Fenomenologia Crítica, Filosofia e Literatura

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO
ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
THIAGO RODRIGUES
FENOMENOLOGIA CRÍTICA, FILOSOFIA E LITERATURA: UMA INCURSÃO NOS
PRIMEIROS TEXTOS DE SARTRE
Guarulhos
2012
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO
ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
THIAGO RODRIGUES
FENOMENOLOGIA CRÍTICA, FILOSOFIA E LITERATURA: UMA INCURSÃO NOS
PRIMEIROS TEXTOS DE SARTRE
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Filosofia da Universidade Federal de
São Paulo como requisito parcial para obtenção do
título de Mestre em Filosofia.
Orientadora: Profª. Drª. Rita Paiva.
Guarulhos
2012
THIAGO RODRIGUES
FENOMENOLOGIA CRÍTICA, FILOSOFIA E LITERATURA: UMA INCURSÃO NOS
PRIMEIROS TEXTOS DE SARTRE
Guarulhos, 25 de Junho de 2012.
Profª. Drª. Rita Paiva (Orientadora)
Universidade Federal de São Paulo
Prof. Dr. Hélio Salles Gentil
Universidade São Judas Tadeu
Profª. Drª. Thana Mara de Souza
Universidade Federal do Espírito Santo
Para o Pedro – Pedrinho –,
pedra basilar da minha existência
e para Érica Marta Costa dos Santos, meu esteio.
AGRADECIMENTOS
Agradeço, primeiramente, à professora Rita Paiva, que aceitou me orientar e que
conduziu com delicadeza e, principalmente, com muita sensibilidade, a vivência transformadora
de realizar essa pesquisa. Sem a sua presença, gentil e paciente, certamente “este trabalho seria
um outro”.
Aos professores Thana Mara de Souza e Hélio Salles Gentil, pelas preciosas
contribuições quando do Exame de Qualificação.
A todos os professores que durante minha vida acadêmica me provocaram, de modo que
ela se inscrevesse, em larga medida, neste projeto. Nesse sentido, gostaria de fazer uma menção
especial aos professores: Fernando Rocha Sapaterro, Newton Gomes Pereira, Edson Dognaldo
Gil, Neide Coelho Boëchat e João Epifânio Régis de Lima, os quais, em algum momento, me
conduziram por este itinerário filosófico.
Gostaria também de fazer uma referência afetiva aos professores: Luizir de Oliveira
(maestro primeiro), Roque Fagiotto, Isaar Soares de Carvalho, Ivanir Signorini, Marcelo
Carvalho.
Um agradecimento especial àqueles que são para mim muito mais do que singulares
referências intelectuais: Olgária Mattos e Franklin Leopoldo e Silva.
Aos amigos, interlocutores constantes, além de primeiros leitores: Bruno Lemes, José
Lima e, especialmente, ao Paulo (Pablo).
Aos companheiros de labuta intelectual, Ivan De bruyn e Edvan Aragão.
Agradeço também, e de coração, a todos aqueles que direta ou indiretamente
contribuíram com este processo de pensée vécue e que por alguma razão não citei aqui.
Por fim, não poderia deixar de mencionar minha família, que sempre me apoiou: minha
mãe, Conceição Kühl, e minha irmã, Camila Luiza Rodrigues. E finalmente, meu tio, Eduardo
Kühl, que sempre foi como um pai para mim.
Esta dissertação foi parcialmente financiada pela Capes.
E parcialmente financiada por meu mecenas, tio Eduardo.
A EDUCAÇÃO PELA PEDRA
Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, freqüentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.
*
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.
(João Cabral de Melo Neto)
RESUMO
Rodrigues, T., FENOMENOLOGIA CRÍTICA, FILOSOFIA E LITERATURA: UMA
INCURSÃO NOS PRIMEIROS TEXTOS DE SARTRE 2012. 165 f. Dissertação (Mestrado)
– Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade
Federal de São Paulo, Guarulhos, 2012.
O escopo desta dissertação consiste em apresentar e analisar a maneira pela qual se estabelece a
relação entre literatura e filosofia na obra de Jean-Paul Sartre. Para tanto, tomar-se-á como
principal referência alguns textos do jovem Sartre, em especial, o ensaio a Transcendência do
Ego e o romance A Náusea. O método heterodoxo de buscar apoio tanto na obra teórica como na
obra ficcional do autor justifica-se diante da necessária relação de interdependência que estes
dois registros adquirem na obra do autor. Em decorrência, é imperativo analisar também algo do
necessário desdobramento ético que esta concepção acarreta. Posto isto, cabe frisar que o
percurso a ser percorrido vai da análise do texto filosófico acima mencionado, passando pela
relação entre criação ficcional e reflexão filosófica e culminando com a retomada de toda a
problemática desenvolvida durante o trabalho, porém, sob perspectiva literária e ética.
Palavras-Chave: Intencionalidade. Literatura. Filosofia. Imagem. Ética.
RÉSUMÉ
Rodrigues, T., PHÉNOMÉNOLOGIE CRITIQUE, LITTÉRATURE ET PHILOSOPHIE:
UNE INCURSION DANS LES PREMIERS TEXTES DE SARTRE 2012. 165 f. Dissertação
(Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia,
Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, 2012.
Le but de cette recherche est de présenter et d'analyser la façon dont s’établit la relation entre la
littérature et la philosophie dans l’oeuvre de Jean-Paul Sartre. À cette fin, nous allons utiliser
comme support les premiers textes de Sartre, en particulier, l'essai La Transcendence de L'Ego et
le roman La Nausée. La méthode peu orthodoxe de la recherche, qui cherche le soutien du travail
théorique autant que de l'œuvre romanesque de l'auteur, se justifie par la nécessaire
interdépendance entre ces deux domaines acquise par le travail de l'auteur. Par conséquence, il
est impératif aussi d'analyser les conséquences éthiques impliqués par cette conception. Cela dit,
il convient de souligner que le chemin parcouru commence par l'analyse d'un texte
philosophique, passe par la relation entre la création romanesque et la réflexion philosophique et
arrive, enfin, à la reprise des problèmes développés pendant le travail, maintenant dans une
perspective littéraire et éthique.
Mots-clés: Intentionnalité. Littérature. Philosophie. Image. Éthique.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................................... 11
CAPÍTULO I: Do Ego Transcendental à transcendência do Ego.......................................... 19
1. Introdução........................................................................................................ 19
2. A apropriação sartriana da fenomenologia...................................................... 20
3. A incompatibilidade entre a presença do Eu na consciência e a
intencionalidade............................................................................................... 31
4. A constituição do Ego..................................................................................... 35
a) O ato reflexivo e a origem do Eu............................................................... 35
b) Um parêntese acerca de O Ser e o Nada................................................... 36
c) Estrutura dual da consciência e os estados como unidade de
consciências............................................................................................... 40
d) A pseudo-espontaneidade do Ego............................................................. 42
5. O Ego nunca é visto senão pelo canto do olho ou “Eu é um outro”............... 44
6. Crítica à idéia de interioridade: o eu e o mundo como objetos
impessoais....................................................................................................... 48
CAPÍTULO II: Existência, filosofia, literatura: onde o limite?............................................. 54
1. Introdução........................................................................................................ 54
2. Vizinhança comunicante: a simultaneidade entre a obra filosófica e a
literária............................................................................................................. 56
3. Das variações imaginárias ao caráter contingente da existência: uma literatura
de situações extremas...................................................................................... 66
4. Imaginário: o irreal que desvela o real............................................................ 74
CAPÍTULO III: Da experiência violenta e radical da Náusea ao necessário desdobramento
ético............................................................................................................................................... 89
1. Introdução........................................................................................................ 89
2. A experiência violenta e radical da Náusea vivenciada por Roquentin.......... 94
3. A consciência enquanto fluxo contínuo e a pura espontaneidade do presente: a
Náusea enquanto manifestação profunda da existência................................ 122
4. A dissolução do Ego...................................................................................... 130
5. Algo sobre necessário desdobramento ético................................................. 136
6. Do necessário desdobramento ético à questão da narrabilidade................... 145
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................... 157
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................................... 159
INTRODUÇÃO
O pensamento de Jean-Paul Sartre conheceu inúmeros comentadores e intérpretes. Estes
leitores, no entanto, e em sua maioria, acabaram por privilegiar os aspectos sociais e políticos de
sua obra ou seus aspectos fenomenológico-existenciais. Alternativas que, de modo geral,
polarizaram sua produção em duas grandes fases: a fase da filosofia da consciência, de influência
fenomenológico-existencial e a fase da filosofia da História, de orientação marxista.
Por outro lado, como costuma ocorrer com a obra de autores amplamente divulgados,
como foi o caso de Sartre, sua filosofia foi muitas vezes mal interpretada e, talvez por isso,
vulgarizada. Não seria exagero assinalar que o próprio filósofo talvez tenha contribuído para os
equívocos interpretativos sobre suas idéias, se consideramos que é característico do seu estilo
recorrer a frases de efeito e jargões filosóficos, muitas vezes polêmicos e até mesmo
contraditórios. A título de exemplo: “o homem está condenado à liberdade”, ou então, “não
importa o que fazem do homem e sim o que ele faz com o que fizeram dele”, e ainda, “o inferno
são os outros” etc. Daí decorre que ao iniciarmos uma incursão na obra sartriana, certas
interrogações tornam-se imperativas: como escapar às armadilhas dos estereótipos? Como fugir a
esta facilitação vulgar? Ou ainda: como abordar obra tão abrangente e diversificada, sem recair
na referida polarização entre o registro da ontologia fenomenológica e o registro da dialética
materialista?
Se reportarmos estas questões ao âmbito das obras de caráter ficcional do filósofo,
interrogações similares se configuram: como abordar a criação ficcional no registro do
existencialismo sartriano sem recair na cilada da polarização facilitadora? Como evitar uma
abordagem reducionista que se limite à condição de instrumento divulgador das idéias filosóficas
do autor? Como não vulgarizar uma obra que, por si só, busca o conflito e o embate? No nosso
entender, essa última questão parece oferecer elementos para uma resposta.
Uma filosofia que tenha a pretensão de apreender a existência em movimento, a ação
humana imersa na história, ou, mais diretamente, uma filosofia que pretenda abarcar
simultaneamente a existência concreta e o registro teórico irrenunciável, realizando uma síntese
entre teoria e prática, entre ontologia e existência, repousa necessariamente sobre uma tensão.
Um estudo acerca da obra de Sartre defronta-se, pois, com a exigência de assumir a dimensão
tensa da obra, o que só se efetivará com uma investigação que, a despeito da ênfase temática
11
escolhida pelo pesquisador, contemple as suas diferentes faces, quais sejam, literatura e filosofia,
ontologia-fenomenológica e filosofia da história, e, finalmente, filosofia, literatura e existência.
Eis o modo pelo qual torna-se possível escapar aos estereótipos. Nesse estudo, dentro dos limites
que a ele se impõem, procuramos nos pautar por esse critério. Oxalá tenhamos sido bem
sucedidos.
No entanto, convém que nos debrucemos sobre essa “tensão”.
São múltiplas as facetas da tensão que percorre a obra sartriana. Todas elas repousam
sobre um aspecto primordial: a oposição entre ser e existência. Esse aspecto reflete-se, inclusive,
no modo pelo qual o autor se dividiu entre o caminho da reflexão filosófica, metafísica, abstrata
e os imperativos da ação política. Ambivalência que poderia ser interpretada como uma
incoerência – ou mesmo contradição – em relação à imagem tradicional do filósofo.
Notadamente, esta imagem implica um afastamento do mundo, como condição para pensá-lo
abstratamente, numa atitude fundamentalmente contemplativa. Ou seja, sob a égide da metafísica
clássica, o filósofo construiria um fosso entre o âmbito concreto da ação e o âmbito teórico da
reflexão filosófica. Mas, no caso de Sartre, sua ontologia adquire uma conotação concreta e
abarca a dimensão ativa do existir. É nesse sentido que entendemos que o seu engajamento
político revela-se coerente com sua obra teórica.
Por outro lado, uma filosofia que busque abarcar o concreto da existência humana, e que
se constitui como uma metafísica que não se dissocia da experiência, necessita também
contemplar o caráter relativo de toda escolha singular. Nesse caso, se nos ativermos ao exemplo
da biografia do próprio Sartre, perceberemos que, em diversos momentos de seu percurso
intelectual e pessoal, o filósofo reconsiderou seus posicionamentos políticos, chegando por vezes
a se contradizer. Fiquemos em apenas um exemplo: o apoio do filósofo ao regime stalinista foi
incondicional, ao menos até a invasão soviética da Hungria em 1956, chegando inclusive a omitir
informações acerca da realidade da URSS.1 No entanto, os eventos ocorridos em 1956 levaramno a rever seus posicionamentos e, mesmo que com pesar, a abandonar seu apoio ao regime
soviético. O que queremos evidenciar com a alusão a esse episódio é que uma filosofia que se
quer concreta, atenta à dimensão singular do existir, deve abarcar também a dimensão
contingente das escolhas igualmente singulares, bem como a possibilidade de seus equívocos e
reviravoltas. Nesse sentido, os reveses, as idas e vindas da postura política do autor, bem como o
1
ROWLEY, Hazel, Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre: Tête-à-Tête, p. 275.
12
radicalismo de suas posições em determinados momentos, não contraditaria uma ontologiafenomenológica que se recusa a negligenciar a dimensão dramática e concreta da existência.2
Ademais, no registro da dimensão ética que permeia toda filosofia de Sartre – ainda que
ele só tenha se voltado claramente para as questões dessa ordem em momentos mais tardios de
sua produção – toda escolha se quer absoluta, mesmo que relativa. Nesse sentido, escolher é
eleger valores, é comprometer-se. Esse compromisso se quer absoluto, mesmo que relativo a um
contexto específico. Vem a propósito a esclarecedora imagem tecida pelo filósofo: a escolha se
assemelha à criação de uma obra de arte. Em outras palavras, tal como na criação artística, onde
o valor da obra reside nela mesma, o valor atribuído à escolha reside na própria ação, na
dimensão criadora do ato. É a própria ação que estabelece o valor absoluto da escolha, não há
nada que possa me redimir dessa responsabilidade. Eis a correlação entre uma moral da criação e
o ato de invenção.3 Ao escolher, um homem promove à condição de valor absoluto a sua escolha
singular.
Sem dúvida, estamos no âmbito de uma filosofia que rompe com a separação entre teoria
e práxis, entre pensamento e existência. Deparamo-nos, aqui, com algo poucas vezes notado na
história da filosofia. Ou seja, em contraposição à tradição, a filosofia de Sartre se quer concreta,
imersa na realidade, na relatividade do contexto epocal. Trata-se de uma filosofia que pretende
compreender o homem imerso na história. Notemos que essa postura deve-se também ao
momento vivido por ele e por seus contemporâneos. De fato, podemos encontrar uma certa
unidade na geração da filosofia francesa a partir dos anos 30, a qual – confrontada com a
2
No que tange às polêmicas e, por vezes, contraditórias posições políticas de Sartre, cabe uma alusão às análises
de Ronald Aronson em Camus e Sartre: O Polêmico Fim de uma Amizade no Pós-Guerra. Para Aronson, a polêmica
ruptura entre Sartre e Camus teve como principal razão o antagonismo ideológico dos filósofos, e isso se deve,
principalmente, à defesa veemente que Sartre assume em prol do processo revolucionário, justificando inclusive a
ação violenta. Nesse sentido, Aronson chega a afirmar que Sartre, em dado momento, defende inclusive que a
liberdade individual deve se submeter à causa revolucionária. É nesse sentido que o autor comenta: “Até aqui
Sartre havia falado sobre história e engajamento, ou havia criado sua própria revista ou uma nova organização.
Mas ‘não se pode criar um movimento’. A hora chegou para dar o próximo passo: juntar-se à luta que já acontece,
uma luta totalmente além do seu controle” (p. 193). Ainda sob esta perspectiva, Aronson sintetiza a ruptura entre
os autores: “Vimos Sartre se tornando revolucionário e Camus, um revoltado. A construção político-dramáticointelectual central de Sartre foi Goetz [personagem principal da peça O Diabo e o Bom Deus, de Sartre], o líder que
aceita a violência como preço da mudança social. Camus trabalhou tão profundamente quanto para modelar sua
própria criação, o homem revoltado, para o qual a violência nunca poderia ser justificada” (p. 198). No entanto,
Aronson alerta-nos para os perigos de uma interpretação maniqueísta decorrente do contexto da Guerra Fria o
que, por conseqüência, gerou uma leitura ambígua do ocorrido, levando o leitor mais incauto a buscar a solução
da questão ou em Sartre ou em Camus, ignorando, desse modo, as nuances que caracterizaram o debate
intelectual da época (p. 200). Evidentemente, não defendemos aqui o antagonismo e acreditamos que ambos os
autores tinham razões que justificavam seus posicionamentos. A despeito disso, parece-nos importante, no que
toca à nossa discussão, frisar que não vemos o posicionamento de Sartre como uma incoerência e sim como uma
decorrência natural de seus pressupostos teóricos fundamentais.
3
SARTRE, Jean-Paul, O Existencialismo é um Humanismo, p. 18.
13
presença constante dos grandes genocídios do século XX, pela iminência da Segunda Guerra
Mundial e com todos os seus desdobramentos políticos e sociais – rompe com as tendências
espiritualistas que imperavam no universo filosófico francês desde o nascer do século. Prevalece,
assim, um pensamento filosófico que se abre para o homem e para o seu momento. Doravante, a
filosofia já não pode negligenciar a história.4
Por essa razão, a oscilação da obra sartriana entre suas manifestações ideológico-políticas
e sua dimensão mais teórica, e mais que isso, entre pensamento e existência, parece desvelar não
apenas o seu comprometimento, mas a sua coerência com seus próprios pressupostos filosóficos.
Compreendemos, assim, a exigência de que o filósofo existencialista se posicione politicamente,
se lance em direção ao cerne da situação que o envolve, inclusive porque não se posicionar
implica igualmente uma forma de tomar posição. Afirma ele, em mais uma de suas célebres
máximas: “sempre se é responsável por aquilo que não se tenta impedir”.5 Parodiando
Dostoiévski, “tudo é permitido”, exceto não agir. Sob essa perspectiva, o que fica interditado é a
abstenção. Aquele que escolhe não agir, de certo modo, já está agindo. Se reformularmos essa
exigência a partir do vocabulário ontológico de Sartre, veremos que o para-si é no mundo, em
situação. Não se é possível, portanto fugir a esse pressuposto fundamental. Já não há espaço para
o distanciamento requerido pela contemplação filosófica tradicional; só faz sentido, sob o
registro do existencialismo, uma filosofia para e na vida. Em outras palavras, para que o autor
permaneça coerente com os fundamentos ontológico-fenomenológicos de sua filosofia é
imperativo que ele, enquanto subjetividade singular, contemple e mergulhe na dinâmica
existencial. Sartre não vacila ante tal necessidade.
Assim, convém a referência à máxima que fundamenta a filosofia existencialista de
Sartre: “[...] a existência precede a essência, ou, se se quiser, [...] temos que partir da
subjetividade”.6 O homem será aquilo que ele fizer dele mesmo; não há essência ou
determinação que possa justificar a ação humana, existe sempre também a possibilidade de que o
homem, em suas escolhas, acabe por se contradizer, como, afinal, ocorreu com o filósofo em
suas controversas posições políticas. Cumpre observar que a idéia de contradição aqui se refere
justamente ao fato de que a máxima existencialista livra o homem de toda e qualquer
determinação, ou seja, não há nada a priori que possa justificar minha ação. Eis aí um
pressuposto que vem legitimar a assunção de posições contraditórias em diferentes momentos
4
Para mais, ver: WORMS, Frédéric. La philosophie en France au XXe. Siècle, Paris, Gallimard, 2009.
SARTRE, Jean-Paul, O que é a Literatura?, p. 212.
6
Idem, O Existencialismo é um Humanismo, p. 5.
5
14
históricos. Afinal, se o homem se caracteriza como puro projeto de si mesmo, se o que define a
existência é a ação, então, parece-nos lícito afirmar que é sempre possível, e até mesmo coerente,
que ele aja e “pense contra si mesmo”.
Para que o homem continue a ser aquilo que ele faz de si mesmo é necessário que ele
escolha permanentemente, pois, no esteio de Heidegger, Sartre afirma: “o Para-Si é o ser para o
qual, sendo, está em questão o seu próprio ser”. Máxima que requer a assunção integral da
responsabilidade implicada na escolha, que, como dito anteriormente, se quer universal, consiste
na eleição de valores, os quais, embora partam de uma escolha singular, remetem ao absoluto.
Sob essa perspectiva, não nos parece um abuso afirmar que a incoerência comumente atribuída a
Sartre seja em relação à postura tradicional do filósofo, seja em relação às suas polêmicas e
contraditórias posições políticas, consiste, em última instância, numa decorrência da tensão que
caracteriza o seu pensamento teórico. Deste modo, exigir a famigerada “coerência” biográfica de
Sartre, como o fazem alguns, significaria lançar sua filosofia no registro da imobilidade e da
determinação. Significaria negar o caráter transcendente que define a própria existência. O
pensar e o agir devem andar juntos, pois o homem, nada mais é do que o conjunto de suas
escolhas, o conjunto de suas ações. Vale insistir: a ontologia-fenomenológica da filosofia
sartriana remete necessariamente ao âmbito da existência concreta.
Essas considerações, ainda que de modo oblíquo, sugerem uma pista acerca do problema
que norteará nosso estudo. A questão fundamental que nos guiará consiste em indagar por que se
torna necessário ao filósofo lançar mão do registro literário para expressar seu pensamento. Ora,
se o que caracteriza sua produção é a tensão inerente aos pressupostos existenciais, então é
impositivo que busquemos subsídios para o nosso estudo tanto em sua reflexão filosófica como
em sua criação ficcional. Expliquemos. Uma filosofia que pretenda abraçar o existente em
situação, precisa buscar modos de expressão que se prestem a esse propósito. O registro da
abstração teórica parece permanecer aquém dessa pretensão. Abre-se, pois, a necessidade do
apelo ao registro literário, o qual nos inseriria mais enfaticamente na dimensão concreta da
existência, âmbito em que os atos humanos e o homem em situação são efetivamente retratados.
No entanto, é relevante frisar que, com isso, Sartre não pretende diluir as especificidades dos
registros. Fazer filosofia não é fazer literatura e o seu contrário também não parece se justificar.
Daí que uma nova questão se delineia: como se estabelece a relação entre o registro da reflexão
filosófica e da criação ficcional na produção sartriana?
Sartre, como lembra Françoise Noudelmann, é um autor avesso a sistemas filosóficos,
embora tenha desenvolvido rigorosamente seu pensamento através de tratados filosóficos como
15
O Ser e o Nada e a Crítica da Razão Dialética. Isso talvez se deva ao referido caráter tensional
que marca o teor de sua filosofia, bem como o estilo de toda a sua produção. E esse aspecto é
relevante porque ele nos conduz a questões fundamentais, tais como: haveria, de fato, uma
insuficiência da reflexão filosófica para pensar a condição humana? Em contrapartida, a criação
ficcional daria conta de expressar essa realidade em sua totalidade? O que nos autorizaria
interrogar acerca de uma dupla insuficiência do registro teórico e ficcional? Questões que, uma
vez submetidas à reflexão, poderiam legitimar a abordagem simultânea da obra filosófica e
literária do autor. Eis alguns dos pontos cruciais sobre os quais se debruçam estas páginas.
Ainda no que toca a esta problemática, parece-nos que essa aparente dupla insuficiência –
que,
como
pretendemos
pontuar
no
decorrer
deste
estudo,
constitui
uma
dupla
complementaridade –, evidencia ainda mais o caráter tensional sempre presente no pensamento
sartriano. Notadamente, da tensão fundamental – entre pensamento e existência – desdobram-se
outras tensões internas de sua filosofia: a contraposição entre o particular e o universal; as
escolhas singulares e o movimento da história; o ser e o nada; o para-si e o em-si.
Noudelmann chega a afirmar que Sartre desenvolve mesmo uma “teoria da tensão”. Ao
revisar a ligação entre conceito e imagem em Sartre, o comentador sustenta que o filósofo
[...] desenvolve assim uma teoria da tensão: a significação põe em relação os
termos, exerce sua complementaridade ou alcança seu sentido total. Sua intenção é
realizar a adequação entre o ser e a existência, objetivo impossível de realizar, mas que
constitui o horizonte necessário à tentativa de totalização.7
As palavras do comentador parecem expressar exatamente aquele que é nosso
pressuposto, isto é, as ambigüidades são inerentes ao pensamento de Sartre, de tal modo que a
adequação entre existência e ser – a tensão fundamental de sua filosofia – seja, de fato,
impossível. Parece-nos que o recurso a essa “teoria da tensão” surge com um desdobramento
necessário de um pensamento que busca abarcar a existência lançada no mundo. Novamente, se
recorrermos ao vocabulário ontológico sartriano, veremos que é justamente o descompasso entre
o Ser-Para-Si, isto é, o homem imerso em sua existência, e o Ser-Em-Si, o mundo, o Ser, que
sustenta essa supracitada teoria da tensão, a qual se evidencia na conhecida asserção: “o homem
é uma paixão inútil”. O existente é puro projeto fadado a nunca realizar-se enquanto Ser; no
7
NOUDELMANN, François, L’Incarnation Imaginaire, p. 248. “Ensuite, Sartre revise le lien qui unit concept et image.
Il développe ainsi une théorie de la tension: la signification met en rapport les termes, fait jouer leur
complémentarité ou leur atteindre la totalité du sens. Son ambition este d’accomplir l’adéquation de lêtre et de
l’existant, objectif impossible à réaliser, mais qui constitue l’horizon nécessaire à l’entreprise de totalisation”.
(Tradução nossa).
16
entanto, justamente por ser fluxo contínuo, não é possível ao homem abandonar essa pretensão
de ser o que ele jamais será. Em suma, a existência é tensa. Um desajuste inscreve-se no âmago
da condição humana. Seria justamente a tensão – de uma realização em perpétuo curso, sempre
inacabada – que mantém o arco de sua filosofia teso. Logo, se esta filosofia permanece tensa
entre a reflexão teórica e necessidade de posicionamento político, ela reflete a condição de seu
objeto privilegiado, o homem, este ser sempre inacabado. Aspecto que se exprimirá também na
urgência de conciliar o registro filosófico e o literário. Ante o exposto, um estudo conjunto de
aspectos da obra literária e da obra filosófica do autor parece se justificar, uma vez que fornece
subsídios para que compreendamos melhor a tensão em que este pensamento se movimentará.
No que tange ao caminho metodológico, pretendemos fazer um recorte, percorrendo
alguns textos do jovem Sartre, em especial, o ensaio A Transcendência do Ego (1934); o
pequeno – mas não menos importante – artigo Uma Idéia Fundamental da Fenomenologia de
Husserl: a Intencionalidade (1936); e, finalmente, seu romance de estréia, A Náusea (1938).
Aludiremos ainda aos textos A imaginação (1936) e ao Imaginário (1940). Eventualmente nos
remeteremos a alguns textos de maturidade do autor, principalmente, ao tratado de ontologia
fenomenológica O Ser e o Nada (1943), e ao ensaio O que é a Literatura? (1947). Aludiremos,
ainda, à transcrição de sua célebre conferência O Existencialismo é um Humanismo (1946).
Nesse itinerário, pretendemos iniciar nossa análise refletindo acerca da apropriação
realizada pelo autor da teoria fenomenológica de Husserl, passando por sua crítica à formulação
fenomenológica do Ego Transcendental, bem como pelo papel que o conceito de
intencionalidade adquire para o registro francês da fenomenologia. Em seguida, é nosso objetivo
explicitar a relação, propriamente dita, que se estabelece entre a criação ficcional e a reflexão
filosófica no registro do existencialismo sartriano. Este movimento reflexivo nos conduzirá a
uma inspeção acerca da concepção sartriana de imagem e do papel que o imaginário exerce
enquanto fonte de acesso legítimo ao real, ou, como pretendemos esclarecer posteriormente, do
irreal que desvela o real. Assim, a literatura parece surgir como uma linguagem capaz de
exprimir o modo de ser-no-mundo da consciência, o que nos conduz a problematizar a relação
que se estabelece entre existência, literatura e filosofia. Nesta etapa de nosso estudo, dois dos
textos acima mencionados serão necessariamente evocados: A Imaginação (1936) e O
Imaginário (1940).
Por
fim,
no
último capítulo
pretendemos
retomar
os
conceitos
filosóficos
problematizados nas discussões antecedentes, mas sob uma perspectiva outra, qual seja, tomando
como referencial uma obra ficcional: o romance A Náusea. Assim, a dissolução do Ego, a
17
concepção da consciência enquanto pura intencionalidade, ou seja, enquanto fluxo contínuo,
conduzem nosso estudo para a revelação da contingência manifestada pela experiência violenta e
radical da Náusea. Nesse movimento, as necessárias implicações éticas que a literatura adquire
sob a perspectiva existencialista tornam-se relevantes para a nossa reflexão. Assim, à medida que
vislumbrarmos a condição de total gratuidade da existência desvelando-se na criação ficcional,
indagaremos acerca das dimensões éticas implícitas nesse desvelamento. Eis as questões que
pautarão nosso estudo.
Em síntese, poderíamos afirmar que nosso estudo se refere à relação que se estabelece
entre criação ficcional e a reflexão filosófica em Sartre, bem como à dimensão ética que esta
relação assume no corpo teórico do autor, em especial em suas primeiras obras.
18
CAPÍTULO I
Do Ego Transcendental à transcendência do Ego
“Mas já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as
entrelinhas” (Clarice Lispector)
1. Introdução
Sartre é herdeiro da fenomenologia de Husserl. No entanto, como grande filósofo que foi,
sua relação com a filosofia de seu mestre não foi pacífica. Como disse Nietzsche certa vez,
“retribui-se mal a um mestre, continuando-se sempre apenas aluno”.8 Dispensável dizer que
Sartre muito rapidamente evadiu-se dessa condição. Evidentemente, a apropriação da
fenomenologia realizada pelo filósofo foi uma apropriação crítica.
No texto A Transcendência do Ego, o filósofo francês reconhece sua dívida para com a
fenomenologia husserliana, mas não deixa de tecer uma importante crítica à concepção de Ego
Transcendental defendida pelo filósofo alemão. Com certeza, este último não admitiria a
interpretação sartriana da fenomenologia, oposição que se inicia com a distinção estabelecida por
Husserl entre a orientação natural e a orientação filosófica, o que faz da fenomenologia uma
filosofia teórica destituída de vínculos com a vida prática. Característica que se dissipa na
filosofia sartriana.
Publicado pela primeira vez em 1936, A Transcendência do Ego é o primeiro texto
filosófico de Sartre e inaugura uma perspectiva que se consolidará em O Ser e o Nada (1943). Se
olharmos mais atentamente, perceberemos que a cronologia atesta a inegável unidade das
preocupações filosóficas de Sartre nesta época. Entre 1933 e 1934 o filósofo estuda em Berlin a
filosofia fenomenológica e é justamente deste período que data a redação das obras: o ensaio A
Transcendência do Ego escrito em 1934 e publicado em 1936 nos Recherches Philosophiques,9 o
8
9
NIETZCHE, Friedrich, Ecce homo, p. 20.
LE BON, Sylvie, Introdução de La Transcendance de L’Ego, p. 8.
19
romance A Náusea (1938) e o importante artigo Uma Idéia Fundamental da Fenomenologia de
Husserl: a Intencionalidade (1938). Período no qual, aliás, a nossa pesquisa mais se detém.
É relevante ressaltar que, embora boa parte da concepção defendida por Sartre seja revista
posteriormente, no que se refere à estrutura da consciência e, à “idéia fundamental do Ego como
objeto psíquico transcendente”,10 o filósofo jamais abandonará sua posição. O que Sartre busca,
de fato, é negar a existência formal e material do Ego na consciência. Esse problema aparece
formulado da seguinte maneira na clássica citação de A Transcendência do Ego:
Para a maior parte dos filósofos, o Ego é um “habitante” da consciência. Alguns
afirmam a sua presença formal no seio das Erlebnisse [vivência] como um princípio
vazio de unificação. Outros – psicólogos na maior parte – pensam descobrir a sua
presença material, como centro dos desejos e dos atos, em cada momento da nossa vida
psíquica. Nós queremos mostrar aqui que o Ego não está na consciência nem formal
nem materialmente: ele está fora, no mundo; é um ser do mundo, tal como o Ego de
outrem.11
O que temos, então, é, por um lado, a inegável dívida de Sartre em relação à
fenomenologia e, por outro, suas críticas à filosofia de seu mestre. Interessa-nos aqui, em
especial, sua objeção à concepção de Ego transcendental, sua radicalização do conceito de
intencionalidade e a forma pela qual essa objeção se desdobra em uma filosofia que busca
resgatar o homem concreto em suas relações com o mundo. Adentremos, pois, o primeiro desses
temas.
2. A apropriação sartriana da fenomenologia
No que concerne à fenomenologia, é sabido que Husserl pretende voltar “às coisas
mesmas” e, com isso, fundar uma filosofia das essências. Através do exercício da epoché, o
filósofo alemão quer colocar o mundo entre parênteses a fim de buscar as essências ideais.
Assim, o método descritivo fenomenológico empreende uma crítica ao psicologismo e se
pretende uma ciência pura. Sob essa perspectiva metódica, as vivências são consideradas
unicamente enquanto se referem à consciência em sua relação com o mundo, daí a famosa
máxima: “toda consciência é consciência de alguma coisa”.
10
11
Ibidem, p. 9.
SARTRE, Jean-Paul, A Transcendência do Ego, p. 43.
20
Mas o que é a fenomenologia afinal de contas? Procedamos a uma breve descrição do
método fenomenológico, tal como empreendido por Husserl. A interrogação fundamental do
filósofo concerne ao sentido do conhecimento, isto é, trata-se de interrogar: o que é conhecer
uma coisa? Qual a relação que se estabelece entre o sujeito que conhece e o objeto conhecido,
entre a consciência e o mundo? A fenomenologia, entendida como o método da crítica do
conhecimento universal das essências, se constitui como a própria ciência da essência do
conhecimento e se converte, nas palavras de Husserl, na “doutrina universal das essências”. Ela
se configura, mais explicitamente, como um método que busca realizar a crítica do ato de
conhecer. Nos dizeres do filósofo, a fenomenologia “torna apta a teoria do conhecimento para
ser crítica do conhecimento ou, mais claramente, para ser crítica do conhecimento natural em
todas as ciências naturais”.12 Deparamo-nos, assim, com a distinção entre o que Husserl
denomina orientação natural e orientação estritamente fenomenológica. Distinção a ser
esclarecida pela discussão subseqüente. Antes, porém, sublinhemos que essas alusões à
Fenomenologia Transcendental, que procuramos descrever brevemente, concernem à fase
madura da filosofia de Husserl, a qual encontra sua representação a partir de sua obra A Idéia da
Fenomenologia (1913).13 Momento em que o mestre alemão realiza sua “crítica da razão” em
todas as suas dimensões.
Mencionamos acima que a fenomenologia husserliana propõe o “retorno às coisas
mesmas”. O retorno aqui referido pressupõe a redução fenomenológica ou a epoché.
Notadamente, Husserl busca superar o dualismo moderno típico do que ficou conhecido como as
filosofias do sujeito, que põem de um lado a postura ingênua de um empirismo radical e, por
outro, a postura, não menos ingênua, de um transcendentalismo “realista”.14 Daí deriva que o
filósofo proponha como método fenomenológico um retorno radical à consciência em sua
relação com o mundo. A redução operada pela fenomenologia, consiste, portanto, num retorno à
consciência na sua relação com as coisas, o que permite que os objetos se apresentem em sua
constituição, ou seja, enquanto correlatos de uma consciência que os apreende. Sob essa
perspectiva, evadimo-nos da idéia de um método que busca uma explicação para um dado
fenômeno; doravante, ele se configura como um procedimento que realiza uma descrição
12
HUSSERL, Edmund, A Idéia da Fenomenologia, p. 44.
MOURA, Carlos A. Ribeiro de, Crítica da Razão na Fenomenologia, p. 10.
14
De modo geral, a referência aqui é feita considerando-se as correntes filosóficas que se caracterizam por uma
metafísica que se ocupa com uma teoria de especulação transcendental, isto é, que tematizam o sujeito
transcendental em detrimento da experiência, e que, portanto, se ocupam com a transcendentalidade da coisa
mesma. Em outras palavras, que buscam o fundamento do real no nível transcendental-ontológico. Esta oposição,
em termos antagônicos, visa destacar o dualismo típico do paradigma moderno, no qual era necessário se
posicionar em um dos pólos descritos.
13
21
sistemática das condições, dos limites e das possibilidades do conhecimento das coisas mesmas.
A descrição configura-se, pois, como um retorno do sujeito sobre si mesmo. Cabe, então, a
explicitação da distinção entre aquilo que o filósofo entende como a ciência eidética e a ciência
restrita ao conhecimento dos fatos empíricos.
É sabido que, a partir de sua obra Idéias I (1913), Husserl busca distanciar-se de uma
“fenomenologia psicológica descritiva”, que se limita à esfera das vivências, isto é, no sentido
de um “eu que vive”, e passa a buscar uma fenomenologia transcendental, de sorte que sua
doutrina gnosiológica, cujo propósito consiste em alcançar a essência do conhecimento, se afaste
da referência empírica. Assim sendo, com o Husserl das Investigações Lógicas (1901), as
vivências serão descritas a partir de um “eu que vive” em relação com aquilo que é do âmbito da
objetividade de natureza empírica. No que concerne à fenomenologia transcendental, será a
consciência constituinte, isto é, que não se dirige aos objetos “fora” da consciência, que pautará
sua pesquisa. Trata-se de descrever aquilo que se refere exclusivamente à esfera das vivências
em consonância com seu conteúdo incluso. Por conseguinte, aquilo que remete à objetividade
empírica fica restrito às ciências objetivas, às ciências naturais, cujos limites Husserl pretende
ultrapassar.
Em síntese, a fenomenologia transcendental objetiva apreender a consciência enquanto
ato que se dirige aos fenômenos, enquanto “consciência de alguma coisa”, de modo que os
fenômenos passam a ser visados “transcendentalmente”. A pergunta gnosiológica fundamental
que orienta a busca de Husserl, no que concerne à relação entre o Ser e o Conhecer, tal como
anteriormente mencionado, permite de fato que o filósofo ultrapasse o âmbito das ciências
naturais. A partir de então, o objeto da investigação fenomenológica passa a ser as relações que
se estabelecem entre o ato de conhecer, a consciência significante e o objeto significado,
constituindo-se assim como filosofia transcendental. É nesse sentido que o filósofo afirma que é
possível “resolver os problemas concernentes à relação entre conhecimentos, sentido do
conhecimento e objeto do conhecimento, graças à inquirição da essência do conhecimento”.15
Enquanto crítica da razão, através da redução fenomenológica, buscando a essência
universal do conhecimento absoluto, a Filosofia Transcendental permitirá um retorno às coisas
mesmas. Compreendemos, assim, porque Husserl diz que “o conhecimento é, pois, apenas
conhecimento humano, ligado às formas intelectuais humanas, incapaz de atingir a natureza das
próprias coisas, as coisas em si”.16 Compreendemos, outrossim, porque a fenomenologia
15
16
HUSSERL, Edmund, A Idéia da Fenomenologia, p. 45.
Ibidem, p. 44.
22
transcendental impõe a necessária superação da orientação natural, fortemente criticada por
Husserl. No entanto, sob esse prisma, a fenomenologia parece aproximar-se do idealismo
transcendental, visto que se caracteriza por uma crítica da razão enquanto fenômeno da
consciência constituinte. Ela pretende se constituir como uma ciência transcendental dos
fenômenos da consciência enquanto consciência. Postura que culminará, vale notar, com a
publicação de Idéias para uma Fenomenologia Pura (1913).
É sob a influência da fenomenologia de Husserl que Sartre vislumbra a relação de
interdependência entre a consciência que apreende o mundo e o mundo que é apreendido pela
consciência. A fenomenologia configurará, sob a perspectiva sartriana, a possibilidade de efetiva
superação de uma série de dualismos característicos da epistemologia moderna. 17 No entanto,
será justamente ao Husserl da Fenomenologia Transcendental, ou seja, a partir da publicação de
A Idéia da Fenomenologia (1913), que Sartre elaborará suas críticas, particularmente porque
com ela Husserl inicia seu distanciamento das teses fundamentais defendidas em Investigações
Lógicas (1901), sustentando a necessidade de um Eu Puro que subsista à consciência.18 De
acordo com Sartre, se a relação de imanência transcendental que se estabelece entre a
consciência e o mundo pressupõe uma consciência transcendental enquanto correlato do mundo,
ela finda por exigir também um Ego Transcendental como substrato último e como núcleo
unificador da consciência e de constituição do significado do mundo. Movimento que contradita
o propósito central de Sartre, o qual consiste em negar toda e qualquer substancialidade à
consciência.
Para fundamentar a crítica sartriana, uma pequena digressão se impõe. Cumpre retornar
um pouco àquele que talvez seja o termo mais importante para a fenomenologia, o “fenômeno”.
Segundo Ales Bello,19 “fenômeno” etimologicamente significa “aquilo que se mostra”, logo é
tarefa da fenomenologia buscar o “sentido daquilo que se mostra” para além daquilo que
“aparece”. Nesse sentido, a autora chega a comparar o fenômeno a uma epifania religiosa. O
que fundamenta o “aparecer” referido, ou, como prefere Ales Bello, o mostrar, é a correlação
17
SARTRE, Jean-Paul, O Ser e o Nada, p. 17-18. Para Sartre, a fenomenologia de Husserl, ao afirmar que a
aparência é a própria essência, substituiu uma série de dualismos típicos da epistemologia moderna por um único
dualismo: o do finito e infinito.
18
Cabe ressaltar que, segundo Carlos Alberto Ribeiro de Moura, muitas das críticas da assim chamada “primeira
escola fenomenológica”, ou, em outras palavras, de seus primeiros discípulos, se devem a uma apropriação
equivocada que esses discípulos fazem de sua filosofia. Parece ser esse o caso de Sartre, segundo o professor.
(Moura, Carlos A. Ribeiro de, Crítica da Razão na Fenomenologia, p. 19) No entanto, não é essa nossa leitura.
Consideramos que aquilo que se mostra, a princípio, como um equívoco de Sartre, na realidade faz parte de sua
apropriação crítica. O filósofo busca radicalizar o conceito de intencionalidade desenvolvido por Husserl, tal como
pretendemos explicitar no decorrer deste estudo.
19
ALES BELLO, Angela, Introdução à fenomenologia, p. 17-18.
