recurso farmacológico, como os benzodiazepínicos, é mais útil em situações agudas de ansiedade, enquanto que em quadros crônicos a prevenção de experiências dolorosas, o manejo adequado de sintomas, as técnicas de relaxamento e distração, e o estímulo a uma vida mais funcional são referências para tal controle. 28 CONCLUSÃO A possibilidade da oferta de cuidados paliativos nos ambientes diversos de cuidado – incluída a UCIP – constitui enorme avanço na atenção à saúde de crianças em qualquer faixa etária, em qualquer momento do processo de adoecimento. Sua filosofia não deve ser restrita à atuação do profissional especialista em cuidados paliativos, mas da comunidade de saúde como um todo, em especial aquela que – como nas UCIPs – lidam diariamente com pacientes em condições que ameaçam à vida. Acima de tudo, integrar tal filosofia à prática da medicina intensiva na America Latina visa agregar um cuidado ético e humano no alívio do sofrimento por quais passam inúmeros pacientes e familiares. 29 REFERÊNCIAS 1) American Academy of Pediatrics. Committee on Bioethics and Committee on Hospital Care. Pediatrics 2000; 106 (2):351-7. 2) American Academy of Pediatrics. Committee on Bioethics. Informed consent, parental permission and assent in pediatric practice. Pediatrics 1995; 95:314-7. 3) Baile WF, Buckman R, Lenzi R, Glober G, Beale EA, Kudelka AP. SPIKES – A sixstep protocol for delivering bad news: application to the patient with cancer. The Oncologist 2000; 5:302-11. 4) Barbosa SMM, Lecussan P, Oliveira FFT. Particularidades em Cuidados Paliativos: Pediatria. In: Oliveira, RA (Coord.). Cuidado Paliativo. São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, 2008, p.128-38. 5) Browning DM, Solomon MZ. 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Suporte à unidade familiar Criar oportunidades de participações significativas dos pais nos cuidados à sua criança Maximizar o acesso dos pais à criança durante a permanência na UCIP Criar uma rede de apoio para os pais dentro da UCIP, enquanto se estrutura pontes de apoio de serviços que possam continuar após a morte Tomada de Decisões compartilhadas Desenvolver intervenções que promovam melhor alinhamento entre a informação comunicada pelos médicos e os interesses e necessidades dos pais Desenvolver intervenções para garantir que os pais tenham adequado controle sobre a tomada de decisões médicas sobre sua criança, para melhorar o processo e mitigar o risco de arrependimentos parental Criar oportunidades para os enfermeiros auxiliarem na tomada de decisões, atendendo às preocupações da enfermagem sobre as famílias não serem bem informadas sobre as suas opções Intervenções baseadas em determinações de futilidade médica não são susceptíveis de serem úteis Alívio da dor e outros sintomas Desenvolver e avaliar protocolos para a retirada de suporte vital Desenvolver e avaliar intervenções educacionais com foco nos princípios éticos relacionados aos cuidados de final da vida, tais como a doutrina do duplo efeito e parâmetros para o uso de agentes bloqueadores neuromusculares Informar aos pais que o alívio da dor é uma prioridade para o cuidado à criança e educá-los sobre como a dor será avaliada, monitorada e tratada Ética Desenvolver e avaliar intervenções educacionais focadas na tomada de decisões compartilhadas com a familia para melhorar a qualidade e promover a estabilidade em relação aos cuidados no final da vida Desenvolver intervenções para abordar o sofrimento moral deos médicos relacionados com a percepção de tratamentos desproporcionais dos pacientes Comunicação com a criança e a família sobre os objetivos e planos terapêuticos Desenvolver intervenções para aumentar a disponibilidade e acesso dos pais aos médicos, favorecendo os meios de comunicação entre família-equipe, incluindo email, revistas e "as horas de expediente à beira do