Rev Saúde Pública 2006;40(6):1001-3 José da Rocha Carvalheiro Fundação Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, RJ, Brasil Correspondência | Correspondence: José da Rocha Carvalheiro Fundação Oswaldo Cruz Av. Brasil, 4365 5ºandar sala 507 Manguinhos 21045-900 Rio de Janeiro, RJ, Brasil E-mail: [email protected] Comentário: Biogeografia dos triatomíneos e as cerejeiras na Europa Triatominae biogeography and the European cherry trees O artigo de Forattini (1980) exige uma análise tanto no âmbito acadêmico, quanto no das ações sanitárias de controle da endemia chagásica. No próprio título do artigo é anunciado o uso de uma disciplina científica fora do conjunto clássico daquelas com que trabalham os sanitaristas, principais destinatários presumíveis de um periódico de saúde pública. Mas o título não se restringe à origem e distribuição dos triatomíneos, terreno soberano da Biogeografia. Trata dos insetos vetores da doença de Chagas e de sua domiciliação, que conduz ao processo endemo-epidêmico da doença. Na ausência de domiciliação, casos humanos esporádicos poderiam ocorrer, mas nunca um processo de massa. Apresentar esse fenômeno como um processo regido por fatores biológicos, geológicos, climatológicos e ecológicos, seria um reducionismo que o autor não comete. Nem teria outro sentido o agradecimento ao Professor Aziz Ab’Saber e a citação de nada menos que cinco trabalhos deste importante geógrafo. O esforço analítico conduz, no caso do Triatoma infestans, mais importante vetor em vasta região do Brasil, a reconhecer que a dispersão se dá “pela ação do homem”, num processo eminentemente passivo. Em sua dimensão acadêmica, o trabalho insere-se num debate que persiste desde a época em que foi publicado há quase 30 anos. A organização do espaço e a distribuição de triatomíneos são questões cuja análise exige a superação dos modelos estritamente biológicos, ou quando muito ecológicos, que então prevaleciam. Essa temática foi muito valorizada num momento em que emergia com força o movimento que explora a determinação social da saúde e da doença. A característica fundamental deste esforço, a transdisciplinaridade, está também presente no artigo de Forattini que, num debate eminentemente epidemiológico, recorre a conceitos trabalhados em outro campo disciplinar: a Geografia ou, mais propriamente, a Biogeografia. Em outra vertente da mesma disciplina, os conceitos de espa- ço, organização do espaço, paisagem, organização econômico-social (histórica e geográfica) foram trabalhados com crescente interesse pela Nova Geografia, ou Geografia Crítica. Para não mencionar os esforços de Max Sorre13 (1951) ao perpetrar o conceito de Complexo Patogênico, ainda no âmbito da Geografia; de Jacques May8 (1977) e outros, ao enveredarem por uma maneira ecológica de análise das doenças, especialmente as transmissíveis. Ao mesmo tempo, focos naturais e a epidemiologia paisagística eram conceitos introduzidos por outro segmento científico, os epidemiologistas da então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Não é este o local para discutir as controvérsias que acompanharam o conceito de doença de Chagas nas primeiras décadas do século XX. Vamos reter apenas a idéia consensual de que hemípteros reduvídeos hematófagos domiciliados (“barbeiros”) são condição essencial para a chamada “transmissão natural” do Trypanosoma cruzi e, portanto, pela instalação de um processo de massa que atinge as populações humanas. Ainda mais, que o fenômeno em sua dimensão sanitária, é atribuído à precariedade das condições de moradia na zona rural. A Teoria dos Focos Naturais, ou da Nidalidade das Doenças Transmissíveis, formulada pelo parasitologista russo Pavlovsky9 (s.d.), teve ingresso no cenário científico do Brasil a partir do final da década de 50 do século passado. Introduzida e impulsionada por Pessoa11 (1978), essa linha de pensamento encontrou imediatamente adeptos entre seus antigos assistentes. Notadamente Pedreira de Freitas10 e Mauro Barreto,1,2 professores da então recém fundada Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. A tese de Pedreira de Freitas10 (1963) e, em particular, a longa série de mais de 50 artigos “Estudos sobre reservatórios e vetores silvestres do T. cruzi”, de Barreto e colaboradores (ver Barreto & Carvalheiro,2 1966) estavam em íntima associação com essas idéias. Curiosamente, em ambos os