23
ou a interdependência entre o aparecer e aquilo que aparece. Daí decorre que o fenômeno
designe tanto aquilo que aparece quanto o seu aparecer. Estabelece-se, desse modo, uma relação
de interdependência entre o sujeito do conhecimento e o mundo conhecido, entre a consciência
“conhecedora” e os objetos cognoscíveis. Se o fenômeno abarca simultaneamente o aparecer e o
que aparece, torna-se incontestável o caráter indissociável da relação entre o sujeito e o mundo,
entre a consciência e seus objetos. Um não pode ser pensado sem o outro.
É sob esse registro que devemos entender a máxima de Husserl, segundo a qual “toda
consciência é consciência de alguma coisa”, que é o mesmo que dizer que não existe uma
consciência em si, e, por conseqüência, não existe também um ser em si. O que temos
efetivamente é uma consciência que só é passível de apreensão em “relação”, de sorte que toda
consciência é consciência no mundo e de um ser-no-mundo, o que ao mesmo tempo nega a
materialidade do Ego e remete à existência concreta, categoria central dentro do pensamento
existencialista de Sartre.
Assim, voltemos à crítica ao ego transcendental. Sartre considera que pressupor um
núcleo duro que, em última instância, definiria a consciência, tal como parece sugerir Husserl,
seria o mesmo que negar o que a fenomenologia tem de mais original e radical, a saber, a
intencionalidade. Para o filósofo, se a consciência aparece primeiramente em relação ao mundo,
devemos ter como ponto de partida o existente, sem, entretanto, isolá-lo. Logo, não seria
incorreto afirmar que se Sartre aceita a fenomenologia, o faz radicalizando-a, ao mesmo tempo
em que procura evidenciar o que seria, segundo ele, uma incoerência interna dentro do projeto
fenomenológico do filósofo alemão.
É importante observar que Sartre, assim como Husserl, mais especificamente em As
Investigações lógicas, afirma o caráter processual da consciência, ou seja, para ambos a
consciência só existe em ato. Isso significa que o dualismo clássico da metafísica tradicional
entre a substância que subjaz àquilo que aparece, ou melhor, o dualismo entre essência e
aparência, não tem sentido. É o que se evidencia em afirmações como esta: “A aparência não
esconde a essência, mas a revela: ela é essência”.20 Portanto, dentro desta concepção, não há
nada para além do fenômeno. A essência é tudo aquilo que aparece. Mas há uma distinção
importante entre a concepção de Husserl e a apropriação que Sartre faz de sua fenomenologia no
que concerne ao “ser do fenômeno”. Para o primeiro, o fenômeno se reduz ao conhecimento que
se tem dele; para o segundo, o ser do fenômeno existe mesmo quando não se tem conhecimento
dele. Em outras palavras, o fenômeno que aparece revela todo o seu ser, sem, no entanto, se
20
SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 16.
24
suprimir quando ele não aparece a uma consciência. Esta distinção é importante, uma vez que
permite ao filósofo francês ultrapassar o âmbito epistemológico da filosofia husserliana.
Com base na relação que se estabelece entre o “fenômeno de ser” e o “ser do fenômeno”,
ou seja, o ser da aparição, Sartre interroga se o fenômeno se limitaria ao seu próprio aparecer.
Pergunta que se justifica, pois, como diz o filósofo:
O fenômeno é o que se manifesta, e o ser manifesta-se a todos de algum modo,
pois dele podemos falar e dele temos certa compreensão. Assim, deve haver um
fenômeno de ser, uma aparição do ser, descritível como tal. O ser nos será revelado por
algum meio de acesso imediato, o tédio, a náusea, etc. 21
E conclui que “o ser do fenômeno não pode reduzir-se ao fenômeno do ser”. Assim:
[...] o ser do fenômeno, embora coextensivo ao fenômeno, deve escapar à condição
fenomênica – na qual alguma coisa só existe enquanto se revela – e que, em
conseqüência, ultrapassa e fundamenta o conhecimento que dele se tem. 22
Cabe ressaltar que esta relação entre o ser do fenômeno e o fenômeno do ser denota que,
para além do âmbito epistemológico, subsiste um fundamento ontológico, o que desvela ainda
mais a dissidência de Sartre em relação à filosofia de seu mestre. Desvio que se explicita, por
exemplo, na seguinte passagem: “O objeto não remete ao ser como se fosse uma significação:
seria impossível, por exemplo, definir o ser como presença – porque a ausência também revela o
ser, já que não estar aí é ainda ser”.23 O ser não se limita ao fenômeno, mas é coextensivo ao
fenômeno. Isso significa que, para Sartre, subsiste o ser do fenômeno, o que, como foi dito,
caracteriza uma ontologia. Mas como Sartre aborda essa ontologia? Positivamente, por meio dos
próprios fenômenos, o que significa que a ontologia deve ser buscada concretamente no mundo,
na vivência. No entanto, paradoxalmente, buscar o fundamento da ontologia no mundo é o
mesmo que perceber que o seu fundamento está no próprio fenômeno É exatamente aqui que
reside o afastamento crucial de Sartre em relação ao pensamento de Husserl, pois, para o
existencialismo sartriano, o ser está no próprio fenômeno, o que suprime a necessidade de se
encontrar um núcleo de unidade qualquer e que reconduza, em última instância, ao idealismo, tal
como faz seu mestre. Portanto, para Sartre, falar do fenômeno equivale a falar do próprio ser, o
21
Ibidem, p. 19.
Ibidem, p. 20.
23
Ibidem, p. 19.
22
25
que vem caracterizar, em sua filosofia, uma ontologia do concreto: “[...] o fenômeno é enquanto
aparência, quer dizer, indica a si mesmo sobre o fundamento do ser”.24
O substrato dessa concepção reside na prerrogativa de que “a consciência nasce tendo
por objeto um ser que ela não é”,25 o que implica em caracterizá-la enquanto pura
transcendência. Desse modo a consciência “exige apenas que o ser do que aparece não exista
somente enquanto aparece. O ser transfenomenal do que existe para a consciência é, em si
mesmo, em si”.26 Em outras palavras, a radicalidade da noção de consciência enquanto pura
transcendência exige que ela seja fundamentalmente sempre em relação a um ser transcendente
que não ela mesma. É sob esta perspectiva, portanto, que Sartre resgata o estatuto ontológico do
fenômeno, seu ser.
Para além desta distinção, a coisa aparece à consciência como algo radicalmente outro, e,
portanto, de maneira alguma derivada da consciência. Vemos, pois, que Sartre distancia-se do
registro cartesiano27 no qual, como bem define Franklin Leopoldo e Silva, “o Eu penso é
estabelecido como núcleo essencial e substancial a partir da qual se compreendem todas as
modalidades de pensamento como variações dessa unidade fundamental”,28 a saber, do cogito.
Para Sartre, a consciência se define como intencionalidade. Daí a “necessidade da consciência
de existir como consciência de outra coisa que não ela mesma”.29 É nesse sentido então que o
filósofo busca radicalizar o projeto fenomenológico.30 O que se evidencia nesta passagem de
Uma Idéia Fundamental da Fenomenologia de Husserl: a Intencionalidade:
24
Ibidem, p. 20.
Ibidem, p. 34.
26
Ibidem, p. 35.
27
O tema será retomado no decorrer deste capítulo.
28
LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Ética e Literatura em Sartre: Ensaios introdutórios, p 34.
29
SARTRE, Jean-Paul, Uma Idéia Fundamental da Fenomenologia de Husserl: a Intencionalidade, p. 57.
30
Dizer que o projeto sartriano visa radicalizar a noção husserliana de intencionalidade significa afirmar que, se o
existencialismo tem por objetivo a inserção do homem no mundo, isto é, afirmar que o homem está lançado no
mundo e em situação, esse projeto tem por fundamento justamente a noção de intencionalidade. Assim, se Sartre
nega a concepção de Ego Transcendental defendida por Husserl, isso se dá porque o filósofo francês acredita que
seu mestre não teria sido fiel aos seus próprios fundamentos. Essa crítica aparece em diversos momentos da obra
sartriana. Mencionemos aquele em que, no nosso entender, a crítica aparece com mais contundência: “Ao longo
de toda a sua carreira filosófica, Husserl foi obcecado pela idéia de transcendência e ultrapassamento. Mas os
instrumentos filosóficos de que dispunha, em particular sua concepção idealista da existência, privaram-no de
meios para se dar conta dessa transcendência: sua intencionalidade é apenas uma caricatura. A consciência
husserliana, na verdade, não pode se transcender nem para o mundo, nem para o futuro, nem para o passado.”
(SARTRE, Jean-Paul, O Ser e o Nada, p. 161, Grifo nosso). É justamente nesse sentido que Sartre sustenta em A
Transcendência do Ego: “Sejamos mais radicais [que Husserl] e afirmemos sem temor que toda transcendência
deve ficar ao alcance da epoché” (da redução fenomenológica), inclusive o Ego, exatamente porque ele não é da
mesma natureza da consciência transcendental. (Idem, A Transcendência do Ego, p. 53-4). É nesse sentido que
devemos entender a máxima de Husserl. Diz Sartre: “Toda consciência, mostrou Husserl, é consciência de alguma
coisa. Significa que não há consciência que não seja posicionamento de um objeto transcendente, ou, se
25
26
[...] A consciência e o mundo são dados de uma só vez: por essência exterior à
consciência, o mundo é, por essência, relativo a ela. É que Husserl vê na consciência um
fato irredutível, que nenhuma imagem pode exprimir. A não ser talvez, a imagem rápida
e obscura da explosão.31
Parece claro que a crítica sartriana à noção de Ego Transcendental não pode ser
compreendida independentemente da apropriação e radicalização da filosofia fenomenológica
realizada pelo filósofo. Desse modo, a compreensão da intencionalidade como fundamento da
consciência é chave para compreender sua crítica. É nesse sentido, portanto, que se entende a
esclarecedora passagem:
Imaginem agora uma seqüência encadeada de explosões que nos arrancam de nós
mesmos, que não deixam a um “nós mesmos” sequer o ócio de se formar atrás delas,
mas que nos jogam, ao contrário, além delas, na poeira seca do mundo, sobre a terra
rude, entre as coisas; imaginem que somos assim repelidos, abandonados por nossa
própria natureza em um mundo indiferente, hostil e recalcitrante. Vocês terão capturado
o sentido profundo da descoberta que Husserl exprime nesta famosa frase: “Toda
consciência é consciência de alguma coisa”.32
Para melhor fundamentar essa concepção da consciência como pura intencionalidade,
num sentido mais radical do que o husserliano, cabe aqui um pequeno desvio para destacar a
relação que se estabelece entre dois conceitos-chave na filosofia sartriana: o conceito de Ser-EmSi [être-en-soi] e o conceito de Ser-Para-Si [être-pour-soi]. Conceitos estes que só seriam
desenvolvidos posteriormente dentro do projeto de constituição de uma ontologia
fenomenológica, ou seja, em O Ser e o Nada, mas que, no entanto nos ajudam a compreender a
concepção do filósofo acerca do conceito de intencionalidade.33
Partindo da fenomenologia de Husserl, a consciência, para Sartre, é entendida como um
movimento em direção às coisas, ou – mencionemos ainda uma vez – como não se cansa de
preferirmos, que a consciência não tem conteúdo” (Idem, O Ser e o Nada, p. 22). Ou seja, segundo o filósofo a
consciência é pura transcendência; ela é no mundo, sempre em relação a um objeto transcendente. Portanto, é
justamente a apropriação e a crítica sartriana à noção de intencionalidade, tal como entendia seu mestre, que
possibilitam ultrapassar o idealismo de Husserl e promover a radicalização da fenomenologia e a crítica ao Ego
Transcendental. Enfim, para o filósofo francês, o caráter fundamental de toda consciência é a intencionalidade.
Bornheim vem em nossa direção: “Sartre pretende que a validez desse seu argumento repousa sobre uma
interpretação conseqüente da intencionalidade da consciência, tal como o tema aparece em Husserl, todavia, [seu
mestre] não teria sabido radicalizar suficientemente a questão”, assim, “se Sartre aceita a fenomenologia é com a
intenção de radicalizá-la ontologicamente”. (Sartre: Metafísica e Existencialismo, p. 30)
31
SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 56.
32
Ibidem, p. 56.
33
É importante ressaltar que para Husserl a concepção de uma ontologia fenomenológica se configuraria como
algo absurdo, pois, para o filósofo, a fenomenologia seria uma filosofia transcendental e, portanto, voltada para o
âmbito teórico.
27
repetir Husserl: “toda consciência é consciência de alguma coisa”. Ou então, como afirma
Sartre, a consciência “é aquilo que não é, e não é aquilo que é”
34
destacando, assim, o seu
caráter de “inacabamento” e fluidez, ou seja, revelando que a consciência é algo que se lança em
direção a alguma coisa, mas que nunca se realiza.
O Ser-Para-Si é aquele ser cujo seu próprio ser está em jogo35, ou, em outras palavras, o
Para-Si é aquele ser que é puro projeto de si mesmo, é movimento incessante em direção a
realizar-se. Assim, o Para-Si é dinâmico. Ou, como diz Sartre, referindo-se ao conceito de
intencionalidade de Husserl, conhecer é “explodir em direção a”,36 ressaltando, dessa maneira, o
caráter processual da consciência. Como conseqüência, esse movimento para fora contradita a
possibilidade de substancialidade da consciência. Desse modo, é preciso ressaltar o caráter de
interdependência entre consciência e Ser, e assim, de inacabamento do Para-Si. Talvez essa
relação se explicite melhor com a distinção entre consciência [Para-Si] e coisa [Em-Si]. Nesse
sentido as palavras de Paulo Perdigão, quando aludem ao inacabamento do Para-Si, são
esclarecedoras:
Essa separação interna do Para-Si faz dele uma espécie de Ser inacabado, ao
qual está sempre faltando alguma coisa para se completar e preencher o seu miolo. Se
fosse algo dado e acabado, a consciência seria idêntica a uma coisa. Mas há no Para-Si
uma separação interna que não pode ser suprimida, a menos que o Para-Si se perca
como tal e se converta em Em-Si.37
A separação interna a que se refere Perdigão diz respeito ao vazio constitutivo do ParaSi, ou seja, a intencionalidade requerida por Sartre denota a consciência enquanto instauradora
do Nada no Ser. Por conseqüência, isso implica uma relação de interdependência entre a
consciência e as coisas, assim: “Sartre desenvolveu o conceito de intencionalidade de Husserl
para mostrar que o Para-Si precisa do Em-Si para existir”.38 Portanto, é justamente esse caráter
de inacabamento do Para-Si que instaura a relação de interdependência com o Ser,
impossibilitando qualquer interpretação substancialista da consciência.
O Ser-Em-Si, em contrapartida, se constitui como um ser estático, completo e realizado.
Deste modo, se o Para-Si se define como projeto de si mesmo, como liberdade, o Em-Si se
caracteriza como “coisa opaca”, como ser acabado, como positividade pura. Mas no que
34
SARTRE, Jean-Paul, O Ser e o Nada, p. 38.
Como também afirma Heidegger em Ser e Tempo, e que constitui um dos fundamentos da filosofia da existência.
“A pre-sença [Dasein] é um ente que, sendo, está em jogo seu próprio ser.” Heidegger, Ser e tempo, p. 256.
36
SARTRE, Jean Paul. Uma Idéia Fundamental da Fenomenologia de Husserl: a Intencionalidade, p. 56.
37
PERDIGÃO, Paulo, Existência e Liberdade: Uma Introdução à Filosofia de Sartre, p.44.
38
Ibidem, p. 46.
35
28
concerne ao Em-Si, G. Bornheim é categórico ao assinalar que as análises de Sartre, não obstante
a relevância do tema, são decepcionantemente sucintas.39 A esse respeito, é imprescindível
ressaltar que, se, por um lado, tal como afirma o comentador, as análises de Sartre são bastante
restritas, por outro, elas se constituem enquanto conseqüência natural de um movimento análogo
ao de Heidegger em Ser e Tempo. Mais claramente, ao se perguntar sobre o Ser (Em-Si), Sartre
chega à mesma conclusão do filósofo alemão, sustentando que quem faz a pergunta sobre o Ser é
o Para-Si. Assim, o projeto sartriano ganha outra conotação, o que legitima o fato de que filósofo
dedique a maior parte de O Ser e o Nada às análises do Para-Si em detrimento do Em-Si.
Portanto, na contramão do que sugere Bornheim, consideramos que não se trata aqui de
negligenciar o Em-Si, mas antes de reconhecer o papel central que o homem (Para-Si) exerce
dentro da filosofia existencialista.
Destarte, como define o próprio Sartre ao final da introdução de O Ser e o Nada, a
fórmula que define o Ser-Em-Si é: “O ser é. O ser é em si. O ser é o que é”.40 Trata-se, pois, de
uma positividade radical, de uma tangibilidade que o Para-Si jamais conhecerá. O texto de
Perdigão é esclarecedor: “O Em-Si não possui consciência, e seu existir não depende de
qualquer consciência que se tenha dele, em nada é afetado pelo Para-Si. [...] o Em-Si é pura
facticidade, algo que está dentro do mundo”.41 Daí o sentido da conclusão de Sartre: “O Em-Si é
pleno de si mesmo e não se poderia imaginar plenitude mais perfeita do conteúdo ao continente:
não existe o menor vazio no ser, a menor fissura por onde pudesse introduzir o nada”.42
Podemos dizer, enfim, que o Para-Si é o ser para o qual está em questão o seu ser, e dessa
maneira, se caracteriza como negatividade pura, ou seja, é através da nadificação que o Para-Si
se constitui. Grosso modo, podemos identificar o Para-Si ao homem e o Em-Si às coisas, ao
mundo, pois o único ente que tem seu próprio ser como “totalização em curso”, ou seja,
inacabado, é o homem.
Sob essa perspectiva, a relação que se estabelece entre o Para-Si e o Em-Si nos oferece
uma melhor compreensão daquilo que Sartre pretende ao radicalizar o conceito de
intencionalidade. De fato, o que o filósofo busca mostrar quando diz que o “Para-Si é aquilo que
ele não é, e não é aquilo que ele é”, é que o Para-Si relaciona-se com o Em-Si, na medida em
que o Para-Si só é algo em relação ao Em-Si, visto que o Para-Si não é, e o Em-Si, por sua vez,
é. Sendo assim, o Para-Si depende do Em-Si enquanto objeto da consciência, pois, a consciência
39
BORNHEIM, Gerd, Sartre: Metafísica e Existencialismo, p. 33.
SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 40.
41
PERDIGÃO, Paulo, Existência e Liberdade: Uma Introdução à Filosofia de Sartre, p. 50.
42
SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., apud Bornheim, Gerd, Sartre: Metafísica e Existencialismo, p. 35.
40
29
é sempre um movimento em direção a algo. Ela se traduz em ato. No entanto, pode-se afirmar
que o Em-Si é, independentemente da consciência que o intenciona, mas é somente através do
Para-Si que o Em-Si ganha sentido. È é o Para-Si que generosamente atribui significado às
coisas [Em-Si], ao mundo.
Talvez, neste ponto de nosso trabalho, caiba ressaltar que, para Sartre, é através da
realidade humana que o Ser se manifesta, ou, nas palavras do autor, “o homem é o meio pelo
qual as coisas se manifestam”.43 Neste sentido o famoso “exemplo da árvore” presente em Que é
a Literatura? é esclarecedor. É a inserção do homem no mundo que multiplica a teia de relações
que permeia o Ser. Assim:
[...] somos nós que colocamos essa árvore em relação com aquele pedaço de
céu; graças a nós essa estrela morta há milênios, essa lua nova e esse rio se desvendam
na unidade de uma paisagem; é a velocidade do nosso automóvel, do nosso avião que
organiza as grandes massas terrestres; a cada um dos nossos atos, o mundo nos revela
uma face nova.44
Desvela-se então o caráter paradoxal da existência humana, pois da “nossa certeza
interior de sermos “desvendantes”, se junta aquela de sermos inessenciais em relação à coisa
desvendada”.45 Deriva daí um dos principais motivos da criação artística se apresentar como a
necessidade intrínseca à condição humana, uma vez que por meio dela busca ser essenciais ao
mundo. Ou seja, a arte, e mais especificamente a literatura – como veremos –, oferece ao homem
a ilusão de que ele é essencial em relação ao mundo. Eis um indício de que a concepção sartriana
de literatura alicerça-se em sua ontologia.
Portanto, o Para-Si talvez fosse melhor expresso como “para-fora-de-si”, o que ressalta,
ao mesmo tempo, o caráter processual da consciência, sua relação com o mundo e a superação da
dimensão cognitiva da fenomenologia, pois, se a consciência depende do mundo [Em-Si], o
mundo é, mesmo quando não se tem conhecimento dele. A consciência se define, por meio dessa
relação que se estabelece entre o Ser-Para-Si e o Ser-Em-Si, ou seja, por aquilo que Sartre
entende por intencionalidade.
Voltamos, assim, ao tema central de A Transcendência do Ego, isto é, se a consciência é
uma “seqüência encadeada de explosões” “para fora de si”, no mundo, haveria espaço para a
constituição de um Ego Transcendental enquanto um habitante da consciência? O que Sartre
43
Idem, Que é a Literatura?, p. 33.
Ibidem, p. 34.
45
Ibidem, p. 34.
44
30
defende é que a consciência lança aquilo que chamamos de Ego no mundo, “na poeira seca do
mundo, sobre a terra rude, entre as coisas”.
É patente que o distanciamento de Sartre em relação à necessidade de um Eu
Transcendental habitante da consciência, como aparece na concepção de Husserl, e que, em
última instância unificaria a própria consciência, fomenta um arranque mais autônomo em sua
filosofia no que tange à sua filiação à fenomenologia do mestre alemão.
3. A incompatibilidade entre a presença do Eu na consciência e a intencionalidade
Sob a perspectiva sartriana, a intencionalidade aparece como algo incompatível com a
presença do Ego Transcendental na consciência. Se, como afirma Sartre, a consciência pode ser
definida como intencionalidade, então, como foi dito acima, há a “necessidade da consciência de
existir como consciência de outra coisa que não ela mesma”. 46 Entende-se, assim, a radicalidade
com que o filósofo francês se apropria da fenomenologia. Sob esse registro outro, a
fenomenologia assevera que é no mundo que devemos buscar um “nós mesmos”, “é na estrada,
na cidade, no meio da multidão, coisa entre coisas, homem entre homens”47 que devemos buscar
um “Eu”. Será justamente esta crítica à presença do Ego na consciência que Sartre tomará como
ponto de partida em A Transcendência do Ego.
A crítica sartriana remete-nos à tese segundo a qual haveria uma presença formal do Eu
[Je]48 na consciência, tal como aparece em Kant na famosa passagem de A Crítica da Razão
Pura acerca do Eu Penso cartesiano: “[...] o Eu Penso deve poder acompanhar todas as minhas
representações”.49 O que Sartre questiona aqui é se de fato podemos concluir que existe um Eu
que habite todos os nossos estados de consciência, tal como um núcleo unificador e de
constituição de significado do mundo. Assim, o filósofo destaca que, na frase de Kant, o “Eu
penso” aparece como algo que “deve poder acompanhar”, e não como algo que “acompanha”.
Daí, que Kant, sob o viés da leitura sartriana, teria visto que existem momentos de consciência
marcados pela ausência do Eu. Nas palavras do filósofo:
46
Idem, Uma Idéia Fundamental da Fenomenologia de Husserl: a Intencionalidade, p. 57.
Ibidem, p. 57.
48
Sartre estabelece uma distinção entre Eu [Je] e eu [Moi], sendo que o primeiro representa a unidade das ações,
e o segundo concerne à unidade dos estados e das qualidades, em outras palavras, o Je representa a parte ativa da
consciência refletinte e Moi a parte passiva da consciência refletida.
49
SARTRE, Jean Paul, A Transcendência do Ego, p. 43.
47
31
[...] o Eu Penso deve poder acompanhar todas as nossas representações, mas
acompanha-as de fato? [e, portanto,] [...] o Eu que nós encontramos na nossa
consciência é tornado possível pela unidade sintética das nossas representações ou é
antes ele que unifica de fato as representações entre si? 50
Com efeito, o problema sartriano assim se configura: existe de fato um Eu formal na
consciência? Ora, toda a argumentação subseqüente, desenvolvida pelo autor neste texto, se
empenhará em negar a existência tanto formal quanto material de um Eu na consciência.
Se Sartre recorre à fenomenologia como contraposição à necessidade de um Eu Penso
que acompanhe todas as nossas representações, tal sustenta a referida tese kantiana, é para, em
seguida, negar que a filosofia de Husserl necessite de um Eu transcendental enquanto um
pressuposto formal que garanta a unidade da experiência.51 No entanto, afirmar que o Eu
transcendental não é necessário à consciência implica conseqüências que não podem ser
negligenciadas:
1ª se o campo transcendental não tem um Eu [Je], ele se torna, portanto, impessoal ou
“pré-pessoal”, isto é, o Eu que fundamenta o campo transcendental deixa de existir;
2ª o Eu [Je] só aparece no nível da humanidade, ou seja, como a face ativa do eu, e que,
portanto, representa apenas uma das faces do Eu [Moi];
3ª o Eu Penso pode acompanhar nossas representações, pois surge sobre um fundo de
unidade prévia, o qual não é criado por ele;
4ª Impõe-se a questão acerca da possibilidade de se conceber consciências absolutamente
impessoais, o que nos conduz a interrogar: a personalidade é mesmo necessária?52
O objetivo de Sartre é claro: ao contestar a existência de fato do Ego na consciência, o
que o filósofo busca é apresentá-la como algo impessoal. Esse caráter impessoal é correlato de
sua imaterialidade; só faria sentido postular uma consciência pessoal se ela fosse entendida como
algo material e substancial, isto é, como um objeto, e é justamente a isso que o filósofo quer se
contrapor. Para Sartre é o “Eu” que aparecerá como um objeto psíquico transcendente, como se
esclarecerá no decorrer deste estudo.
50
Ibidem, p. 45.
Segundo Sartre, Husserl afirma a necessidade de uma Eu [Je] por detrás da consciência: “Depois de ter
considerado que o EU [Moi] era uma produção sintética e transcendente da consciência (nas Logische
Untersuchungen) retornou, nas Ideen, à tese clássica de um Eu [Je] transcendental que estaria como que por detrás
de cada consciência, que seria estrutura necessária dessas consciências cujos raios (Ichstrahl) cairiam sobre cada
fenômeno que se apresentasse no campo de atenção.” Ibidem, p. 47.
52
Ibidem, p. 46.
51
32
Sob essa perspectiva, Damon Moutinho afirma que “nem do lado transcendente, que é
unidade real, não representação, nem do lado imanente, que é fluxo auto-unificante, não fluxo
unificado, o Eu transcendental parece necessário”.53 Consequentemente, para Sartre, não só a
existência de um Eu unificante e individualizante é inútil, como representaria a própria “morte
da consciência”. Mais claramente, se a consciência se define pela intencionalidade, e se,
portanto, “ela transcende-se a si mesma” unificando-se ao “se escapar”, então é coerente
entendermos que a unidade das consciências encontra-se no objeto, o que significa, nas palavras
do próprio autor, que “o objeto é transcendente às consciências que o apreendem e é nele que se
encontra sua unidade”.54
Assim, torna-se desnecessária a existência de um centro de unidade no fluxo contínuo que
caracteriza o Eu, pois ele se unifica a si mesma sempre que se lança como consciência dos
objetos transcendentes. E, como dissemos, é justamente como “fluxo contínuo em direção às
coisas” que a consciência se define, ou seja, ela é pura translucidez. Portanto, se é “a consciência
que torna possível a unidade e a personalidade do meu Eu [Je]”, conseqüentemente, “o eu
transcendental não tem razão de ser”.55 Daí a conclusão sartriana: “todos os resultados da
fenomenologia ameaçam entrar em ruína se o Eu não é, do mesmo modo que o mundo, um
existente relativo, quer dizer, um objeto para a consciência”.56
Dessa asserção decorrerá que a consciência se configurará em dois graus. Enquanto
consciência irrefletida ou de primeiro grau, quando a consciência não é objeto para si, ou seja,
quando o “objeto está face a ela com a sua opacidade característica, mas ela, ela é pura e
simplesmente consciência de ser consciência desse objeto”57. Nesse caso, o objeto está fora da
consciência. Mas é relevante ressaltar que, para Sartre, mesmo no âmbito desta consciência de
primeiro grau, duas formas de consciência coexistem. Trata-se, por um lado, da consciência
tética do objeto; por outro, da consciência não tética de si mesma. Logo, “toda consciência
posicional do objeto é ao mesmo tempo consciência não-posicional de si”.58 É exatamente nesse
sentido que se deve entender o clássico exemplo “da contagem de cigarros” presente em O Ser e
o Nada. Conquanto um pouco longo é pertinente citá-lo, visto que vem caracterizar exatamente a
concepção do filósofo que buscamos aqui explicitar:
53
MOUTINHO, Luiz Danton, Sartre: Psicologia e Fenomenologia, p. 29.
SARTRE, Jean Paul, Op. Cit., p. 47.
55
Ibidem, p. 48.
56
Ibidem, p. 49.
57
Ibidem, p. 48.
58
Idem, O Ser e o Nada, p. 24.
54
33
Se conto os cigarros desta cigarreira, sinto a revelação de uma propriedade
objetiva do grupo de cigarros: são doze. Esta propriedade aparece à minha consciência
como propriedade existente no mundo. Posso perfeitamente não ter qualquer
consciência posicional de contar os cigarros. Não me “conheço enquanto contador”.
Prova é que crianças capazes de fazer espontaneamente uma soma não podem explicar
em seguida como o conseguiram: os testes de Piaget que mostraram isso constituem
excelente refutação da fórmula de Alain: “Saber é saber que se sabe”. E, todavia, no
momento em que estes cigarros revelam-se a mim como sendo doze, tenho consciência
não tética de minha atividade aditiva. Com efeito, se me perguntam “o que você está
fazendo?”, responderei logo: “contando”; e esta resposta não remete somente a
consciência instantânea que posso alcançar pela reflexão, mas àquelas que passaram
sem ter sido objeto de reflexão, àquelas que são para sempre irrefletidas (irréfléchies)
no meu passado imediato.59
É por isso que, como veremos, Sartre chega à conclusão de que não há primazia da
reflexão sobre a consciência refletida, mas antes que a consciência irrefletida é condição de
possibilidade para a consciência reflexiva. Assim, para Sartre, se no âmbito da consciência de
primeiro grau ou irrefletida a consciência não é objeto de reflexão para si, ou seja, ela não visa a
si mesma reflexivamente, ainda assim ela continua sendo consciência não tética de si, pois “toda
existência consciente existe [sempre] como consciência de existir”,60 ainda que seja enquanto
consciência não-posicional de si. Por isso o filósofo passa a empregar o “de” entre parênteses
para indicar que não se trata de uma idéia de conhecimento. Conclui então: “Esta consciência
(de) si não deve ser considerada uma nova consciência, mas o único modo de existência possível
para uma consciência de alguma coisa”.61
A consciência aparece ainda enquanto consciência de segundo grau ou reflexiva. Este
seria o âmbito no qual apareceria o Ego e que analisaremos mais atentamente na discussão
subsequente. A consciência reflexiva configura o lugar onde a própria consciência aparece
enquanto um objeto para a consciência; ela é a consciência que se volta reflexivamente para a
própria consciência. Cumpre notar, no entanto: mesmo aqui a consciência (de) si ou irrefletida é
um pressuposto, ou seja, mesmo quando a consciência é objeto para a própria consciência o
âmbito pré-reflexivo persevera como sua condição prévia e necessária.
Uma interrogação irrompe: como se efetiva, enfim, nessa processualidade que caracteriza
a consciência, o delineamento desse Ego que se faz objeto? Essa problemática nos conduz, de
pronto, à segunda parte do texto de Sartre, a qual poderíamos denominar “positiva”, porquanto é
nela que o filósofo reflete sob o processo efetivo de constituição do ego.
59
Ibidem, p. 24.
Ibidem, p. 25.
61
Ibidem, p. 25.
60
34
4. A constituição do Ego
a) O ato reflexivo e a origem do Eu
A chave para se compreender a constituição do Ego se encontra na distinção realizada por
Sartre entre a consciência “pré-reflexiva” ou irrefletida, e a consciência reflexiva. Assim, é o ato
reflexivo [conscience réfléchissante] que dá origem ao Eu [Moi] a partir da consciência refletida
[réfléchie]62. Desse modo, é no âmbito da consciência que reflete sobre a consciência refletida
que se dá o surgimento do Ego. Nas palavras de Sartre:
Assim, [...] o eu não deve ser procurado nem nos estados irrefletidos de
consciência nem por detrás deles. O Eu [moi] aparece apenas com o acto reflexivo e
como correlato noemático de uma intenção reflexiva. 63
No exato momento em que escrevo este texto, por exemplo, tenho consciência de que
escrevo; entretanto, nesse momento, não há um Eu habitando minha consciência, a consciência
aparece enquanto consciência não posicional [não-tética]64 de si e consciência posicional [tética]
do objeto transcendente. O objeto transcendente está fora da consciência, e é no mesmo “ato que
ela o põe e o apreende”. Quando a consciência se encontra no “mundo dos objetos”, consciência
pré-reflexiva, são os objetos que garantem sua unidade, não existe um Eu. Não há, pois, sentido
em falarmos de um Eu no âmbito da consciência irrefletida ou pré-reflexiva. Nessa esfera, a
consciência é pura relação com o mundo.
Por fim, essa concepção aparece sintetizada no texto do filósofo:
Ele [o Eu] não aparece nunca senão por ocasião de um ato reflexivo. Nesse
caso, a estrutura complexa da consciência é a seguinte: há um ato irrefletido de reflexão
sem Eu [Je] que se dirige para uma consciência refletida [réfléchie]. Esta torna-se o
objeto da consciência refletinte [réfléchissante], sem deixar, todavia, de afirmar o seu
objeto próprio (uma cadeira, uma verdade matemática, etc.). Ao mesmo tempo, um
objeto novo aparece, o qual é ocasião de uma afirmação da consciência reflexiva e não
está, por conseguinte, nem no mesmo plano da consciência irrefletida (porque este é um
absoluto que não precisa da consciência reflexiva para existir) nem no mesmo plano do
62
Sartre apresenta uma distinção bastante sutil entre o ato reflexivo [conscience réfléchissante] ou consciência
refletinte e a consciência refletida [réfléchie]. O ato reflexivo é, portanto, o momento em que a consciência
refletida surge como objeto da consciência refletinte, ou seja, é o momento em que a consciência aparece como
consciência de consciência.
63
SARTRE, Jean Paul, A Transcendência do Ego, p. 58.
64
Sartre mantém a terminologia adotada por Husserl, no qual “posicional” aparece como sinônimo de “tético”, do
grego thetikós, que significa “próprio para colocar ou estabelecer”. PERDIGÃO, Paulo. Existência e Liberdade: Uma
Introdução à Filosofia de Sartre, p. 56.
35
objeto da consciência irrefletida (cadeira, etc.). Este objeto transcendente do ato
reflexivo é o Eu [Je].65
Assim, não resta dúvida de que, para Sartre, é no âmbito da consciência reflexiva ou de
segundo grau que o objeto transcendente que é o Eu se constitui.
b) Um parêntese acerca de O Ser e o Nada66
Como anteriormente mencionado, as teses fundamentais defendidas por Sartre em A
Transcendência do Ego jamais seriam abandonadas pelo filósofo. Sendo assim, cabe retomar
algo do que foi apresentado acerca desta compreensão dentro da terminologia presente em O Ser
e o Nada.
Podemos dizer que o Ego não pertence ao domínio do Para-Si, e, visto que o Ego se
configura como um “objeto psíquico transcendente”, devemos entendê-lo como um Em-Si. Ora,
se o Ego estivesse na consciência – o que o definiria como um fundamento à translucidez que
caracteriza o Para-Si –, isso seria o mesmo que introduzir nela um núcleo de opacidade e,
portanto, negar aquilo que a consciência tem de mais fundamental que é a intencionalidade.
Assim, o que Sartre quer dizer quando se refere à máxima de Husserl segundo a qual toda
consciência é consciência de algo, é que não há consciência que não seja posicionamento de um
objeto transcendente, o que equivale a dizer que a consciência não tem conteúdo. Nesse sentido,
os objetos não estão na consciência, nem mesmo a título de representação, “uma mesa está”, por
exemplo, “no espaço, junto à janela, etc”67 e não na consciência. Daí decorre que o Ego apareça
à consciência “como Em-Si transcendente, um existente do mundo humano, e não como [algo]
da consciência”.68 Devemos ressaltar que o Eu se dá como tendo sido antes da consciência,
asserção que, na terminologia de A Transcendência do Ego, significa dizer que “há um ato
irrefletido de reflexão sem Eu [Je] que se dirige para uma consciência refletida [réfléchie]”.69
Ou seja, é no âmbito da consciência de segundo grau ou reflexiva que o Ego se constitui.
65
SARTRE, Jean Paul, Op. Cit., p. 55. Grifo nosso.
Nosso objetivo ao apresentar alguns dos conceitos abordados em O Ser e o Nada é unicamente explicitar a
compreensão que o filósofo tem do processo de constituição do Ego em A Transcendência do Ego. Por isso, não
nos aprofundaremos em suas análises, como no caso do circuito de ipseidade, ou então, da relação com o outro,
por exemplo.
67
SARTRE, Jean Paul, Op. Cit., p. 22.
68
Idem, O Ser e o Nada, p. 155.
69
Idem, A Transcendência do Ego, p 55.
66
36
Entretanto, o que Sartre destaca é que toda consciência é consciência posicional de algo e,
simultaneamente, consciência não posicional (de) si.70
O momento da reflexão consiste no ato em que o Para-Si torna-se consciente de si
mesmo. Deste modo, mesmo quando a consciência se põe a si mesma como objeto psíquico
transcendente, ela é consciência posicional [tética] da consciência refletida e consciência não
posicional de si mesma. A consciência reflexiva, no entanto, aparece como uma nova
consciência, pois, se é a consciência pré-reflexiva (ou seja, consciência sem Eu) que põe a
consciência refletida, isso significa que a consciência está em contínuo processo de autoconstituição e que o cogito pré-reflexivo é um pressuposto necessário à reflexão.
Assim, não há primazia da reflexão sobre a consciência refletida: esta não é
revelada a si por aquela. Ao contrário, a consciência não-reflexiva torna possível a
reflexão: existe um cogito pré-reflexivo que é condição [de possibilidade] do cogito
cartesiano.71
Desvela-se, assim, a impossibilidade de que o Para-Si seja dotado de uma dimensão
objetiva. Postular que a consciência pré-reflexiva consiste num pressuposto à consciência
reflexiva equivale a afirmar que é só através da consciência refletida que a consciência reflexiva
constitui o Ego. Em outras palavras, trata-se de uma espécie de artifício, segundo o qual a
consciência volta-se para o passado e institui um Eu como autor das ações do Para-Si, que, por
sua vez, se caracteriza como pura relação com o mundo. Em suma, o Para-Si nunca é, pois
configura-se como pura relação espontânea com o Em-Si, ou seja, está sempre em processo, em
relação com o mundo. Sob esse prisma, é apenas enquanto algo que já se realizou que posso
colocar um Eu, ou seja, a partir da consciência refletida. É nesse sentido que se entende que o Eu
é dado antes da consciência reflexiva.
Ora, se é só no passado que o Eu se constitui, e se esse Eu se constitui com algo forjado
pela consciência reflexiva, então talvez seja pertinente relacionar esse processo àquilo que ficou
caracterizado dentro da filosofia sartriana como a má-fé. Pois, afirmar o caráter processual da
consciência, seu constante estado de transcendência, não implica necessariamente negar sua
imanência. Dito de o outro modo, é preciso assumir os atos da consciência intencional, mas sem
com isso negar sua transcendência, sem recair na má-fé. Analisemos brevemente esse ponto, o
qual não tem nesse momento um papel privilegiado, mas que reaparecerá em nosso percurso.
70
O uso do “de” entre parênteses busca indicar que no âmbito da consciência de primeiro grau ou pré-reflexiva
não há relação de conhecimento entre o “Eu penso” e a consciência, ou seja, o que há é uma relação imediata de si
a si.
71
SARTRE, Jean-Paul, O Ser e o Nada, p. 24.
37
O que melhor caracteriza o modo de ser da consciência é ser consciência do nada de ser
que a define, o que equivale a dizer que o homem nunca poderá ser plenamente. O homem, de
fato, só é capaz de realizar-se negativamente. Comenta Bornheim “há um duplo fato a ser
reconhecido: de um lado, o homem não coincide plenamente com o ser; mas de outro, tende
necessariamente ao ser”.72 Por um lado, o homem é puro processo, pois o Para-Si é pura relação
com o mundo; por outro, ele tende ao ser, ele quer realizar-se enquanto ser. Desse modo, o que
caracteriza a má-fé é o processo pelo qual a consciência nega seu caráter mais fundamental que é
a própria negação. Destarte, quando o homem nega sua negatividade e busca fundamentar sua
natureza em algo fixo, ele foge de sua condição fundamental e atribui a sua condição a natureza
das coisas, assumindo-se como um Em-Si, pleno de ser e acabado. É nesse sentido que o filósofo
afirma que “a má-fé [...] tem por objetivo colocar-se fora do alcance; é fuga”.73
Um exemplo bastante elucidativo abordado por Sartre é o do garçom que representa para
si mesmo o papel de garçom, isto é, que se configura para si enquanto um ser acabado e com isso
nega o estatuto processual da consciência. Quando esse indivíduo pensa-se a si mesmo como
algo plenamente constituído, análogo a um objeto, ele nega seu caráter negativo, fugindo da
transcendência e reduzindo sua condição humana ao plano da pura imanência. É justamente
nesse sentido que Sartre analisa o fenômeno da sinceridade, diz ele: “o homem sincero se faz o
que é para não sê-lo”, ou seja, ele se constitui como coisa. Assim, aquele que “se confessa
malvado trocou sua inquietante „liberdade-para-o-mal‟ por um caráter inanimado de malvado:
ele é mau, adere a si, é o que é”. 74 Consideramos que esta breve alusão ao problema da má-fé
permite evidenciar o modo pelo qual essa temática perpassa, ainda que implicitamente, o
problema da constituição do Ego.
Em face do acima exposto, a presença do outro se configura como fonte reveladora. O
outro aparece como aquele que desvela a “impossibilidade que sou de ser objeto, salvo para
outra liberdade”. É nesse sentido que o filósofo afirma:
Não posso ser objeto para mim mesmo porque sou o que sou; abandonado aos
próprios recursos, o esforço reflexivo rumo à dissociação resulta em fracasso, sempre
sou recuperado por mim. E quando afirmo ingenuamente que é possível que eu seja um
ser objetivo sem me dar conta disso, pressuponho implicitamente, por isso mesmo, a
existência do outro; porque, como eu poderia ser objeto se não fosse para um sujeito? 75
72
BORNHEIM, Gerd, Sartre: Metafísica e Existencialismo, p. 50.
SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 113.
74
Ibidem, p. 112.
75
Ibidem, p. 347.
73
38
Na esteira de Husserl, que pensa a relação com a alteridade como uma relação de intersubjetividade, ou seja, que entende que a totalidade do “mundo” [Lebenswelt] é constituída pela
subjetividade de todos os homens, Sartre vê no outro, mais especificamente no olhar do outro, a
figura central da constituição do Ego. Observa Paulo Perdigão, “Sartre inverteu a perspectiva da
experiência do „encontro com o Outro‟: não basta pensar o Outro como „aquele que é visto por
mim‟, mas devemos pensá-lo também ou sobretudo como „aquele que me vê‟, aquele que invade
minha subjetividade”.76 Ou ainda:
[...] o Outro é um ser que me vê, assim como eu o vejo. Essa dimensão de “ser
visto” condiciona mesmo a existência do Outro em mim: só posso negar ser o Outro
porque me sei visto por ele. Esse saber acha-se na origem da minha consciência e
antecede a aparição do Outro. Sofremos a experiência perpétua de “ser objeto de olhar”
porque faz parte do nosso modo de ser original a dimensão de “existir sob o olhar”. É
por saber-me, a priori, “visto pelo Outro” que posso, ao encontrá-lo pela primeira vez,
reconhecê-lo como consciência alheia, cuja existência real não ponho em dúvida. 77
Sob essa perspectiva, talvez não haja formulação mais precisa do que aquela descrita pelo
próprio Sartre em Entre Quatro Paredes [Huis Clous], quando o personagem Garcin profere a
emblemática frase: “O inferno são os outros”.78 No contexto da peça, essa máxima explicita
exatamente o sentido que o olhar do outro carrega enquanto fonte reveladora da
“impossibilidade que sou de ser objeto [para mim], salvo para outra liberdade”. Ao mesmo
tempo em que o olhar do outro me constitui enquanto objeto transcendente, ele me revela a
impossibilidade do Ego de se constituir para mim mesmo. É nesse sentido ainda que se entende a
esclarecedora afirmação de Perdigão: “[...] a aparição do Outro e a consciência de “ser visto”
provocam uma brusca modificação no Para-Si. Como que “arrancado” para fora, o Para-Si
adquire uma dimensão de exterioridade e passa a situar-se no mundo”79. Ou seja, é só diante do
olhar de outrem que eu posso aparecer enquanto um ser acabado, pois o Para-Si é, de si para si,
sempre puro projeto de si mesmo, inacabado. É justamente enquanto negação da minha
consciência enquanto fluxo contínuo que os outros se mostram “infernais” para mim.
A leitura de Perdigão coaduna-se com a de Bornheim, quando este afirma que, para
Sartre, “a realidade humana é para-si-para-outro”. A intersubjetividade é descrita pelo autor da
seguinte forma: “[...] entre eu e o outro há uma „ligação fundamental‟, e que nela se manifesta a
modalidade de presença do outro irredutível ao conhecimento que tenho de um objeto. A
76
PERDIGÃO, Paulo, Existência e Liberdade: Uma Introdução à Filosofia de Sartre, p. 136.
Ibidem, p. 139.
78
SARTRE, Jean-Paul, Entre Quatro Paredes, p. 125.
79
PERDIGÃO, Paulo, Existência e Liberdade: Uma Introdução à Filosofia de Sartre, p. 142.
77
39
experiência decisiva aqui reside no fato de que o outro me vê”.80 É justamente nesse sentido que
se entende as palavras de Sartre citadas por Bornheim:
[...] tenho de repente, consciência de mim enquanto escapo a mim mesmo, não
enquanto sou fundamento de meu próprio nada, mas enquanto tenho meu fundamento
fora de mim. Só sou para mim como pura devolução ao outro. [Assim:] O olhar é, antes
de mais nada, um intermediário que remete de mim a mim mesmo. 81
A condição humana, entendida como “para-si-para-outro”, traz como pressuposto
fundamental a relação com o outro; o olhar do outro, desse modo, ele realiza a mediação
necessária entre a minha consciência e a constituição daquilo que o filósofo entende por Ego.
Para Sartre, a consciência nunca é em sentido forte, ela está sempre em um fluxo
temporal contínuo em relação ao mundo. Destarte, ela talvez fosse mais bem definida com a
expressão “estar-sendo-ter-sido”,82 o que acaba por ressaltar a noção de temporalidade tão cara à
filosofia existencialista do autor. Para esta filosofia, a temporalidade não deve ser entendida
como um conjunto de instantes, pois o que a caracteriza é a duração. Afirmar a espontaneidade
ou a intencionalidade da consciência é o mesmo que dizer que aquilo que chamamos de instantes
se encontram em processo no fluxo contínuo que é o que caracteriza a consciência.
Dizer que a consciência se constitui enquanto fluxo temporal implica considerar que a
relação que se estabelece entre o passado, o presente e o futuro é dada simultaneamente, ou seja,
“o passado é ligado ao presente e a um certo futuro, ele não está isolado, encerrado, sem
relação, pois ele é passado deste presente”.83 Decorre disto que a temporalidade se estabeleça
como a estrutura interna da consciência, ou seja, para a consciência, ser é o mesmo que passar –
como quando digo: eu sou egoísta, rancoroso, etc. Daí o fato de que é sempre na consciência
refletida (passado) que a consciência reflexiva pode buscar constituir o Ego. É justamente a
estrutura temporal da consciência que possibilita a constituição do Ego. Compreendemos, enfim,
que é sempre no passado que encontro um Eu.
Cabe agora acompanhar de modo mais estrito o movimento do raciocínio do filósofo no
que concerne à constituição do Ego, tal como delineado em A Transcendência do Ego.
c) Estrutura dual da consciência e os estados como unidade de consciências
80
BORNHEIM, Gerd, Sartre: Metafísica e Existencialismo, p. 86.
SARTRE, Jean-Paul, O Ser e o Nada, apud Bornheim, Gerd, Sartre: Metafísica e Existencialismo, p. 86.
82
Tomamos por empréstimo aqui a expressão que dá título a um livro de Hilda Hilst.
83
MOUTINHO, Luiz Damon S. Sartre: Existencialismo e Liberdade, p. 69.
81
40
Neste ponto, tal como foi dito acima, faz-se necessário ratificar que a consciência se
apresenta de duas formas possíveis, a saber, a consciência de primeiro grau ou pré-reflexiva, que
é pura espontaneidade, pura relação de si para si, e a consciência de segundo grau ou reflexiva,
que é consciência que visa a si própria enquanto objeto intencionado. Evidencia-se, desse modo,
a estrutura dual da consciência, que deve sempre ser considerada no âmbito irrefletido e no
âmbito reflexivo. Entretanto, já o sabemos, Sartre afirma algo que podemos chamar de primado
do âmbito irrefletido da consciência, o que significa que o irrefletido tem prioridade ontológica
sobre o refletido. No dizer do autor: “a consciência irrefletida deve ser considerada autônoma.
É uma totalidade que não tem necessidade nenhuma de ser completada”.84
Como se constitui, então, o Ego? Onde encontrar o Eu? Certamente, assinala Sartre, “o
eu não deve ser procurado nem nos estados irrefletidos de consciência nem por detrás deles”.85
Convém aludir à famosa referência ao “ódio a Pedro”, exemplo emblemático do modo pelo qual
um estado aparece à consciência reflexiva. Antes, porém, cumpre abrir um breve parênteses para
explicitar o que Sartre entende por “estados”. Segundo Moutinho, os “estados” aparecem como
unidades transcendentes das consciências, os estados surgiriam então como núcleos unificadores
de espontaneidades, tal como no clássico exemplo que analisaremos a seguir. No entanto, antes,
é imprescindível ressaltar que é no âmbito reflexivo que os estados aparecem, ou seja, eles se
configuram à medida que uma consciência põe uma consciência. No âmbito irrefletido, a
consciência é pura relação com o mundo, é puro movimento espontâneo em direção às coisas.
Nesse sentido o ódio a Pedro apareceria como um estado “unificador daqueles vividos para a
reflexão impura”.86 Compreendemos melhor o argumento de Moutinho na seguinte passagem de
A Transcendência do Ego de Sartre:
Ele [o estado] dá-se-lhe e constitui o objeto de uma intuição concreta. Se odeio
Pedro, o meu ódio de Pedro é um estado que posso apreender pela reflexão. Este estado
está presente diante do olhar da consciência reflexiva, ele é real.87
Quando sinto uma “profunda perturbação de repulsa e cólera” ao ver Pedro, isso
significa que sou uma pessoa rancorosa? Ora, se me limito a dizer que no momento em que vejo
Pedro sinto por ele uma violenta repulsa, isto significa que não ultrapasso aquilo que mostra
minha consciência reflexiva. No entanto, se, para além do vivido, busco definir aquilo que sou,
84
SARTRE, Jean-Paul, A Transcendência do Ego, p. 57.
Ibidem, p. 58.
86
Retomaremos a noção de reflexão impura a seguir.
87
SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 59.
85
41
por conseqüência, nego aquilo que caracteriza a consciência, isto é, sua espontaneidade. Quando
faço afirmações que ultrapassam esse caráter dinâmico da consciência, acabo por engajá-la em
todas as suas manifestações futuras, e, como Sartre insiste, introduzir qualquer núcleo de
opacidade na consciência é negar sua intencionalidade, é cristalizá-la.
É nesse sentido que devemos entender a afirmação do filósofo, segundo a qual “Este
estado está presente diante do olhar da consciência reflexiva, ele é real”, ou seja, os estados,
enquanto unidades de vividos aparecem, para a reflexão impura, como unidades transcendentes
das consciências. O Ego não se dá no momento em que sinto a repulsa por Pedro, ele não é da
mesma natureza que a consciência; antes, constitui o próprio estado que aparece como a unidade
transcendente de consciências. Assim, os “direitos da reflexão” aparecem limitados, ou seja, “é
certo que Pedro me repugna, mas é e ficará sendo duvidoso que eu o odeie. Com efeito, esta
afirmação extravasa infinitamente o poder da reflexão”.88 Vemos, pois, que se ultrapasso o
limite dessa consciência particular e atribuo a ela um sentido transcendente, a reflexão se reveste
de um caráter duvidoso.
Logo, para o filósofo existem dois modos da reflexão para se atribuir um sentido às
consciências. O primeiro, consiste num modo adequado ou puro e se configura quando ela não
ultrapassa o limite da descrição. Um segundo modo, inadequado ou impuro, delineia-se quando a
reflexão se reveste de um caráter de “dubitabilidade”, porquanto ultrapassa a esfera do vivido.
Assim:
O Ego não é, diretamente, unidade das consciências refletidas. Existe uma unidade
imanente destas consciências: é o fluxo da consciência que se constitui ele mesmo como
unidade dele mesmo – e uma unidade transcendente: os estados e as ações. O Ego é
unidade dos estados e das ações – facultativamente, das qualidades. Ele é unidade de
unidades transcendentes e é ele mesmo transcendente.89
É ele mesmo, o Ego, um objeto transcendente para a consciência. Deste modo, o esforço
fundamental de Sartre consiste em negar que o Ego seja o “pólo X” que serviria de suporte aos
fenômenos psíquicos. Mesmo que a tendência seja apresentar o Ego como anterior e como
princípio que garanta a unidade da consciência ele não é uma coisa, uma solidez que garanta o
alicerce de suas representações.
d) A pseudo-espontaneidade do Ego
88
89
Ibidem, p. 60.
Ibidem, p. 59.
42
No entanto, como sustentado anteriormente, o Ego tende a se dissimular e a aparecer
como sendo anterior à consciência e como princípio de sua unidade. E isso acontece porque “a
consciência projeta sua própria espontaneidade sobre o objeto Ego para lhe conferir o poder
criador que lhe é absolutamente necessário”.90 O que ocorre é uma inversão, de modo que
aquilo que é constituinte – ou seja, a consciência (ativa) – aparece como constituído e aquilo que
é constituído – isto é, o Ego (passivo) – aparece como constituinte. O Eu, enquanto um objeto
psíquico transcendente da consciência, não se confunde com a própria consciência. O que ocorre,
então, é uma cisão. Por um lado temos a consciência, esfera transcendental, lugar da
espontaneidade e da pura relação com o mundo, âmbito que pertence à fenomenologia; por outro
lado, temos o Ego, o Eu psíquico, reservado à psicologia. Com esta cisão, o Ego aparece em
oposição à consciência como opacidade. Assim, o Ego, de acordo com Sartre, “aparece à
reflexão como um objeto transcendente que realiza a síntese permanente do psíquico”.91 A
consciência mantém todas as suas características e o Ego surge como um objeto da consciência
com toda a carga de opacidade que isso implica. Daí deriva o seu caráter passivo.
O que Sartre salienta, ao referir-se a essa duplicidade do ego, é que a relação que se
estabelece entre o Ego e “as qualidade, estados e ações não é nem relação de emanação [...]
nem uma relação de atualização [...]. É uma relação de produção poética [...] ou, se se quiser,
de criação”.92 Se o Ego é um objeto apreendido nos estados e ações vividos, ele é também
constituído ou criado pelo movimento reflexivo e não por uma fonte unitária e substancial.
Assim, se é a consciência que espontaneamente constitui os estados e as ações, é o “saber
reflexivo” que ulteriormente postula o Ego. Daí a legitimidade em se afirmar o primado da
consciência, ou seja, simultaneamente o Ego é apreendido e constituído no plano da
reflexividade. A consciência realiza uma espécie de inversão fundamental quando, em vez de
apresentar o Ego como algo constituinte, apresenta o Ego constituído como anterior às
consciências. Ocorre que o processo efetivo, já o sabemos, é o inverso disso. Sartre assim se
expressa:
[...] o Ego é um objeto apreendido, mas também constituído pelo saber reflexivo.
É um foco virtual de unidade e a consciência constitui-o em sentido inverso ao que a
90
Ibidem, p. 70.
Ibidem, p. 65.
92
Ibidem, p. 67.
91
43
produção real segue: o que é primeiro realmente são as consciências, através das quais
se constituem os estados, depois, através destes, o Ego. 93
Essa dimensão criadora da consciência à qual Sartre alude, é comentada por Moutinho
com bastante propriedade, quando o autor considera que a constituição do ego no plano da
reflexão impura é feita de forma invertida. Segundo o autor, a consciência é apresentada como
derivada do Ego, enquanto que, na realidade, é a consciência que constitui o Ego. “O Ego, objeto
e portanto passivo, aparece paradoxalmente como produtor, como espontâneo, no momento
mesmo de sua constituição”.94 Ou, mais adiante, no mesmo texto: “A consciência reflexiva
inverte a produção real, numa espécie de projeção de sua própria espontaneidade no objeto
Ego, para fugir de si mesma”.95 Esse processo de inversão, tal com mencionado pelo
comentador, sugere que o Ego é produtor das consciências, ou seja, subverte o verdadeiro
processo no qual é a consciência espontânea que possibilita a constituição do Ego. Conclui-se,
portanto, que, para Sartre, a espontaneidade do Ego enquanto unidade ou fonte criadora é uma
pseudo-espontaneidade, e que não pode ser confundida com a verdadeira espontaneidade que é a
da consciência, em sua infinita processualidade temporal. “A verdadeira espontaneidade [a da
consciência] deve ser perfeitamente clara: ela é o que produz e não pode ser nenhuma outra
coisa.96
Por conseguinte, uma nova cisão se configura: a separação entre o Ego e o mundo: “o
Ego é um objeto que não aparece senão à reflexão e que, por esse fato, está radicalmente
cortado do mundo. Ele não vive no mesmo plano”.97 Antes de nos debruçarmos sobre esta
segunda clivagem, detenhamo-nos no caráter fictício do autoconhecimento e da interioridade
subjetiva.
5. O Ego nunca é visto senão pelo canto do olho ou “Eu é um outro”
Tendo em vista todos estes pressupostos, – ou seja, que a unidade da consciência é dada
por seu caráter intencional; que a consciência transcendental é uma espontaneidade impessoal;
que há um primado do âmbito pré-reflexivo, isto é, da consciência em sua temporalidade; e, por
93
Ibidem, p. 69.
MOUTINHO, Luiz Danton, Sartre: Psicologia e Fenomenologia, p. 40.
95
Ibidem, p. 41.
96
SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 69.
97
Ibidem, p. 71.
94
44
fim, que o Ego transcendental é uma criação da consciência reflexiva – estamos prontos para
afirmar a impossibilidade para a consciência intencional de instituir e conhecer o Ego em sentido
forte, isto é, de forjar para si mesma uma unidade, um núcleo de unificação. Daí que o Ego se
configure, sob a perspectiva do filósofo, como algo “fugidio”. Qualificação que evidencia por si
mesma o quanto a concepção sartriana ultrapassa o âmbito epistemológico da fenomenologia
husserliana.
No intuito de aprofundar essa questão, vem a propósito a famosa frase de Rimbaud citada
por Sartre: “Eu é um outro”.98 Com base na argumentação até aqui tecida, podemos sustentar
que o Ego não pode ser o núcleo de unificação da consciência ou um substrato orientador de suas
ações. Mas detenhamo-nos no dizer de Rimbaud. O que significa propriamente dizer que “Eu é
um outro”? Ou, como o afirma Sartre, como compreender que é unicamente com o canto do
olho que podemos vislumbrar o Ego?
O avanço no movimento do texto A Transcendência do Ego é esclarecedor. Sartre busca
demonstrar que a consciência, tal como é – fluxo contínuo em direção à realização, mas que, no
entanto, não se realiza, posto que é justamente seu movimento que a caracteriza –, nunca será
capaz de instituir o Ego em sua completude; assim, este será sempre algo que nos permanecerá
desconhecido. Ou seja, é só a partir da perspectiva de um outro que podemos buscar alguma
compreensão do nosso Ego. Como afirmado anteriormente, é o outro que nos oferece
objetividade. O outro se apresenta simultaneamente como aquele que nos constitui e, por
conseqüência, como aquele que oferece um obstáculo ao movimento que define a consciência.
Assim, aquilo que chamamos, comumente, de “autoconhecimento” nada mais é do que um falso
conhecimento, pois pressupõe o ponto de vista do outro, sendo assim, “um ponto de vista
forçosamente falso”. Mais do que isso, o que fica evidente a partir desta configuração
apresentada por Sartre é que o Ego sempre se constitui “de fora para dentro”, ou seja, enquanto
um objeto transcendente qualquer seja para a própria consciência que se volta para si mesma,
seja no âmbito da alteridade. Não se trata de um processo de autoconhecimento, de uma
consciência que se volta para sua interioridade, mas antes, da consciência que se lança para fora
e busca constituir-se, e que, sob esse registro, o Ego se mostra obviamente como algo forjado.
Desta maneira, resta ao indivíduo interpretar os fatos objetivos que lhe concernem sob a
perspectiva do outro, o que significa dizer que em si mesmo o acesso ao meu Eu é interdito. Nas
palavras de Sartre:
98
Ibidem, p. 78.
45
Serei eu preguiçoso ou trabalhador? Decidirei, sem dúvida, se me dirigir àqueles
que me conhecem e lhes perguntar a sua opinião. Ou posso ainda colecionar os fatos
que me dizem respeito e tentar interpretá-los tão objetivamente como se se tratasse de
um outro. Mas seria inútil dirigir-me diretamente ao Eu [Moi] e tentar beneficiar da sua
intimidade para o conhecer. Pois é ela, ao contrário, que nos barra o caminho. Assim,
“conhecer-se bem” é, fatalmente, tomar sobre si o ponto de vista de outrem, quer dizer,
um ponto de vista forçosamente falso. 99
A citação acima vem, pois, ao encontro da afirmação de Rimbaud. Tomemos o exemplo
do amor. O que significa dizer que amo determinada pessoa, senão que a amo enquanto ela se
coloca como objeto transcendente do meu amor? O amor que sinto não é algo que eu tenha e que
me defina como um ser amante, e sim, algo do objeto transcendente que se mostra passível de ser
amado. O mesmo se dá no clássico exemplo do ódio a Pedro, ao qual já aludimos. Se digo que
sou rancoroso porque sinto um forte sentimento de repulsa ao ver Pedro, ultrapasso aquilo que a
vivência [Erlebnisse] me permite concluir. Se me defino como rancoroso, engajo as vivências
futuras que não necessariamente se manifestarão desse mesmo modo. Se, como diz Sartre, “o
Ego não é a totalidade real das consciências, mas uma unidade ideal de todos os estados e
ações”, ele aparece como “uma miragem perpetuamente falaz”. Engana-se, assim, quem pensa
poder “capturar” seu Ego de forma objetiva. Daí a asserção do filósofo, segundo a qual somos
“feiticeiros” de nós mesmos toda vez que consideramos o nosso Ego 100. Evidencia-se, assim, o
caráter de criação do âmbito reflexivo ao qual nos referimos acima. Outra vez, o autor:
[...] o Ego só aparece quando não o olhamos. É preciso que o olhar reflexivo se
fixe na <<Erlibnis>>, enquanto ela emana do estado. Então, por detrás do estado, no
horizonte, aparece o Ego. Ele não é nunca visto senão pelo canto do olho. Assim que
volto meu olhar para ele e que quero atingi-lo sem passar pela <<Erlibnis>> e o estado,
ele dissipa-se. É que, com efeito, ao procurar apreender o Ego por ele mesmo e como
objeto direto da minha consciência, recaio no plano irrefletido e o Ego desaparece com
o ato reflexivo.101
Em suma, o que o filósofo afirma é que toda vez que busco definir meu Ego nele mesmo
e diretamente, recaio no âmbito do irrefletido e, por isso, ele me escapa. Se permanecemos no
âmbito da terminologia de O Ser e o Nada, é como se o Para-Si buscasse se definir enquanto um
Em-Si, mas sem perder sua espontaneidade, ou seja, é como se tentasse constituir-se enquanto
um “Para-Si-Em-Si”, o que seria absurdo porque contraditaria a ordem mesma do humano. Seria
como se a consciência buscasse um núcleo duro de opacidade, mas sem, no entanto, perder seu
caráter de inacabamento. Fica clara a incoerência de tal concepção; sustentá-la seria o mesmo
99
Ibidem, p. 73. Grifo nosso.
Ibidem, p. 70.
101
Ibidem, p. 73-74. Grifo nosso.
100
46
que dizer que a consciência se quer inacabada e acabada ao mesmo tempo, objeto e fluxo
contínuo, positividade e negatividade simultaneamente. Definir-se enquanto rancoroso,
trabalhador, ou preguiçoso equivale a negar o caráter de inacabamento e fluidez que é justamente
aquilo que melhor caracteriza a consciência, a saber, a intencionalidade.
Não obstante, se frisamos até então o caráter transcendente da ontologia sartriana, é
preciso ratificar o elo entre tal transcendência e a imanência. O filósofo compreende que o
homem carrega uma dupla propriedade, qual seja, a de “ser facticidade e transcendência”
simultaneamente. E por isso “é preciso afirmar a facticidade como sendo transcendência e a
transcendência como sendo facticidade”.102 É nesse sentido que cabe resgatar a máxima
existencialista que concebe a “realidade humana como ser que é o que não é e não é o que é”.103
Daí o problema fundamental: Como o homem pode ser o que é, se seu modo de ser é ser
enquanto consciência de ser? Ou melhor, “Mas que somos, afinal, se temos a obrigação
constante de nos fazermos ser o que somos, se nosso modo de ser é dever ser o que somos?”104
A interrogação do autor evidencia que não se trata de negar a imanência, mas antes de assumi-la
de um modo transcendente, um vez que ela implica superação. Ou seja, se o homem de fato “é”,
ele não pode ser do mesmo modo que o Em-Si. De fato, o homem é sendo o que ele não é.
Assim, a consciência:
[...] é porque se faz, pois seu ser é consciência de ser. Mas isso significa que o
fazer sustenta o ser; a consciência deve ser seu próprio ser, nunca é sustentada pelo ser,
mas sim quem sustenta o ser no seio da subjetividade – o que significa, uma vez mais,
que está habitada pelo ser, mas não é o ser: ela não é o que é. 105
Novamente, as análises de Sartre acerca da má-fé fornecem alicerces para nossa
discussão. Em O Ser e o Nada o filósofo se utiliza do exemplo de um casal homossexual para
apresentar a simultaneidade entre o âmbito imanente e o âmbito transcendente da condição
humana. Com este célebre exemplo temos, por um lado, aquele que assume a sua condição de
forma análoga à do Em-Si, isto é, assume totalmente seu ser tal como um objeto, “sou
homossexual, tal como aquela mesa é uma mesa”. Desse modo, ele assume sua imanência, mas
se recusa a assumir a transcendência. Diz Sartre, “o homem sincero se constitui como coisa
exatamente a fim de escapar dessa condição de coisa”, assim o “homem sincero se faz o que é
102
SARTRE, Jean-Paul, O Ser e o Nada, p. 102.
Ibidem, p. 105.
104
Ibidem, p. 105.
105
Ibidem, p. 109.
103
47
para não sê-lo”.106 É como se ele dissesse, “sou isto e pronto, nada há a fazer”. Por outro lado,
aquele que afirma a transcendência negando a imanência se recusa a assumir seus atos. O que
equivale a colocar-se fora da história; desse modo, ele reconhece os fatos, mas se recusa a
assumir as conseqüências que deles decorrem. Este exemplo é importante, porque por meio dele
vemos o modo pelo qual a transcendência pode ser afirmada sem implicar uma negação da
imanência. Ou seja, o que Sartre busca explicitar é que ambos, o sujeito que afirma a imanência
ou aquele que afirma a transcendência, agem de má-fé. Assim, cumpre insistir: a má-fé se revela
quando um indivíduo busca colocar-se a si mesmo fora do alcance de seus atos, como se fosse
possível justificar sua condição por causas que lhe escapam. Eis uma forma de se esquivar da
condição humana e da responsabilidade que lhe é correlata. Daí a necessidade, assinala o autor,
de que todo homem afirme seus atos e o que ele é, mas não à maneira de uma essência, como se
algo a priori determinasse seu ser. É nesse sentido que devemos entender a afirmação de que
“sou a maneira do não ser”, ou seja, é preciso afirmar a imanência, mas afirmá-la como
transcendência. Em outras palavras, podemos dizer que o correlato necessário à liberdade é a
responsabilidade, pois a transcendência é o modo de ser do homem. Ao mesmo tempo, o homem
é responsável por suas ações justamente porque não pode negar sua imanência – ou sua
facticidade – exceto, claro, se agir de má-fé.
6. Crítica à idéia de interioridade: o eu e o mundo como objetos impessoais
Uma das conseqüências mais importantes da postulação da incompletude da consciência,
tal como o faz a filosofia sartriana, reside na negação de uma das idéias mais caras à tradição
moderna: a idéia de interioridade. Analogamente às conclusões de Wittgenstein e grande parte de
seus contemporâneos, embora por um caminho diametralmente oposto,107 Sartre chegará a uma
conclusão similar, ou seja, de que a idéia de interioridade, tal como desenvolvida por essa
tradição, não se sustenta. Para filósofo, o Ego é um objeto do mundo, um objeto transcendental
como qualquer outro, e, se como afirmamos acima, não temos um acesso privilegiado a esse
objeto, então o meu próprio Ego deixa de ser uma propriedade exclusiva minha.
106
Ibidem, p. 112.
É curioso notar que Wittgenstein, considerado como a principal influência do assim chamado positivismo lógico,
chega à uma conclusão análoga à de Sartre ao negar a interioridade. É sabido, no entanto, que o pensador
austríaco tem como referência as suas analises da filosofia da linguagem, enquanto Sartre busca apoio na tradição
moderna desde Descartes, chegando às análises fenomenológicas de Husserl.
107
48
Tradicionalmente, na esteira da concepção substancialista herdada da tradição cartesiana,
entende-se que o sujeito tem acesso privilegiado a seu próprio eu, pois se trata de uma mesma
substância. Daí afirmações como “só eu sei o que sinto”, tão criticadas por Wittgenstein, e que
denotam, segundo o autor, a afirmação da interioridade e, mais especificamente, do primado da
privacidade epistêmica.
Em Sartre, a problematização do Eu cartesiano é precípua. Como sustentado
anteriormente, o cogito cartesiano aparece como “núcleo essencial e substância”, a concepção
cartesiana implica a associação entre eu e substância ou entre eu e coisa. Em contrapartida,
sabemos que Sartre não aceitará a substancialização da consciência, pois isso implicaria negar a
intencionalidade, sua principal característica. Fica claro que Sartre, embora tome a subjetividade
como ponto de partida para a sua filosofia, supõe a constituição do eu no âmbito da consciência
de segundo grau, como foi dito acima, o que, portanto, contradita toda e qualquer tendência à
substancialização da consciência, bem como de uma suposta vida interior.
São esclarecedoras as considerações de Leopoldo e Silva quando aborda o tema em seu
ensaio A Transcendência do Ego: Subjetividade e Narrabilidade:
Como constatou Descartes, cada vez que penso, sou eu que penso – daí a
inseparabilidade, julgava Descartes, entre Eu e pensamento ou entre Eu e consciência.
Mas é preciso atentar também para o caráter reflexivo do cogito, isto é, para o fato de
que se trata de uma consciência “de segundo grau”. [ou seja, de uma consciência de uma
consciência] [...] a consciência da consciência é chamada de reflexionante e a outra de
refletida. Ora, se o cogito é obtido como resultado da reflexão, então o Eu do “Eu
penso” é o eu da consciência refletida e não da consciência reflexionante, isto é, o Eu
afirmado no cogito é o Eu que aparece como objeto para a consciência reflexionante. 108
O que é patente nesta afirmação – de que o “Eu penso é objeto da consciência refletida”
–, é que o cogito cartesiano nada mais é do que um objeto para a consciência, que se configura
como pura espontaneidade, e que não há nada aí que possa atestar qualquer espécie de núcleo de
opacidade na consciência. Nesse sentido, para Sartre, alerta-nos o comentador:
[...] o cogito afirma “demais”. A intuição do Eu não deveria ser suficiente para
sustentar o seu caráter fundante e unificador, quando afirmo, por exemplo: eu tenho
consciência dessa cadeira. Mais correto seria dizer: há consciência dessa cadeira, o
verbo indefinido indicando o campo transcendental e não o núcleo pessoal do Eu. 109
108
109
LEOLPOLDO E SILVA, Franklin, Ética e Literatura em Sartre: Ensaios introdutórios, p 40.
Ibidem, p. 41.
49
Destarte, a compreensão psicológica só poderia ser feita por analogia. De fato, se tenho
acesso privilegiado a minha interioridade, só eu sei o que sinto. Assim, quando digo que amo
alguém, só eu poderia estar certo se de fato amo determinada pessoa. Ou, como aparece no
exemplo do próprio Sartre, “[...] quando Paulo tenta compreender um estado psíquico de Pedro
[seu amor por alguém, por exemplo], ele não podia atingir este estado, cuja apreensão intuitiva
pertencia apenas a Pedro”.110 A despeito disso, a fenomenologia, ao menos como Sartre a
entende, rompe com essa tradição, pois, se meu Ego é um objeto do mundo como qualquer outro,
o “sentimento de Pedro não é mais certo para Pedro do que para Paulo”. Isso significa que: em
primeiro lugar, “o Ego não é propriedade da consciência, ele é o objeto”.111 Em definitivo, não
há nada na consciência, a consciência é nada, ela é colada ao mundo sem, no entanto, se
confundir com ela, e, por conseguinte, o Ego só pode estar fora; por isso mesmo, ele se revela tão
acessível a mim quanto para qualquer outro. Em face disso, nenhuma concepção substancialista
se sustenta, visto que “o Eu [Moi] não tem nenhum domínio sobre esta espontaneidade [a da
consciência], pois a vontade é um objeto que se constitui para e por esta espontaneidade”.112
Inferimos, pois, que o autoconhecimento do Ego, enquanto um objeto constituído, será coisa que
sujeito algum jamais logrará.
É sob essa perspectiva que Sartre encontra a solução para o problema do solipsismo. Se
meu Ego é um objeto transcendente como qualquer outro, o problema acerca da existência de
outros Egos não tem legitimidade alguma: “[...] o meu Eu [...] não é mais certo para a
consciência que o Eu dos outros”.113
Outro desdobramento da concepção sartriana acerca do Ego enquanto objeto psíquico
transcendente, ao qual devemos atentar, diz respeito à relação que se estabelece entre o Ego e o
mundo. Ou seja, quais são as conseqüências de se conceber o Eu [Moi] como “um existente
rigorosamente contemporâneo do mundo e cuja existência tem as mesmas características
essenciais que o mundo”?114
Ora, isso significa, em primeiro lugar, que tanto o mundo como o Eu [Moi] são objetos
transcendentais, o que revela a inconsistência da relação entre sujeito e objeto que caracteriza o
110
SARTRE, Jean-Paul, A Transcendência do Ego, p. 77.
Ibidem, p. 78.
112
Ibidem, p. 79.
113
Ibidem, p. 82.
114
Ibidem, p. 82.
111
50
pensamento moderno. Nas palavras do autor: “a dualidade sujeito-objeto, que é puramente
lógica, desaparece definitivamente das preocupações filosóficas”.115
Desse modo, não é nem o mundo que é constituído pelo o Ego e nem o Ego que é
constituído pelo mundo, é justamente a consciência que faz a ligação entre eles. Se a consciência
projeta no Ego sua espontaneidade, é no mundo que ela espontaneamente se projeta. Mais
precisamente, é através do poder criador falsamente atribuído ao Ego pela consciência, que a
consciência refletida ou o ato espontâneo da consciência, possibilita que a consciência de
segundo grau ou reflexiva crie o Ego e falsamente afirme seu primado. A consciência é, para
Sartre, “uma condição primeira e uma fonte absoluta de existência”. O que é o mesmo que dizer
que o âmbito pré-reflexivo é pressuposto do âmbito reflexivo e que não existiria Ego sem
consciência de primeiro grau. O que caracteriza uma relação de interdependência entre o Ego e o
mundo mediada e fundamentada pela consciência. Vejamos como essa relação é apresentada por
Sartre:
Esta consciência absoluta, quando é purificada do Eu, nada mais tem que seja
característico de um sujeito, nem é também uma coleção de representações: ela é muito
simplesmente uma condição primeira e uma fonte absoluta de existência. E a relação de
interdependência que ela estabelece entre o Eu [Moi] e o Mundo basta para que o Eu
[Moi] apareça como “em perigo” diante do Mundo, para que o Eu [Moi] (indiretamente
e por intermédio dos estados) retire do Mundo todo o seu conteúdo. 116
De fato, o mundo aparece como o horizonte que possibilita à consciência sua existência,
ou seja, é no mundo que o Para-Si se lança, é através do Em-Si que o Para-Si se realiza. Se a
consciência é um nada de consciência, se ela é pura relação com o mundo, é no mundo e através
da positividade que o caracteriza que a negatividade que fundamenta a consciência pode se
realizar. É desse modo que a filosofia de Sartre busca voltar-se para as coisas e é nesse sentido
que devemos interpretar a famosa passagem de seu artigo Uma Idéia Fundamental da
Fenomenologia de Husserl: a Intencionalidade, já citado no começo de nosso estudo.
Eis-nos libertados de Proust. Libertados ao mesmo tempo da “vida interior”; em
vão procuraríamos, como [Henri-Frédéric] Amiel, como uma criança que se aninha no
colo, as carícias, os mimos de nossa intimidade, pois afinal de contas tudo está fora,
tudo, até nós mesmos [ou seja, até mesmo nosso Ego]: fora, no mundo, entre os outros.
Não é em sabe-as lá qual retraimento que nos descobrimos: é na estrada, no meio da
multidão, coisa entre coisas, homem entre homens. 117
115
Ibidem, p. 83.
Ibidem, p. 83.
117
Idem, Uma Idéia Fundamental da Fenomenologia de Husserl: a Intencionalidade, p. 57.
116
51
Podemos considerar, enfim que, passando pela apropriação da fenomenologia, a crítica
sartriana à concepção substancialista de “vida interior” se desdobra na afirmação de uma
filosofia que se volta para o homem concreto em suas vivências no mundo, para além de todo
ego objetivado, para além de toda e qualquer interioridade.
O último ponto que cabe retomar e que servirá de mote ao nosso próximo capítulo, diz
respeito àquela função essencial que Sartre atribui ao Ego, que consiste em “encobrir à
consciência sua própria espontaneidade”.118 Como foi dito anteriormente, a consciência, que é
pura espontaneidade e pura relação de si para si, atribui sua espontaneidade ao Ego, e assim,
exerce uma inversão fundamental pois faz com que ele apareça como criador ao invés de criado.
Essa inversão fundamental acarretará algumas implicações morais, como ressalta Leopoldo e
Silva numa passagem que sintetiza o problema:
[...] a consciência constitui o Ego e nele se projeta como para escapar de si
mesma, da própria espontaneidade que, por não se reportar a nenhum solo fundador, é
angustiante pelo que apresenta de instável e movediça. Há, portanto, uma questão ética
envolvida na representação do Ego; há uma motivação moral para que representemos o
Ego como condição de nós mesmos, aquilo a partir do qual somos o que somos. Isso
conferiria à existência um fundamento estável ao qual poderíamos remeter a expressão
subjetiva: opções e compromissos. É angustiante pensar que o que somos se constitui
fora de nós, na contingência das coisas e da história. 119
Se a consciência constitui o Ego como uma forma de escapar de si mesma, o que, em
outras palavras, seria o mesmo que negar a espontaneidade e liberdade que a define, fica
evidente o desdobramento ético que essa fuga acarreta. Partindo destas implicações morais, o
comentador levanta a seguinte questão: se o Ego só é constituído posteriormente pela
consciência, se não há nada a priori que o defina, em que medida o sujeito pode narrar-se a si
mesmo a sua existência? Este questionamentos nos conduz ao reconhecimento de que a
narratividade requerida pelo comentador deve se apresentar não mais como um obstáculo, mas
antes, a acima de tudo, como “um modo privilegiado de buscar a verdade da existência” e
também, como “uma forma mais autêntica de narrar, em que a expressão da subjetividade
esteja mais diretamente atravessada pelas exigências éticas da representação humana”.120
Nesse ponto, Leopoldo e Silva alude às análises de Saint-Sernin em Philosophie et
Fiction.121 Neste texto, Saint-Sernin afirma que as teses defendidas por Sartre em A
118
Idem, A Transcendência do Ego, p. 80
LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Ética e Literatura em Sartre: Ensaios introdutórios, p 45.
120
Ibidem, p. 45.
121
Ibidem, p. 46.
119
52
transcendência do Ego, além das já mencionadas conseqüências filosóficas, apresentam
desdobramentos no campo da narrativa literária, de sorte que torna-se necessário, na sugestiva
expressão do autor, a “reinvenção da escrita”. É este quadro, portanto, que servirá de ponto de
partida às nossas análises subseqüentes.
53
CAPÍTULO II
Existência, filosofia, literatura: onde o limite?
"Mas, como fatalidade e liberdade se identificam, como o destino é sempre a
construção prática de uma vida e de uma história, a responsabilidade é assumida como
corolário de uma liberdade da qual não se pode fugir. Esta é a razão pela qual é
necessário que o escritor 'abrace estritamente sua época; ela é sua única chance; ela é
feita para ele e ele é feito para ela'. Este é o significado concreto da situação, como
hora e como lugar da liberdade, mas ao mesmo tempo como escolha absoluta, isto é,
como invenção de si e do seu tempo."
(Franklin Leopoldo e Silva)
“Só porque viver não é relatável. Viver não é vivível. Terei que criar a vida. E sem
mentir. Criar sim, mentir não. Criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter
a realidade”.
(Clarice Lispector)
1. Introdução
Inequivocamente, Jean-Paul Sartre foi um escritor polivalente. Sua obra abarca desde
tratados filosóficos, passando por textos teatrais, ficcionais, biografias, ensaios e até mesmo
textos para periódicos e jornais engajados. Na filosofia, particularmente, O Ser e o Nada, um
tratado de ontologia fenomenológica, constitui a sua obra maior. Ante produção tão diversificada
é comum que se espere uma ênfase maior em alguma dessas áreas da produção intelectual. Não
obstante, não é o que ocorre com este autor múltiplo, que logrou destaque em todos esses
gêneros. É possível constatar, contudo que a maior parte dos infindáveis comentadores
inspirados por esse pensamento atribuíram maior relevância aos trabalhos de caráter filosófico,
chegando inclusive a considerar sua obra ficcional como uma “expressão simplificadora da obra
teórica”.122 Eis uma afirmação que nos incita a interrogar o que caracteriza a relação entre
filosofia e literatura na obra do mestre francês.
Aproximar filosofia e literatura não é algo novo. Não obstante, ainda são poucos aqueles
autores que não se mostram resistentes quando tal aproximação é proposta. Deste modo, todo
122
PERDIGÃO, Paulo, Existência e Liberdade: Uma Introdução à Filosofia de Sartre, p, 19.
54
trabalho que pretenda abarcar essa perspectiva deve, primeiramente, justificar-se. Tratando-se de
um autor como Sartre, para o qual esta relação está no cerne de sua produção, é imperativo,
mesmo em trabalhos que não lidem diretamente com o problema, passar pelo tema. Desse modo,
o que buscamos neste capítulo é explicitar de que maneira esta relação se estabelece na obra
deste autor. Ou seja, qual a relevância da criação ficcional dentro do itinerário existencialista?
Por que Sartre lança mão da literatura para realizar sua filosofia? Em outras palavras, como se dá
a relação entre literatura e filosofia para o pensador? As respostas a essas questões, juntamente
com a análise precedente acerca da natureza do ego, constituirão os alicerces para nossa incursão
pela A Náusea.
Assim, se desde o início do pensamento filosófico a discussão acerca da relação entre a
criação ficcional e a reflexão filosófica está presente, mesmo que implicitamente, no caso de
Sartre essa discussão ganha estatuto central dentro de sua produção filosófica. Partindo da
problemática do papel da criação ficcional dentro de sua obra, pode-se entender que a literatura
tem nela a função de ilustrar conceitos filosóficos, tal como Paulo Perdigão o afirma no prefácio
de seu livro, Existência e Liberdade: Uma Introdução à Filosofia de Sartre. O comentador
sustenta que, neste universo teórico, os “romances e peças teatrais serviram como expressão
simplificadora da obra teórica”.123Aqui se impõe o problema: o que Sartre faz, sob essa
perspectiva, não seria, então, uma instrumentalização da literatura? Ante a afirmação do
comentador citado, tendemos a supor que, em Sartre, a literatura não passa de recurso útil. Essa é
também a posição de Gerd Bornheim que, no final de seu livro sobre Sartre, afirma: “[...] Sartre
defende uma concepção instrumental da palavra e compreende a língua como uma técnica”.124
Observação com a qual, enfim, o próprio Sartre parece concordar: “a prosa é utilitária por
essência: [assim] eu definiria de bom grado o prosador como um homem que se serve das
palavras”.125
No entanto, não é essa a leitura que faríamos, assim como não é esse o enfoque que
gostaríamos de defender. Se Sartre defende que a prosa, por ser um instrumento de comunicação,
deve engajar-se, é também Sartre quem diz:
Lembro, com efeito, que na „literatura engajada‟, o engajamento não pode, em
nenhum caso, fazer esquecer a literatura e que nossa preocupação deve ser a de servir à
123
Ibidem, p, 19.