leito” Desenvolver intervenções para adaptar o estilo de comunicação dos médicos com as preferências dos pais Desenvolver oportunidades educacionais experimentais e apoiar oficinas de atendimento à equipe, em para melhorar a comunicação e as habilidades relacionais de médicos e enfermeiros Suporte à dor ao luto Desenvolver intervenções para tratar a dor dos pais e promover habilidades de enfrentamento 34 Desenvolver grupos de apoio ao luto para melhor atender às necessidades dos pais que perderam sua criança Valorizar a disponibilidade de grupos de apoio ao luto para aumentar a participação dos pais após a morte de uma criança Encorajar e apoiar atos de gentileza dos profissionais e comemoração durante o período de luto Modificado de: Truog RD, Meyer EC, Burns JP. Toward interventions to improve endof-life care in pediatric intensive care unit. Critical Care Med 2006; 34 (11 suppl): S3739. 35 Tabela 53.2. Modelos não-verbais de comunicação dos profissionais de saúde COMUNICAÇÃO USO EFICAZ* USO INEFICAZ** Relaxada e atenta Rígida Regular, médio Ausente, desafiante Móveis Usados para unir Usados como barreira Roupas Simples Provocativas, extravagantes NÃO-VERBAL Postura Contato dos olhos Expressão facial Sorridente, mostrando seus Rosto voltado para o outro lado sentimentos ou inexpressivo Sem maneirismos Distração Claramente audível Alto ou baixo Médio Impaciente, hesitante, lento Em alerta Apático, sonolento, cíclico, irrequieto Aproximação Distanciamento Toque Presente Ausente Cabeça Meneio positivo Meneio negativo Postura corporal Voltada para a pessoa Lateral ou de costas Comunicação paraverbal Responde prontamente Uso de pausas ou respostas com grunhidos. Maneirismos Volume da voz Ritmo da voz Nível de energia Distância interpessoal *Uso eficaz – encorajam a fala do outro porque demonstram aceitação e respeito. **Uso ineficaz – enfraquecem a conversação. Modificado de: Silva MJP. Comunicação tem Remédio. A comunicação nas relações interpessoais em saúde. 6ª. Edição. São Paulo: Edições Loyola, 2008. 133 p. 36 Tabela 53.3. Necessidades dos familiares de pacientes em fase final de vida Necessidades dos familiares de pacientes em fase final de vida 1. Ficar com o paciente 2. Ser útil para a pessoa que está em fase final de vida 3. Ser informado sobre as mudanças de condição clínica da pessoa que está morrendo 4. Entender o que está sendo feito com o paciente e o por quê 5. Estar seguro do conforto do paciente 6. Ser confortado 7. Poder ventilar as emoções 8. Estar seguro que as suas decisões estão corretas 9. Encontrar um significado na vida do ente querido 10. Ser alimentado, hidratado e descansar Modificado de: Kummer HB, Thompson DR. Critical Care Ethic: A practice Guide. SCCM 2nd ed, 2009. 229p 37 Tabela 53.4 – Recomendações para o uso de analgésicos não-opióides. Droga Acetaminofen (paracetamol) Dose de início 10 – 15 mg/kg VO ou VR cada 4-6h Dose máxima < 2 anos: 60mg/kg/dia > 2 anos: 90mg/kg/dia 10 mg/kg VO cada 812h 2400 mg/dia Observações Hepatotoxicidade rara Atenção à função renal e hepática, histórico de úlcera ou sangramento do TGI; pode inibir agregação plaquetária 20-25 mg/kg VO, IM 500 mg/dose [Não liberada em Dipirona ou IV cada 6h uma série de países] (metamizol) 300-600 mg VR a Agranulocitose, cada 6h hipotensão, rush, sindrome de Lyell, sintomas TGI < 2 anos: 0.25mg/kg 30 mg/dose > 10%: cefaléia, Cetorolaco de IV cada 8h sintomas TGI; trometamina > 2 anos: toxicidade hepática, 0.5 mg/kg IV cada 6h renal, cardíaca e TGI. Recomenda-se uso não maior que 5 dias TGI: trato gastro-intestinal; VO: via oral; VR: via retal, SC: via subcutânea; IM: via intramuscular; IV: via intravenosa. Ibuprofeno 38 Tabela 53.5 – Recomendações para dose inicial de opióides em crianças (32). Droga Dose (via de equianalgésica administração) (parenteral) 10mg Morfina (VO, SL, IV, SC, VR) Hidromorfona (VO, SL, IV, SC, VR) 1,5mg Buprenorfina (SL, IV, TD) 0,2mg Fentanyl (SL, IV, SC, TD, bucal) 100-250mcg Oxicodona (VO, SL, VR) 5-10mg Dose de início IV Dose em bolus: 50–100mcg/kg cada 24h Infusão continua: 10–30 mcg/kg/h Dose em bolus: 15-20mcg/kg cada 4h Infusão contínua: 5mcg/kg/h Dose em bolus: 3 mcg/kg cada 6h Infusão contínua: 0,5mcg/kg/h Dose em bolus: 1-3mcg/kg (lentamente em 3-5min); bolus rápido pode causar rigidez torácica Infusão contínua: 1-2mcg/kg/h Nd Dose inicial VO (transdérmica) 0.15 – 0.3 mg/kg cada 4h 60 mcg/kg cada 3-4h SL: 4mcg/kg cada 812h Patch 12mcg/h (deve ser equivalente a pelo menos 30mg de morfina VO, antes da troca para TD 0.1-0.2 mg/kg cada 4-6h Dose inicial LC* 0.45 – 0.9 mg cada 12h 180mc g/kg cada 12h Nd Nd 0.3-0.9 mg/kg cada 12h 2–4 mg/kg cada 12h 1 – 2 mg/kg cada 3-4h (max: 10mg/kg/dia) (> 50kg: Max 400 mg/dia) VO: via oral; SL: via sublingual; IV: via intravenosa; SC: via subcutânea; VR: via retal; TD: via transdérmica. Nd: não disponível/aplicável; LC: liberação controlada Tramadol (VO, VR) 100mg Dose em bolus: 1 mg/kg cada 3-4h Infusão contínua: 0.25mg/kg/h * Dose de resgate (dor incidental): 16 a 24% da dose diária de opióide a ser dada a cada 1 ou 2 horas se necessário. 39 Tabela 53.6 – Recomendações para o uso de medicações para náuseas e vômitos. Classe de medicações Procinéticos/antago nistas dopaminérgicos Droga Dose Observações Metoclopra mida Difenidramina pode ser usada para prevenir sintomas extrapiramidais Antagonistas dos receptores serotoninérgicos Anticolinérgicos Ondansetro n Dose Procinética: 0.1mg/kg/dose IV ou VO cada 6 horas Dose Antiemética: 0.5-1 mg/kg/dose IV ou VO cada 6 horas 0.45mg/kg/dia IV ou VO dividido em 1 a 3 doses Corticosteróides Escopolami na Crianças acima de 40kg: adesivos de 1.5mg em região retroauricular a cada 72h Dexametaso Dose antiemética: 10mg/m2/dia na IV ou VO Max: 20mg/dia Análogos da Somatostatina Octreotide Antipsicótico atípico Olanzapina Canabinóides Dronabinol Não recomendado para crinaças com depressão 0.025 mg/kg/dose IV ou VO cada 6horas HIC: hipertensão intracraniana; VO: via oral; SC: via subcutânea; IV: via intravenosa. Benzodiazepínicos Lorazepam 5-10 mcg/kg/dia, dividido em 2 doses IV ou SC ao dia, ou em infusão IV contínua em 24 horas 2.5 – 5mg/dia VO; dose Max: 20mg/dia. Dose infantil ainda não estabelecida > 6anos: 2.5 – 5mg/m2/dose cada 4-6h Para HIC, aumentar a freqüência das doses para 24vezes ao dia, Max. 40mg/dia 40 Tabela 53.7 – Recomendações para prevenção e tratamento de constipação. Droga Docusato sódico Lactulose Senne Picossulfato de sódio Bisacodil Sais de Magnésio Óleo Mineral VO: via oral. Dose Dose em mg=10x idade (anos), VO, cada 6 horas Dose máxima: 500mg/dia Dose profilática: Dose terapêutica: < 2 anos: 2.5mL VO 2 a 3x/dia 2 – 10 anos: 2.5 – 7.5mL/dia VO 2 – 10 anos: 2.5 – 7.5mL VO 2x/dia a 15 – 30mL VO 3x/dia > 10 anos: 15 – 30 mL/dia VO > 10 anos: 15 – 30mL VO 2x/dia ou a cada 2h até resposta Dose profilática: Dose terapêutica: < 6 anos: 2.5 – 5mL ou 1 < 6 anos: 2.5 – 5mL ou 1 tablete tablete/dia VO VO 2x/dia até 30ml (6 tabletes) por dose 6 – 12 anos: 2 tabletes/dia VO 6 – 12 anos: 2 tabletes VO 2x/dia até 45mL (9 tabletes) por dose > 12 anos: 3 tabletes/dia VO > 12 anos: 3 tabletes VO 2x/dia até 90 mL (18 tabletes) por dose < 4 anos: 0.25mg/kg VO 4 – 10 anos: 2.5 a 5mg/dose VO > 10 anos: 5 a 10mg VO 4 – 10 anos: 5mg (1 drágea) VO > 10 anos: 5 a 10 mg (1 a 2 drágeas) VO < 2 anos: 0.5mL/kg 2 – 5 anos: 5 a 15mL 6 – 12 anos: 15 a 30mL > 12 anos: 30 – 60 mL 10 – 20mL VO 1 a 2x/dia Dose máxima: 50mL VO 3x/dia 41 Figura 53.1 – Priorização dos Princípios Bioéticos ao longo da linha da vida Modificado de: Kipper DJ, Loch JA, Piva JP et al. Dilemas éticos, morais e legais em UTIP. In: Piva & Celiny, Eds. Medicina Intensiva em Pediatria. Rio de Janeiro: Revinter; 2005. P753-72.