casos, foi salientada a insuficiência explicativa da Teoria 1002 Biogeografia dos triatomíneos e cerejeiras Carvalheiro JR dos Focos Naturais para zoonoses importadas. Num vasto esforço de trabalho de campo, capturando vertebrados e hematófagos para identificar tripanossomos “semelhantes ao T. cruzi”, a equipe de Barreto praticamente nunca conseguiu capturar exemplares do principal vetor da doença na região estudada vivendo em condições silvestres. T. infestans, a principal espécie domiciliada, responsável pela persistência da endemia chagásica, não se teria domiciliado na região pela pressão da devastação das matas para plantio do café no século XIX, como prescrevia a Teoria dos Focos Naturais. Teria sido introduzida passivamente já domiciliada, ou melhor sinantrópica (associada aos tropeiros que freqüentaram regularmente a região nessa época). Numa dimensão temporal histórica quase contemporânea (século XIX) essa hipótese foi analisada por Silva12 (1999). Um dos argumentos empregados, parafraseava Marx em sua crítica a Feuerbach e sua visão sobre a “realidade sensível”. Marx empregava como exemplo a distribuição das cerejeiras. Não sendo autóctones da Europa, têm uma distribuição no continente que apenas pode ser compreendida em conexão com a atividade humana. Também na undécima tese contra Feuerbach, o mesmo Marx assinala que “os cientistas se contentam em descrever o mundo; há que transformá-lo”. Nada mais sugestivo para estimular uma reflexão sobre o quadro que se vivia então em São Paulo e no Brasil: o que era a endemia chagásica e o que devia ser feito para seu efetivo controle. Foi apenas uma dentre as diversas controvérsias que animaram o muitas vezes cáustico debate sobre a doença de Chagas, desde sua descrição no início do século XX (Carvalheiro,4 1999). À semelhança das cerejeiras européias, também o T. infestans tem uma distribuição que só pode ser compreendida em associação com a atividade humana, que se encontra na raiz dessa distribuição. Para “transformar o mundo”, Pedreira de Freitas concebeu um verdadeiro experimento numa comunidade urbana de tamanho modesto em que a incidência de doença de Chagas era elevada. O seu “expurgo seletivo” era o meio de combate ao T. infestans nos domicílios, empregando inseticida nas paredes apenas se fossem encontrados os insetos ou vestígio deles. Um pressuposto essencial era que, uma vez suspensa a aplicação do inseticida, não se daria a reintrodução desse inseto nas casas vindos do ambiente silvestre. Também essa hipótese foi testada empiricamente. Construíram-se miniaturas de moradias rústicas habitadas por aves em cativeiro e, num período de diversos anos, nunca foi detectada a invasão por triatomíneos. Curioso foi o assédio de famílias migrantes da zona rural, interessadas em ocupar os casebres, apesar de seu tamanho minúsculo. A comprovação das idéias de Pedreira de Freitas deu-se na prática sanitária. Pela contenção da incidência de casos no- Rev Saúde Pública 2006;40(6):1001-3 vos de doença de Chagas, apesar da existência de pessoas infectadas nas moradias, ainda precárias mas já sem triatomíneos. Na seqüência, o “expurgo seletivo” empregou-se em toda a região e, em seguida, no Estado de São Paulo que, ao adotá-lo como política pública, o fez conhecido do restante do País. Passados mais de 40 anos, pode-se atribuir o sucesso na erradicação do T. infestans nos países do Cone Sul das Américas à adoção desse método. A determinação social da própria doença e, especialmente, da sua distribuição ganha força no ambiente científico na América Latina praticamente na mesma época dos episódios aqui relatados. Idéias como as defendidas por Silva12 (1999) ganham relevo em tentativas de ultrapassar o nível biológico, ou quando muito ecológico, de explicação da saúde e da doença na sociedade. Embora publicada tardiamente, essa contribuição baseia-se numa tese defendida pelo autor em 1981, um ano após a publicação do texto que estamos analisando. Surpreendentemente, mesmo sem citar Forattini,6,7 Silva12 formula crítica explícita a outros autores que empregam a Geografia com um sentido quase superponível ao que os ecologistas fizeram quanto ao ambiente natural ou modificado. Quando se trata do ambiente organizado, o instrumental analítico tem que ser adaptado ao objeto estudado. A busca incessante pela unicidade, tanto na Geografia quanto na Epidemiologia modernas, deve