BORHEIM, Gerd, Sartre: Metafísica e existencialismo, p.283.
125
SARTRE, Jean-Paul, O que é Literatura?, p. 18.
124
55
literatura infundindo-lhe sangue novo, assim como servir à coletividade tentando lhe
oferecer a literatura que lhe convém. 126
Sob essa outra perspectiva sustentada pelo próprio filósofo, parece-nos que não há essa
tendência a instrumentalizar a literatura, e, portanto, cabe-nos colocar a questão acerca do papel
da criação ficcional na obra sartriana. Sob esse prisma, adquire relevância a seguinte afirmação
do autor: “ninguém é escritor por haver decidido dizer certas coisas, mas por haver decidido
dizê-las de determinado modo. E o estilo decerto, é o que determina o valor da prosa”.127 Ou
seja, fazer literatura é antes de tudo assumir um estilo, uma posição no mundo; no limite, fazer
arte.
Parece-nos, portanto, que dizer simplesmente que Sartre realiza uma instrumentalização
da literatura conduz a uma simplificação do problema e a uma minimização do lugar ocupado
pela criação literária em sua obra e em seu pensamento. Assim, nesta aproximação entre essas
duas esferas do pensar e do criar, nosso primeiro problema concerne ao modo pelo qual se
estabelece a relação entre a reflexão filosófica e a criação ficcional na produção sartriana. Posto
isso, resta-nos ainda perscrutar por que Sartre lança mão da literatura. Eis os problemas que
constituirão a pauta das análises subseqüentes.
2. Vizinhança comunicante: a simultaneidade entre a obra filosófica e a literária
Mais do que indagar se a literatura não é uma forma de ilustrar teses filosóficas, o que,
sob a nossa perspectiva, caracterizaria uma instrumentalização da obra de arte, uma outra
questão adquire relevância no caminho que teceremos a seguir. Trata-se de interrogar em que
medida a reflexão filosófica, se tomada sob o registro da linguagem técnica que almeja a
univocidade, dá conta de expressar aquilo que se busca. Mais claramente: quais são os limites da
linguagem filosófica? Qual a relação que se estabelece entre a filosofia e a literatura, para Sartre,
no que concerne à problematização do seu objeto mais crucial, qual seja, a condição humana?
Nessa direção, Sartre ressalta a incapacidade da reflexão filosófica em oferecer ao
homem uma imagem capaz de desvelar-lhe sua própria condição. É característica fundamental da
filosofia existencialista se contrapor à maneira como tradicionalmente a metafísica lida com a
126
Idem, Présentation de “Les Temps Modernes”. Apud LEOPOLDO E SILVA, Franklin. Literatura e experiência
histórica em Sartre: o engajamento. In: Filosofia e Crítica: Festschrift dos 50 anos do curso de filosofia da Unijuí.
127
SARTRE, Jean-Paul, O que é Literatura?, p. 22.
56
existência. Ou seja, Sartre se contrapõe às concepções filosóficas que se ocupam das essências
imutáveis por detrás das coisas, e que assim negligenciam o homem concreto historicamente
condicionado. O filósofo busca, pois, uma filosofia que se ocupe do homem concreto lançado em
determinado contexto histórico, em determinada situação, sem negar a liberdade da ação
humana. Logo, o método fenomenológico oferece o sustentáculo para a criação daquilo que
Sartre chamou de ontologia fenomenológica, ou seja, uma filosofia na qual o homem, pensado
em sua existência concreta, esteja no centro das preocupações teóricas. No entanto, mesmo sob
essa chave filosófica, o pensamento teórico e conceitual apresenta-se como insuficiente para
desvelar ao homem sua condição histórica. Isso não implica que o filósofo negue o conceito
enquanto ferramenta basilar de sua filosofia, mas, como veremos, esta insuficiência abre as vias
pelas quais se estabelece a relação de complementaridade entre o âmbito conceitual e o ficcional
de sua obra.
A filosofia fenomenológica, a qual, aos olhos do filósofo, deve descrever o homem, tem
como recurso privilegiado o conceito. Se ela descreve a condição humana, o faz teoricamente,
abstratamente, e, por conseqüência, à distância; ao contrário da literatura que retrata o homem
concreta e individualmente. Mas deparamo-nos aqui com uma dupla insuficiência: por um lado,
há a representação abstrata e conceitual, à qual a existência concreta escapa; por outro, mesmo
que a literatura ofereça um reflexo do homem concreto ao próprio homem, ela não é capaz de
representá-lo conceitualmente. Se a literatura coloca o homem diante de sua própria condição,
ela faz isso ao particularizar aquilo que aparece abstratamente no âmbito conceitual, o que
implica um afastamento em relação ao âmbito teórico. Na filosofia, mesmo quando o objeto não
se distingue da literatura, como é o caso dessa filosofia fenomenológica sartriana, o instrumento
continua sendo o conceito. No caso da literatura, esse lugar é ocupado pela imagem. É ela que
poderá oferecer a experiência particular da condição existencial do homem, tal como veremos
adiante de modo mais atento.
É justamente a partir deste quadro que podemos compreender o modo pelo qual o filósofo
apresenta, em Les Écrivains en Personne, o caráter dramático do pensamento filosófico. A
filosofia, por si só, não estuda o indivíduo enquanto tal, ela não mergulha e não nos dá a ver a
sua existência como efetivamente vivida e, ao mesmo tempo, tem como objeto a existência
concreta. Daí decorre a necessidade de que o filósofo lance mão da criação ficcional. “Hoje, a
filosofia é dramática”, diz Sartre. Com entender essa afirmação?
Como mencionamos acima, sob a perspectiva existencialista, o filósofo deve se ocupar da
condição humana em sua relação concreta com o mundo, pois o homem está lançado na história;
57
ele se faz na e para a história. É nesse sentido que devemos entender a famosa referência à Marx
que Sartre fazia com freqüência: “A história faz o homem e o homem faz a história”.128 Esta
afirmação reverbera igualmente sobre a criação literária. Sartre afirma que, na literatura, se
“cada frase escrita não ressoa a todos os níveis do homem e da sociedade, ela não significa
nada. A literatura de uma época é a época digerida por sua literatura”.129 A filosofia não
escapa a essa correlação entre o tempo vivido e a construção do pensamento, de sorte que ela se
depara com a urgência de encontrar um modo outro de teorizar. Numa palavra, a linguagem
filosófica deve tornar-se dramática.
Como entender essa proposta? O primeiro ponto que se evidencia dentro da perspectiva
existencialista é o necessário rompimento com a metafísica tradicional e com suas análises
abstratas. Sartre pretende, pois, ocupar-se da ação humana, do homem concreto. Mas qual a
singularidade da ação humana? O que é o homem enquanto agente, enquanto liberdade que se
constrói ao se escolher e, ao se escolher, constrói a história? Ao enfrentar tais questões, torna-se
imprescindível para o filósofo instituir uma forma de pensar que abarque o homem em ato, em
meio às contradições de seu contexto histórico. De modo mais claro, configura-se a necessidade
de um pensamento filosófico que já não se atenha ao puramente abstrato ou que busque as
essências ou leis para além do homem, mas que se volte de fato para a existência, mergulhando
nas contradições intrínsecas à condição humana, refletindo sobre o sujeito que age no mundo. O
homem, sob esta perspectiva, “representa seu drama” enquanto agente e ator na exata medida
em que ele vive o drama das “contradições de sua situação” histórica. Eis o registro no qual
Sartre defende uma filosofia dramática:
Hoje, penso que a filosofia é dramática. Não se trata mais de contemplar a
imobilidade das substâncias que são o que são, nem de encontrar as regras de uma
sucessão de fenômenos. Trata-se do homem – que é ao mesmo tempo um agente e um
ator – que produz e representa seu drama, vivendo as contradições de sua situação até
o estilhaçamento de sua pessoa ou até a solução de seus conflitos. Uma peça de teatro
(épico – como as de Brecht – ou dramático), é a forma mais apropriada, hoje, para
mostrar o homem em ato (ou seja, o homem, simplesmente). E a filosofia, de um outro
ponto de vista, pretende se ocupar deste homem. É por isso que o teatro é filosófico e a
130
filosofia é dramática.
128
SARTRE, Jean-Paul, Les Écrivains en Personne, p. 30. Tomamos como critério para as citações em língua
estrangeira a tradução no corpo do texto seguida da reprodução do texto original em nota de rodapé. “L’histoire
fait l’homme et l’homme fait l’histoire” (nossa tradução). A passagem referida aparece da seguinte maneira no
texto do próprio Marx: “as circunstâncias fazem os homens tanto quanto os homens fazem as circunstâncias”
(MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã, p. 36.)
129
Ibidem, p. 15. “[...] chaque phrase écrite ne résonne pás à tous lês niveaux de l’homme ET de La société, elle ne
signifie rien. La littérature d’une époque, c’est l’époque digérée par sa littérature” (nossa tradução).
130
Ibidem, p. 13. Grifo nosso. “Aujourd'hui, je pense que la philosophie est dramatique. Il ne s'agit plus de
contempler l'immobilité des substances qui sont ce qu'elles sont, ni de trouver les règles d'une sucession de
58
Destarte, evidencia-se que a filosofia tem como objeto privilegiado aquele que foi desde
sempre o tema da literatura, qual seja, a existência e, portanto, a realidade humana e histórica,
ou, se se preferir, situada. É por isso que Sartre afirma que, para a literatura, “o objeto total que
figura em um romance, é um objeto humano e que não é nada sem seus significados
humanos”.131 Ou seja, esse objeto não é nada fora da história. Vale insistir: “A literatura de uma
época, é a época digerida por sua literatura”.
Do mesmo modo que o teatro – como enfatiza Sartre na citação acima –, a literatura,132
em especial a prosa, se ocupa do homem concretamente. Em ambos, a dramaticidade 133 da
existência é diretamente enfrentada; em ambos, não seria exagero dizer, o homem encontra-se
em ato. À medida que a filosofia fenomenológica reconhece que seu tema não é outro senão
aquele encenado nos palcos e abraçado pela literatura, a conexão com a história, que é imanente
aos romances e às artes cênicas, torna-se também sua. Nesse sentido, o comentário de Leopoldo
e Silva, em um interessante artigo acerca da relação entre os romances de Sartre e sua filosofia,
vem ao encontro da perspectiva que procuramos defender aqui: “Penso que não nos
desviaríamos do pensamento de Sartre se entendêssemos que aquilo que aqui é dito a respeito
do teatro pode ser dito de toda a literatura: a literatura é filosófica e a filosofia é dramática”.134
Atentemos para a última afirmação do comentador, a qual nos instiga a pensar que há algo de
filosófico na literatura, assim como há algo de literário na filosofia, mesmo que as diferenças
entre as duas não se dissipem. Expliquemos. Ao problematizar a concretude da existência, ou
seja, ao dramatizar, a literatura – como o teatro – revela uma dimensão que não deixa de se
aproximar da filosofia, sem que deixe de ser literatura. O mesmo poderia ser dito a respeito de
uma filosofia que toma a existência como objeto primordial. Mais precisamente, a oposição entre
cada homem e a história, entre a liberdade – no exercício da qual os homens são forçados a
phénomènes. Il s'agit de l'homme - qui est à la fois un agent et un acteur - qui produit et joue son drame, en vivant
les contradictions de sa situation jusqu'à l'éclatement de sa personne ou jusqu'à la solutions de ses conflits. Une
pièce de théâtre (épique - comme celles de Brecht - ou dramatique), c'est la forme la plus appropriée, aujourd'hui,
pour montrer l'homme en acte (c'est-à-dire l'homme, tout simplement). Et la philosophie, d'un autre point de vue,
c'est de cet homme-là qu'elle prétend s'occuper. C'est pour cela que le théâtre est philosophique et que la
philosophie est dramatique” (nossa tradução).
131
Idem, Op. Cit., p. 20. “*...+ l’objet total qui figure dans um roman, c’est un objet humain et qui n’est rien sans ses
significations humaines” (nossa tradução).
132
Excetuando-se o caso da poesia que, para Sartre, não exerce a mesma função que a prosa e o teatro dentro da
criação ficcional.
133
A referência à dramaticidade em Sartre visa ressaltar o caráter dramático que a existência adquire na filosofia
existencialista e, mais que isso, como veremos, busca frisar a necessidade ao filósofo existencialista de lançar mão
da criação ficcional.
134
LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Romance e Filosofia no Existencialismo de Sartre, p. 76.
59
atuarem como autores de si mesmos – e as circunstâncias objetivantes que a constrangem, ou
seja, o drama da existência comumente presente nas obras literárias, e mais plenamente na
literatura contemporânea a Sartre, torna-se intrínseco ao pensar filosófico. Ao refletir acerca
desses dilemas concretos, a filosofia torna-se dramática – ainda que não coincida com o estilo
literário do drama. De fato, não há, num texto filosófico, personagens em perpétua tensão, não há
o esforço artístico de ficcionalizar o dilema entre a liberdade e os limites impostos pela história,
ou seja, não há o empenho em se criar situações de dramaticidade, tal como ocorre na criação
literária. O que atesta o afastamento entre a literatura e a filosofia. Inequivocamente, entretanto,
o objeto comum estabelece entre elas uma intrigante complementaridade, a despeito da diferença
de forma com que se debruçam sobre ele; diferença que não deixa, por vezes de ser transgredida
operando-se um contágio dos estilos: “[...] daí a presença de elementos literários em O ser e o
nada, por exemplo, e a presença de elementos filosóficos nas obras de ficção, como acontece nos
textos de Os caminhos da liberdade”.135
Notadamente, ao atribuir à filosofia um caráter dramático, evidenciando sua proximidade
com a literatura, somos imediatamente inseridos no problema acerca da relação entre essas duas
esferas da produção intelectual. Assim, torna-se lícito indagar se o que aproxima os dois gêneros
legitimaria, por exemplo, a utilização de recursos literários em uma obra filosófica. Sob a
perspectiva do filósofo, a resposta a essa questão é categoricamente negativa, porquanto esse tipo
de atitude atesta a confusão de dois gêneros que permanecem distintos. Como já assinalado, para
Sartre, a despeito de suas limitações, o instrumento da linguagem filosófica continua sendo o
conceito, enquanto que a literatura é obra imaginária e, por conseqüência, trabalha com a
multiplicidade significativa da palavra. Assim, enquanto a linguagem filosófica deve buscar, na
medida do possível, certa estabilidade significativa no uso da palavra, a linguagem ficcional
trabalha com a multiplicidade de significados que uma frase, uma imagem, por exemplo,
comporta. Adiante, retomaremos mais detalhadamente essa problemática, mas, no momento,
vêm a propósito os dizeres do autor:
Se me deixo escrever uma frase que se quer literária em uma obra filosófica,
tenho sempre um pouco a impressão de que vou enganar meus leitores: que ocorre um
abuso de confiança. Escrevi uma vez esta frase – que se manteve porque tinha um
aspecto literário: “O homem é uma paixão inútil”. Um abuso de confiança. Deveria ter
escrito isso com palavras estritamente filosóficas. [...] São [literatura e filosofia],
portanto, duas coisas bastante diferentes.136
135
Idem, Ética e literatura em Sartre: Ensaios Introdutórios, p. 242
SARTRE, Jean-Paul, L’Écrivain et sa Langue, p. 56. “Si je me laisse aller à écrire une phrase qui soit litéraire dans
une oeuvre philosophique, j'ai toujours un peu l'impression que là je vais un peu mystifier mon lecteur: il y a abus de
136
60
Essa passagem atesta que, para Sartre, literatura e filosofia não se confundem. Justamente
porque esses gêneros são diferentes, o filósofo considera um abuso de confiança prometer ao
leitor um texto conceitual e recorrer a recursos literários para expressar sua filosofia. No entanto,
lembremos que temos aqui formas distintas de abordar um mesmo problema ou objeto, de modo
que essa distinção em si mesmo pode ser a chave da complementaridade entre dois registros
fundamentalmente diversos. Mais precisamente, é por serem distintas, a criação ficcional e a
reflexão filosófica, que torna-se necessário ao filósofo voltar-se para a literatura, de sorte que
logre expressar perspectivas que a filosofia, desde que permaneça coerente com sua natureza,
não alcança. Sob a perspectiva sartriana, quando se faz filosofia, busca-se a objetividade, a qual é
apreendida pelo leitor que deve seguir o fio do raciocínio construído. A literatura, por sua vez,
convida o leitor a participar do processo de significação daquilo que é expresso, incitando-o a
empregar sua liberdade num exercício imaginário que é peculiar à obra ficcional.
Conforme as considerações até aqui tecidas, vemos que entre filosofia e literatura as
diferenças são concomitantes aos aspectos que as aproximam. Mas se as distinções entre filosofia
e literatura nos são familiares, o que incomoda as perspectivas mais tradicionais, defensoras
sistemáticas da separação entre os territórios, é a interdependência entre esses dois âmbitos, tal
como pode ser apreendida na filosofia sartriana, sem que o autor titubeie ante a necessidade de
estabelecer distinções. Voltemos, assim, à questão da complementaridade. Vimos que a filosofia,
tradicionalmente, segundo Sartre, trata o homem de forma conceitual e abstrata, mas desde que a
existência venha ocupar um lugar primordial no interesse filosófico, torna-se necessário abarcálo concreta e individualmente, imbricado na história. O compromisso da linguagem filosófica
com a estabilidade significativa, sua contraposição à multiplicidade de significados que a
linguagem ficcional implica, torna-a insuficiente para dar conta de seu objeto. Daí a necessidade
de que o filósofo se manifeste por essa outra via, qual seja, a literária. E isso, evidentemente, não
significa simplesmente ilustrar teses filosóficas. Muito mais radicalmente, trata-se de
compreender que a literatura diz acerca do objeto da filosofia coisas que a filosofia não é capaz
de dizer. Assim, ela “diz e não diz as mesmas coisas”. Ou seja, a literatura apresenta o existente
em processo, enquanto liberdade concreta. Ao encenar o drama humano, em sua concretude, o
texto literário nos dá a ver o homem que se constrói a partir de suas escolhas ao mesmo tempo
confiance. J'ai écrit une fois cette phrase - on l'a retenue parce qu'elle a un aspect littéraire: <<L'homme est une
passion inutile>>, abus de confiance. J'aurais dû dire ça avec des mots strictement philosophiques. [...] Ça fait donc
deux choses très différentes” (nossa tradução).
61
em que tece história, enquanto agente da situação em que está inscrito. É por isso, então, que
“uma peça de teatro [ou, como frisamos, uma obra literária][...] é a forma mais apropriada,
hoje, para mostrar o homem em ato (ou seja, o homem, simplesmente)”. Nesse sentido, vale
insistir: são esses também os horizontes perseguidos por uma filosofia fenomenológica, os quais,
entretanto, jamais serão plenamente alcançados, uma vez que a filosofia – mesmo à deriva da
tradição – não pode se desvencilhar de sua ferramenta mais crucial, qual seja, a linguagem
conceitual.
Evidencia-se, assim, que se Sartre não se esquivou do registro conceitual da filosofia, ele
também não se furtou a explicitar seus limites, estabelecendo, à medida que construía sua obra, a
necessária complementaridade entre sua obra ficcional e sua obra predominantemente filosófica.
Muito mais radicalmente do que produzir uma filosofia que se serve de instrumentos literários
com finalidades ilustrativas, o que seria, aos seus olhos, um embuste, o filósofo efetivamente
enveredou pelas duas vias do pensar, ou seja, empenhou-se igualmente na criação filosófica e na
criação literária. Daí que Leopoldo e Silva considere que a relação entre literatura e filosofia na
obra de Sartre se caracterize por uma “vizinhança comunicante”, o que torna necessário tomar
sua obra filosófica conjuntamente com sua obra literária. Isto, nas palavras do comentador,
significa que:
Entendemos que o centro de irradiação desse projeto determina a relação entre
filosofia e literatura como uma vizinhança comunicante, e é responsável pela diferença e
pela adequação recíproca dos dois modos da dualidade expressiva. Com isso, queremos
dizer que a expressão filosófica e a expressão literária são ambas necessárias em Sartre
porque, por meio delas, o autor diz e não diz as mesmas coisas.137
Deparamo-nos, enfim, com a interdependência ou com o enlace entre literatura e filosofia
na obra de Sartre. Nesta relação de verdadeira coexistência entre ambas, digamos assim, a
“experiência ficcional” desempenha o papel de particularizar conceitos universais, enquanto que
a “reflexão filosófica”, por sua vez, universaliza a situação particular, ressaltando a noção de
historicidade. Entrevemos aqui o tema da separação entre a ontologia fenomenológica de Sartre e
a metafísica tradicional. Mais do que se ocupar com as implicações entre o âmbito abstrato
conceitual e o âmbito particular concreto – coisa que a própria fenomenologia, em certa medida,
já realiza – o que a criação ficcional faz é retirar o próprio indivíduo do âmbito abstrato e lançálo em sua situação concreta e particular. É por isso que, por intermédio da literatura e da
filosofia, Sartre “diz e não diz as mesmas coisas”. Se a literatura expressa o universal
137
LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Ética e Literatura em Sartre: Ensaios Introdutórios, p. 12.
62
concretamente, ela simultaneamente explicita o caráter contingente da existência humana, o que
implica retirá-lo do âmbito abstrato em que a filosofia o lançou. O ponto de partida da criação
ficcional é a experiência subjetiva, ou seja, a situação concreta em que o homem se encontra face
a face com sua existência particular. Entretanto, ao se explicitar na existência concreta, o
particular focado pela criação literária remete-nos à universalidade da situação objetiva que
concerne a todos os homens. É por isso que o comentador sustenta: “a compreensão das
vivências individuais pela via da ficção só atinge o plano da existência concreta porque insere o
drama existencial particular na estrutura universal do ser da consciência”.138
É porque o drama ficcional lança o homem em sua situação particular que as vivências
individuais atingem a “estrutura universal do ser da consciência”, ou seja, é justamente ao
lançar o homem em sua condição existencial particular que a literatura pode desvelar ao homem
a condição existencial de todos os seus contemporâneos. Decorre daí, talvez, a razão pela qual
Sartre se refere aos seus romances como uma forma legítima de se vivenciar os problemas
referentes à situação histórica de determinado homem. Nesse sentido, é possível “sustentar os
nossos pensamentos pelas experiências fictícias e concretas que são os romances”.139 Os
romances aparecem como uma forma de lançar os homens em sua situação histórica concreta
através da experiência ficcional que caracteriza a prosa. Parece, portanto, que a criação
romanesca constitui uma forma legítima de se vivenciar os problemas de determinada situação
histórica através da experiência fictícia e concreta que a literatura é capaz de proporcionar.
A literatura adquire, pois, esse caráter vivencial, ou seja, ela deve se ocupar do homem
imbricado na história. Numa mesma direção, Sartre diz que, no tocante à filosofia, “não se trata
mais de contemplar a imobilidade das substâncias que são o que são, nem de encontrar as
regras de uma sucessão de fenômenos”. Isso significa que a filosofia existencialista, tal como a
literatura, deve se ocupar do próprio homem em sua dinâmica com a vida, distanciando-se das
preocupações de ordem puramente “metafísicas”, ou seja, desvinculadas das situações concretas.
Em outras palavras, poderíamos dizer que Sartre instaura uma ontologia que pretende se ocupar
do homem em sua relação efetiva com o mundo. No entanto, trata-se ainda de uma ontologia,
mas de uma ontologia do concreto, à qual aludimos no primeiro capítulo deste estudo, ao
trabalharmos com a relação entre o ser do fenômeno e o fenômeno do de ser. Com a ontologia
assim concebida, ou seja, buscando seus fundamentos no concreto, o absoluto passa a residir no
relativo e a metafísica mergulha na história. Sob esse prisma, torna-se lícito asseverar que, em
138
139
Ibidem, p. 13.
SARTRE, Jean-Paul, O que é a literatura?, p. 165.
63
Sartre, não encontramos uma metafísica clássica que se ocupa do estudo do ser enquanto ser;
mas, de fato, deparamo-nos com uma metafísica, ancorada na idéia de que a unidade do
fenômeno será dada pelo próprio mundo justamente porque há o ser, tal como exposto no
capítulo anterior. Sob essa perspectiva, o filósofo se refere à literatura como “o lugar do
universal singular ou o lugar do universal concreto” em contraposição ao lugar do “universal
abstrato” representado pela filosofia clássica.140 Nesse registro, a fenomenologia se apresenta
como o método privilegiado dessa filosofia, porquanto, tal como a literatura, busca abarcar o
homem em sua relação com o mundo. Afinal, a consciência está no mundo.
É também sob essa perspectiva que Saint-Sernin, ao comentar a relação entre filosofia e
literatura em Sartre, afirma que “entre filosofia e ficção, a relação não é nem exterior nem
acidental; é uma relação de inerência”.141 Mas em sua análise, esse autor, além de atribuir um
lugar privilegiado à literatura dentro da produção sartriana, a ponto de afirmar a relação de
inerência entre esses dois registros, parece defender a existência de certa contaminação entre
esses dois âmbitos. Diz ele:
Uma inversão se opera: na década de 40, o registro da filosofia e da ficção, ao
mesmo tempo em que buscavam o mesmo fim, se revelavam distintos; no final dos anos
50, intensidade dramática e potência conceitual se concentram em uma obra que
permanece "filosófica", e, ao mesmo tempo, épica. Sartre poderia retirar material para
cinqüenta peças teatrais de Crítica da Razão Dialética.142
Saint-Sernin toma como pressuposto a separação da produção sartriana em dois
momentos,143 ou, mais precisamente, em duas ontologias. Para o comentador, a partir dos anos
50, isto é, a partir da fase “madura” da produção intelectual de Sartre, ocorre uma contaminação
da literatura na parte da obra que se pretende estritamente filosófica, caracterizando assim o que
ele chama de uma segunda ontologia. Esta posição contradita diretamente com a posição que
estamos defendendo neste estudo. Para nós, vale ratificar, mesmo em face da importância que a
140
Idem, L’Écrivain et sa Langue, p. 56. “[...] le lieu de l’universel singulier ou l’universel concret. [...] le lieu de
l’universel abstrait” (nossa tradução).
141
SAINT-SERNIN, Bertrand, Philosophie et fiction, p. 165. “Entre philosophie et fiction, la relation n’est ni
extérieure ni accidentelle; c’est un rapport d’inhérence” (nossa tradução).
142
Ibidem, p. 177. “Un renversement s'est opéré: dans les années 40, registre de la philosophie et de la fiction, tout
en concourant au même but, sont distincts; à la fin des années 50, intensité dramatique et puissance conceptuelle
se concentrent dans une oeuvre qui demeure "philosophique", tout en étant épique. Sartre aurait pu tirer la matière
de cinquante pièces de théâtre de Critique de la raison dialectique” (nossa tradução).
143
Sobre a separação da obra de Sartre em dois momentos, ou duas ontologias, tomamos como pressuposto aqui
que esta divisão se mostra artificial. Tal como afirma Thana Mara de Souza em Sartre e a literatura engajada:
Espelho Crítico e Consciência Infeliz, ver nota 97, p. 60.
64
literatura adquire para Sartre, talvez exatamente por isso, filosofia e literatura não se confundem
e guardam sua especificidade no âmbito da perspectiva existencialista.
Nossa interpretação da obra sartriana, portanto, não visa aproximar os registros – filosofia
e literatura – a ponto de amalgamá-los, tal como parece sugerir o comentador. Ao contrário, o
que procuramos ressaltar é a necessidade de se lançar mão da linguagem ficcional mesmo em
face da inegável separação que existe entre esses dois âmbitos da produção sartriana. Por essa
razão, destacamos as críticas que Thana Mara de Souza dirige à Saint-Sernin quando este afirma
que, no assim chamado segundo Sartre, há uma contaminação entre o âmbito ficcional e o
âmbito teórico da obra do filósofo.
É justamente nesse sentido que a comentadora afirma:
[...] ao contrário do que afirma Saint-Sernin, a distinção entre filosofia e
literatura se dá em toda a filosofia de Sartre, e de modo ainda mais claro em A Crítica
da Razão Dialética, livro no qual as palavras se mostram de forma mais rude e seca,
longe do sentido literário que se poderia dar as frases [...] de O Ser e o Nada.144
Não é nossa intenção aqui aprofundarmos a discussão acerca da separação entre essas
duas esferas – literária e filosófica – do pensamento de Sartre; limitamo-nos a afirmar que é
justamente a partir da separação entre filosofia e literatura que a ficção aparece como um meio
teórico privilegiado de acesso ao real. Ou seja, é justamente porque esses dois âmbitos não se
confundem que é imprescindível ao filósofo perseguir também a via da linguagem ficcional. Ora,
se a filosofia não dá conta de lançar o homem em sua existência concreta, em virtude de seu
caráter conceitual, então a literatura se impõe como único meio de desvelar ao homem sua
verdadeira condição. Desse modo, concordamos com a observação de T. M de Souza, segundo a
qual Saint-Sernin se equivoca ao afirmar que há contaminação literária na obra filosófica de
Sartre. Como nota a estudiosa, mesmo que o próprio Sartre admita ter se utilizado de imagens
literárias em sua obra filosófica, é ele também que se apressa em afirmar o equivoco de tal
abordagem, pois elas – literatura e filosofia – não se confundem. A imagem não constitui um
recurso filosófico precípuo. A questão das imagens adquire, pois, absoluta relevância para nossa
discussão.
144
Ibidem, p. 61.
65
3. Das variações imaginárias ao caráter contingente da existência: uma literatura de
situações extremas
Evoquemos Saint-Sernin, uma vez mais. Mas agora o fazemos com a intenção de destacar
a necessária relação que se estabelece entre a filosofia existencialista e o método
fenomenológico, além de ressaltar também o modo pelo qual este método legitima a criação
ficcional – ou imaginária – enquanto via de acesso ao real.
Para o autor, no conjunto da obra de Sartre,
[...] a fenomenologia traz uma garantia maior. Husserl, de fato, esclarece e
legitima duas operações praticadas por Sartre: a suspensão da adesão à existência e a de
colocar o imaginário à serviço da verdade. Sob certas condições, as descrições, para
além de seu valor estético, constituem os instrumentos de exploração verídicos do
real.145
Se, por um lado, a fenomenologia recoloca a filosofia em sua relação com as coisas, visto
que, através da epoché, propõe um retorno às coisas mesmas, despojando a filosofia de toda
contaminação prévia, por outro lado, a perspectiva fenomenológica, aponta também para uma
concepção mais veemente da literatura, na medida em que reconhece na linguagem ficcional a
capacidade de explicitar ao homem sua condição contingente, retratando-a. Desse modo, a
criação literária aparece não apenas como um meio de expressar a filosofia existencialista, mas
também, e principalmente, como uma forma “verídica” de acesso ao real através do
imaginário.146 Aprofundemos um pouco essas asserções.
Usualmente na literatura, ou “na tipologia romanesca tradicional”, os personagens
representam uma essência arquetípica e, desse modo, mantêm o leitor no domínio da abstração.
A figura do herói, por exemplo, obedece àquilo que é característico do arquétipo do herói, o que
leva a uma construção que poderíamos chamar de “pré-determinada”, ou “pré-condicionada”,
indicando ao leitor que toda a ação da trama obedece a uma essência metafísica. Inversamente, a
partir das variações eidéticas decorrentes do método fenomenológico, a literatura que adota essa
perspectiva, – e Saint-Sernin alude aqui aos romances de Sartre – liberta-se de uma construção
condicionada por uma natureza humana dada a priori e, em decorrência, coloca o leitor em
145
SAINT-SERNIN, Bertrand, Op. Cit., p. 172-173. “[...] la phénoménologie apporte une caution majeure. Husserl, en
effet, éclaire et légitime deux opérations pratiquées par Sartre: la suspension de l'adhésion à l'existence; la mise de
l'imaginaire au service de la vérité. Sous certaines conditions, au-delà de leur valeur esthétique, constituent des
instruments d'exploration véridique du réel” (nossa tradução).
146
Dada a centralidade da questão do imaginário para a compreensão da criação ficcional na obra de Sartre o tema
será retomado em um tópico dedicado especificamente ao problema.
66
contato com sua condição humana, contingente e absurda. Logo, a literatura existencialista lança
o homem no plano do drama existencial, negando qualquer tipo de “pré-determinação” que possa
justificar a ação dos personagens. É por essa razão que Leopoldo e Silva observa que “[...] a
fenomenologia não apenas provocou as profundas alterações no pensamento filosófico [...] como
também influiu em outros campos da cultura e, notadamente, na elaboração da narrativa
literária”.147
A literatura, para Sartre, a partir da aproximação com o método fenomenológico, passa a
ter por função explicitar a condição contingente do homem. Nesse sentido, o filósofo sustenta
que é preciso “criar uma literatura capaz de reunir e reconciliar o absoluto metafísico [filosofia
fenomenológica] e a relatividade do fato histórico [criação ficcional propriamente dita]”,148 pois
contingente. É por isso que Sartre afirma também que, para além da causalidade fenomênica,
está “a liberdade humana como sua fonte e fundamento original”.149 Ou seja, a causalidade
fenomênica, que se explicita a partir da redução fenomenológica, revela que seu fundamento
último é a liberdade humana. Nessa direção, a literatura surge como um instrumento capaz de
desvelar a liberdade do escritor que, em última análise, é autor da falsa causalidade implicada na
construção de um romance, e falsa justamente porque pressupõe a liberdade do autor como seu
fundamento. Mas a criação literária requer também a liberdade do leitor para completar a
construção significativa da obra. É exatamente nesse sentido que Sartre assinala:
[...] o autor escreve para se dirigir à liberdade dos leitores, e a solicita para
fazer existir sua obra. Mas não se limita a isso e exige também que eles retribuam essa
confiança neles depositada, que reconheçam a liberdade criadora do autor e a solicitem,
por sua vez, através de um apelo simétrico e inverso. [Assim] quanto mais
experimentamos a nossa liberdade, mais reconhecemos a do outro. 150
A literatura aparece simultaneamente como aquilo que desvela a liberdade humana
enquanto fundamento de sua condição existencial e também como apelo ao exercício da própria
liberdade. Assim, quando o leitor reconhece nessa liberdade o fundamento de sua condição,
simultaneamente ele vislumbra na liberdade alheia o fundamento de sua própria liberdade. Numa
palavra, a liberdade solicita a liberdade. É por isso que “o escritor decide apelar para a
liberdade dos outros homens para que, através das implicações recíprocas das suas exigências,
eles reapropriem a totalidade do ser para o homem e fechem a humanidade sobre o
147
LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Ética e Literatura em Sartre: Ensaios Introdutórios, p. 46.
SARTRE, Jean-Paul, O que é a Literatura, p. 164.
149
Ibidem, p. 46.
150
Ibidem, p. 43.
148
67
universo”.151 Trata-se de lançar novamente o homem no domínio de sua condição de ser livre,
enquanto agente construtor de si e de sua situação histórica. Assim, entendemos porque o
filósofo dirá em O Existencialismo é um Humanismo que:
[...] ao querermos a liberdade, descobrimos que ela depende inteiramente da
liberdade dos outros, e que a liberdade dos outros depende da nossa. Sem dúvida, a
liberdade como definição do homem não depende de outrem, mas, uma vez que existe a
ligação de um compromisso, sou obrigado a querer ao mesmo tempo a minha liberdade
e a liberdade dos outros.152
A liberdade parece requerer a liberdade por intermédio do compromisso e a literatura
aparece como um meio privilegiado para desvelá-lo. É justamente por isso que Sartre assevera
que os romances escritos contemporaneamente a sua produção tinham por tema desvelar ao
homem sua própria condição histórica. Eis a tônica sob a qual Sartre pensa o papel do romance
em seu tempo ou o que ele buscava na literatura de seus pares. Assim, tornam-se bastante
elucidativas as considerações tecidas num artigo intitulado Sobre John dos Passos e 1919. 153
Nele, o autor indaga justamente o sentido filosófico do romance:
Um romance é um espelho: todo mundo diz. Mas o que é ler um romance?
Creio que seja saltar para dentro do espelho. De repente nos encontramos ali, do outro
lado, em meio a gente e objetos que nos parecem familiares. Mas é apenas aparência,
pois na verdade jamais os tínhamos visto. E as coisas do mundo, por sua vez estão lá
fora e se tornam reflexos. Fechamos o livro, transpomos a beirada do espelho e
reentramos neste honesto mundo daqui: reencontramos os edifícios, os jardins, as
pessoas que nada nos dizem; o espelho, que se recompôs logo atrás, reflete-o
placidamente. Depois disso juraríamos que a arte é um reflexo; os mais maliciosos irão
até falar em espelhos deformantes. Essa ilusão absurda e obstinada, Dos Passos a utiliza
muito conscientemente para nos levar à revolta.154
151
Ibidem, p. 47.
Idem, O Existencialismo é um Humanismo, p. 19.
153
Não nos esqueçamos de que aquilo que é dito acerca de John dos Passos vale, de uma maneira mais ou menos
geral, aos escritores: Stendhal, Kafka, Faulkner, Hemingway entre outros. Mesmo que aqui Sartre ainda considere
Dos Passos o maior dentre eles, como atenta Bento Prado Jr. na introdução de Situações I. Essa postura, no
entanto, seria relativizada pelo próprio autor posteriormente. No texto mencionado, Sartre advoga: “O mundo de
Dos Passos é impossível – como o de Faulkner, o de Kafka, o de Stendhal – porque é contraditório. Mas é por isso
que é belo: a beleza é uma contradição velada. Considero Dos Passos o maior escritor do nosso tempo”. (SARTRE,
Jean-Paul, Situações I, p. 45. Grifo nosso.) Ainda nesse sentido Sartre afirmou, certa vez, comentando a obra de
Kafka: “[...] eu diria que [ele] quis descrever a condição humana. Mas o que nos tocava especialmente é que, nesse
processo perpetuamente em curso, que termina bruscamente e mal, cujo os juízes são desconhecidos e inacessíveis,
nos vãos esforços dos acusados para saber de que são acusados, nessa defesa pacientemente arquitetada, que
acaba por se voltar contra o defensor e figurar entre as provas da acusação, nesse presente absurdo que as
personagens vivem aplicadamente e cujas chaves estão ausentes, nisso tudo reconhecíamos a história, e a nós
mesmos na história”. (SARTRE, Jean-Paul, Que é a Literatura?, p. 167-8).
154
SARTRE, Jean-Paul, Sobre John dos Passos e 1919 In: Situações I, p. 37
152
68
Chegamos ao ponto. Eis o que Dos Passos tem de melhor e, por conseqüência, toda a
literatura admirada por Sartre: a revolta, a capacidade de retirar o leitor do mundo para recolocálo, mas, só que agora, “revoltado atrás do espelho”. Dos Passos quer mostrar o mundo sem
explicações nem comentários. E “mostrar o mundo sem explicações e sem comentários”
significa desvelá-lo, retirar o véu que encobre “o real por detrás da realidade”. Mas o escritor,
tal como entende Sartre, deve retirar sua matéria do nosso mundo, deve estar próximo a nós. No
entanto isso não significa negar aquilo que a arte tem de mais característico, ou seja, seu
substrato estético. Afinal fazer arte ainda é criar o belo. Sendo assim, é curioso, e aparentemente
contraditório, que o mesmo autor que diz que “na sociedade capitalista os homens não tem vidas
tem apenas destinos”;155 também nos brinde com essa máxima que, no seu estilo, lembra-nos
Oscar Wilde: “a beleza é uma contradição velada”. Aqui já se anuncia, em entrelinhas, claro,
algo que buscaremos esclarecer adiante: a relevância do leitor dentro deste processo. Cabe aos
homens engajar sua liberdade em seu contexto; é preciso se insurgir contra seu tempo. O
romance, digamos, solicita tal postura de quem o lê. Daí a importância do leitor, pois sem ele
“haveria apenas borrões negros sobre folhas brancas”.156 Estamos prontos para compreender as
palavras do autor:
Daí a vergonha e esse mal-estar que Dos Passos tão bem sabe provocar em seu
leitor; cúmplice a contragosto – e ainda nem tenho certeza de sê-lo a contragosto –, ao
nosso tempo criando e recusando os tabus; de novo, em meu próprio âmago, contra mim
mesmo, revolucionário.157
Essa discussão remete a questões sobre as quais nos debruçaremos adiante, entre elas, a
idéia de que à literatura cabe lançar o homem em seu próprio contexto, despertá-lo para sua
própria “realidade”. Nesse sentido, o recurso ao imaginário é apelo à liberdade do leitor.
Daí a necessidade de se “fazer uma literatura de situações extremas”,158 uma vez que
não é possível fugir de determinado contexto histórico: “não se trata de escolher a sua época
mas de se escolher nela”.159 É nesse sentido que a metafísica tradicional não tem mais lugar
enquanto fundamento de uma filosofia – ou de uma literatura, poderíamos dizer – que se quer
concreta, isto é, que busca abarcar o homem inserido na história. Conseqüentemente, também a
metafísica adquire uma nova tônica, visto que se evade das vias abstratas e mergulha na
155
Ibidem, p. 40.
Ibidem, p. 43.
157
Ibidem, p. 43.
158
Idem, Que é a Literatura?, p. 164.
159
Ibidem, p. 176.
156
69
experiência: “a metafísica não é uma discussão estéril sobre noções abstratas que escapam à
experiência, mas um esforço vivo para abranger, a partir de dentro, a condição humana em sua
totalidade”.160
Acerca da influência da fenomenologia na criação ficcional em Sartre, vem a propósito o
dizer de Saint-Sernin, para o qual “a ficção desempenha um papel determinante, uma vez que a
invenção de „variações eidéticas‟ imaginárias é a única maneira de evidenciar a contingência
do que advém e a constituição dos fenômenos que surgem”.161 Ora, se a liberdade humana é o
fundamento último da literatura, a contingência surge como corolário de um processo de
libertação, no qual a ficção aparece como um meio privilegiado de acesso ao real. Dito de o
outro modo, se o fundamento último da produção literária é a liberdade humana, e se esse
fundamento requer a liberdade do leitor enquanto seu contraponto necessário e complementar,
então, a variação imaginária que a fenomenologia proporciona surge como uma forma
privilegiada de desvelar ao homem o caráter contingente da existência, pois ressalta que a
realidade humana em última instância não obedece a nenhuma essência dada a priori. Desse
modo, o significado profundo das variações eidéticas remete justamente ao caráter gratuito,
aleatório e contingente que fundamenta a existência humana.
Para uma melhor compreensão desta questão, os comentários de Leopoldo e Silva são
esclarecedores, diz ele: “[...] a variação imaginária da existência permite visá-la também na sua
especificidade e originalidade, que, nesse caso, não será a essência, mas precisamente a
contingência. A verdade da existência será a sua contingência”.162 O que essa passagem parece
evidenciar é o papel central que a fenomenologia adquire seja para a filosofia existencialista, seja
para a criação literária. É justamente a partir das descrições fenomenológicas e das variações
eidéticas referidas, que a literatura revela seu potencial para a exploração verídica do real. O
recurso à variação imaginária logra realizar o necessário distanciamento da “vida natural”, isto é,
de uma concepção que entenda a vida como naturalmente ordenada obedecendo a essências
universais. Esse procedimento provoca a desconstrução da “adesão à existência” enquanto algo
natural, o que destaca o caráter contingente da existência. A filosofia fenomenológica busca o
homem concretamente, no entanto, segundo o que buscamos evidenciar, ela não é capaz de
colocar o homem diante de sua condição contingente de forma vivencial e particularizada, tal
160
Ibidem, p. 164.
SAINT-SERNIN, Bertrand, Op. Cit., p. 172-173. “La fiction y joue un rôle déterminant, puisque l'invention de
<<variations eidétiques>> imaginaires est seule à pouvoir mettre en évidence la contingence de ce qui advient et la
constitution des phénomènes qui surgissent” (nossa tradução).
162
LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Ética e Literatura em Sartre: Ensaios Introdutórios, p. 48 (grifo nosso).
161
70
como a literatura o faz. Daí decorre que o esforço de descrição, ainda que teórico e conceitual,
aproxima-se do esforço literário e imaginário de explicitar os múltiplos perfis da existência em
sua contingência radical, afastando-se das estreitas perspectivas instauradas pela objetividade.
Assinala Leopoldo e Silva:
[...] o trabalho da imaginação é uma “exploração verídica do real”: exatamente por darse como variação imaginária e, portanto, liberada da factualidade ordenada
segmentadamente nas frações categoriais do “mundo da experiência”, “põe em
163
evidência” “a contingência daquilo que advém”.
Vimos que a relação entre filosofia e literatura se redefine com a fenomenologia, uma vez
que a filosofia ao se contrapor a toda a tradição metafísica e ao voltar-se para o homem em sua
vivência histórica – ou seja, em seu retorno ao concreto – adquire um caráter dramático. Ao
buscar o concreto da experiência existencial, o existencialismo requer a literatura enquanto
percurso fundamental do pensar. Essa criação literária que se torna relevante para a inspeção
filosófica já não se ancora em instâncias pré- determinadas, mas se constrói no confronto com a
contingência e com a história, as quais serão desveladas pelas vias da variação imaginária. Eis
que a questão do imaginário torna-se crucial para nossa discussão.
Antes, porém, de enveredarmos por esse caminho, cabe ainda nos determos sobre um
aspecto da necessária diferença entre filosofia e literatura, mais especificamente no que tange à
questão da linguagem.
Se literatura e fenomenologia buscam retratar o homem em sua totalidade, mas visando-o
enquanto universal concreto, ocorre que ambas – a literatura e a fenomenologia – adquirem um
caráter ambíguo. E esse caráter ambíguo decorre do fato de que a linguagem nunca se apresenta
completamente liberada de sua condição polissêmica. No entanto, mesmo que a linguagem
filosófica não se apresente como unívoca, a filosofia deve buscar a univocidade da linguagem
científica para, na medida do possível, oferecer ao leitor uma demonstração clara e objetiva.
Nesse sentido, não deve haver contaminação entre o registro teórico e o registro ficcional. Sob a
perspectiva sartriana, um tratado filosófico repleto de imagens literárias se configura como um
“mau trabalho filosófico”. Nas palavras do autor:
Na filosofia cada frase deve ter um só sentido. O trabalho que fiz em As
Palavras, por exemplo, tentando dar a cada frase sentidos múltiplos e superpostos, seria
um mau trabalho filosófico. Se tenho de explicar o que é o Para-si e o Em-si, isso pode
ser difícil, posso utilizar diferentes comparações, diferentes demonstrações para chegar
163
Ibidem, p. 48.
71
a ela, mas é preciso utilizar idéias que devem poder fechar-se: não é nesse nível que se
encontra o sentido completo – o qual pode e deve ser plural no nível da obra completa –,
eu não quero dizer, com efeito, que a filosofia, como a comunicação científica, seja
unívoca.164
A linguagem filosófica busca a univocidade, ainda que não logre atingi-la por completo.
Eis uma preocupação que escapa à literatura. De acordo com Sartre, a criação ficcional comporta
um caráter duplamente ambíguo, pois cada frase comporta múltiplos significados, ou seja, uma
imagem literária nunca pode se limitar a um único sentido, de sorte que cada frase em uma obra
ficcional pode ser reescrita de diversas maneiras diferentes, comportando sempre diversos
sentidos. Assim, em literatura, “nada do que eu digo é totalmente expresso pelo que digo. Não
há nessa linguagem a pretensão – no limite, sempre inalcançável – à objetividade e à univocidade
que permeia a linguagem técnica da filosofia. A literatura sempre se relaciona com o vivido, com
aquilo que é do âmbito da existência onde os significados fixos inexistem. Sua tônica é, pois, a
da multiplicidade significativa. Voltemos, pois, ao texto do filósofo:
Em literatura, que de certa maneira sempre tem ligações com o vivido, nada do
que eu digo é totalmente expresso pelo que digo. Uma mesma realidade pode ser
expressa de maneiras diferentes. E é o livro inteiro que indica o tipo de leitura que cada
frase requer, e até o tom de voz que essa leitura requer, quer leia em voz alta ou não [...]
Este trabalho é mais ou menos longo, mais ou menos trabalhoso, segundo os autores.
Todavia, de maneira geral, é sempre mais difícil escrever quatro frases em uma que só
uma em uma, como em filosofia.165
A partir deste quadro descrito por Sartre podemos concluir, seguindo a análise de T. M.
de Souza, que se a comunicação científica requerida pela filosofia busca encontrar um “sentido
completo” – mesmo que isso se mostre impossível em sentido absoluto, o que a torna, também, e
de certo modo, ambígua –, na construção literária cada frase se apresenta através de uma
multiplicidade de significados. Daí decorre que a literatura se caracterize, como evidencia o
filósofo, por uma dupla ambigüidade. A autora busca diferenciar esses dois registros através de
uma distinção bastante sutil entre o retratar da linguagem ficcional e o mostrar conceitual da
filosofia.
[...] a literatura, através dessa linguagem que diz muitas frases em apenas uma,
consegue retratar a realidade humana. Mas justamente porque se caracteriza por ser
uma linguagem múltipla, ela não consegue conceitualizar as situações humanas. Apenas
164
SARTRE, Jean-Paul, Autoportrait à soixante-dix ans, p. 137-138 apud SOUZA,Thana Mara. Sartre e a literatura
engajada: Espelho Crítico e Consciência Infeliz, p. 63 (tradução da autora).
165
Ibidem, apud SOUZA, Thana Mara de. A Literatura para Sartre: a Compreensão da Realidade Humana, p. 131
(tradução da autora).
72
a filosofia, com sua linguagem una (um único sentido para cada frase), é capaz de
conceitualizar [mostrar].166
Se, por um lado, a linguagem literária é ambígua porque toda frase literária é polissêmica,
ela o é também porque é fundamentalmente obra imaginária. A imagem, ao comportar uma
multiplicidade de sentidos, consegue retirar o homem de um mundo naturalmente ordenado, que
obedece a sentidos dados a priori; ela o predispõe para a aceitação e para o enfrentamento de sua
condição contingente. Nesse sentido, é o caráter ambíguo da linguagem ficcional que permite à
literatura – cujo fundamento reside no imaginário, isto é, no irreal –, desvelar o real da condição
humana ao próprio homem. Logo, a imagem é capaz de oferecer a vivência necessária ao homem
para que este se dê conta de sua própria condição, que, caso contrário, se mostraria como estável
e naturalmente determinada, uma vez que compreendida unicamente sob os cânones do que é
incontestavelmente dado. Voltaremos a esse ponto com maior acuidade. No momento, essa
indicação tem sua importância porque nos permite vislumbrar um outro aspecto que aprofunda
os limites do conceito. A linguagem conceitual mantém o leitor diante de um mundo no qual
tudo tem um sentido, no qual o inesperado inexiste, visto que completamente desconectado das
vivências particulares. Seu intuito, lembremos, consiste na objetividade decorrente da busca da
univocidade. Assim, voltamos à questão da insuficiência da linguagem filosófica e da
necessidade de que ela se complemente com a criação ficcional. A ampla ambigüidade que
caracteriza a linguagem literária, decorrente de sua multiplicidade significativa, bem como o seu
caráter imagético, desvelam facetas impensáveis para a abordagem conceitual. Sob esse prisma,
o caráter desvendante da literatura, particularmente da prosa, ultrapassa a filosofia. Uma vez
mais, a comentadora:
E nesse sentido, apenas a prosa pode ser ambígua, já que a filosofia não é
imaginário. A prosa é, portanto, ambígua nesses dois sentidos: tanto por conter vários
significados em cada frase – o que a torna mais ambígua que a filosofia –, quanto por
ser obra imaginária, o que lhe permite essa passagem do real para o irreal e deste
novamente para o real, mostrando assim o real imaginário, dando-o ao mesmo tempo
como real. E são justamente essas ambigüidades que fazem com que a prosa adquira,
em Sartre, um papel essencial no desvendamento da realidade humana. 167
Vale insistir: com base em seu caráter duplamente ambíguo, a literatura aparece como a
forma por excelência de acesso ao real através do irreal, isto é, do imaginário. Se a filosofia –
mesmo a fenomenológica com seu retorno “às coisas mesmas” – aparece como insuficiente para
166
167
SOUZA, Thana Mara de, A Literatura para Sartre: a Compreensão da Realidade Humana, p. 133 (grifo nosso).
Idem, Sartre e a literatura engajada: Espelho Crítico e Consciência Infeliz, p. 64.
73
abarcar a realidade humana, a literatura se apresenta não apenas como uma referência, mas
também como uma das formas de se “fazer” essa filosofia. Ou seja, o filósofo reconhece sua
necessidade de se expressar também pelas vias da literatura. E isso acontece justamente, como
foi dito antes, porque esses dois âmbitos da produção intelectual – literatura e filosofia – são
distintos. Torna-se, pois, evidente a complementaridade entre ambas, à qual aludíamos acima. A
filosofia, tal como delineada na obra sartriana, desenvolve-se tanto pelas vias da abordagem
fenomenológica como por aquelas outras da criação ficcional. Em ambas as vertentes ela se
ocupa da realidade humana. Seu objeto sempre será o homem em sua relação com o mundo, ou,
se se quiser, o homem em situação ainda que problematizado em linguagens distintas. Em
síntese, sob a perspectiva sartriana, literatura e filosofia não se confundem, mas se
complementam.
No entanto, a “exploração verídica do real”, descrita por Saint-Sernin como característica
fundamental da literatura, se dá por intermédio da imaginação, jamais pelo conceito que constitui
a ferramenta filosófica, mesmo quando nos encontramos no âmbito da fenomenologia. É a
literatura, através de sua inserção no imaginário, que retrata diretamente o caráter contingente da
existência humana. Torna-se necessário, pois, analisarmos mais cuidadosamente o papel do
imaginário na criação ficcional no pensamento de Sartre.
4. Imaginário: o irreal que desvela o real
Comecemos por apresentar o que Sartre entende por imaginação. Para tanto é preciso,
primeiramente, explicitar a distinção que o filósofo faz entre imagem e percepção, pois Sartre se
opõe à maneira como tradicionalmente a filosofia entende esses conceitos. Ou melhor, ele critica
a indistinção com que esses conceitos são tratados pela tradição.168 Para explicitarmos essa
concepção faz-se necessário recorrermos principalmente a dois textos do autor: O Imaginário e A
Imaginação. Ressaltemos que, segundo o filósofo, consciência imaginante169 e consciência
perceptiva não se confundem. A imagem será assim definida como “um ato que visa em sua
168
Na apresentação de O Imaginário, Bento Prado Jr. e Damon Moutinho afirmam que, para Sartre, a tradição mais
ou menos se equivale no que concerne ao conceito de Imagem. Segundo os comentadores, o projeto de realizar
uma redução fenomenológica da Imagem, se constitui em duas etapas, a primeira, a “crítica”, realizada em A
Imaginação, é dedicada à tarefa de evidenciar a maneira como a tradição lida com o problema; A segunda, a
“científica”, busca ultrapassar as análises propostas por seu mestre, Husserl e se dá em O Imaginário. SARTRE,
Jean-Paul, O Imaginário, p. 6.
169
Entendemos que o termo consciência imaginante é preferível à imaginação, visto que ressalta o caráter de fluxo
continuado que caracteriza a consciência e, por conseqüência, a imaginação, tal como veremos a seguir.
74
corporeidade um objeto ausente ou inexistente” enquanto uma representação analógica do objeto
visado.170 Notadamente, o pressuposto implícito aqui é que a imagem se apresenta enquanto ato
não enquanto coisa.
A tradição entende a imagem como a reprodução em miniatura da coisa imaginada na
mente, como uma espécie de “coisa menor” na consciência. O que implica, em primeiro lugar,
uma identificação entre imagem e percepção; e, por conseqüência, uma relação de falsidade e
veracidade. Se a imagem é uma reprodução em miniatura da coisa real, então ela teria um menor
grau de veracidade se comparada à coisa mesma, assim a imagem aparece como uma espécie de
cópia menor da percepção. Dentro da concepção clássica ou, como prefere Sartre, da “metafísica
ingênua da imagem”, “a imagem existe como o objeto”. “Essa metafísica consiste em fazer da
imagem uma cópia da coisa, existindo ela mesma como uma coisa”.171 Confunde-se, desse
modo, “identidade de essência” com “identidade de existência”. Sob esse registro, é como se
houvessem dois objetos no mesmo plano: o objeto real e o objeto imaginado. Ou seja, é como se
houvesse uma identidade de existência entre esses dois objetos, invertendo, deste modo, a
relação natural em que há um mesmo objeto em dois planos diferentes: o plano da consciência
imaginante e o plano da consciência perceptiva. Haveria, assim, uma identidade de essências.
Para Sartre, trata-se de um mesmo objeto, mas num momento percebido, noutro imaginado. Por
exemplo, dentro da concepção tradicional quando percebo este lápis em minha frente tenho uma
coisa real, o lápis percebido, se me viro e imagino este lápis teria uma outra coisa, só que agora
em minha consciência, uma reprodução imperfeita deste lápis real na consciência. Evidencia-se
aqui uma concepção substancialista da imaginação, pois, sob o registro da tradição, a consciência
aparece como uma espécie de lugar habitado por pequenos simulacros.
Para compreendermos melhor o que Sartre entende por imagem, portanto, é preciso que
estejamos calçados pela discussão que abriu nosso percurso e que procurou elucidar a natureza
da consciência neste universo filosófico. Pois é daí que deriva a distinção entre o entendimento
da imagem enquanto ato, como o faz Sartre a partir da fenomenologia, ou enquanto coisa, como
o faz a tradição da “metafísica ingênua da imagem”. Dizer que a imagem é em ato significa
dizer que a imagem é consciência de alguma coisa e não que a imagem é alguma coisa na
consciência. Daí a categórica afirmação do filósofo: “Não há, não poderia haver imagens na
consciência. Mas a imagem é um certo tipo de consciência. A imagem é um ato e não uma
170
171
SARTRE, Jean-Paul, O Imaginário, p. 37 e 79.
Idem, A Imaginação, p. 35.
75
coisa. A imagem é consciência de alguma coisa”.172 É patente aqui a dívida de Sartre para com
Husserl em relação ao conceito de imagem, ainda que O Imaginário tenha sido, segundo o autor,
escrito contra Husserl, mas apenas na medida em “que um discípulo pode escrever contra o seu
mestre”.173 Desse modo, como bem destaca Françoise Noudelmann, tal “como a consciência, a
imagem é sempre imagem de alguma coisa. A consciência imaginante deve então ser estudada
como um certo tipo de relação com o objeto”.174 Noudelmann parodia a máxima husserliana de
que “toda consciência é consciência de alguma coisa”, com o propósito de ressaltar a inegável
vinculação entre a teoria da imagem em Sartre e a fenomenologia. 175 É sob o registro da
fenomenologia então que Sartre demarcará o verdadeiro caráter da imagem em relação à
percepção, isto é, “elas são duas atitudes irredutíveis da consciência que se excluem
mutuamente”.176 O que equivale a dizer que quando imagino, não percebo, e quando percebo,
não imagino, pois são dois modos distintos de se intencionar o objeto.
Como vimos no capítulo anterior, desde A Transcendência do Ego, ou seja, desde seus
primeiros escritos, Sartre deixa bem claro a necessidade de se dessubstancializar a consciência, o
que significa, que não é possível afirmar a existência de algo na consciência, ou melhor, a
consciência mesma é Nada, ela é pura relação com o mundo, ela é ato-puro:177
[...] a existência da consciência é um absoluto porque a consciência está
consciente dela mesma. Isto quer dizer que o tipo de existência da consciência é o de ser
consciência de si. E ela toma consciência de si enquanto ela é consciência de um objeto
transcendente. Tudo é portanto claro e lúcido na consciência: o objeto está face a ela
com a sua opacidade característica, mas ela, ela é pura e simplesmente consciência de
ser consciência desse objeto.178
172
Ibidem, p. 106 (grifo nosso).
Idem, Diário de uma Guerra Estranha, p. 176. Sartre aqui se refere à Husserl ao admitir a inegável influência da
filosofia Heideggeriana sob seu pensamento isto é, ao admitir seu afastamento da fenomenologia, que era, até
então, reconhecidamente sua maior influência. Notemos, contudo, que Sartre nunca abandonará a perspectiva
fenomenológica; o que ele fará, como antes comentado, é apropriar-se criticamente das idéias de Husserl.
174
NOUDELMANN, Françoise, L’Incarnation Imaginaire, p. 21. “Comme la conscience, l’image est toujours image de
quelque chose. La conscience imageante doit être étudiée comme un certain type de relation à l’objet” (nossa
tradução).
175
É importante ressaltar que Sartre não se limita à reproduzir as teorias de seu mestre, Husserl. Para o filósofo
francês, o próprio Husserl foi “vítima da ilusão da imanência, caindo no mesmo erro que o estudo crítico [isto é, A
Imaginação] denunciara nos clássicos”. No entanto, não é nosso objetivo aqui nos aprofundarmos nas críticas de
Sartre à Husserl, basta-nos ressaltar a crítica do autor a tradição. Para mais, ver: SARTRE, Jean-Paul. O Imaginário,
p. 6.
176
BERNIS, Jeanne, A Imaginação: Do Sensualismo Epicurista à Psicanálise, p. 25.
177
Este tema, como dissemos, já foi abordado de maneira minuciosa no primeiro capítulo deste estudo, no
entanto, cabe retomar algo dessa discussão com o intuito de esclarecer a noção de consciência imaginante para o
autor.
178
SARTRE, Jean-Paul, A Transcendência do Ego, p. 48.
173
76
Em outras palavras, a consciência é pura relação com o mundo e, em decorrência, não há
nada na consciência. Desse modo, o objeto transcendente, ou seja, a coisa que se mostra à
consciência, nada mais é do que esse processo da consciência enquanto consciência de si. Isso
equivale a dizer que a consciência, na perspectiva existencial fenomenológica de Sartre, é pura
relação com o mundo, ela é um fluxo contínuo lançado no mundo. Portanto, o Para-si é em
relação ao Em-Si, ou seja, o Para-si nunca é, ele é sempre um “estar-sendo”. Ele é um processo,
um fluxo contínuo. Ou, como sintetiza Sartre, o Para-si é sempre um projeto de si mesmo. A
consciência é para si mesma translúcida pois ela só é no mundo, o que é o mesmo que dizer que a
única forma de existir da consciência é ser consciência de si mesma enquanto relação com o
mundo. É por isso que Sartre diz que a consciência é espontânea. Como antes assinalado, ela é
sempre consciência de alguma coisa, mas sem nunca deixar de ser consciência de si. De acordo
com Moutinho, para Sartre,“não apenas sou consciente deste objeto diante de mim, mas sou
consciente de ser consciente deste objeto”.179
E é justamente sob esse registro que Sartre afirmará em O Ser e o Nada que “uma mesa
não está na consciência, sequer a título de representação”. Não seria ocioso citá-lo uma vez
mais:
Toda consciência, mostrou Husserl, é consciência de alguma coisa. Significa
que não há consciência que não seja posicionamento de um objeto transcendente, ou, se
preferirmos, que a consciência não tem “conteúdo”. [...] Uma mesa não está na
consciência, sequer a título de representação. Uma mesa está no espaço, junto à janela,
etc. [...] O primeiro passo de uma filosofia deve ser, portanto, expulsar as coisas da
consciência e restabelecer a verdadeira relação entre esta e o mundo. Toda consciência é
posicional na medida que se transcende para alcançar um objeto, ela esgota-se nesta
posição mesma: tudo quanto há de intenção na minha consciência atual está dirigido
para o exterior, para a mesa;180
Em decorrência deste pressuposto, o filósofo conclui que introduzir qualquer núcleo de
opacidade na consciência “seria levar ao infinito o inventário que a consciência pode fazer de
si”, e, por conseqüência, convertê-la em coisa, negando assim o que ela tem de mais
fundamental que é sua espontaneidade. Por isso, é imprescindível à consciência ser pura relação
com o mundo. Daí a “necessidade da consciência de existir como consciência de outra coisa que
não ela mesma”.181 Trata-se, neste ponto, do âmbito pré-reflexivo da consciência. Vale ressaltar
que, sob esse registro, simultaneamente à consciência tética do objeto, que aparece na citação
179
MOUTINHO, Luiz Damon S., Sartre: Existencialismo e Liberdade, p. 47.
SARTRE, Jean-Paul, O Ser e o Nada, p. 22.
181
Idem, Uma Idéia Fundamental da Fenomenologia de Husserl: a Intencionalidade, p. 57.
180
77
acima como “consciência de outra coisa que não ela mesma”, se pressupõe também a
consciência não tética (de) si. Ou seja, isso equivale a dizer que a consciência não tética (de) si
sempre acompanha a consciência tética do objeto intencionado, são dois pólos de uma mesma
relação, tal como buscamos explicitar anteriormente.
Desse modo, é pertinente atentarmos para o que Sartre afirma sobre o tema em A
Imaginação, para, em seguida, explicitarmos o que o autor entende propriamente pelo conceito
de imagem, passando então pela distinção entre consciência imaginante e consciência perceptiva.
Vejamos:
Chamamos espontânea uma existência que se determina por si mesma a existir.
Em outras palavras, existir espontaneamente é existir para si e por si. Uma só realidade
merece, pois, o nome de espontânea: a consciência. Para ela, na realidade, existir e ter
consciência de existir são a mesma coisa. Ou, por outra, a grande lei ontológica da
consciência é a seguinte: a única maneira de existir para uma consciência é ter
consciência de que existe.182
Essa concepção de consciência leva à compreensão da imaginação enquanto ato, o que
contradita com a tradição substancialista. Nesse viés, imaginação e percepção apresentam-se
como dois modos distintos da consciência intencionar um objeto transcendente. Assim, a
imagem (consciência imaginante) não se confunde com o objeto imaginado, pois, de um lado
tenho a consciência que se volta para um objeto que não é ela; por outro lado, ou eu percebo o
objeto ou o imagino, isto é, imaginar e perceber são dois modos de se intencionar um objeto que
não se confundem. Novamente aqui, cabe ressaltar o papel da consciência não-tética (de) si, pois
é justamente porque há a consciência não-tética da percepção quando percebo e porque há a
consciência não-tética da imaginação quando imagino que sei que esses dois modos de se
intencionar o objeto são diferentes. Chegamos finalmente à distinção entre consciência
imaginante e consciência perceptiva.
A imagem é então um dos modos da consciência intencionar um objeto; a percepção,
outro. Na percepção, sempre há a relação de aprendizado, ela sempre apresenta algo de novo,
pois o objeto transcendente se apresenta por perfis diferentes e infindáveis. Se percebo um cubo,
sempre posso observá-lo por outros ângulos, sempre há algo que posso não ter percebido, e,
portanto, sempre posso aprender algo novo sobre esse objeto. Nesse caso, o processo de
conhecimento é sempre algo mediado pela observação, o que demanda algum tempo para se
conhecer o objeto intencionado. Na imaginação, por outro lado, por se tratar de um ato de
182
Idem, A Imaginação, p. 90.
78
criação, nada é apreendido do objeto, não há aprendizado, tudo já está posto de imediato, assim a
imagem nada me dá de novo. Na imaginação, a consciência não pode captar nada do objeto que
ela mesma já não saiba por antecedência. Sartre afirma: “[...] o objeto da percepção é
constituído por uma multiplicidade infinita de determinações e de relações possíveis. Ao
contrário, a imagem mais determinada não possui senão um número finito de determinações,
precisamente aquelas de que temos consciência”.183
Assim, na imaginação as qualidades da coisa imaginada dependem da consciência
imaginante, o que pressupõe uma “criação continuada”, ou seja, se imagino um cubo, para que
este cubo continue a existir enquanto objeto imaginado é necessário que eu continue a imaginálo. Uma distinção fundamental entre percepção e imaginação é que “a consciência é passiva na
percepção e criadora na imaginação”.184 Daí, portanto, a imagem ser um ato e, desse modo,
salta aos olhos o absurdo da tese clássica que entende a imagem como uma coisa. Esta afirmação
remete-nos a um ponto importante em nossa pesquisa, visto que na literatura, a atividade criadora
da imaginação é soberana.
Talvez encontremos uma imagem preciosa capaz de explicitar a distinção defendida por
Sartre entre o objeto percebido e o objeto imaginado no conto de Jorge Luis Borges, Funes, o
Memorioso. Neste conto, o protagonista da história tem a capacidade de se lembrar185
exatamente de tudo que viveu, ou seja, Funes é capaz de criar imagens mentais como se as
tivesse percebendo. A partir da imagem literária proposta por Borges, podemos levantar o
seguinte problema: confundir consciência imaginante com consciência perceptiva não nos levaria
à uma concepção absurda e paradoxal da consciência? Ou seja, se fôssemos capazes de imaginar
com exatidão tudo aquilo que vivemos, percebendo cada mínimo detalhe, imaginar equivaleria a
perceber. No conto, tudo o que foi percebido é vivenciado imaginariamente pelo personagem
exatamente como fora percebido anteriormente; se temos em mente os pressupostos sartrianos, a
correlação buscada pelo personagem é absurda, uma vez que equaliza duas modalidades de
consciência absolutamente díspares: perceber e imaginar. A absurdidade do esforço do
personagem se revela quando nos damos conta da insensatez que há em pensar que a consciência
intenciona do mesmo modo o objeto percebido e o objeto imaginado; quer dizer, mesmo que o
objeto seja o mesmo, o modo de intencioná-lo certamente não o será. Uma figura que talvez
183
SARTRE, Jean-Paul, O Imaginário, p. 30.
MOUTINHO, Luiz Damon S., Op. Cit., p. 36.
185
Cabe um breve parêntese para frisar que, contrariamente à Husserl, Sartre, tanto em seu livro O Imaginário
como em A Imaginação, não realiza a distinção entre memória e consciência imaginante. Nas referidas obras o
filósofo fala basicamente em três modos da consciência intencionar um objeto, a saber, a consciência imaginante,
a consciência perceptiva e a concepção.
184
79
expresse bem essa relação da consciência seja a figura, caricata, da pessoa que “se belisca para
ter certeza de que não está sonhando”, ou seja, é justamente porque, como frisamos acima, a
consciência não tética (de) si sempre acompanha a consciência tética do objeto intencionado que
seria absurdo, e cômico, “me beliscar para saber que não estou sonhando”. Assim, a absurdidade
do conto nos remete à necessária distinção entre consciência imaginante e consciência
perceptiva, tal como sustentado pelo filósofo.
O conto vem também explicitar um outro aspecto das teses sartrianas, qual seja, a
necessidade do real enquanto sustentação do imaginário. Por conseqüência, o conto parece
explicitar também a necessidade do real enquanto alicerce do imaginário, porquanto pressupõe a
consciência lançada no mundo como fundamento da imaginação. Em outras palavras, a
imaginação requer o mundo percebido como um pressuposto necessário.
Nesse ponto talvez caiba aludir ainda a um outro exemplo retirado também da literatura
de Borges, em Sobre o Rigor da Ciência. Aqui cabe citar o texto do próprio autor, pois a imagem
se presta com precisão ao que queremos expressar:
... Naquele império, a Arte da Cartografia alcançou tal Perfeição que o mapa
duma única província ocupava uma cidade inteira, e o mapa do império uma província
inteira. Com o tempo esses Mapas Desmedidos não bastaram e os Colégios de
Cartógrafos levantaram um Mapa do Império que tinha o Tamanho do Império e
coincidia com ele ponto por ponto. Menos Dedicadas ao Estudo da Cartografia, as
Gerações Seguintes decidiram que esse dilatado Mapa era Inútil e não sem Impiedades
entregaram-no às Inclemências do Sol e dos Invernos. Nos Desertos do Oeste perduram
despedaçadas Ruínas do Mapa habitadas por Animais e por Mendigos; em todo o País
não há outra relíquia das Disciplinas Geográficas. 186
O que podemos denotar dessa imagem? A passagem evidencia que a pretensão de
construir uma representação imaginária do mundo que corresponda exatamente ao próprio
mundo é tão ociosa quanto fazer um mapa que ocupe exatamente o mesmo tamanho que o
espaço representado. Novamente aqui a imagem é perpassada por certa comicidade. A ironia de
Borges é capaz de desvelar com precisão a tese sartriana: o mundo real como substrato
necessário à construção de uma representação imaginária e irreal. De acordo com a distinção
entre consciência perceptiva e consciência imaginante, sabemos que nunca nada de novo é posto
à imagem imaginada; no entanto, sempre é possível apreender algo que não estava posto
imediatamente na percepção. Decorre daí que o mundo percebido configura-se como um
pressuposto necessário ao imaginário. Notadamente, o pressuposto sartriano que alicerça nossa
interpretação aqui é a idéia segundo a qual para que a consciência imagine, é necessário que ela
186
BORGES, J. L., História Universal da Infâmia, p. 111.
80
esteja inserida no mundo, ou como o prefere Sartre, é preciso que a consciência esteja em
“situação-no-mundo”. Ou seja, é a inserção concreta e singular da consciência lançada no mundo
que oferece o pressuposto necessário à criação do irreal, desse modo o real da situação concreta
surge como condição de possibilidade da criação imaginária.
Assim, na imagem de Borges, nunca poderíamos construir uma representação imaginária
capaz de suprimir o real, um mapa que correspondesse exatamente, “ponto por ponto”, àquilo
que ele representa seria algo no mínimo absurdo. Com base nessa imagem, caminhamos para o
ponto que nos interessa, qual seja, a concepção do mundo imaginário, irreal, como uma porta de
acesso ao mundo real.
Antes, torna-se importante que nos detenhamos nessa distinção entre o real e o irreal,
enquanto derivada dessa relação entre consciência perceptiva e consciência imaginante. Se a
imaginação é o âmbito da criação, ela é o ato em que a consciência põe o objeto imaginado
enquanto negação do objeto real, pois a imagem é um irreal. Diz Sartre: “Colocar uma imagem é
constituir um objeto à margem da totalidade do real, é manter o real a distância, libertar-se dele
– numa palavra, negá-lo, [...] colocar o mundo como um nada em relação à imagem”.187
Consequentemente, torna-se necessário à consciência imaginante a existência de um mundo real,
não criado pela consciência. É por isso que Paulo Perdigão, ao comentar esse aspecto do
pensamento sartriano, considera que a imagem, por ser um irreal, “só pode ser Nada de alguma
coisa real e existir sobre um fundo de mundo real”.188 Portanto, o real é um pressuposto
necessário à existência do irreal imaginado, e, por conseqüência, à existência da criação ficcional
que é o objeto de nossa pesquisa. Cabe então recorrermos ao nosso autor:
Chamaremos “situações” os diferentes modos imediatos de apreensão do real
como mundo. Podemos dizer assim que a condição essencial para que uma consciência
imagine é que ela esteja “em situação no mundo” ou, mais brevemente, que ela “estejano-mundo”. É a situação-no-mundo, apreendida como realidade concreta e individual da
consciência, que serve de motivação para a constituição de um objeto irreal qualquer, e
a natureza desse objeto irreal é circunscrita por essa motivação. Desse modo, a situação
da consciência não deve aparecer como uma pura e abstrata condição de possibilidade
para todo o imaginário, mais sim como motivação concreta e precisa da aparição de tal
imaginário particular.189
A citação, embora um pouco longa, se justifica, pois esclarece exatamente aquilo que
buscamos evidenciar, ou seja, o real enquanto fundamento necessário para a constituição do
187
SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 239.
PERDIGÃO, Paulo, Existência e Liberdade: Uma Introdução à Filosofia de Sartre, p. 65.
189
SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 241.
188
81
imaginário. Desse modo, para que a consciência imagine, é preciso que ela esteja lançada no
mundo, em dado contexto histórico e em dada situação concreta e particular. E mais do que isso,
a imagem enquanto nadificação do mundo, enquanto sua negação, mais do que “o mundo
negado, pura e simplesmente, ela é o mundo negado de um certo ponto de vista”190 que é sempre
particular e concreto. É por isso que Sartre fala em motivação e não em determinação, o que
ressalta o caráter espontâneo da consciência, sua liberdade. Quando a consciência imaginante
nega o mundo, ela o faz sobre um fundo real que a sustenta, sem, no entanto, ser determinada por
este fundamento. Logo, ela não perde seu caráter livre e espontâneo. Nesse sentido, observa
Sartre: “Para que a consciência possa imaginar, é preciso que por sua própria natureza possa
escapar ao mundo, é preciso que possa extrair de si mesma uma posição de recuo em relação ao
mundo. Numa palavra: ela precisa ser livre”.191 Portanto, além do real, da situação concreta
enquanto seu fundamento, a consciência imaginante se caracteriza por sua liberdade, sem a qual
a imagem não se constituiria, o “estar-no-mundo” se constitui enquanto uma condição necessária
à imaginação, mas sem negar a característica fundamental da consciência que é sua liberdade.
É importante atentarmos um pouco mais para essa relação entre o real e o irreal com a
intenção de desvelar o caráter ambíguo que a literatura, mais especificamente a prosa, comporta.
Quando dissemos que na percepção observamos o objeto enquanto que na imaginação o objeto
se apresenta por completo, deixamos de mencionar que, para Sartre, na imaginação ocorre o
fenômeno da “quase-observação”. Ao imaginarmos, de certo modo, observamos o objeto. Mas,
nesse caso, como foi dito, não há nada no objeto imaginado que não seja posto pela própria
imaginação, portanto o que ocorre é a “quase-observação”. Por “quase-observação” o filósofo
entende o fenômeno que fica entre a percepção e a concepção192. Ou seja, é quando se “observa”,
mas nada se aprende de novo do objeto, não há conhecimento. Daí, as palavras de Sartre, no
“objeto como imagem já se encontra incluído o conhecimento do que ele é”.193 Na imagem há
uma “observação” – ou melhor, “quase-observação” –, que nada ensina. Daí o caráter ambíguo
da imagem, ressaltado pela análise de T. M Souza. “[É] por ser ambigüidade, que o objeto
imaginado nos é apresentado de fora (concepção) e de dentro (percepção) ao mesmo tempo: e é
por isso que a imagem pode ser extremamente pobre e ao mesmo tempo ter um sentido profundo
190
Ibidem, p. 240.
Ibidem, p. 240.
192
A concepção, segundo Sartre, se dá quando a consciência coloca o objeto por inteiro (não há conhecimento)
enquanto consciência de si. Não é nosso objetivo uma análise minuciosa da concepção de imagem para Sartre,
mas apenas explicitar a importância do conceito para a relação que se estabelece entre literatura e filosofia na
obra do autor.
193
SARTRE, Jean-Paul, O Imaginário, p. 23.
191
82
e rico”.194 Se a imagem se dá como uma observação que nada ensina, então, ela não é nem uma
percepção nem uma concepção, o que faz dela algo ambíguo.
Em O Imaginário, Sartre apresenta a imagem como intermediária entre o conceito e a
percepção. Assim, voltamos ao problema da relação entre conceito e imagem:
A imagem, intermediária entre o conceito e a percepção, nos dá o objeto em
seu aspecto sensível, mas de uma maneira que por princípio a impede de ser perceptível.
É que, na maior parte do tempo, ela o visa em toda a sua inteireza. [E conclui o filósofo]
(...) o objeto como imagem é liberado de uma só vez por toda a nossa experiência
intelectual e afetiva.195
O que Sartre ressalta é que, mesmo que ocorra a ilusão da observação, na imaginação o
objeto é sempre posto por inteiro. Se isto, a princípio, pode ser interpretado como um indício de
empobrecimento, ao refletirmos mais atentamente vemos que, na verdade, essa revelação
completa do objeto consiste na verdadeira riqueza da linguagem literária. Ou seja, a literatura,
através da imagem, possibilita ao leitor vivenciar concreta e plenamente o que é por ela sugerido.
Assim, aquilo que a imagem sugere representa de pronto o recorte que o escritor faz do real, e
constitui o objeto irreal enquanto negação do real que o fundamenta. Daí decorre que a literatura,
por ser obra imaginária, transite numa zona intermediária entre o conceito (que é o âmbito da
reflexão filosófica) e a percepção (lugar do império dos sentidos). Assim, a literatura não diz
algo de forma objetiva e técnica como na filosofia nem se apresenta como um conhecimento
empírico, como na percepção. Ela expõe através da imagem a inteireza de um mundo irreal
enquanto negação do real que a fundamenta. É nesse sentido que devemos entender as palavras
de Sartre, “o objeto imaginado é liberado de uma só vez por toda a nossa experiência intelectual
e afetiva”.
Neste ponto, cabe ressaltar o caráter negativo da literatura, que, por ser obra imaginária, e
assim, irreal, faz com que o real seja um pressuposto necessário para a criação do irreal
imaginado enquanto negação desse real. Noutros termos, isso significa que a consciência
imaginante põe o irreal como negação “explicita ou implícita da existência natural e presente do
objeto”.196 Eis porque devemos, como anteriormente sublinhado, entender que a criação
ficcional se apresenta como uma “exploração verídica do real”. Ao se dar como variação e
negação imaginária, ela se lança para além da factualidade ordenada da existência natural e
desvela o caráter contingente e indeterminado da existência.
194
SOUZA, Thana Mara de, Sartre e a literatura engajada: Espelho Crítico e Consciência Infeliz, p. 87.
SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 127.
196
SOUZA, Thana Mara de, Op. Cit., p. 88
195
83
Chegamos desse modo às duas características fundamentais da imagem, a saber, a
imagem enquanto negação (Nada) e espontaneidade (Liberdade). É por isso que se pode afirmar
que “é na imaginação que as características essenciais da consciência parecem encontrar-se
realizadas de modo supereminente. Aí, o vazio, a espontaneidade, o nada, a negatividade e a
liberdade da consciência encontram as condições ideais para sua plena afirmação”.197 Ou seja,
é através da literatura, da criação ficcional enquanto obra imaginária e irreal, que o
existencialismo encontra a maneira de afirmar suas características fundamentais. Pelas vias da
criação literária explicita-se a realidade do Nada ou a negação enquanto fundamento da própria
realidade criada ou imaginada. Explicita-se também a espontaneidade da consciência enquanto
fundamento da liberdade radical do homem, na sua condição de existente historicamente
condicionado, ou melhor, enquanto um ser-no-mundo, um ser em situação. É nesse sentido que o
filósofo que se debruça sobre a existência é forçado a lançar mão da linguagem ficcional como
um meio de desvelar ao homem sua própria condição. Aqui deparamo-nos com outro problema:
se a imaginação é negação do real, ela não se apresenta também como fuga da realidade e, desse
modo, ela não seria uma forma de fuga do real, o que contraditaria toda a idéia de engajamento
presente em Sartre? Observa a comentadora:
[segundo Sartre], [...] a literatura, como toda arte, é criação e tentativa de
alcançar o Em-si-Para-si através da imaginação; a literatura é ambigüidade justamente
por ser imaginário: ao mesmo tempo que a imaginação é pobre por ter um saber
imediato e completo de seu objeto, por nada aprender com ele; ela é rica justamente
porque pode tudo colocar nesse objeto.198
Considerando-se que o caráter irreal das obras da imaginação possibilita uma via de
acesso privilegiado ao real, então, é através da negação do real que o real em sua amplitude se
desvela. Na criação ficcional, abre-se a possibilidade de instaurar realidades, isto é, de criar e
desvelar os múltiplos aspectos do caráter contingente da condição humana, desde sempre
inacessíveis a uma perspectiva natural ou objetivante. Assim, é com a imaginação, na irrealidade
fundada pela criação artística, pela negação, que o homem conhece perfis inauditos do real e é
capaz de instaurar possibilidades radicais de transformação do real efetivamente dado. 199
197
COELHO, Ildeu, Sartre e a Interrogação Fenomenológica do Imaginário, p. 179 apud SOUZA, Thana Mara. Op.
Cit., p. 89.
198
SOUZA, Thana Mara de, Op. Cit., p. 89.
199
Assim, podemos considerar, contra as interpretações que entendem que a obra imaginária é fuga do real, como atenta T. M.
de Souza, cabe afirmar que é justamente porque a literatura é obra imaginária que ela desvela ao homem sua própria condição
contingente. Assim, não faz o menor sentido dizer que a literatura se apresenta como uma forma de alienação.
84
Sartre afirma que ante sua fragilidade existencial, o homem se projeta como um ser
realizado, sem, no entanto, perder o caráter processual que caracteriza sua consciência. Na
terminologia do filósofo, isto significa que o homem busca tornar-se um Em-Si e
simultaneamente continuar a ser um Para-Si, ou seja, o homem busca tonar-se um Em-si-Parasi200. Talvez aqui a imagem de Deus enquanto fonte e ato criador, enquanto um ser completo,
sem limitações e com todas as suas potencialidades já realizadas, mas ainda consciente de si e do
mundo, seja a que melhor expresse essa idéia de Sartre. O homem, originariamente, “projeta
tornar-se Deus”. Projeto vão, nós o sabemos, visto que a consciência é fluxo continuo, isto é,
inexoravelmente inacabada, de modo que ela nunca poderá se constituir enquanto um Ser-Em-Si.