dirigir-se ao objeto, não ao método. Ambas disciplinas dedicam-se a abordar totalidades, empregando em sua análise métodos próprios e importados de disciplinas relevantes em cada contexto. O trabalho de Silva12 (1999), entendido como de Epidemiologia Social, é uma incursão precursora pelo terreno da transdisciplinaridade, que só viria a ter maior relevância na Epidemiologia, já no final do século XX. Considerada a doença de Chagas como seu objeto fundamental, o trabalho de Forattini7 exige que dele se faça uma leitura atenta e cuidadosa. A domiciliação dos triatomíneos domina o trabalho, muito embora este se dedique a explorar fenômenos que ultrapassam o domínio da história, enveredando por um campo muito mais ambicioso. Explora o processo de formação de “centros de endemismo”, no sentido biogeográfico e não epidemiológico, que vale para espécies e sua distribuição no ambiente natural. Silva,12 ao contrário, encara “a totalidade por referência à doença de Chagas” e busca na descrição do espaço organizado pela ação do homem, num determinado momento (quase contemporâneo), as relações que conduzem à instalação da doença de Chagas. Renuncia às idéias originais de foco natural que, de potencial, se torna atual pela presença do homem. Da mesma forma que Marx fez com as cerejeiras na Europa. Rev Saúde Pública 2006;40(6):1001-3 De qualquer maneira, todos os trabalhos que se baseiam na identificação de exemplares de qualquer espécie animal ou vegetal e na descrição dos locais onde foram encontrados, estão sempre sujeitos a um viés de amostragem. Especialmente ao descrever “espaços vazios”, quanto à espécie estudada. Nesse sentido, a busca dos sinantrópicos tem maior chance de ser veraz, especialmente quando negativa. Mesmo Barreto e colaboradores que se esmeraram no estudo de vetores silvestres, deram ênfase à distribuição e dispersão “por referência ao domicílio” (Barreto,2 1979). Biogeografia dos triatomíneos e cerejeiras Carvalheiro JR Quanto ao conteúdo pragmático do trabalho de Forattini,7 sua análise está impregnada de considerações a respeito das campanhas de controle. Não é nenhuma novidade. Num Simpósio internacional realizado em Belo Horizonte, em 1975, o autor já havia analisado os efeitos das medidas de controle na dinâmica populacional de vetores. Curiosamente, sua primeira referência bibliográfica (Carvalheiro,3 1970) é para afirmar que “estudos de tábuas de vida de triatomíneos são importantes, mesmo os realizados em condições de laboratório”. BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 1. Barreto MP, Carvalheiro JR. Estudos sobre reservatórios e vectores silvestres do Trypanosoma cruzi: inquérito preliminar sobre triatomíneos silvestres no município de Uberaba, Minas Gerais. Rev Bras Biol. 1966;26:5-14. 2. Barreto MP. Epidemiologia. In: Brener Z, Andrade Z, organizadores. Trypanosoma cruzi e doença de Chagas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 1979. p. 89-151. 3. Carvalheiro JR. Tábuas de vida e capacidade inata de aumento numérico de uma população de Triatoma infestans em condições de laboratório [tese de doutorado]. Ribeirão Preto: Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo; 1970. 4. Carvalheiro JR. Prefácio: os herdeiros do velho albatroz. In: Silva LJ. A evolução da doença de Chagas no estado de São Paulo. São Paulo: Hucitec/ Funcraf; 1999. p. 9-14. 5. Dias JCP, Coura JR. Epidemiologia. In: Dias JCP, Coura JR, organizadores. Clínica e terapêutica da doença de Chagas: uma abordagem prática para o clínico geral. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1997. p. 33-65. 6. Forattini OP. Effects of control measures on vector population dynamics. PAHO. 1976;318:21-3. 7. Forattini OP. Biogeografia, origem e distribuição da domiciliação de triatomíneos no Brasil. Rev Saúde Pública. 1980;14:265-99. 8. May J. Medical geography: its methods and objectives. Soc Sci Med. 1977;11:715-30. 9. Pavlovsky E. Natural nidality of transmissible diseases. Moscou: Peace Publishers; [s.d.]. 10. Pedreira de Freitas JL. Importância do expurgo seletivo dos domicílios e anexos para a profilaxia da moléstia de Chagas pelo combate aos triatomíneos. Arq Hig (São Paulo). 1963;28:217-72. 11. Pessoa SB. Geografia médica e epidemiologia. In: Ensaios médico-sociais. 2ª ed. São Paulo: Hucitec/ Cebes; 1978. p. 122-31. 12. Silva LJ. 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