Daí a famosíssima e não menos polêmica máxima de Sartre: “o homem é um paixão inútil”.
Para o filósofo, o homem deseja realizar uma síntese impossível entre a consciência
(Nada) e o mundo (Ser), entre o Para-Si e o Em-Si. É por isso que ele entende essa síntese como
“um ser que seria seu próprio fundamento, não enquanto nada, mas enquanto ser, e manteria
em si a translucidez necessária da consciência, ao mesmo tempo que a consciência consigo
mesmo do Ser-Em-Si”.201 Portanto, como bem atenta T. M. Souza, o artista é aquele que busca
realizar essa síntese impossível através da criação ficcional, é aquele que, através da negação do
real, ou seja, da instauração do irreal da criação ficcional buscar realizar-se enquanto um Em-siPara-Si202.
Parece ser este pressuposto a fonte das interpretações que colocam o artista como aquele
que busca essencialmente a fuga do real, pois, se ele busca tornar-se um Em-si-Para-si através da
criação imaginária, realmente, parece que finda por esconder-se por detrás do universo ficcional
criado. Sob essa perspectiva, o que caracterizaria o escritor seria o fato de que ele vê na criação
ficcional um meio de se sentir essencial ao mundo, uma forma de criar ordem no caos que a
contingência instaura, e que, por isso mesmo, lança o homem no absurdo da sua gratuidade
existencial.203
No entanto, como frisamos logo no início deste texto, Sartre define a imagem como um
ato mágico capaz de, por intermédio da negação, remeter a um objeto ausente ou inexistente,
assim a imagem surge como “um ato que visa em sua corporeidade um objeto ausente ou
200
Tal como descrito anteriormente no primeiro capítulo deste estudo.
SARTRE, Jean-Paul, O Ser e o Nada, p. 140.
202
SOUZA, Thana Mara de, Op. Cit., p. 80.
203
Assim, “o imaginário se apresenta como possibilidade de salvação, de criação do mundo que desejamos e,
portanto, como possibilidade de exercitar uma liberdade absoluta (uma liberdade que se exerceria indiferente ao
real, às circunstâncias)”. Ibidem, p. 92.
201
85
inexistente” enquanto uma representação análoga do objeto visado.204 Neste ponto T. M. de
Souza frisa que, se o imaginário pode surgir como fuga do real, limitá-lo a esse âmbito seria
negar seu caráter ambíguo, ou, se se preferir, dialético, e reduzi-lo a um dos pólos desse
movimento que o caracteriza. Portanto, quando imagino nego o real, mas só posso negar esse
real sob um fundo real, é por isso que “ao mesmo tempo que, pelo ato de imaginar, a
consciência parece libertar-se momentaneamente do mundo, ela também só imagina em situação
no mundo”.205 É sob esse prisma também que devemos entender a passagem anteriormente
citada de Paulo Perdigão, segundo a qual a imagem “só pode ser Nada de alguma coisa real e
existir sobre um fundo de mundo real”.206 São, portanto, reducionistas as interpretações que
negam esse caráter de “inserção profunda no mundo” que caracteriza a literatura em Sartre.
Destarte, pela imaginação desvelam-se as vias de inserção mais radical na mundanidade,
ainda que o seu pressuposto seja a negação da realidade concreta. Desse modo, se, por um lado,
o imaginário pode se apresentar enquanto fuga do real, por outro lado, justamente em virtude da
necessária negação do real que ele pressupõe, ou seja, seu recuo em relação ao mundo, o
imaginário também desvela “um modo de a consciência ser-no-mundo e dela compreender sua
situação, de compreender-se como situada e inserida no mundo”.207
Logo, a afirmação – já referida – de Sartre em O Imaginário, é esclarecedora: o estar-nomundo aparece como um pressuposto necessário à imaginação. Se “a consciência deve ser livre
em relação a toda realidade particular, [...] essa liberdade deve poder [também] definir-se por
um „estar-no-mundo‟”, o que significa “que [a consciência imaginante] é ao mesmo tempo
constituição e nadificação do mundo”.208 A consciência aparece enquanto “motivação” da
constituição do irreal. Sartre assim se coloca:
[A] consciência no mundo deve a cada instante servir de motivação singular à
constituição do irreal. Dessa maneira, o irreal – que é sempre duplo nada: nada de si
mesmo em relação ao mundo, e nada do mundo em relação a si – deve sempre ser
constituído sobre o fundo do mundo que ele nega, ficando bem entendido, além disso,
que o mundo não se entrega somente a uma intuição representativa e que esse fundo
sintético requer simplesmente ser vivido como situação.209
204
SARTRE, Jean-Paul, O Imaginário, p. 37.
SOUZA, Thana Mara de, Op. Cit., p. 102.
206
PERDIGÃO, Paulo, Existência e Liberdade: Uma Introdução à Filosofia de Sartre, p. 65.
207
Ibidem, p. 107.
208
SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 242.
209
Ibidem, p. 242.
205
86
Parece evidente, deste modo, que o real é um pressuposto necessário à constituição do
irreal. Mais que isso, poderíamos considerar que ele é sua motivação e que, portanto, o irreal
requer a situação concreta como seu fundamento. Só por isso as teses que defendem o imaginário
como fuga e má-fé já não se sustentam. No entanto, cabe frisar ainda que é justamente através
desse irreal – que retira o homem da sua situação concreta para recolocá-lo nessa mesma
situação, mas só que agora tendo vivenciado sua condição contingente –, que se desvela o caráter
profundo desse real, seu substrato, a saber, a contingência. A comentadora vem complementar
nossas análises, contrapondo-se à todas as teses que defendem a necessária alienação implicada
na concepção de criação ficcional em Sartre:
O imaginário, na filosofia de Sartre, não deve ser visto primordialmente como
alienação e abstração, mas sim como uma imersão ainda mais profunda na realidade,
justamente por ser negação, um afastamento do mundo que exige um mergulho mais
profundo ainda na situação.210
Portanto a concepção defendida por T. M. Souza ponta para um necessário
desdobramento ético à filosofia, ou melhor, à criação ficcional, em Sartre. Sob essa perspectiva,
as afirmações de Sartre parecem crescer em força e relevância: “a consciência está sempre „em
situação‟ porque é sempre livre, para ela há sempre e a cada instante uma possibilidade
concreta de produzir o irreal”.211 Mas esse irreal produzido nunca perde seu fundo de real; ao
contrário, é ele que desvela o real profundo para além daquilo que nos aparece como
naturalmente ordenado. Assim, complementa o filósofo: “o irreal é produzido fora do mundo
por uma consciência que permanece no mundo, e é porque é transcendentalmente livre que o
homem imagina”.212 Ou seja, é porque o homem é transcendentalmente livre que ele é capaz de
ultrapassar sua condição naturalmente dada para “apreender a nadificação do mundo como sua
condição essencial e como sua primeira estrutura”.213
Como vimos, a criação ficcional instiga a instauração de inéditas realidades. É a partir do
caráter negativo da imagem, isto é, a partir de sua dimensão irreal que desvela a realidade, que o
escritor é capaz de revelar ao leitor seu caráter contingente e, por conseqüência, lançá-lo em sua
situação histórica. É através da literatura que o escritor lança o leitor novamente ao concreto, à
“poeira seca do mundo, sobre a terra rude, entre as coisas”. Destarte, a capacidade de instaurar
realidades a partir da imaginação aparece como um imperativo ético, ou seja, o escritor é
210
SOUZA, Thana Mara de, Op. Cit., p. 103.
SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 243.
212
Ibidem, p. 243.
213
Ibidem, p. 243.
211
87
impelido por seu ofício a engajar-se, desvelando nesse processo a sua própria situação e a
situação histórica de seus contemporâneos.
Retomando um pouco a discussão anterior, é justamente sob essa perspectiva que
devemos entender Saint-Sernin quando ele afirma que na literatura, “a partir do singular, podese remeter ao universal; ao se estudar um homem, se fala, na verdade, de todos os homens”. A
ficção se apresenta como um caminho de desnudamento do real, “ela deve conferir à descrição o
estatuto epistemológico de um concreto universal”.214
Ora, se, como buscamos ressaltar no decorrer deste capítulo, a literatura é capaz de
desvelar a condição contingente do homem ao próprio homem, e se isso se dá no recurso a
linguagem ficcional com seu caráter imaginário enquanto negação e, simultaneamente, afirmação
profunda do real, então parece pertinente interrogarmos o modo pelo qual isso se dá mais
especificamente na produção ficcional de Sartre. Eis o que tentaremos fazer no próximo capítulo,
isto é, a partir da análise do romance A Náusea. Com base na experiência do personagem
Roquentin, será nosso propósito elucidar como o mergulho nas imagens criadas pelo romance
nos brinda com uma compreensão mais profunda da condição do homem e de sua existência.
214
SAINT-SERNIN, Bertrand, Philosophie et fiction, p. 175. “[...] à partir du singulier, on peut remonter à l’universel;
en étudiant um homme, on parle em vérité de tous lês hommes” [...] “Elle doit conférer à la description le statut
épistémologique d’un concret universel” (nossa tradução).
88
CAPÍTULO III
Da experiência violenta e radical da Náusea ao necessário desdobramento ético
“Distintamente do existencialismo, um movimento literário francês da última década, a
filosofia da Existenz tem pelo menos um século de história...”
(Hannah Arendt)
1. Introdução
Se há, efetivamente, uma relação de interdependência entre o âmbito filosófico e o
âmbito ficcional da obra de Sartre – posição que procuramos defender no decorrer desse estudo –
e se essa relação está assentada sobre uma dupla insuficiência dessas duas esferas do saber –
como depreendemos dos escritos do autor –, torna-se pertinente retomar a problemática
levantada anteriormente, mas agora num âmbito mais específico: o interior de uma obra literária.
No primeiro capítulo de nosso estudo, vimos que Sartre, embora reconheça sua dívida
ante a filosofia fenomenológica, se opõe veementemente à tese de Husserl em relação ao Ego
transcendental, isto é, o filósofo contradita qualquer possibilidade de se substancializar a
consciência, o que implica a dissolução do Ego tal como compreendido pela tradição. Vimos
também que, sob a perspectiva existencialista, Sartre busca radicalizar a noção de
intencionalidade. Daí decorre uma concepção da consciência que se traduz em pura relação com
o mundo, enquanto fluxo contínuo em direção à auto-constituição, mesmo que isso nunca possa
se realizar por completo.
Assim uma importante questão se configura: seria possível entrevermos essas direções da
filosofia sartriana em ato, ao mergulharmos na leitura de seu primeiro romance A Náusea?
Assim, se a tese segundo a qual o recurso à criação ficcional é algo necessário a uma filosofia
que se debruça sobre a existência, devido à insuficiência da linguagem filosófica, resta-nos saber
como esse processo poderia ser vislumbrado no interior da criação ficcional propriamente dita.
Para tanto será pertinente retomarmos as discussões acerca do papel do imaginário, ou
como chamamos anteriormente do irreal como uma forma de acesso legítimo ao real, do irreal
89
que desvela o real. Este será o percurso desse capítulo, uma vez que essa problemática nos insere
de pronto na questão da relação entre imaginário e contingência, ou ainda, entre a necessidade,
característica predominante no universo literário – da prosa, mais exatamente – e a contingência
absoluta. A partir deste quadro buscaremos corroborar a tese da interdependência entre os
registros literário e filosófico, sem com isso recair nas interpretações que entendem a literatura
sartriana como “romances de tese”, o que, sob o nosso entender, significaria novamente atribuir à
Sartre uma instrumentalização da literatura. No entanto, antes de adentrarmos a proposta acima,
ousemos ainda uma digressão.
Cumpre interrogar: o que se entende por um romance de tese? Tomemos como mote as
palavras de Maurice Blanchot em Os Romances de Sartre:
[...] não há arte literária que, direta ou indiretamente, não queira afirmar ou
provar uma verdade. Mas então por que esse descrédito que atinge de preferência uma
obra de tese? Uma condenação dessas não seria o mesmo que rejeitar o escritor que sabe
o que quer dizer, em favor do escritor que não sabe e sustenta a inconsciência até o
ponto de se acreditar sem idéias, enquanto ele é o servidor das idéias de todo o mundo,
o que chamamos imparcial, objetivo e verdadeiro?215
Como sabemos, Blanchot tecerá uma dura crítica àquilo que habitualmente se entende por
um romance de tese, ou seja, que a obra engajada deve ser “honesta com o leitor e apresentar
claramente uma visão de mundo”, ou, em outras palavras, que o romance de tese deve agir de
“boa fé”; ele deve se posicionar claramente. Esse posicionamento que o romance de tese requer,
parece exigir que o escritor submeta sua literatura ao ideal defendido. Ora, Sartre não se cansará
de afirmar que fazer literatura engajada não significa submeter a literatura à ideologia de um
partido ou algo do gênero; na realidade, o que o filósofo busca afirmar é justamente o contrário,
ou seja, ao escritor cabe preservar sua liberdade nunca se submetendo a qualquer princípio que
possa condicionar sua literatura.216 Daí o seu dizer: “ninguém é escritor por haver decidido dizer
certas coisas, mas por haver decidido dizê-las de determinado modo. E o estilo decerto, é o que
determina o valor da prosa”.217 Para o filósofo, fazer literatura engajada não significa reduzi-la a
um instrumento de divulgação de idéias. Portanto, não é ocioso insistir:
215
BLANCHOT, Maurice, Os Romances de Sartre In: A Parte do Fogo, p. 187.
Nesse sentido é célebre a recusa do prêmio Nobel pelo autor. É nesse sentido também que Sartre diz em Que é
a Literatura?: “Caso se pergunte hoje se o escritor deve, para atingir as massas, oferecer os seus serviços ao partido
comunista, respondo que não: a política do comunismo stalinista é incompatível com o exercício honesto do ofício
literário.” (SARTRE, Que é a Literatura?, p. 188)
217
SARTRE, Jean-Paul, Que é a literatura?, p. 22.
216
90
[...] na “literatura engajada”, o engajamento não pode, em nenhum caso, fazer esquecer
a literatura e que nossa preocupação deve ser a de servir à literatura infundindo-lhe
sangue novo, assim como servir à coletividade tentando lhe oferecer a literatura que lhe
convém.218
Mas Blanchot não negligencia o alerta sartriano e lembra que “a arte literária é
ambígua”,219 e que à literatura cabe a “transmutação contínua do real em irreal e do irreal em
real”.220 Afirmação que se coaduna com o que afirmamos anteriormente ao nos debruçarmos
sobre o papel que a incursão no irreal tem para o conhecimento do real. Assim, se Sartre defende
o engajamento da literatura, isso não significa que a literatura deva se reduzir às teses nela
contidas. Daí a ambigüidade que caracteriza a arte literária, a qual deve manter a tensão entre as
exigências opostas que a caracterizam, ou seja, a forma e o conteúdo. Daí que “o engajamento
não pode, em nenhum caso, fazer esquecer a literatura”.
É justamente nesse sentido que Blanchot vai mais além. Ao referir-se à geração de Sartre,
o comentador assevera:
Pode acontecer que a filosofia, renunciando a se sair bem com sistemas,
rejeitando conceitos prévios e construções implícitas, se volte para as coisas, para o
mundo e os homens e procure retomá-los em seu sentido não-obscurecido. Essa
filosofia descreve o que aparece, isto é, o que realmente se mostra próximo no que
aparece, ela se interessa por situações reais, aí mergulha para chegar ao nível de
profundidade em que acontece o drama da existência. 221
Nesse sentido, chegamos à perspectiva que procuramos defender até aqui no decorrer
deste estudo. Ou seja, a idéia segundo a qual a literatura se volta para o concreto à medida em
que reinventa o real pela criação do irreal, oferecendo, deste modo, uma imagem legítima da
realidade. A criação romanesca expressa algo que é próprio da criação ficcional e que, por isso
mesmo, escapa ao âmbito teórico da filosofia. Como ressalta Blanchot, no contexto do
existencialismo, a tensão entre ficção e teoria se intensifica, e cada vez mais há um “apelo a
218
Idem, apud. LEOPOLDO E SILVA, Franklin. Literatura e experiência histórica em Sartre: o engajamento. In:
Filosofia e Crítica: Festschrift dos 50 anos do curso de filosofia da Unijuí.
219
BLANCHOT, Maurice, Op. Cit., p. 188. Nesse sentido, vale mencionar, ainda uma vez, a esclarecedora análise de
Thana Mara de Souza em Sartre e a Literatura engajada: “[...] o imaginário, para Sartre, deve ser pensado como
ambigüidade e tensão, que inclui o desejo de se alienar, de realizar o Em-si, Para-si, mas também a impossibilidade
de realizar autenticamente esse desejo, e com isso a inserção no mundo passa a ser compreendida de modo
especial: a necessidade e impossibilidade de realizar a síntese impossível entre Para-si e Em-si se tornam explícitas
no ato mesmo de imaginar. Se por um lado o imaginário é recuo em relação ao real, é transcendência, por outro
ele é inserção no mundo, na imanência, e justamente por ser negação e recuo. O caráter de negação no imaginário
não implica necessariamente apenas abstração da realidade, da existência contingente, implica também o
mergulho profundo no real”. (p.111)
220
BLANCHOT, Maurice, Op. Cit., p. 188.
221
Ibidem, p. 189.
91
problemas que exigem uma expressão concreta”. Portanto, se retomarmos a questão acerca do
romance engajado, podemos afirmar, com o comentador, que a criação romanesca “nada tem a
temer de uma tese, com a condição de a tese aceitar nada ser sem o romance”.222 É justamente
nesse sentido que acreditamos que a questão se equaciona nas reflexões de Sartre.
Sob esse mesmo registro, Julio Cortázar é quem talvez melhor sintetize a posição que
buscamos defender aqui acerca deste problema. Buscando relacionar a situação do romance
contemporâneo com a sua produção, ele assinala: a “situação do homem enquanto homem, que
marca a mais inquieta novelística destes dias, nada tem a ver com o „romance social‟ entendida
como complemento literário de uma produção política, histórica ou sociológica”.223 Assim, o
literato define o que denomina “romance existencial”, o qual se revelaria como o
[...] próprio estado de coisas, o problema coexistindo com sua análise, sua
experiência e elucidação [...] o que fez este romance foi mostrar e expressar o
existencial em suas próprias situações, em sua circunstância; quer dizer, mostrar a
angústia, o combate, a liberação ou a rendição do homem a partir da situação em si e
com a única linguagem que podia expressá-la: a do romance, que procura desde tanto
tempo ser de certo modo a situação em si, a experiência da vida e seu sentido no grau
mais imediato.224
Deste modo, o que o autor parece sugerir é uma perfeita complementaridade entre a
problemática existencialista e sua necessária expressão literária, isto é, o “romance existencial”
expressa sua teoria da única forma em que ela pode ser expressa, qual seja, a partir da situação
concreta do homem. Perspectiva que coincide com a formulação de Blanchot, segundo a qual a
filosofia existencialista “se interessa por situações reais, aí mergulha para chegar ao nível de
profundidade em que acontece o drama da existência”.225 Compreendemos, portanto, a
conclusão de Cortázar, em seu comentário acerca de um ponto que, afinal, é o nosso: a
“experiência do personagem de La Nausée só se pode apreender mediante uma situação como a
sua, e uma situação como a sua só pode comunicar ao leitor mediante um romance”.226 Tornase lícito afirmar que Sartre não escreve ficção para ilustrar teses filosóficas, pura e simplesmente,
mas para expressá-las com a única linguagem capaz de traduzir o drama da existência, capaz de
expressar uma filosofia que se ocupe do concreto das situações reais.
222
Ibidem, p. 201. grifo nosso
CORTÁZAR, Julio, Valise de Cronópio, p. 78. Grifado no original.
224
Ibidem, p. 78. Grifo nosso.
225
BLANCHOT, Maurice, Op. Cit., p. 189.
226
CORTÁZAR, Julio, Op. Cit., p. 78-9.
223
92
Por fim, cabe uma última alusão às instigantes reflexões de Blanchot acerca dos romances
de Sartre, no intuito de ressaltar que, no nosso entender, engajar a literatura não implica, de
forma alguma, uma instrumentalização da criação ficcional. Assevera o autor ao se referir ao
romance A Idade da Razão:
O drama não se desenrola em debates interiores. Também não se expressa
numa história, que, como vimos, é nula. Mas ele pousa sobre as coisas, escorre no
mundo, mistura-se à realidade exterior como a água que com a areia forma o cimento. É
esse o grande talento de Sartre, o que melhor mostra nele a perfeita correspondência
entre o teórico e o romancista. 227
Ao atestar a inegável excelência da criação ficcional em Sartre, assinalando ao mesmo
tempo que há na obra do filósofo uma “perfeita correspondência entre o teórico e o
romancista”, Blanchot aponta para o que estamos a sustentar nessas linhas, ou seja: a literatura
sartriana de modo algum se reduz à uma forma de ilustrar teses filosóficas. Nesse sentido,
parece-nos claro que as interpretações dos dois comentadores – o filósofo e o literato –
convergem. Elas vêm alicerçar as nossas análises subseqüentes, nas quais procuraremos enfatizar
que o engajamento em Sartre não resulta numa redução de sua literatura a “romances de tese”, ao
menos não no sentido mais superficial com que se compreende a idéia de engajamento. É a partir
desse pressuposto também que devemos entender a relação de interdependência a que nos
referimos entre criação ficcional e reflexão filosófica, posto que esses são caminhos
complementares no âmbito da filosofia existencialista.
Essas questões servirão de norte às reflexões que compõem os tópicos subseqüentes. Em
vista disso, muito do que já foi explicitado anteriormente será retomado, mas sob a perspectiva
da novelística sartriana, mais exatamente de seu romance A Náusea. O percurso que nos
propusemos a percorrer se inicia com a análise da experiência violenta e radical da Náusea
vivenciada por Roquentin, porque é justamente essa experiência que desvela ao homem sua
própria condição, a saber, o caráter absolutamente contingente da existência. Nessa incursão pelo
romance sartriano, será, portanto, imperioso retomar os pontos desenvolvidos nos capítulos
precedentes. Adentremos, pois, essa experiência literária.
227
BLANCHOT, Maurice, Op. Cit., p. 197.
93
2. A experiência violenta e radical da Náusea vivenciada por Roquentin
Análogo ao que faz Clarice Lispector em A Hora da Estrela, poderíamos elencar uma
série de títulos para este tópico: “A existência como uma exuberância desordenada”; “O
desabamento do mundo humano”; “A descoberta da existência”; “Rasga-se o véu da ordem e
do curso das coisas”; “Em lugar do ser e da necessidade a existência e a contingência”; “Tudo
pode acontecer” etc.
228
No entanto, mesmo que cada um desses títulos enriquecessem a
descrição, nem todos juntos seriam capazes de reproduzir a experiência que o personagem
Roquentin, de A Náusea, vivencia.
O primeiro ponto que cabe ressaltar diz respeito ao termo “experiência”229 presente no
título deste tópico e que é referência constante para a maioria dos comentadores que se propõe a
discutir essa problemática em Sartre.230 Chama a atenção o fato de que já nas primeiras páginas
do romance, o personagem Roquentin, ao decidir-se a registrar algo que lhe sucedera em um
diário, fale em “sentir de novo aquela impressão de anteontem”231, ou ainda: “senti na mão um
objeto frio que me chamava a atenção, como se possuísse uma espécie de personalidade. Abri a
mão, olhei: era simplesmente o fecho da porta”232. Essas asserções indicam que o movimento
que leva à constatação da condição de absoluta contingência da existência, que é pontuado pela
manifestação violenta e radical da Náusea, se origina numa experiência. Daí que o fundamento
da revelação e do substrato metafísico da existência concreta do homem resida no registro da
vivência. Como ressalta Moutinho, a experiência que acomete o personagem acontece num
228
A menção a Clarice Lispector não é casual. Conforme as brilhantes análises de Benedito Nunes, em O Dorso do
Tigre e também em O Drama da Linguagem, é notória a relação que podemos estabelecer entre a perspectiva
existencialista e o universo ficcional da autora. No que diz respeito ao sentimento da Náusea, ao analisar o conto
Amor, o comentador diz: “a náusea clariceana é análoga a de Sartre” (O Drama da Linguagem, p. 119).
229
Neste ponto de nosso estudo estamos nos referindo de forma mais ou menos indistinta aos termos: sentido,
vivência e experiência. No entanto, cabe ressaltar, que não ignoramos a especificidade desta terminologia, mas ao
que nos propusemos não parece necessário pormenorizá-las. Não ignoramos também as instigantes análises de
Moutinho acerca da oposição entre sensações e sentidos, assim como do corpo enquanto condição de
possibilidade da vivência, o que implica a concepção de que o homem é um ser lançado no mundo, um ser-nomundo, um ser sempre em situação. No entanto, também aqui, não é nosso objetivo nos aprofundarmos.
230
Em dado momento, por exemplo, Franklin Leopoldo e Silva fala sobre “sentir-se existindo” (Ética e Literatura
em Sartre: Ensaios Introdutórios, p. 85); Moutinho intitula o tópico sobre o sentimento da náusea de “A
Experiência de Roquentin” (Sartre: Psicologia e Fenomenologia, p. 48) e também “as experiências acontecem
involuntariamente” (Ibidem, p. 59); Benedito Nunes fala de um “sentimento específico e raro” ao se referir à
Náusea sartriana (O Dorso do Tigre, p. 93). Poderíamos enumerar ainda diversos momentos em que a referência é
explícita, mas fiquemos por aqui.
231
SARTRE, Jean-Paul, A Náusea, p. 12.
232
Ibidem, p. 16. Aqui poderíamos enumerar uma série de passagens que atestam esse mesmo aspecto que
buscamos destacar.
94
crescendo que vai das sensações táteis, passando pelas sensações visuais, até o ponto em que a
própria condição existencial se desvela.233
Já na primeira frase do diário, Roquentin escreve: “Aconteceu-me qualquer coisa; já não
posso duvidar. Qualquer coisa que veio à maneira duma doença, não como uma vulgar certeza,
não como uma evidência”.234 O que acomete o personagem vem “à maneira duma doença”,
análogo ao registro grego do páthos; trata-se, pois, de algo do âmbito do involuntário, algo que
“se sente”. Notemos que o pressuposto aqui consiste numa inversão do caminho seguido por
Descartes: os sentidos não são fonte de erro, mas antes a única forma de acesso à experiência
violenta e radical da Náusea, a qual, por sua vez, é fonte de acesso a uma visão mais profunda da
realidade.
Tanto é assim que Roquentin, quando tomado pelo sentimento da Náusea, assinala:
A existência não é qualquer coisa que se deixe conceber de longe: é preciso
que o sentimento dela nos invada repentinamente, se detenha em cima de nós, nos
ponha um peso imenso no coração, como um grande animal imóvel – porque, a não ser
assim, nunca se saberá o que ela é.235
É por esse viés que entendemos a parodia do cogito cartesiano realizada por Sartre no
romance, ou seja, é por intermédio dos sentidos que o personagem se depara com a Náusea, ou
melhor, ele se depara com o caráter absolutamente contingente da existência. Ou ainda, se
quisermos retomar a terminologia existencialista de A Transcendência do Ego, a experiência da
Náusea é algo do âmbito do cogito pré-reflexivo, o que significa que ela antecede a consciência
de segundo grau, o cogito reflexivo. Trata-se de uma vivência. Portanto, tal como exposto no
capítulo que nos propusemos a analisar o ensaio sobre a transcendência do Ego, o cogito préreflexivo é condição de possibilidade para que o cogito reflexivo aconteça.
Como bem lembra Moutinho a referência à Descartes, que é explicitada em A
Transcendência do Ego, se constrói principalmente na referida oposição entre o voluntário e o
involuntário.236 Para Sartre, como dissemos, a consciência se caracteriza como pura
espontaneidade impessoal, e por conseqüência, sem nada que possa motivá-la ou determiná-la; o
autor veta, desse modo, qualquer tentativa de se substancializar a consciência. No entanto, sob o
registro cartesiano, o cogito aparece como resultado de um “Eu que pensa”, como obra de
alguém que se põe confortavelmente a pensar sobre a existência e que constata que há um “Eu
233
MOUTINHO, Luiz Damon Santos, Sartre: Psicologia e Fenomenologia, p. 49.
SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 15.
235
Ibidem, p. 225.
236
MOUTINHO, Luiz Damon Santos, Op. Cit., p. 60.
234
95
pensante”, isto é, há o pressuposto da voluntariedade desse “Eu que pensa”. 237 Aqui acontece
uma inversão, tal como alerta Sartre no referido ensaio, isto é, o âmbito reflexivo aparece como
anterior ao âmbito pré-reflexivo, o que, como vimos, se mostra absurdo. É nesse sentido também
que comenta Franklin Leopoldo e Silva:
Não se pode contar com a tranqüilidade objetiva da reflexão que constata a
realidade originária do pensamento e o Eu como essa instância cuja propriedade
essencial é pensar. A reflexão está totalmente penetrada pelos afetos contraditórios de
um sujeito que se constitui dolorosamente. 238
Estamos prontos, então, a entrar na paródia do cogito propriamente dita, pois o pensar a
que se refere Sartre em A Náusea pressupõe a mediação dos sentidos como seu fundamento. Não
se trata de demonstrar uma “evidência” ou qualquer “certeza vulgar”, mas, antes, de estabelecer
o sentimento radical e violento da Náusea como pressuposto para o conhecimento visceral da
realidade. Poderíamos dizer que é nesse sentido que Roquentin se manifesta em seu diário:
Se pudesse fazer com que não pensasse! Tento, consigo: tenho a impressão de
que a cabeça se me enche de fumo... mas eis que tudo recomeça: “Fumo... não pensar...
Não quero pensar... Penso que não quero pensar. Porque isso mesmo é um pensamento.”
Então isto nunca acaba?
O meu pensamento sou eu: por isso é que não posso deter-me. Existo porque
penso... e não posso deixar de pensar. Nesse momento preciso – é odioso –, se existo é
porque tenho horror a existir. Sou eu, sou eu que me extraio do nada a que aspiro: o
ódio à existência, a repulsa pela existência, são outras tantas maneiras de a cumprir, de
mergulhar nela.239
Manifesta-se, assim, o caráter involuntário daquilo que ocorre ao personagem. Ele fala de
um sentimento de ódio, de repulsa, e nunca de um ato voluntário e seguro de um “Eu que pensa”.
Sartre se refere, deste modo, a uma vivência, a um sentimento que arremete o personagem. Tratase, portanto, tal como dissemos, do âmbito pré-reflexivo. Em outras palavras, a reflexão é
sempre permeada pela pura espontaneidade do cogito pré-reflexivo. É ilustrativo o momento em
que o personagem descreve:
Estava então há bocadinho no jardim. A raiz do castanheiro mergulhava na terra,
mesmo por baixo do meu banco. Não me lembrava, porém, que era uma raiz. As
palavras tinham-se evaporado, e, com elas, o significado das coisas, os seus modos de
emprego, os pálidos pontos de referência que os homens lhes traçaram à superfície. 240
237
Retomaremos a crítica sartriana ao “Eu” mais adiante; por hora, basta-nos a explicitação do sentimento da
Náusea.
238
LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Ética e literatura em Sartre: Ensaios introdutórios, p. 55.
239
SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 172.
240
Ibidem, p. 216.
96
O que mais se evidencia, nesta passagem, é que ao sentimento da Náusea se acrescenta a
constatação do desvanecimento de um mundo ordenado, no qual os objetos à sua volta obedecem
a algum critério, e que, na realidade, não há necessidade alguma no mundo, que as coisas
perderam seu significado; as palavras desvinculam-se, pois, de “seus modos de emprego, os
pálidos pontos de referência que os homens lhes traçaram à superfície”. Esse desconcerto revela
que por traz do tênue véu que encobre a realidade reside a total e absoluta gratuidade da
existência. Os símbolos lingüísticos perderam seus sentidos porque a necessidade lógica
implicada na linguagem já não é capaz de garantir a segurança almejada; tudo é gratuito. Não há
uma essência capaz de justificar por si só a existência. Assim “a existência dera-se subitamente
a conhecer”,241 e subitamente porque, como dissemos, não se trata de um ato voluntário, mas
antes de uma experiência, de um sentimento análogo a uma doença, de uma vivência. Novamente
aqui a idéia de que a Náusea é algo que se sente, é algo que toma de assalto Roquentin.
Por conseqüência, a existência perde seu caráter causal passível de ser apreendido e
dominado pelas categorias abstratas da razão; o mundo perde seu caráter inofensivo. Os objetos
passam a incomodar Roquentin. Ele gostaria que eles “existissem com menos intensidade, duma
maneira mais seca, mais abstrata, com mais recato”.242 Esse grau menor de concretude,
digamos, permitiria que eles fossem reduzidos mais facilmente às categorias abstratas, àquilo que
é dotado de necessidade lógica. Portanto, o mundo:
[...] perdera o seu aspecto inofensivo de categoria abstrata: era a própria massa
das coisas; aquela raiz estava amassada em existência. Ou antes, a raiz, o gradeamento
do jardim, o banco, a relva rala do tabuleiro, tudo se tinha evaporado: a diversidade das
coisas, a sua individualidade, já não era mais que uma aparência, um verniz. Esse verniz
derretera-se; restam massas monstruosas e moles, em desordem – nuas, duma medonha
e obscena nudez.243
Por detrás do caráter involuntário da vivência de Roquentin, o que vemos ocorrer ao
personagem é o desvelamento do caráter processual da consciência lançada no mundo, sua
completa espontaneidade. Desvela-se, assim, a contingência do existir. Se não há nada que possa
justificar a condição humana, devido justamente ao seu caráter contingente, não há nada também
capaz de eximir Roquentin de assumir suas ações. É por isso, como veremos, que a tentativa do
personagem de negar sua transcendência imanente, digamos assim, está fadada ao fracasso. O
241
Ibidem, p. 217.
Ibidem, p. 218. Grifo nosso.
243
Ibidem, p. 217. Grifo nosso.
242
97
contato com esse aspecto insuperável da existência, que se revela com o sentimento da Náusea,
impossibilita a renúncia da transcendência – tal como compreendida por Sartre e como
problematizamos anteriormente – exceto talvez se sustentada pela má-fé.244 O que temos aqui
portanto é um duplo movimento: por um lado, o desvanecimento da ordem do mundo, a
explicitação de seu caráter contingente; por outro, o caráter processual da consciência que
implica em assumir suas ações. Daí a dissolução do Eu no mundo; Roquentin já não é capaz de
sustentar sua identidade. Sabemos que sob a perspectiva do existencialismo, ser significa fazerse continuamente, de modo que a experiência vivenciada pelo personagem se justifica; sua
angústia deriva do fato de que ele é tomado pelo desejo de um eu sólido que contradita
completamente essa concepção do eu enquanto fluxo.
Compreendemos, assim, a idéia de uma “fatalidade da espontaneidade”: “A fatalidade da
espontaneidade exige que Roquentin assuma a existência, que ele se constitua para si. Não pode
[portanto] fugir da imanência de si a si, mas há algo nesse entremeio que depende da
liberdade”.245 Portanto, a paródia do cogito cartesiano ressalta a angústia existencial ante a
constatação da condição de total gratuidade da existência. Esse mal estar ante a ausência de
alicerces, quaisquer que sejam a sua natureza, suscita inevitavelmente “o ódio à existência, a
repulsa pela existência” de que fala o personagem: “Se existo é porque tenho horror a existir”.
Simultaneamente, desvela-se a verdade “clara e evidente”, a mesma procurada pela filosofia
cartesiana, ainda que na experiência vivida por Roquentin, como antes salientado, nada haja de
claro e evidente: “a existência, liberta, despida, reflui sobre mim. Eu existo”.246 É nessa direção
que Moutinho acrescenta: “Daí por que o enunciado nada tem aqui da calma e sossegada
reflexão cartesiana, mas é antes uma experiência dramática”.247 Depreende-se desta experiência
elucidativa que a novelística existencialista exige o mergulho no concreto da condição humana,
em sua dimensão histórica. Faz-se necessário, a essa filosofia, abarcar a experiência do drama da
existência. Assim, o drama da existência se exprime na ação de se fazer sujeito em meio à
facticidade, de modo que o palco dessa ação é a História em seu movimento incessante. O
pensamento filosófico está sempre condicionado à história. É nesse sentido, vale ratificar, que
244
Aqui talvez caiba um paralelo com a concepção heideggeriana de existência inautêntica, na qual existir
autenticamente pressupõe assumir a angústia existencial que dela decorre. Daí o paralelo possível, isto é, agir de
má-fé significa, na terminologia heideggeriana, “existir inautenticamente”, pois existir autenticamente pressupõe
assumir a angústia que daí decorre. Sob a perspectiva sartriana, trata-se de assumir sua transcendência, a
responsabilidade que a ação humana implica. (Heidegger, Ser e Tempo, §40, p. 247ss).
245
LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Op. Cit., p. 55.
246
SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 170.
247
MOUTINHO, Luiz Damon Santos, Op. Cit., p. 56.
98
Sartre insiste em assinalar que, na contemporaneidade, a filosofia não pode escapar de sua
dimensão dramática.
Conquanto os comentadores se refiram a algo que se sente, ao sentimento da Náusea
enquanto experiência radical, – a qual, como vimos, se origina em contraposição ao que propõe o
cogito cartesiano –, Leopoldo e Silva atenta para um aspecto sutil deste sentimento: “[...] a
Náusea não é algo que [Roquentin] sente, mas o próprio modo de sentir-se existindo”.248
Destarte, o que a princípio pode parecer uma contradição, ou seja, a passividade do “sentir” em
contraposição à ação que esse “sentir-se existindo” exige, é, na realidade, a expressão do caráter
fluido da consciência,249 a pura espontaneidade que melhor a define, tal como buscamos
explicitar nos capítulos anteriores. E, mais do que isso, o “se sentir existindo” remete-nos de
pronto ao aspecto concreto que a metafísica adquire em Sartre, tal como viemos insistindo, pois a
“concepção sartriana de metafísica: não é algo que paira sobre o sujeito como uma referência
essencial, mas algo que diz respeito àquilo que o constitui existencialmente”.250
Cabe ainda explorar um pouco mais de perto o significado do desabamento da ordem do
mundo, do caráter necessário que aparentemente sustenta o real, pois, como afirma Sartre
diversas vezes em sua obra, inclusive de forma literária, “o homem é uma paixão inútil”. Ou
seja, o Para-Si busca constantemente se constituir enquanto um Em-Si sem, no entanto, negar seu
caráter transcendente. Desse modo, a partir deste postulado, Roquentin tentará várias estratégias
para fugir ou negar a espontaneidade desvelada pelo sentimento da Náusea. Em dado momento,
o personagem se pronuncia claramente a esse respeito: “E eu também quis ser. Não quis mesmo
outra coisa; eis a última palavra sobre minha vida: no fundo de todas aquelas tentativas que
pareciam desligadas encontro sempre o mesmo desejo: expulsar a existência para fora de
mim”.251 Assim, o personagem revela seu anseio de converter-se num Em-Si, de adquirir a
materialidade daquilo que é. É importante frisar que durante todo o percurso do romance o
personagem sempre buscará maneiras de negar sua condição contingente e livre. Sua reação ao
sentimento da Náusea, o qual decorre da “clareza” acerca da ausência de solidez que ele constata
248
LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Op. Cit., p.87.
Retomaremos ainda o caráter fluido da consciência, ou melhor, a consciência como pura translucidez, como
movimento em “direção à”, no próximo tópico.
250
Ibidem, p.111.
251
SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 296.
249
99
nas coisas do mundo que o cerca, é sempre de fuga, como se a Náusea manifestasse um
precedente necessário para o agir de má-fé.252
Assim, “se não há medidas, relações, quantidades, critérios, direções, então tudo é
arbitrário e o „mundo humano‟ pode desabar. É uma desordem sentida, e Roquentin, sem
compreendê-la, compreende que pode vir a sentir-se parte dessa desordem, algo que teme
sobretudo”.253 É justamente porque Roquentin teme essa desordem, essa total gratuidade do
“mundo humano”, que ele busca a segurança de um mundo ordenado. Com a manifestação da
existência crua e explícita, Roquentin vê desfazer-se na contingência aquilo que o protegia. E
aqui não é vão mencionar a leitura de Leopoldo e Silva, que alude ao ato de “compreender sem
compreender” que acomete o personagem. Notadamente, não se trata de um movimento de
reflexão, mas antes, de algo que é vivido de modo análogo a uma patologia; trata-se de “sentir-se
existindo”. A existência não é um romance de aventuras, e não há nada que garanta um final
feliz.
É justamente por isso que o sentimento do absurdo existencial é algo tão caro à filosofia
de Sartre. Nessa direção, Benedito Nunes analisa a relação entre o existencialismo sartriano e sua
expressão literária presente na obra de Clarice Lispector. Não é nosso interesse enveredarmos
pelo texto do filósofo paraense. Mas a alusão a esta análise tem sua pertinência, uma vez que os
seus argumentos a um só tempo reforçam dois aspectos que procuramos enfatizar em nossa
investigação: 1) a interpretação da literatura enquanto uma maneira de instaurar o irreal como
uma porta de acesso legítimo ao próprio real; 2) a relevância do tema do absurdo existencial
decorrente da constatação da condição contingente do homem na filosofia existencialista. Assim,
sob o foco do autor, a Náusea sartriana configura-se como
[...] um mal estar súbito e injustificável que do corpo se apodera e do corpo se
transmite à consciência, por uma espécie de captação mágica emocional, a Náusea
(mais primitiva do que a angústia e como esta esporádica) revela, sob a forma de um
fascínio da coisa, a contingência do sujeito humano e o absurdo do ser que o circunda.
Esse estado produz a suspensão dos nexos teóricos e práticos que nos ligam ao mundo, e
de injustificável que é, passa a constituir uma experiência do caráter injustificável em
geral.254
252
E esse alerta é importante, pois, quando retomarmos o problema da arte como possibilidade de salvação, ele
permitirá compreender melhor porque, em Sartre, a literatura não pode representar apenas uma possibilidade de
fugir ao sentimento da Náusea.
253
LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Op. Cit., 88-9.
254
NUNES, Benedito, O Drama da linguagem, p. 117.
100
Nesta passagem, Benedito Nunes ressalta, na experiência da Náusea, o sentimento de que
o mundo, com seu caráter lógico, desaba, suspendendo os “nexos teóricos e práticos”; processo
que simultaneamente desvela a gratuidade do mundo humano. Nesse sentido, nem mesmo o
passado logra instaurar a segurança requerida pelo personagem.255 Isto é, de nada mais adianta ao
personagem narrar a si próprio um passado de aventuras, pois o presente se impõe, mediado pelo
sentimento violento e radical desta Náusea. Não há nada que garanta a vida de aventuras
desejada por Roquentin; compreendemos, pois, sua afirmação:
Não tive aventuras. Sucederam-me histórias, acontecimentos, incidentes, tudo
que se quiser. Mas aventuras, não. Não é uma questão de palavras; começo a
compreender. Há qualquer coisa que eu prezava mais que o resto – sem dar bem por
isso. Não era o amor, oh, não!, nem a glória, nem a riqueza. Era... Enfim, tinha
imaginado que, em certos momentos, a minha vida podia ganhar uma qualidade rara e
preciosa. Não eram as circunstâncias extraordinárias: tudo quanto eu pedia era um
pouco de rigor”.256
O que se desvela ao personagem é o caráter contingente da existência e, contra isso, nem
mesmo o passado é capaz de garantir o “rigor” e a segurança perdidos. Aspecto esse também
salientado pela instigante análise de Moutinho em Sartre: Psicologia e Fenomenologia. Nessa
senda, clarifica-se também a distinção realizada pelo comentador entre “vida” e “aventura”
presentes no romance, ou seja, a aventura aparece a Roquentin como uma maneira de forjar a
segurança de um mundo ordenado e necessário. O que o personagem deseja, portanto, é resgatar
a ordem perdida do passado através da segurança de uma narrativa de aventuras, como se essa
narrativa pudesse restaurar o sólido conteúdo de um tempo pretérito. A angústia irromperá,
contudo, visto que esta tentativa está fadada ao fracasso. Expliquemos.
Para esquivar-se do desespero suscitado pela constatação do caráter evanescente do
passado, Roquentin busca narrar-se a si próprio a sua história, pois “é a narração que converte
um acontecimento banal em aventura como converteu em aventura o passado de Roquentin; a
narração confere organicidade, um „rigor‟ aos acontecimentos que a simples sucessão
quotidiana desconhece”.257 No entanto, a estratégia não vinga porque Roquentin percebe que
mesmo que a ordem narrativa pareça capaz de restaurar a solidez do passado, ela é impotente
255
O passado já não figura como substância seja para o historiador em crise do romance de Sartre, seja, como nota
B. Nunes, a dona de casa do conto Amor de Clarice Lispector. É justamente nesse sentido que ele afirma: “em
Sartre como em Clarice Lispector, a náusea, que neutraliza o poder dos símbolos é o ponto de ruptura do sujeito
com a praticidade diária.” (NUNES, Benedito, O Drama da linguagem, p. 121). Ou seja, é através da experiência da
Náusea que é revelado o absurdo da existência humana com seu caráter gratuito.
256
SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 70.
257
MOUTINHO, Luiz Damon Santos, Op. Cit., p. 51.
101
para suprimir a contingência e a gratuidade da existência que assolam o presente, as quais se
manifestam na experiência da Náusea. Essa evidência conduz o personagem à conclusão de que,
na verdade, ele não teve aventuras:
Alguma coisa começa para acabar: a aventura não admite prolongamentos
artificiais; só da sua morte lhe vem o sentido. Sem possibilidade de voltar a trás, sou
arrastado para essa morte, talvez seja também a minha. Cada instante só aparece para
trazer os que se lhe seguem. Sinto-me ligado a cada um, do fundo do coração: sei que
ele é único, insubstituível – e não faria, porém, um gesto para o impedir de voltar ao
nada.258
A absoluta contingência do presente abole também a possibilidade de alguma
consolidação do passado. Ou melhor, é sempre a posteriori que a aventura pode ser forjada; no
limite, “só da sua morte lhe vem o sentido”. Se é no passado que o mundo se mostra ordenado, é
por que a consciência lança sobre ele um olhar que o ordena, fixando-o para além da
contingência que o marcara quando vivido. Destarte, se meu presente se mostra como resultado
de um desencadeamento causal é porque busquei a posteriori um sentido e uma ordem para ele.
Mas, de fato, o presente não obedece a ordem alguma, “tudo é possível”. No que tange ao
passado, insistimos, essa ordem só é possível sob o registro do constructo ou da ficção. Comenta
Leopoldo e Silva:
A vida não é um romance de aventuras – descobrirá Roquentin – porque ela
não depende de um narrador que articule os eventos e faça que a história vivida se
produza a partir dessa articulação, o que significa que se poderia contar com o fio da
narração como suporte dos acontecimentos e como sustentáculo temporal. 259
A conexão causal presente na narrativa do passado provém da expectativa de manter as
coisas suspensas no tempo, do ato de narrar o passado como um romance de aventuras em
contraposição à vida. No entanto, a assunção da fluidez do presente implica o sacrifício desse
passado plenamente ordenado. Para ficar mais claro, o presente se desvela à Roquentin como um
fluxo contínuo, espontâneo e gratuito, sem justificativas. Não há nada capaz de justificar a
efemeridade do presente, falta-lhe a figura do autor do romance de aventuras, falta-lhe a ordem
implícita. Daí que o esforço narrativo apareça como uma possível superação dessa instabilidade
esmagadora. No entanto, ao confrontar o caráter teleológico da narrativa – seja ela auto-narrativa
ou a narrativa literária – com a contingência insuperável da experiência concreta, o homem vê
desvanecer-se o sentido dado a priori à existência. O caráter desvelador da experiência da
258
259
SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 71. Grifo nosso.
LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Op. Cit., p. 82.
102
Náusea converte, pois, a aventura narrativa numa criação artificial porque injustificável. Noutros
termos, a confrontação da ordem teleologicamente ordenada no romance com a gratuidade da
realidade oferece uma porta de acesso legítimo não à superação da náusea, mas ao âmbito
contingente da própria existência.
A despeito disso, Roquentin persiste em constituir um mundo ordenado e seguro por
intermédio da construção de narrativas. Mas, o mal já está feito. Nada é capaz de trazer de volta
a segurança desse mundo almejado. A necessidade presente na narração de um romance de
aventura se mostra completamente ilusória; ela vem apenas para reforçar a condição do homem.
É significativa a constatação do personagem:
Talvez não preze nada no mundo como o sentimento de aventura. Mas ele vem
quando quer; e abandona-me tão depressa! E fico tão seco quando se vai embora. Farme-á ele estas visitas irônicas para me mostrar que falhei na vida?
Atrás de mim, na cidade, pelas grandes ruas direitas, à luz fria dos candeeiros,
um formidável acontecimento social agonizava: era o fim do domingo. 260
É como se o sentimento de aventura, da garantia de um mundo necessário, no qual tudo
obedece a algum critério que antes permitiria o desvio da contingência – o que se deve à suposta
estabilidade da arte – lograsse agora apenas a ratificação da contingência. Tudo se revela como
fruto do acaso; o desbotar da ordem do mundo o transmuda em uma ameaça constante. Desse
modo, compreende-se que “a necessidade de ser aparece como mero „verniz‟ que oculta a
contingência” e também que “a descoberta da existência o deixou [ao personagem] „sem
respiração‟. Pensar na existência e, sobretudo, sentir-se existindo é algo como perder o chão,
não poder apoiar-se em mais nada”.261 É por isso que o personagem constata que “um
formidável acontecimento social agoniza”. É porque a existência se apresenta como algo
gratuito que a ordem social imposta, que sempre se mostrou estável e segura, já não se justifica.
Não há nada capaz de justificar a priori a existência humana. Em síntese, a narrativa literária, tal
como empreendida nesta experiência romanesca, mostra-se como o lugar no qual a contingência
se impõe, pois a criação ficcional, elaborada por alguém que vivenciara a dissolução ordenada do
mundo, como no caso de Roquentin, já não é capaz de oferecer consistência ao real ou ao
passado.262
260
SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 101.
LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Op. Cit., p. 85.
262
Notemos que isso ocorre, tal com analisaremos mais adiante, porque há uma inversão no fluxo temporal na
narrativa literária, ou seja, é por oposição que a literatura evidencia a condição humana. Por outro lado, ela
oferece simultaneamente uma abertura para a constatação da compreensão da consciência enquanto movimento,
pois apresenta o existente em sua situação concreta, vivenciando sua condição contingente, e, ao empregar sua
261
103
Deste modo, a constatação que cada vez mais ganha força para o protagonista é a de que
ele “foi livre para escolher: não havia fatalidade; a liberdade irrompe pouco a pouco”.263 É
necessário lembrar que no âmbito da narrativa literária em “tudo há uma razão de ser”. A trama
obedece a um propósito, aquele perseguido ou insinuado pelo autor. A arte surge, pois, como o
lugar do tempo da necessidade. Por oposição, evidencia-se a falta de sentido inerente à “vida”, à
existência em fluxo lançada no puro movimento da história; de fato, não há nada que possa
garantir a permanência do mundo. Poderíamos colocar a questão do seguinte modo: o tempo da
“vida” é o tempo do indeterminado, do contingente; em oposição, o tempo da arte (aventura) é o
tempo do que é necessário, do determinado. Torna-se lícito, pois, afirmar com toda segurança
que é a partir de uma inversão do fluxo temporal da realidade que a arte, – e mais
especificamente no nosso caso a literatura, a prosa –, desvela o real através do irreal. Moutinho
chama atenção para essa dimensão necessária da arte que desvela, por contraste, a contingência
das coisas, ao mencionar um comentário de Simone de Beauvoir referindo-se ao próprio Sartre:
ele “teve a revelação da necessidade da arte e descobriu, por contraste, a deplorável
contingência das coisas dadas”.264 É no lastro desta afirmação que o comentador prossegue:
A literatura [...] cria necessidade pelo recurso ao finalismo, conferindo aos
acontecimentos uma fatalidade própria à arte. Essa fatalidade, “maneira diferente” de
acontecer, é o que Roquentin tanto ambicionava para sua vida. É exatamente na medida
em que a arte escapa à contingência, criando a necessidade, que ela tem um papel
fundamental no romance [...] Todo o romance é permeado por uma mesma canção de
jazz, “Some of these days”. É através dessa canção que Roquentin percebe, pela
primeira vez, o abismo entre a arte e o mundo. 265
Essa passagem, ainda que por vias oblíquas, fornece-nos elementos para afirmar que a
literatura oferece uma via de acesso legítimo ao real. Mas para além do fato de contrapor o
passado estruturado a um presente desordenado, é como recurso à atitude imaginante, tal como
buscamos ressaltar anteriormente, que a literatura oferece o acesso ao real. Isso porque
“imaginar é fazer inexistir”, o que delineia perspectivas e perfis da realidade não apreensíveis
quando permanecemos limitados aos contornos da objetividade. Assim, quando a literatura põe o
homem à parte do real, ela, de fato, coloca-o em contato com a realidade profunda. Isso significa
liberdade na leitura do romance, o leitor se depara com sua própria condição, qual seja, o caráter de
inacabamento da consciência, enquanto puro fluxo contínuo. É justamente porque não há nada que possa
fundamentar a existência a priori que cabe ao existente constituir-se continuamente, fazer-se. A subjetividade
surge, desse modo, como auto-constituição contínua, o que acaba por ressaltar a liberdade como caráter
fundamental da existência.
263
MOUTINHO, Luiz Damon Santos, Op. Cit., p. 53.
264
BEAUVOIR, Simone, Apud. MOUTINHO, Luiz Damon Santos. Op. Cit., p. 62.
265
MOUTINHO, Luiz Damon Santos, Op. Cit., p. 62.
104
que ao retirar – nem que seja por um átimo – o homem de sua condição contingente, o recurso
imaginário ou a literatura finda por lançá-lo, por um jogo de contraposições, na existência, “no
que ela tem de mais contingente e absurdo”. Lembremos o que Sartre diz em O Imaginário,
“Para que a consciência possa imaginar, é preciso que por sua própria natureza possa escapar
ao mundo, é preciso que possa extrair de si mesma uma posição de recuo em relação ao mundo.
Numa palavra: ela precisa ser livre”.266 Assim o recurso ao imaginário faz com que o homem se
perceba livre, sem, no entanto negligenciar o caráter contingente da existência. Portanto, se é
necessário à consciência imaginante escapar ao mundo, isso só é possível se o real constituir seu
fundamento, uma vez que o homem é sempre em situação, ou se se preferir, o homem é sempre
um ser-no-mundo. Não seria ocioso voltarmos à passagem em que o autor esclarece:
Chamaremos “situações” os diferentes modos imediatos de apreensão do real
como mundo. Podemos dizer assim que a condição essencial para que uma consciência
imagine é que ela esteja “em situação no mundo” ou, mais brevemente, que ela “estejano-mundo”. É a situação-no-mundo, apreendida como realidade concreta e individual da
consciência, que serve de motivação para a constituição de um objeto irreal qualquer, e
a natureza desse objeto irreal é circunscrita por essa motivação. Desse modo, a situação
da consciência não deve aparecer como uma pura e abstrata condição de possibilidade
para todo o imaginário, mais sim como motivação concreta e precisa da aparição de tal
267
imaginário particular.
É exatamente nesse sentido que o recurso ao imaginário oferece uma via de acesso
legítimo ao real, isto é, é ao negar o mundo através da literatura, o escritor oferece um recorte
singular da realidade e, como conseqüência, o leitor é convocado a “ultrapassar o real
constituindo-o como mundo”. É por essa razão que Sartre sustenta: “para poder imaginar, basta
que a consciência possa ultrapassar o real constituindo-o como mundo, já que a nadificação do
real está sempre implicada por seu constituir-se em mundo”. Portanto, se o imaginário surge
como negação, como nadificação, na terminologia sartriana, isso não significa que o mundo é
negado “pura e simplesmente”, mas essa negação se dá sempre mediada por uma singularidade,
qual seja, a do autor. O filósofo, uma vez mais: “[...] uma imagem é o mundo negado, pura e
simplesmente, ela é sempre o mundo negado de um certo ponto de vista, exatamente aquele que
permite colocar a ausência ou a inexistência de um determinado objeto que será presentificado
„enquanto imagem‟”.268
266
SARTRE, Jean-Paul, O Imaginário, p. 240.
Ibidem, p. 241.
268
Ibidem, p. 240.
267
105
Retornemos ao romance e tentemos perceber o modo pelo qual Roquentin inverte o papel
atribuído por Sartre ao imaginário a e à ficção. Ao ouvir uma cantora de jazz, Roquentin percebe
que é apenas quando “a preta se põe a cantar” que a Náusea cessa. É unicamente enquanto está
imerso na duração da música, uma duração que, nesse caso, exala uma necessidade ordenada,
que a Náusea se dissipa. Neste sentido, Roquentin afirma: “Há ainda outra felicidade: fora de
mim há aquela faixa de aço, a duração limitada da música que atravessa o nosso tempo de lado
a lado, e o recusa, e o rasga com suas pontas secas e agudas; há um tempo diferente”. 269 O
personagem sente que há “uma ordem inflexível” na música que garante a ordem do fluxo
temporal, que concede a estabilidade; trata-se, sem dúvida, da “necessidade desta música”. É
como se o personagem, lançado nesse fluxo contínuo – nessa duração isenta de indeterminação e
de imprevisibilidade – deixasse de se sentir existindo, e, desse modo, fosse capaz de escapar ao
sentimento da Náusea. É por isso que o personagem constata: “O que acaba de suceder é que a
Náusea desapareceu. Quando a voz se levantou, no silêncio, senti meu corpo contrair-se, e a
Náusea dissipou-se”.270 É a necessidade intrínseca a essa específica duração do jazz que o
personagem gostaria que regesse sua vida. Roquentin deseja que tudo se passe de forma
ordenada e previsível; ele deseja a segurança que essa ordem oferece. Deseja, enfim, que sua
existência ganhe a consistência do Em-Si.
Cabe, neste ponto, incorporar à nossa leitura a instigante análise que Leopoldo e Silva
tece acerca do encontro do personagem Roquentin com a ordem presente na canção “Some of
These Days”, a qual revela-se capaz de afugentar o sentimento da Náusea. O comentador alertanos quanto à simultânea experiência de bem estar e de esclarecimento pela qual passa o
personagem. Mais propriamente, ao mesmo tempo em que ele se sente feliz porque a música
parece capaz de afugentar o sentimento da Náusea, ele compreende com clareza a razão do
prazer que ela lhe proporciona: “Roquentin percebe melhor por que a música o deixava feliz. Ela
não existe. Ela não é contingente. Simplesmente é”.271 É a partir desta constatação que o
personagem parece encontrar na arte uma alternativa de salvação, uma possibilidade de escapar
ao sentimento da Náusea. Ao perceber que a música é, mas não existe, ele vislumbra a
possibilidade de que uma:
“obra o faria ser para os outros. A obra o faria ser. E isso talvez significasse
escapar da existência contingente. [...] a música é suficiente para conferir àquele homem
269
SARTRE, Jean-Paul, A Náusea, p. 44.
Ibidem, p. 45-6.
271
LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Op. Cit., p. 91.
270
106
contingente uma permanência e uma necessidade que não podem ser revertidas. Por
isso, Roquentin pensa na literatura e se coloca a possibilidade de salvação”. 272
Em suma, a música leva Roquentin a pensar que talvez a salvação estivesse em criar algo
que o lançasse para além da existência, algo que fosse, algo que é, “alguma coisa que não
existisse, que estivesse acima da existência”. Algo capaz de fazer as pessoas pensarem nele para
além da sua existência. E aqui a distinção entre ser e existir273 torna-se fundamental: se a arte
surge como a possibilidade de criar algo que é, então talvez essa permanência permitisse a ele
escapar da Náusea e da eterna instabilidade que retira todo sentido da existência, uma vez que
nesta, nada é fixo ou acabado. Nesse registro, isto é, considerando-se a possibilidade de se pensar
a arte como uma alternativa para ultrapassar a experiência da Náusea, o argumento de Moutinho
oferece subsídios para nossa reflexão: “[...] a arte, por escapar à contingência, revela-se agora
como o absolutamente outro do mundo, como inatingível, fora do mundo das existências. A arte
não existe, ela é”.274 A arte surge, pois, como a possibilidade de negar o caráter contingente da
existência, de modo que um homem possa se esquivar da angústia que dela emana. No entanto,
circunscrita a essa concepção, a arte vem ao encontro de uma determinada postura no mundo, a
qual foi alvo da crítica sartriana. Noutros termos, a compreensão da arte unicamente como uma
forma de negar o caráter contingente da existência enlaça-se com a má-fé.275 Essa seria a postura
de Roquentin. De fato, se nos reportamos ainda uma vez à discussão sartriana acerca do papel do
imaginário, na qual a imagem, enquanto representação que encanta e enfeitiça, efetivamente
nega a realidade mundana e atesta a busca da fusão entre o Em-Si e o Para-Si, não seria outro o
papel da arte e das criações imaginárias. Sua meta restringir-se-ia a consumar um estado de
alienação. Não obstante, se por um lado a necessidade inscrita na música ou na tessitura do
romance se opõe à contingência do real, descortinando o caminho da evasão e da má-fé, é
fundamental insistir que a criação artística não se limita a esse contraponto negativo. Ao
272
Ibidem, p 92-3.
Talvez não se mostre ocioso lembrar que, sob registro existencialista, o único ente que existe, isto é, que tem
seu próprio ser enquanto projeto de ser, é o para-si, isto é, o homem. Assim todos os outros entes são, mas não
existem. O que significa que uma obra de arte é, mas não existe. A existência pressupõe o seu caráter processual.
Existir é ser enquanto projeto de si mesmo.
274
MOUTINHO, Luiz Damon Santos, Op. Cit., p. 74. Grifado no original. Sobre a “perda da função terapêutica”
Veremos isso melhor a seguir quando falarmos sobre a relação entre o real e o irreal, por hora basta-nos ressaltar
que também Moutinho frisa a distinção entre existir e ser.
275
A esse respeito, citemos os comentários de M. T. Souza: “[...] embora Roquentin deseje o necessário e pense
alcançá-lo por meio da literatura (do mesmo modo que todo homem tenta encontrar um meio para ser-em-si-parasi), nada nos indica que ele satisfez esse desejo, que o realizou. Mesmo que a Náusea seja o livro que Roquentin
escreveu, a concretização da vontade de escrever, isso não nos indica, ainda, que a alienação foi alcançada por
parte dele”. SOUZA, T. M., Op. Cit., p. 100.
273
107
contrário, ela o ultrapassa e mostra-se como caminho desvelador do real à medida que o
negativiza, desnudando perspectivas, perfis e dimensões da inserção histórica, ou melhor, da
situação do homem no mundo. Ou seja, se ela cria o inexistente, o faz a partir de um real
preexistente, alargando assim as possibilidades da dimensão concreta do mundo, ainda que o
faça negativamente.
Com efeito, segundo Sartre, a negatividade resultante da criação imaginária opera
naquele que a experiencia um recuo ante os estreitos contornos do mundo objetivamente
percebido, exacerbando, assim, a compreensão deste real, que não é jamais ignorado, mas
ampliado pela criação irreal. O comentário de T. M. Souza vem a propósito: “Assim, pensamos
que imaginário [do qual a arte é produto, atentemos], na filosofia de Sartre, não deve ser visto
primordialmente como alienação e abstração, mas sim como uma imersão ainda mais profunda
na realidade, justamente por ser negação, um afastamento do mundo que exige um mergulho,
mais profundo ainda na situação”.276 Nesse sentido, torna-se plausível considerar que o
inexistente engendrado pela criação romanesca desvela a real condição histórica do homem. Se
Roquentin vivencia o contraponto entre a necessidade inscrita na obra e a contingência de sua
condição de existente, escapa-lhe, entretanto, este papel outro da arte, o qual, enfim, não pode ser
apreendido pelo personagem em virtude da forma pela qual ele vivencia sua liberdade. Se a
Náusea o conscientiza acerca da liberdade que lhe é constitutiva, a obra o livrará dela. Por essa
razão, a realidade que emana da música ou do romance que ele pretende escrever configura-se,
sob a sua perspectiva, devidamente ordenada, fatalmente estruturada. A obra o redimirá de sua
condição de existente. Numa palavra, não seria exagero sustentar que Roquentin projeta na arte o
estado alienado em que se encontra enquanto homem inserto historicamente. Leopoldo e Silva é
preciso: “a possibilidade de salvação pela arte, isto é, pelo imaginário, deve-se ao fato de que
ele [Roquentin] não está bem situado no mundo”.277 É por isso que podemos concluir que o que
“falta a Roquentin é uma situação histórica extremada em que ele tenha de viver seu próprio
limite”.278 Em síntese, torna-se lícito sustentar: para que o apelo ao imaginário tenha sentido é
necessário que ele se conecte com a condição histórica do homem, ou seja, faz-se necessário o
seu desdobramento ético.
Detenhamo-nos um pouco mais sobre esse ponto. Com efeito, o binômio
liberdade/contingência requer como substrato o caráter gratuito e absurdo da existência, assim
276
SOUZA ,T. M., Op. Cit., p. 103.
LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Op. Cit., p. 103.
278
Ibidem, p. 105.
277
108
qualquer tentativa de atribuir algum sentido dado à existência significa recair na inautenticidade,
isto é, significa negar a responsabilidade inserta no desdobramento ético que a concepção
existencialista exige.279 Não é outra a postura do personagem, o qual busca a todo o momento um
solo estável, capaz de justificar suas ações, fugindo assim do compromisso e da responsabilidade
decorrentes da falta de fundamento para a existência. Se nos atemos ao âmbito da arte, o que o
personagem busca com a criação do irreal é justamente negar esse caráter dialético que a
configura, ou seja, o fato de que o imaginário representa a negação do real e simultaneamente a
imersão mais profunda no seio da própria realidade. É exatamente essa tensão aparentemente
paradoxal – negada pelo personagem – que caracteriza a concepção sartriana de literatura, isto é,
a literatura é e não é fuga da realidade, pois ao negar o real o escritor lança o leitor no seio da
realidade mesma. Entendemos então o comentário de Leopoldo e Silva: “O que Roquentin
parece principalmente recusar é esse caráter dialético que afeta o compromisso num mundo
contingente. Essa é a razão de querer comprometer-se com a arte, isto é, com a necessidade do
objeto inexistente”.280 Todo o itinerário de Roquentin, portanto, se constitui sob a recusa das
implicações éticas que se evidenciam através da manifestação da experiência instauradora da
Náusea.
Ressaltemos ainda algo acerca da relação entre o irreal da literatura e o real contingente,
sob uma perspectiva interna ao romance. Em primeiro lugar, é preciso esclarecer melhor a
questão acerca da arte enquanto possibilidade de salvação. É sintomática a indagação do
personagem: “a espécie de alegria” que a canção oferece pode justificar nossa existência? Ou
melhor, é possível, a partir da estabilidade oferecida pela criação da obra de arte, justificar a
existência?
Não poderia eu tentar... é claro que não se trataria de compor uma música... mas
um livro: não sei fazer outra coisa. Mas não um livro de história: a história fala do que
existiu – nunca um existente pode justificar a existência de outro existente. O meu
erro era querer ressuscitar o Sr. de Rollebon. Outra espécie de livro. Não sei muito bem
qual – mas era preciso que se adivinhasse nele, por trás das palavras impressas, por trás
das páginas, alguma coisa que não existisse, que estivesse acima da existência. Uma
história, por exemplo, como não pode suceder, uma aventura. Era preciso que fosse bela
e dura como aço e que fizesse vergonha às pessoas da sua existência. 281
279
Cf. também atesta Leopoldo e Silva: “Liberdade e contingência andam sempre juntas com a gratuidade: mas se
é assim, se podemos ser traídos pelos nossos atos livres não seria melhor se fôssemos determinados e totalmente
isentos de responsabilidade?” Ibidem, p. 111.
280
Ibidem, p. 112.
281
SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 300-1. Grifo nosso.
109
Roquentin vislumbra na figura do Judeu e da Negra norte-americana uma oportunidade
de se “lavar do pecado de existir”. Ou seja, ele Roquentin parece perceber na literatura uma
oportunidade de criar algo capaz de proporcionar o caráter racional e necessário que ele tanto
deseja, algo que permita escapar à condição contingente da existência. Os heróis de romance, de
fato, parecem escapar da existência para se lançarem no Ser, de modo que o Para-Si se constitua
finalmente enquanto um Em-Si. “Ele [Roquentin] que existia sem razão, como um castanheiro
ou o gradil do jardim, entrevê agora a oportunidade de existir justificadamente, isto é, com
razão e necessidade. Como um Ser”.282 Mas é preciso que esse livro seja de “outra espécie”, é
preciso que ele seja a criação do inteiramente novo, pois como o personagem mesmo diz: “nunca
um existente pode justificar outro existente”. Para o personagem, é preciso que essa obra tenha a
espessura do Em-Si, o mesmo estatuto ontológico do Ser. Desse modo, “só o inexistente pode
justificar a existência de um existente”. Daí que Leopoldo e Silva, em sua análise, nos remeta ao
problema da irrealidade, pois elaborar algo que inexiste parece possibilitar ao protagonista
ultrapassar a própria existência. Salvaguardando-se da experiência violenta da Náusea e da
angústia que dela decorre, Roquentin acaba negando os imperativos de sua própria
transcendência, aquela que se dá no interior da imanência, constitutiva de toda consciência em
seu movimento em direção ao mundo. Logo, ao buscar algo que pudesse proporcionar a
positividade ontológica, mesmo que seja através da criação ficcional, o personagem nega a
própria existência e aquilo que ela tem de mais característico, ou seja, seu caráter processual. Em
outras palavras, no nosso entendimento, o que faz Roquentin ao buscar essa positividade na
literatura, é negar tanto a contingência da condição humana, quanto o caráter transcendente que o
estar no mundo impõe à sua consciência. Mas, análogo ao que acontece no exemplo do casal
homossexual, mencionado no capítulo anterior, postular o caráter puramente imanente e acabado
que uma obra literária parece assumir quando pronta, não significa necessariamente negar a
contingência do existir. Se a criação imaginária resulta numa irrealidade internamente necessária,
isso não impede que ela insira seja o seu criador, seja aquele que a frui, mais radicalmente no
real. Noutros termos, ela não exime aquele que com ela se defronta de seu perpétuo
inacabamento, e não o livra, tampouco, da necessidade de que ele se lance em direção ao mundo
ou aos outros. Numa palavra, a obra não salva ninguém do caráter transcendente de sua
existência.
No entanto, apesar da expectativa desenvolvida pelo personagem – isto é, de se refugiar
nos meandros da criação ficcional –, a obra imaginária parece pressupor uma outra consciência
282
LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Op. Cit., p. 95.
110
livre para completá-la. O ato de transcender-se abarcado no processo criativo exige, em
contrapartida, que aquele que se debruça sobre a obra, no caso o leitor, assuma sua própria
transcendência. Portanto, e parece ser esse o grande alerta proposto por Leopoldo e Silva, a arte
ganha uma dimensão também transcendente, pois, tal como buscamos evidenciar, a literatura
oferece uma fonte de acesso legítimo ao real através do imaginário, através da negação mesma
do próprio real. Configurando-se assim como um processo dialético. A respeito dessa questão,
Leopoldo e Silva assim se expressa:
Se a consciência depende do que ela visa, ela pode pôr-se como fora do mundo
se visar objetos inexistentes, se visar a sua própria produção. Já que é difícil lidar com o
mundo percebido, posso inatualizá-lo e instituir a atualidade da não-existência,
presentificar o nada.283
Como sustentado pelo próprio comentador e como buscamos endossar no decorrer destas
linhas, essas reflexões são, de fato, exteriores ao fluxo de reflexão do próprio Roquentin; através
delas, entretanto, é possível elucidar “o apelo sartriano à teoria do imaginário, a possibilidade
de presentificar a ausência, isto é, apontar a modalidade de consciência que se põe a partir da
intencionalidade imaginante”.284 Cabe reiterar: o que o personagem pretende é “recusar o
caráter dialético que afeta o compromisso num mundo contingente”, 285 ou seja, negar sua
liberdade através da arte.
Sob esse prisma, reduzir a criação romanesca à sua dimensão imanente, tomando-a como
alternativa de fuga, como o faz Roquentin, parece simplificar a questão, visto que aceitar a
imanência implicada na literatura não significa necessariamente negar seu caráter transcendente.
O escritor pressupõe o leitor. Assim, tal como aparece no pacto tacitamente tecido entre ambos, –
como o explicita Sartre em Que é a literatura? –, o primeiro lança um apelo para que o segundo
generosamente mergulhe no mundo imaginário proposto pela literatura, e, deste modo, perceba,
por detrás do véu que a encobre o real, a própria realidade:286 “Assim o escritor apela à
283
Ibidem, p. 104.
Ibidem.
285
Ibidem, p. 112.
286
É importante observar que essa referência – como outras que se seguirão – à uma obra mais tardia do autor
não é gratuita, posto que nossa interpretação busca evidenciar a unidade orgânica e ao mesmo tempo dinâmica
das preocupações do filósofo. Isto é, as questões referentes às preocupações históricas em Sartre, no nosso
entender, já estão presentes em suas primeiras obras, assim como as questões referentes à ontologiafenomenológica não o abandonam em suas obras posteriores. Nesse sentido, é pertinente nos reportarmos às
obras de maturidade de Sartre em vista de elucidar questões referentes às suas primeiras obras, que, afinal,
constituem mais diretamente o objeto de nosso estudo.
284
111
liberdade do leitor para que esta colabore na produção da sua obra”.287 Isso significa que a
liberdade do escritor empreendida na criação de sua obra se apresenta como um apelo à liberdade
do leitor, pois, como dissemos no capítulo anterior, a consciência imaginante pressupõe a
liberdade.288 E é justamente por isso que Sartre afirma em Que é a Literatura? que a leitura é o
correlato necessário da escrita. Novamente, o filósofo:
A leitura, de fato, parece ser a síntese da percepção e da criação; ela coloca ao
mesmo tempo a essencialidade do sujeito e do objeto. O objeto é essencial porque é
rigorosamente transcendente, porque impõe as suas estruturas próprias e porque deve
esperá-lo e observá-lo; mas o sujeito também é essencial porque é necessário, não só
para desvendar o objeto (isto é, para fazer com que haja um objeto), mas também para
que esse objeto seja em termos absolutos (isto é, para produzi-lo). Em suma, o leitor tem
a consciência de desvendar criando, de criar pelo desvendamento.289
As palavras de Sartre não poderiam ser mais claras no que tange ao papel ativo do leitor.
Ou seja, elas aludem à liberdade implicada no ato da leitura, no qual se prolonga a constituição
da própria obra, que, sob esse registro, só se realiza no encontro entre leitor e escritor através da
leitura (que é também criação) da própria obra. É nesse sentido que cabe reforçar aqui a idéia
segundo a qual a temporalidade irrompe como categoria fundamental na relação que se
estabelece entre o leitor e o escritor. Assim, vale aludirmos a uma passagem do autor em
François Mauriac e a Liberdade, no qual ele afirma que a matéria que se manipula ao ler um
romance é o “próprio tempo”:
Pois o livro não é nada além de um pequeno monte de folhas secas, ou então
uma grande forma em movimento: a leitura. Esse movimento, o romancista o capta,
guia, desvia, faz dele substância de seus personagens; um romance, seqüência de
leituras, de pequenas vidas parasitárias que não duram cada qual mais que uma dança,
incha-se e nutre-se com o tempo de seus leitores.290
Destaca-se nesta passagem a ênfase na temporalidade enquanto categoria fundamental da
criação literária. É através do tempo (consciência em puro movimento) implicado na leitura de
287
SARTRE, Jean-Paul, Que é a Literatura?, p. 39.
No que tange ao apelo do escritor ao leitor para que, juntos, realizem sua obra, é inevitável não pensarmos no
conceito de obra aberta desenvolvido por Umberto Eco em Obra Aberta. Sustenta o autor: “Obra aberta como
proposta de um ‘campo’ de possibilidades interpretativas, como configuração de estímulos dotados de uma
substancial indeterminação, de maneira a induzir o fruidor a uma série de ‘leituras’ sempre variáveis; estruturas,
enfim, como ‘constelação’ de elementos que se prestam a diversas relações recíprocas”. (ECO, Umberto, Obra
Aberta, p. 150) Mesmo que o registro teórico dos autores se distancie muito, parece-nos que em ambos a
liberdade se apresenta enquanto um pressuposto necessário à criação ficcional. E nesse sentido, em ambos, o
escritor reivindica a liberdade leitor.
289
SARTRE, Jean-Paul, Que é a Literatura?, p. 37.
290
Idem, François Mauriac e a Liberdade, in : Situações I, p.61.
288
112
um romance – que sem o leitor nada mais é do que “um pequeno monte de folhas secas” – que o
leitor generosamente emprega sua liberdade a serviço da criação da obra de arte, e nesse
movimento ele vê surgir, por oposição, sua própria liberdade.
Ainda sob esse registro, qual seja, da literatura enquanto negação da realidade,
poderíamos nos colocar a questão formulada com muita felicidade por Thana Mara de Sousa:
Roquentin não representaria o percurso de quase todos os escritores que, ao se perceberem
lançados na gratuidade da existência, buscam refugio na literatura? 291 Ou melhor, a literatura não
se esgotaria, inversamente ao que sustentamos acima, numa forma de negar a transcendência?
Ela não atualizaria, por fim, um caminho para negar a própria liberdade enquanto característica
fundamental da existência humana?
Essa compreensão da literatura não se sustenta se considerarmos a tese fundamental do
existencialismo sartriano: aquela segundo a qual a “existência precede a essência”. Sob essa
perspectiva, o homem sempre será aquilo que ele fizer de si, o que nos conduz ao
reconhecimento de que não há nada capaz de suprimir a escolha enquanto um ato constitutivo da
condição humana imersa na pura gratuidade, lançada na contingência. Em face disso, de modo
algum poderíamos reduzir a literatura a uma forma de negar a liberdade em ato presente na
criação ficcional, visto que o próprio ato de criação da obra de arte autêntica, tal como exposto
acima, requer a liberdade tanto do autor como do leitor, o que finda por lançá-los – ou por
despertá-los – para a sua própria condição. A ficção, à medida em que revela a contingência por
inversão, vem ratificar a liberdade que nos constitui, jamais negá-la. Se pensarmos no contexto
em que surge o pensamento existencialista, veremos que já não é possível conceber uma filosofia
aquém do mundo, do contexto histórico.292 É nesse sentido que entendemos porque Sartre requer
da literatura a reinserção no seio da própria realidade; os pressupostos fundamentais aqui são
tanto a idéia da existência lançada no mundo, quanto uma concepção do homem sempre em
processo. Assim, se o diagnóstico sartriano atesta que fazer literatura é recorrer à criação
imaginária que, por sua vez, alarga a inserção no contexto histórico, então é preciso exigir do
escritor que se assuma enquanto responsável, que abrace a dimensão ética constitutiva de toda
criação ficcional. Ainda uma vez, o comentador:
[...] nenhuma escolha consolida meu ser, ou o ser que escolhi ser na contingência
da situação, todas são igualmente revogáveis. Não há um sustentáculo que apóie a
291
SOUZA, Thana Mara de, Sartre e a literatura engajada: Espelho Crítico e Consciência Infeliz, p. 94.
Nesse sentido as palavras de Frédéric Worms são bastante elucidativas: WORMS, Frédéric, La Philosophie en
France au XXe Siècle, p. 203ss.
292
113
escolha feita e fundamente meu ser a partir de uma dada opção de ser. A contingência
radical é a ausência de fundamento. O nada constitutivo do para-si não pode
fundamentar qualquer continuidade no ser. Para continuar sendo o que escolhi ser, é
preciso renovar a cada momento o projeto de ser.293
Com essa discussão, queremos ressaltar que a concepção de literatura que Sartre defende,
e que é expressa principalmente no romance, é permeada por uma concepção fundamental e que
se delineará com clareza um pouco mais tardiamente em sua filosofia. Trata-se da idéia segundo
a qual a liberdade humana só pode ser pensada em situação.294 Se não há liberdade exterior à
história, o caráter contingente da existência que Roquentin sente através da Náusea não pode
negar esse pressuposto fundamental. Ademais, é justamente através do sentimento da Náusea que
a liberdade humana em situação se manifesta. Daí que reiteramos o anteriormente afirmado: criar
ficções nada tem a ver com alienar-se Ou seja, aceitar a imanência não implica necessariamente
negar a transcendência, tal como Sartre a entende. A literatura – obra imanente – se constitui
como um apelo à transcendência do leitor. O que significa que o escritor parece exigir do leitor,
através do recurso ao imaginário, que este assuma sua própria liberdade historicamente situada.
Daí que a T. M. de Souza assinale, aludindo à relação do filósofo com seu exercício literário:
Sartre mostra que não se alienou por meio de seus romances e peças: ele não
estabeleceu um mundo irreal e necessário frente à contingência real e nem mesmo
alcançou a sua essencialidade e necessidade através do imaginário. É por isso que
podemos dizer que, se a frase pensada por Roquentin – a de que só os salafrários
pensem que ganham – nos permite mostrar que o imaginário não é sinônimo de
alienação e realização inautêntica do Em-si-Para-si (já que autenticamente essa síntese
não se realiza) somente para os salafrários, na medida em que apenas eles pensam
ganhar, a frase escrita por Sartre em As palavras – a de que após escrever seus livros a
ilusão, a salvação e a imortalidade se deterioram – nos permite mostrar que o
imaginário pode ser também a inserção mais profunda no mundo, a constatação de
que mesmo a negação do real não ocasiona necessariamente o esquecimento
deste.295
Destarte, as palavras de Sartre em Que é a Literatura? ganham força. Se pelo lado do
escritor, a obra, ainda que não o seja, pode se apresentar como uma possibilidade de alienação –
como o faz Roquentin enquanto escritor, numa atitude que podemos entender como má-fé –, pelo
lado do leitor, ela representa um apelo para que ele assuma sua liberdade. E esse apelo parece
293
LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Op. Cit., p. 144. Embora o conceito de projeto presente no comentário seja caro à
Sartre, não nos interessa desenvolve-lo aqui.
294
Mesmo que essa concepção só se evidencie posteriormente em romances com Sursis, por exemplo,
acreditamos na continuidade do pensamento de Sartre, e por isso, mesmo aqui é preciso ressaltar que a dimensão
histórica está presente.
295
SOUZA, Thana Mara de, Op. Cit., p. 101-2 Grifo nosso.
114
desnudar a própria liberdade humana como um caráter fundamental da existência. Assim,
segundo Sartre
[...] o autor escreve para se dirigir à liberdade dos leitores, e a solicita para fazer existir a
sua obra. Mas não se limita a isso e exige também que eles retribuam essa confiança
neles depositada, que reconheçam a liberdade criadora do autor e a solicitem, por sua
vez, através de um apelo simétrico e inverso. Aqui aparece então o outro paradoxo
dialético da leitura: quanto mais experimentamos a nossa liberdade, mais reconhecemos
a do outro; quando mais ele exige de nós, mais exigimos dele. 296
Contraditando ainda a tese da alienação, poderíamos retomar aquilo que foi dito
anteriormente sobre a atitude do personagem Roquentin. Sem dúvida, é possível entendermos
que a literatura, para o personagem, constitua uma forma de negar a realidade, de fixá-la, ordenála. No entanto, isso de modo algum se aplica a Sartre. Em outras palavras, dizer que Roquentin
age de má-fé não significa que o autor do livro faça o mesmo; inversamente, a intenção do
filósofo consiste em desnudar a possibilidade da literatura representar um apelo à liberdade,
mesmo que negativamente. Talvez por isso mesmo – porque estamos no âmbito de um universo
ficcional – a representação da dimensão contingencial da existência através do romance ganhe
tanta força, ou seja, sua força vem do caráter negativo da representação ficcional.
É justamente neste ponto que encontramos o gancho necessário para retomarmos o
problema do irreal, do imaginário, o que nos permitirá adentrar a relação entre o irreal da
literatura e o real contingente. Dizer que o escritor solicita a liberdade do leitor através do
imaginário significa dizer que o imaginário tem como suporte e fundamento a liberdade, pois,
para que a consciência imaginante exista, é necessário que por sua própria natureza ela escape ao
mundo. Como diz Sartre,
[...] colocar o mundo enquanto mundo ou “nadificá-lo” é uma só coisa. [...]
[assim] para poder imaginar, basta que a consciência possa ultrapassar o real
constituindo-o como mundo, já que a nadificação do real está sempre implicada por seu
constituir-se em mundo [...] Pois uma imagem não é o mundo negado, pura e
simplesmente, ela é sempre o mundo negado de um certo ponto de vista, exatamente
aquele que permite colocar a ausência ou a inexistência de um determinado objeto que
será presentificado “enquanto imagem”. 297
Dos dizeres do filósofo o que mais nos interessa destacar é que a liberdade do escritor se
apresenta como um pressuposto necessário para a elaboração da ficção, pois só posso criar a obra
ficcional se for livre para negativizar o mundo. Isso significa que fazer literatura equivale a
296
297
SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 43.
Idem, O Imaginário, p. 240.
115
mergulhar na situação histórica e, por conseqüência, assumir-se como responsável. Significa que
o escritor deve aceitar o necessário desdobramento ético que caracteriza a literatura, tal como
concebida sob a perspectiva dessa filosofia. Novamente aqui aflora a referência ao papel
desvelador da literatura. O recorte realizado pelo escritor é resultado do mergulho em seu
contexto histórico. Movimento necessário, visto que a ficção é sempre negação do mundo. No
entanto, trata-se de uma negação “de um certo ponto de vista”, opera uma reinserção na própria
realidade. Quando o escritor nega seu contexto – e é isto o que ele faz ao recorrer ao imaginário
–, ele dá à conhecer o real encoberto pelo véu da realidade. Numa palavra, a literatura se
apresenta como uma porta de acesso legítimo ao contexto histórico. Cabe insistir: se a situação
histórica é condição de possibilidade para a criação ficcional, para o recurso ao imaginário, então
cabe ao escritor mergulhar primeiramente em seu contexto, para, aí sim, desvelar a realidade por
detrás do irreal da literatura. Portanto a criação ficcional que se queira apartada da realidade se
mostra necessariamente inautêntica. Daí que a imagem se configure como a constituição de um
mundo, para a totalidade do real. Ora, constituir um mundo é negá-lo “de um certo ponto de
vista”, é negá-lo objetivamente para reconstituí-lo imaginariamente, o que, tal como viemos
insistindo, opera uma reinserção no seio da própria realidade de forma menos ingênua. Por isso,
diz Sartre, “[...] a condição essencial para que a consciência imagine é que ela esteja „em
situação no mundo‟ [...] É a situação-no-mundo, que serve de motivação para a constituição de
um objeto irreal qualquer, e a natureza desse objeto irreal é circunscrita por essa
motivação”.298 Assim, se o escritor, através de um ato livre, nadifica o mundo, ele o faz sempre
em situação, pois a situação é a motivação do aparecimento de tal imaginário. Daí a conclusão do
filósofo: “O irreal é produzido fora do mundo por uma consciência que permanece no mundo, e
é porque é transcendentalmente livre que o homem imagina”.299 Podemos pois considerar que,
pelo lado do escritor, o irreal solicita sua liberdade porque sua condição é a de homem situado,
ao passo que, pelo lado do leitor, essa mesma irrealidade requer também a liberdade. Isso
porque o irreal pressupõe “uma consciência liberada das determinações da percepção real”,
uma vez que, para Sartre, o ato de perceber não se confunde com o ato de imaginar. Daí os
comentários de Leopoldo e Silva:
A propriedade da imagem é precisamente a irrealidade. E a consciência da
imagem é consciência de irrealidade, de objeto ausente ou inexistente. É uma
298
299
Ibidem, p. 241.
Ibidem, p. 243.
116
consciência liberada das determinações da percepção real. E liberou-se, isto é, negou as
determinações do real, porque é livre para fazê-lo.300
Como bem destaca o comentador, a experiência da ausência proporcionada pela
irrealidade da imagem é sempre mais intensa do que a experiência da presença. Neste ponto, o
estudioso alude às famosas análises de Sartre a respeito da ausência. A ausência, para o filósofo,
se configura como o momento em que a consciência transcende o mundo no qual os seres são
dados em presença e atinge o mundo “vazio” de um determinado ponto de vista. É nesse mundo
que o irreal surge, de modo que a “irrealidade me solicita, sinto com intensidade que ele [aquilo
que é imaginado] não está, e essa intensidade supera a das outras presenças”.301 É, pois, por
oposição, por analogia, que a consciência imaginante descola-se do mundo para criar o objeto
imaginado. Logo, entendemos com mais clareza porque é imperativo ao filósofo existencialista
lançar mão da criação ficcional: é no âmbito da literatura que o recorte feito pelo autor
intensifica a situação histórica de determinado homem; esse recorte exige que o leitor mergulhe
na situação descrita e, a o mesmo tempo, volte-se negativamente para a situação em que ele
próprio se encontra. Assim, podemos dizer que é por negação que a criação ficcional se constitui,
uma vez que o irreal da literatura – isto é, fruto da liberdade humana – confronta-se com o real
da contingência – ou seja, a situação histórica como fundamento dessa liberdade. A literatura,
através de seu caráter negativo (ausência), é capaz de proporcionar uma experiência mais intensa
do que o real com seu caráter positivo (presença). Nesse sentido, o romance revela-se capaz de
desvelar a completa gratuidade submersa na aparente ordem do mundo, do mundo
teleologicamente ordenado que, nele, nos é apresentado.
Com tantas vezes salientado, essa revelação enviesada escapa ao personagem Roquentin,
mas não obstaculiza o papel desvelador de A Náusea enquanto criação romanesca. Mais
claramente, quando ele projeta no Sr. de Rollebon302 a tão almejada ordem da existência,303
300
LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Op. Cit., p. 100.
Ibidem, p. 100.
302
Cabe reproduzir a passagem em que essa concepção aparece no romance: “O Sr. de Rollebon era o meu sócio:
tinha a precisão de mim para ser, e eu tinha a precisão dele para não sentir meu ser. Eu fornecia a matéria bruta,
essa matéria de que tinha para dar e vender, e da qual ignorava o que havia de fazer: a existência, a minha
existência. Quanto a ele, a sua contribuição consistia em representar. Punha-se em frente de mim e tinha-se
apoderado da minha vida para me representar a dele. E eu já não dava porque existia, já não existia em mim, mas
nele; era para ele que comia, pare ele que respirava; o sentido dos meus movimentos era-me exterior, estava ali,
precisamente em frente a mim – nele; deixara de ver a minha própria mão traçar letras no papel, e até a frase que
escrevera – mas, por detrás, para além do papel, via o marquês que reclamava esse gesto, e cuja existência o
mesmo gesto prolongava, consolidava. Eu era apenas um meio de o fazer viver, a minha razão de ser era ele: o
marquês libertar-se de mim. Que hei-de fazer agora?” (SARTRE, Jean-Paul, A Náusea, p. 169-70). Evidentemente,
trata-se aqui de projetar toda a falta de sentido da existência que decorre de seu caráter contingente na figura do
marquês de Rollebon.
301
117
fazendo com que a inspeção do seu passado proporcione certa ordem (razão) aos acontecimentos
futuros, como se os dados coletados pudessem justificar as conseqüências que deles decorrem, na
realidade, o personagem busca abolir a contingência do mundo e a transcendência de sua
consciência.
304
No entanto, a despeito dos propósitos do personagem, o romance A náusea
convoca o leitor a mergulhar nessa singularidade ficcional e a ver-se refletido nessa situação. Ou
seja, é a situação particular do personagem que, por apresentar uma certa ordem intrínseca à
narrativa, lança o leitor em sua própria condição, qual seja, aquela da total gratuidade da
existência. Em outras palavras, é justamente a inversão do fluxo temporal, presente na narrativa
das escolhas do personagem que, por oposição, desvela – ao leitor – o fato de que a existência
não obedece a nenhuma ordem intrínseca. É curioso esse movimento em que a ordem narrativa
paradoxalmente desvela a contingência ao leitor. Na verdade, ela inverte o fluxo temporal, pois,
nela, tudo acontece para que o fim desejado pelo autor se realize. Desse modo o leitor já antevê a
ordem estabelecida, o que faz com que cada acontecimento ganhe um sentido, uma justificativa.
Essa fixidez necessariamente contradita a condição em que o leitor se encontra inserto, de modo
que se desvele a ele, nessa contraposição, o caráter gratuito da própria existência. Numa palavra,
a gratuidade se desvela justamente porque o leitor contrapõe à ordem implicada na narrativa sua
própria condição contingente.
No entanto, no caso de A Náusea, encontramo-nos no registro da metalinguagem, uma
vez que é o próprio personagem do romance que visa a construção de uma ordem narrativa de
caráter ficcional, vislumbrando, nessa tentativa, uma o alternativa ao sentimento da Náusea, ou
seja, uma das maneiras de negar a sua própria liberdade. Numa palavra, a narrativa surge ao
personagem como um recurso à má-fé, de tal forma que talvez não configure um abuso
afirmarmos que Roquentin representa para Sartre um anti-herói, posto que esse personagem
atualiza uma imagem invertida da própria filosofia existencialista do filósofo.
305
Sob esse
prisma, Sartre visa lançar-nos na situação histórica através da imagem invertida de um
personagem que expressa singularmente sua própria filosofia, buscando não assunção da
contingência e da história, mas a sua negação.
Evidentemente, o esforço sartriano na construção deste romance nada tem a ver com o
intuito de ilustrar suas teses filosóficas através da literatura, tal como tentamos evidenciar no
303
Parece-nos que essa mesma interpretação se aplica à concepção da arte enquanto uma possibilidade de
salvação defendida pelo personagem ao final do romance.
304
SARTRE, Jean-Paul, A Náusea, p. 167. Sobre o desvanecimento do projeto de historiador, na figura do Sr.
Rollebon, como possibilidade de salvação.
305
No que tange a interpretação do personagem principal de seu romance de estréia como um anti-herói, perecenos que essa leitura pode ser estendida aos seus romances subseqüentes.
118
decorrer de nosso estudo. Trata-se, antes, de ultrapassá-las, requerendo do leitor sua própria
liberdade singularmente situada. Ou seja, é necessário que o leitor, no ato imaginativo, empregue
sua própria liberdade e constitua a obra que, sem isso, não se realiza. É a liberdade do leitor –
que, lembremos, “tem a consciência de desvendar criando, e de criar pelo desvendamento” –,
implicada na leitura da obra, que é requerida pela literatura. Se o leitor aceita o pacto do autor
para criarem a obra, então é necessário que este empregue toda sua liberdade na constituição da
obra mesma, já não é possível negar seu caráter transcendente. Assim, a obra só se realiza de fato
através da ação livre do leitor que a partir da obra reavalia sua vida e sua condição. É nesse
sentido que voltamos à passagem anteriormente citada: “o escritor apela à liberdade do leitor
para que esta colabore na produção da sua obra”.306 Ou seja, é preciso que o leitor assuma-se
livre na leitura, e com isso, se recoloque em relação à sua própria situação. Assumindo-se,
consequentemente, enquanto liberdade frente ao mundo.
Mas, cumpre indagar: como ocorreria no interior de um romance esse mergulho na
situação histórica requerido pela criação ficcional? Como anteriormente exposto, entendemos
que, para Sartre, esse mergulho é operado através da intensidade que o caráter negativo
(ausência) da imagem é capaz de proporcionar, visto que a experiência do real através da
negação do próprio real é sempre mais intensa que o caráter positivo do concreto (presença). Isto
porque a irrealidade da imagem pressupõe a liberdade da consciência, pois só posso imaginar se
for livre para negar a realidade que me circunda. Assim, o regresso ao real é intensificado porque
requisita minha liberdade e a realidade se dá a ver em seu sentido profundo, qual seja, enquanto
pura gratuidade. Esvanece-se, deste modo, a lógica capaz de justificar os acontecimentos a priori.
Notemos que isso ocorre justamente porque percebo, através da inversão do fluxo temporal da
lógica que perpassa a narrativa, o caráter ilógico que sustenta o próprio real Converte-se, então, a
literatura numa vivência do singular que nos lança ao absoluto. Procuremos perceber como esse
processo ocorre com a leitura de A Náusea. Roquentin nos convoca a vivenciar sua relação
singular com seu projeto de historiador; posteriormente, o personagem se percebe como incapaz
de dar continuidade a esse projeto, visto que ele já não consegue justificar os acontecimentos de
sua vida. Nesse movimento, a despeito de sua pretensão de atingir uma realidade não
contingente, ele finda por convocar o leitor a colocar de lado toda a sua realidade presente
(nadificá-la) e mergulhar no imaginário para, posteriormente, retomar o real de forma mais
autêntica. Isto porque, tal como foi dito antes, tudo se passa para que algo aconteça a tal
personagem, isto é, a presença do autor faz com que o sentido da narrativa já esteja dado, os
306
SARTRE, Jean-Paul, Que é a Literatura?, p. 39.
119
acontecimentos são criados/inventados para aquele personagem. Contrapondo-se ao mundo em
que o personagem está inserido – ou ao mundo que Roquentin busca criar – o leitor compreende
que supor a realidade como subsumida a qualquer ordem dada é de fato absurdo.
Por essa razão, o romance “diz e não diz” as mesmas coisas que a filosofia, porque dizer
através do recurso ao imaginário permite ultrapassar o dado concreto da condição existencial
para retomá-la num sentido mais profundo, que é o registro da liberdade enquanto fundamento
último da existência, ou seja, a sua radical gratuidade. Não seria vão retomar algo daquilo que
desenvolvemos em outro momento: trata-se de “recuperar o poder de verdade da literatura”,307
visto que os romances, “mesmo propondo „mundos impossíveis‟ fazem um „bom uso‟ da
contradição, velando-a e desvelando-a ao mesmo tempo”308. Aqui a referência é ao caráter
dialético que caracteriza o romance para Sartre. Lembremos que a dialética, nesse caso, consiste
na relação entre a criação imaginária e o real porque num só instante a consciência imaginante
nega o real, mas justamente para reafirmá-lo, porque é apenas enquanto inserção profunda no
mundo que é possível a imaginação. É exatamente neste sentido que entendemos o romance A
Náusea, como inserção profunda na realidade através da imagem, como experiência concreta
expressa através da literatura. Insistamos: “não se trata de confundir filosofia e literatura, mas
de abrir caminho para uma filosofia que seja capaz de exprimir a experiência mais concreta e
de valorizar a literatura que nos permita ver melhor a nós mesmos e o mundo presente”.309
Nesse sentido, isto é, no que tange à intensidade implicada na ausência, são célebres
também as palavras de Blanchot em O Paradoxo de Aytré. Em dado momento, o autor diz que
“uma história é a palavra articulada de uma ausência de palavra”. 310 Afinal, não é disso que
trata Sartre, ao menos no que concerne à imagem? Blanchot: “na linguagem autêntica a palavra
não é a expressão de uma coisa, e sim a ausência dessa coisa. „Digo uma flor?‟, e esta não é
mais que „a ausência de todos os buquês‟”.311Assim a concepção do autor, ao citar Mallarmé,
parece-nos, que vai exatamente no mesmo sentido do que afirma Sartre ao considerar que “essa
intensidade [da ausência] supera a das outras presenças”. Isto porque dizer “esta flor” implica
em afirmar a ausência de todas as outras flores. Lendo as palavras do Blanchot sob um viés
sartriano, compreendemos que é através do jogo entre a ausência e presença, ou seja, num
contraponto de oposições que a literatura desvela o caráter contingente da existência. A ausência
307
PRADO JR, Bento, Sartre e o Destino Histórico do Ensaio, In: Situações I, p. 9.
Ibidem.
309
PRADO JR, Bento, Op. Cit., p. 9.
310
Ibidem, p. 65.
311
Ibidem, p. 67.
308
120
configura, desse modo, a intensificação da presença concreta, reinserindo, assim, o leitor no seio
do real. A imagem nega o real para reafirmá-lo, o irreal instaura o real profundo da realidade
concreta.
Assim, se retomarmos o problema na perspectiva da situação histórica, é exatamente
nesse sentido que nossa interpretação coaduna-se com aquela defendida por Júlio Cortázar
presente na apresentação deste capítulo, segundo a qual a “literatura existencial” representa o
“imanente humano” porque expressa o existencial em suas próprias situações, porque representa
“a situação em si, a experiência da vida e seu sentido no grau mais imediato”. Portanto, cabe
repetir, a “experiência do personagem de La Nausée só se pode apreender mediante uma
situação como a sua, e uma situação como a sua só pode comunicar ao leitor mediante um
romance”.312
No romance, uma passagem vem ao encontro dessas reflexões. Trata-se do momento em
que Roquentin se dá conta do sentido da Náusea, quando o personagem se lança no âmbito
reflexivo e percebe que a experiência desnuda o caráter gratuito da existência, que “o essencial é
a contingência”. Ainda que longo, cumpre transcrevermos o texto na íntegra:
Esse momento foi extraordinário. Eu estava ali, imóvel e gelado, mergulhado
num êxtase horrível. Mas, no próprio seio deste êxtase, qualquer coisa de novo acabava
de aparecer; eu compreendia a Náusea, possuía-a. A bem dizer, não formulava
intimamente minhas descobertas. Mas creio que me seria fácil, agora, traduzi-las em
palavras. O essencial é a contingência. Quero dizer que, por definição, a existência não
é a necessidade. Existir é estar presente, simplesmente; os existentes aparecem, deixam
que os encontremos, mas nunca se podem deduzir. Há pessoas, creio eu, que percebem
isto. Somente tentam dominar essa contingência inventando um ser necessário e causa
de si próprio. Ora, nenhum ser é uma ilusão de ótica, uma aparência que se possa
dissipar; é o absoluto, por conseguinte a gratuidade perfeita. Tudo é gratuito, este
jardim, esta cidade e eu mesmo. É o sentimento disso, quando acontece que ele entra em
nós, que nos dá volta ao estômago, e então começa à andar a roda como da outra vez no
Rendez-vous dos Ferroviários: aí está a Náusea; aí está o que os safados – os do Outeiro
Verde – tentam esconder a si próprios com a sua idéia dos direitos. Mas a mentira é
pobre: ninguém existe por direito; os burgueses de Bouville são inteiramente gratuitos,
como os outros homens; não conseguem deixar de se sentir demais. E, no seu íntimo,
em segredo, transbordam do que são, existem exageradamente, isto é, duma maneira
amorfa e vaga; tristes.313
A relação que se estabelece entre a necessidade e a contingência durante a citação parece
evidenciar o processo de má-fé do qual as pessoas habitualmente se utilizam para negar sua
transcendência, pois, como diz Roquentin, a existência é, por definição, não necessária. É por
312
313
CORTÁZAR, Julio, Op. Cit., p. 78-9.
SARTRE, Jean-Paul, A Náusea, p. 223-4.
121
isso que inventar um ser necessário como sustentáculo e fundamento da existência se mostra
como um ato de covardia. Fugir de si próprio significa agir de má-fé. Daí que a passagem em
questão se vincule justamente ao ponto mais central deste tópico, qual seja, a explicitação da
completa gratuidade da existência, do sentimento violento e radical da Náusea que tudo destrói,
que dissipa qualquer possibilidade de se justificar a existência. Por essa razão, ninguém existe
justificadamente, como se houvesse algo capaz de garantir o sentido da existência, tudo é
gratuito, e, como diz o personagem, só os “safados” poderiam negar sua condição contingente,
pois buscam fugir à sua liberdade. Como destacou Leopoldo e Silva, é preciso “lavar-se do
pecado de existir”, é preciso assumir que se “existe exageradamente”, e que as coisas são,
sempre, por “demais”. E que o fundamento da existência é a própria gratuidade da mesma.
Deste modo, o que buscamos evidenciar neste tópico foi, principalmente, a revelação ao
personagem Roquentin de que, embora ele desejasse existir ao modo de um personagem de
romance, qual seja, no registro da necessidade narrativa, a ele resta assumir, por intermédio da
Náusea, sua condição contingente. Parece-nos, tal como também afirma Moutinho, que a grande
distinção existente entre o ensaio sobre A Transcendência do Ego e o romance A Náusea reside
justamente na dimensão da contingência.314 Mas se ficou claro que o romance abarca a dimensão
da condição contingente do homem, resta explicitar como a consciência enquanto fluxo contínuo,
presente no ensaio, aparece no romance. Eis o problema sobre o qual nos lançamos a seguir, de
modo que finalizaremos nosso percurso explorando o elo entre o romance A Náusea e a realidade
da consciência, tal como concebida pela fenomenologia crítica de Sartre.
3. A consciência enquanto fluxo contínuo e a pura espontaneidade do presente: a Náusea
enquanto manifestação profunda da existência
Em certo momento do tópico anterior, abordamos a questão da “perda do passado”.
Convém retomarmos este problema, mas agora com o intuito de evidenciar o caráter fluido da
consciência, o qual aflora no romance através da manifestação violenta e radical da Náusea. Tal
como buscamos apresentar no primeiro capítulo, quando analisamos o ensaio sobre a
transcendência do Ego, a consciência se caracteriza como pura relação com o mundo, como um
processo incessante de realização e que, no entanto, nunca se realiza completamente. Vimos que
influenciado pela fenomenologia, Sartre assenta essa concepção na noção de intencionalidade,
314
MOUTINHO, Luiz Damon Santos, Op. Cit., p. 75.
122
que, sob a sua leitura, havia sido negligenciada por Husserl. Nesse sentido, a consciência é pura
relação com o mundo, o que significa que ela é puro Nada, puro movimento. Em diversos
momentos Roquentin descreve suas vivências de um “modo fenomenológico”, cabe destacar
aquele em que, no nosso entender, isso mais se evidencia:
Deitei um olhar ansioso à minha roda: presente, nada mais que o presente.
Móveis leves e sólidos, encrostados no seu presente, uma mesa, uma cama, um guardafato – e eu próprio. Revelava-se a verdadeira natureza do presente: era o que existe,
e tudo o que não era presente não existia. O passado não existia. De modo nenhum,
nem as coisas, nem sequer no meu pensamento. Decerto, havia muito tempo que eu
tinha compreendido que o meu me tinha escapado. Mas julgava, até então, que se tinha
simplesmente retirado do meu alcance.315
Nessa passagem são diversos os aspectos da filosofia existencialista de Sartre que
adquirem expressão literária. O primeiro deles salta aos olhos e diz respeito justamente ao
movimento que caracteriza a consciência. Este reconhecimento feito pelo personagem, segundo
o qual tudo é presente, além de explicitar a “perda do passado”, anteriormente aludida, relacionase diretamente com as vantagens da tradução de Márcia de Sá Cavalcanti para Ser e Tempo de
Heidegger. Ao transpor o conceito heideggeriano de dasein para o termo presença em português,
o que a tradutora conseguiu foi, precisamente, destacar que a consciência é pura relação, ou seja,
que ela é Nada, que ela é vazia. É justamente nesse sentido que a tradução de Márcia de Sá
Cavalcante ecoa o sentido que a consciência adquire na filosofia sartriana. Noutros termos, a
opção da tradutora por presença tem a vantagem de explicitar o caráter processual da
consciência; isso significa que o existente – no caso de Sartre o homem, o Para-Si –, é no mundo,
ele se configura como pura presença.316 Daí que seja lícito compreender que o ser-aí
heideggeriano, o existente, é pura presença, é um ser-no-mundo. Sob essa perspectiva, existir é
“estar presente”, é presença. “O existente é pura presença”, comenta Moutinho.317 Ou ainda,
numa formulação literária: “Viver é ir entre o que vive”.318 Destaca-se, dessa maneira, a
influência fenomenológica. Ainda com essa passagem, abre-se a possibilidade de
compreendermos melhor porque Sartre radicaliza o conceito de intencionalidade, pois, um dos
principais fundamentos da fenomenologia – ao menos na apropriação que Sartre faz dela – é que
315
SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 165-6. Grifo nosso.
Estamos cientes das críticas a essa opção e da preferência pelo termo ser-aí pela maioria dos tradutores, no
entanto não é nosso objetivo aprofundarmo-nos nesta discussão.
317
MOUTINHO, Luiz Damon Santos, Op. Cit., p. 57.
318
MELO NETO, João Cabral, Poesia completa, p. 316.
316
123
“as coisas são inteiramente o que parecem – e por trás delas... não há nada”,319 e que a
consciência é somente em relação ao mundo. Podemos então afirmar com toda segurança que
aquilo que melhor caracteriza a consciência no registro sartriano é a intencionalidade.
Acerca desses aspectos, ou seja, sobre a consciência intencional e a “verdadeira natureza
do presente”, Roquentin assim se manifesta:
Nunca tive tão nitidamente como o hoje o sentimento de ser o meu corpo, sem
dimensões secretas, de me reduzir aos pensamentos leves que sobem dele como bolhas.
Construo as minhas recordações como o meu presente. Sou repelido para o presente,
abandonado lá. Tento em vão ir ter com o passado: não posso fugir da minha prisão. 320
Evidentemente, a primeira questão que poderíamos formular ao ler essa constatação do
personagem diz respeito ao corpo. Sobre esse ponto, contudo, nos deteremos adiante.
Ressaltemos, primeiramente, o aspecto fugidio da consciência contemplado pela citação, que se
traduz naquilo que aquilo que lança Roquentin sempre no presente, que o aprisiona nele e que é o
lugar do qual tudo deriva. Com essa formulação o personagem nos remete à compreensão
sartriana de consciência intencional. Retomemos a passagem de A Transcendência do Ego, na
qual Sartre aborda o tema:
Com efeito, a existência da consciência é um absoluto porque a consciência está
consciente dela mesma. Isto quer dizer que o tipo de existência da consciência é o de ser
consciência de si. E ela toma consciência de si enquanto ela é consciência de um objeto
transcendente. Tudo é portanto claro e lúcido na consciência: o objeto está face a ela
com a sua opacidade característica, mas ela, ela é pura e simplesmente consciência de
ser consciência desse objeto, é a lei da sua existência. 321
Estas linhas explicitam que o modo de ser da consciência é ser consciência de si enquanto é
consciência de um objeto transcendente,322 o que significa que o modo de ser do homem é ser
enquanto presença; existir é estar presente. É por isso que o personagem afirma que constrói
suas recordações com o seu presente; o passado só surge se revisitado pela consciência, de modo
que há a impossibilidade de “reviver” o passado, pois a consciência é sempre em fluxo contínuo.
Isto dá ao presente uma conotação que se aproxima da imagem de uma prisão, uma vez que não
319
SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 166. Aludimos aqui ao que foi dito no primeiro capítulo, item 2, acerca da relação
entre o fenômeno do ser e o ser do fenômeno.
320
Ibidem, p. 64.
321
Idem, A Transcendência do Ego, p. 48.
322
Evidentemente estamos cientes que Sartre pressupõe aqui os dois âmbitos da consciência – reflexiva e préreflexiva –; no entanto, não nos parece necessário retomar essa problemática, visto que já a exploramos
anteriormente em diversos momentos de nosso estudo. O propósito neste momento é apenas ressaltar a
consciência enquanto fluxo.
124
podemos escapar dessa pura relação que define a consciência. À guisa de exemplo, se me
recordo das “aventuras” que passei no verão passado, por exemplo, isso se dá apenas para me
provar que esse passado não existe, ele é, o que existe é a consciência intencional que se volta
para uma recordação, e por isso mesmo atualiza-a, ou seja, “a re-significa”, o que é o mesmo que
dizer que sob este registro tudo é movimento. Tudo é presença. Posto isso, ficam mais claras as
afirmações do personagem:
Por cada cem histórias mortas, sempre me ficam, porém, uma ou duas histórias
vivas. Essas evoco-as com precaução, de vez em quando, poucas vezes, com medo de as
gastar. Peso uma, revejo o cenário, as personagens, as atitudes. Subitamente paro: senti
um desgaste, vi uma palavra vir ao de cima da trama das sensações. Prevejo que esta
palavra vai tomar o lugar, dentro em pouco, de várias imagens que amo. Imediatamente
me detenho; penso depressa noutra coisa: não quero fatigar as minhas recordações. Em
vão; da próxima vez que as evocar, parte delas terá coalhado.323
Com esse discurso, fica explícito que o passado – no caso, “as histórias” – é sempre
presentificado por uma consciência que o atualiza. Por essa razão, essas recordações irão
inevitavelmente “coalhar”. Como interpretar esse “coalhar” das recordações? Trata-se aqui da reapropriação que a consciência intencional faz da memória, o passado ressurge sempre como algo
atualizado pela consciência intencional. Ou seja, a intensidade vivenciada no ato em que a
história ocorria não pode ser resgatada, ela é sempre atualizada, ela surge enquanto uma outra
coisa que não aquela vivida. Já é outra história. Essa compreensão reforça que o modo de ser da
consciência é ser “aquilo que [ela] não é, e não [ser] aquilo que [ela] é”324, ou seja, a
consciência é fluxo, inacabamento, é pura espontaneidade. Em suas análises, Moutinho se refere
a essa “perda do passado”. Trata-se, afirma ele, de um passado que é sempre narrado a
posteriori, o que faz com que a narrativa seja permeada por um certo finalismo que acaba por
converter a vida em aventura. “O herói não escolhe, ele cumpre um destino”.325 Voltando ao
âmbito da criação ficcional, isso significa que o fim destinado aos personagens já está presente
desde o inicio da narrativa, e, por isso mesmo, o passado existe apenas para justificar o presente,
mas, como vimos, a necessidade intrínseca à narrativa literária, por oposição, acaba por ressaltar
a gratuidade que fundamenta a própria existência.
A narrativa literária acaba também por inverter o fluxo temporal da consciência. A “perda
do passado” representa a não-temporalidade, pois o encadeamento dos fatos presentes na
narrativa converte, como lembra o comentador, os “acontecimentos” em “tempo”, ou seja, o
323
Idem, Op. Cit., p. 63.
Idem, O Ser e o Nada, p. 38.
325
MOUTINHO, Luiz Damon Santos, Op. Cit., p. 51.
324
125
rigor da narrativa parece justificar todos os fatos. Em outras palavras, a ato de narrar finda por
atribuir um sentido aos fatos que, em si mesmo, não existe. É como se a narração propiciasse a
ordenação sucessiva dos fatos em instantes, cujos sentidos estivessem previamente estabelecidos
Movimento que se contrapõe radicalmente ao fluxo temporal que caracteriza a consciência e que
se revela incompatível com determinações quaisquer.
Da contraposição entre a ordem contemplada pela narrativa e o fluxo contínuo que define
a consciência decorre que o presente passe a ser entendido como pura relação, como pura
espontaneidade, pois é exatamente isso que caracteriza a consciência lançada no mundo.
Entender o presente como pura espontaneidade implica a perda do passado, pois já não é possível
a Roquentin sustentar a segurança proporcionada pela narrativa de aventuras; o passado aparece
como algo forjado. É exatamente nesse sentido que cabe retomarmos a passagem referida no
tópico anterior: “o sentimento de aventura. [...] vem quando quer; e abandona-me tão depressa!
E fico tão seco quando se vai embora. Far-me-á ele estas visitas irônicas para me mostrar que
falhei na vida?” Ou seja, se me remeto ao passado ele já não é mais capaz de me proporcionar a
segurança almejada, isso é, o passado só é capaz de “mostrar que falhei na vida”. Nesse sentido,
Roquentin afirma que “o passado não existe” e que, por isso mesmo, a “verdadeira natureza do
presente: era o que existe, e tudo o que não era presente não existia”. Daí voltamos ao “puro
processo contínuo” que melhor caracteriza a consciência: existir é estar sempre em pura relação
com o mundo. Talvez por isso, o protagonista fale em “Estar a existir”, e talvez por isso
também, Leopoldo e Silva sustente que o sentimento da Náusea é “o próprio modo de sentir-se
existindo”. Notemos que o gerúndio aqui não é casual. Daí também a referência à expressão de
Hilda Hilst, citada anteriormente no primeiro capítulo do nosso estudo: “Estar-sendo-ter-sido”.
Essa expressão tem a grande vantagem de, a uma só vez, expressar o caráter processual da
consciência a que nos referimos e ainda não negligenciar o aspecto imanente que a consciência
inserida no mundo exige. Ou seja, o homem é no mundo, ele é um ser-no-mundo, e que também
aludimos anteriormente. No romance, o personagem assim se expressa:
Estou a existir. É suave, tão suave, tão lento! E leve: como algo que se
mantivesse no ar em suspensão. Sinto mexer: impressões levíssimas por todo o corpo,
que fundem e se desvanecem. Suavemente, suavemente. Há na minha boca uma água
espumosa. Engulo-a: resvala pela garganta, numa carícia – e já outra me cresce na boca;
tenho na boca perpetuamente uma poçazinha de água esbranquiçada – discreta – a roçarme a língua. E essa poça também sou eu. E a língua também. E a garganta sou eu. 326
326
SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 170.
126
Essa passagem é significativa. Nela, Roquentin, além de retomar a concepção da
consciência enquanto fluxo – “Estou a existir” –, nos impõe uma outra questão. Com a
afirmação “E a garganta sou eu”, é o problema do corpo que se descortina. O que seria o corpo
sob a perspectiva sartriana?
Antes de nos determos, ainda que brevemente, nessa problemática, faz-se necessário uma
nota prévia. Se, como afirmamos anteriormente, a tradução de dasein por presença tem a grande
vantagem de frisar o caráter processual da consciência, por outro lado o termo ser-aí – adotado
por Ernildo Stein e Benedito Nunes, por exemplo –, tem a privilégio de ressaltar que o existente
é sempre no mundo, é um ser-no-mundo – como prefere Heidegger – ou então, que o existente é
sempre em situação – como prefere Sartre. Daí a compreensão de que o mundo, no registro
sartriano, se configure sempre como o mundo de um dado ponto de vista, como uma perspectiva.
Desse modo, o corpo manifesta a contingência; ele é pressuposto sine qua non que o homem
realize sua condição no mundo, sua facticidade. Ora, se o ser-aí, ou, para retomarmos a
terminologia existencialista, o Para-Si, é sempre um existente no mundo, em situação,327 então o
corpo se impõe como condição de possibilidade da consciência no mundo. Diz Sartre: “O ParaSi deve ser todo inteiro corpo e todo inteiro consciência”.328 Temos, finalmente, a formulação
do filósofo que define o corpo tal como nos interessa destacar, diz ele: “poder-se-ia definir o
corpo como a forma contingente que a necessidade da minha contingência assume”.329 Nesse
sentido, só resta ao homem existir seu corpo.
No entanto, sob esse registro, configura-se um paradoxo: a impossibilidade para o
existente de conhecer seu próprio corpo. Os dizeres do autor explicitam essa complexa relação
entre contingência e corpo: “O corpo-Para-si jamais é um dado que eu possa conhecer: está aí,
em qualquer parte, como aquilo que é transcendido; só existe na medida em que dele escapo
nadificando-me; é aquilo que nadifico”.330
Ou ainda:
[...] o Em-si, nadificado e aniquilado no acontecimento absoluto que é a aparição
do fundamento ou do surgimento do Para-si, permanece no âmago do Para-si como sua
327
Retomaremos a noção de situação mais adiante, mas talvez não seja ocioso adiantar algo justamente pela força
expressiva que as palavras de Sartre adquirem neste contexto. Diz ele, referindo-se à noção de situação: “É esta
vereda poeirenta e ascendente, esta sede ardente que sinto, essa recusa das pessoas de me dar algo para beber
porque não tenho dinheiro ou não sou de seu país ou sua raça; é minha derrelição no meio dessas populações
hostis, com esta fadiga de meu corpo que irá me impedir talvez de alcançar a meta a que me propus [...]” (O Ser e o
Nada, p. 673).
328
SARTRE, Jean-Paul, O Ser e o Nada, p. 388.
329
Ibidem, p. 392.
330
Ibidem.
127
contingência original. Assim, o Para-si é sustentado por perpétua contingência que ele
recupera por conta própria e assimila sem poder suprimi-la jamais. Em parte alguma o
Para-si a encontra em si mesmo, em parte alguma pode captá-la e conhecê-la, sequer
pelo cogito reflexivo, porque a transcende sempre rumo às suas próprias possibilidades
e só encontra em si mesmo o nada que tem-de-ser. E, contudo, essa contingência não
cessa de impregná-lo, fazendo com que eu me apreenda ao mesmo tempo como
totalmente responsável pelo meu ser e como totalmente injustificável. 331
Essa passagem revela a relação que existe entre a concepção do corpo como a
manifestação da condição contingente do homem e o caráter dinâmico que a consciência assume
para Sartre. É necessário ao homem que ele se assuma como responsável pelo seu ser e pela sua
condição contingente e injustificável. Aqui, novamente, o pressuposto é que a consciência, ou
melhor, o próprio existente, se configura como pura presença. Assim, “estou em presença de
coisas que não passam de promessas, para-além de uma inefável presença que não posso
possuir e é o puro „ser-aí‟ das coisas, ou seja, aquilo que é meu, minha facticidade, meu
corpo”.332 Reitera-se a sentença: ao Para-Si resta existir seu corpo, sua facticidade de forma
transcendente, assumindo sua liberdade sem com isso negar sua condição contingente. Pois uma
situação de forma alguma “é um puro dado contingente: muito pelo contrário, [ela] só se revela
na medida em que o Para-si a transcende rumo a si”.333
Aos comentários de Moutinho vêm ao encontro dessa problemática. Se retomarmos o
vocabulário de A Transcendência do Ego, a consciência irrefletida não é consciência do corpo,
pura e simplesmente, porque “a consciência existe seu corpo”, o que é o mesmo que dizer que
“a consciência existe seu corpo como consciência, por isso, de vez que não há consciência do
corpo, este deve pertencer às estruturas da consciência não-tética (de) si. Mas, nesse caso,
estruturas que não podem ser postas teticamente, pela reflexão”.334 Novamente, a passagem do
âmbito pré-reflexivo ao âmbito reflexivo, mediado pela relação entre a consciência tética (de) si
e a consciência não-tética do objeto intencionado, no caso o próprio corpo, mostra-se
fundamental. No entanto, o corpo é algo que não é passível de ser colocado como objeto pela
reflexão, não pode ser posto teticamente. Por isso, a consciência existe seu corpo, porque o
corpo é condição de possibilidade da consciência, porque existir seu corpo é o mesmo que
“existir sua contingência”. Entendemos finalmente o sentido íntimo daquilo que diz Roquentin:
“Sinto mexer: impressões levíssimas por todo o corpo, que fundem e se desvanecem” e porque
isto é o mesmo que “estar a existir”. O caráter contingente da existência só poderia desvelar-se
331
Ibidem, p. 391.
Ibidem, p. 407.
333
Ibidem, p. 392.
334
MOUTINHO, Luiz Damon Santos, Op. Cit., p. 71.
332
128
através de um sentimento, no caso a Náusea, porque “existir é existir meu corpo”. Assim: “A
Náusea é a experiência permanente, contínua, que me revela meu corpo; na verdade, a Náusea
se revela a si mesma e apenas lateralmente o meu corpo, já que esse é inapreensível
contingência”.335 Ou seja, a Náusea, ao desvelar-se, impõe ao personagem a força do presente,
obriga-o a assumir sua condição transcendente, isto é, sua consciência em fluxo. É justamente
este o sentido da imposição do presente sobre as outras dimensões da temporalidade; em outras
palavras, o existente tocado pela experiência da Náusea já não é capaz de escapar, ao menos
autenticamente, de sua condição contingente. Nesse sentido, é preciso existir meu corpo; existir
meu corpo significa ser “repelido para o presente”, para a existência em fluxo. É por isso
também que em dado momento o personagem afirma numa passagem já mencionada por nós,
mas que vale retomar, ainda que o ponto agora ressaltado refira-se à a reflexão acerca do corpo
propriamente dito: “Nunca tive tão nitidamente como hoje o sentimento de ser o meu corpo [...]
Construo as minhas recordações com o meu presente. Sou repelido para o presente,
abandonado lá. Tento em vão ir ter com o passado: não posso fugir da minha prisão”.336 Ou
seja, o passado só surge enquanto presentificação de uma vivência que já não existe, mas apenas
é; quando me volto para ela, é para atualizá-la. Como antes assinalado, o presente se configura
como uma prisão. Estou preso em meu presente em fluxo, estou condenado à liberdade. Não
posso fugir de minha condição, que é “existir meu corpo”.
Com isso, entrelaçam-se os temas até aqui abordados. Como buscamos defender, a
Náusea é a manifestação violenta e radical da condição contingente do homem, mas essa
manifestação é mediada, contra Descartes, pelos sentidos; trata-se de algo que se dá no âmbito da
experiência, e isso só adquire significação porque o corpo é a condição de possibilidade da
existência, porque existir é estar presente. Como dissemos existir é existir meu corpo. Daí que a
Náusea revele meu corpo, ou melhor, revele a “inapreensível contingência” da condição humana,
pois meu próprio corpo é contingência. São pertinentes as palavras de Sartre:
Esta perpétua captação por meu Para-si de um gosto insosso e sem distância, que me
acompanha até em meus esforços para livrar-me dele e que é meu gosto, é o que
descrevemos em outro lugar com o nome de Náusea. Uma Náusea discreta e insuperável
revela perpetuamente meu corpo a minha consciência. 337
335
Ibidem, p. 72.
SARTRE, Jean-Paul, A Náusea, p. 64.
337
SARTRE, Jean-Paul, O Ser e o Nada, p. 426.
336
129
Portanto, se chegamos à compreensão de que a consciência existe seu corpo, e que é
através da mediação da experiência violenta e radical da Náusea que esse corpo desvela a
contingência – ou melhor, que ele é a própria manifestação da inapreensível condição
contingente da existência –, torna-se imperativo retomar o problema da constituição do Ego.
Voltemos, pois ao romance com o objetivo de esclarecer como o problema da dissolução do Ego
se impõe neste recurso ao imaginário que é A náusea.
4. A dissolução do Ego
Comecemos nossa incursão deste tópico por uma passagem do romance em questão, o
qual, no nosso entender, expressa com absoluta clareza a dissolução do Ego problematizada no
ensaio sobre a transcendência do Ego. Evidentemente, não se trata de dizer a mesma coisa de um
modo literário, mas antes, trata-se de requerer do leitor que se volte para a experiência
imaginária, e, por conseqüência, empregue sua liberdade nesse processo. Vejamos, então, como
isso aparece expresso por Roquentin. Para tanto optamos por método contrapor a expressão
literária às análises presentes no primeiro capítulo deste estudo. Diz o personagem:
Quando agora digo “eu”, parece-me essa palavra oca. Já não chego lá muito bem
a sentir-me, a tal ponto me esqueceram. Tudo quanto resta de real em mim é existência
que se sente existir. Bocejo devagar, demoradamente. Ninguém. Antoine Roquentin não
existe para ninguém. É engraçado. E que vem a ser isso, essa coisa chamada Antoine
Roquentin? É algo abstracto. Uma pálida recordaçãozinha de mim vacila na minha
consciência. Antoine Roquentin... E, de súbito, o Eu enfraquece, enfraquece-se e, zás!,
apaga-se.
Lúcida, imóvel, deserta, a consciência encontra-se entre as paredes; perpetua-se.
Já ninguém a habita. Há bocadinho ainda alguém dizia eu, dizia a minha consciência.
Quem? [...] Restam paredes anônimas, uma consciência anônima. Eis o que é: paredes e,
entre paredes, uma transparenciazinha viva e impessoal. 338
Eis a consciência: “uma transparenciazinha viva e impessoal”! Ou, como aparece em
Uma Idéia Fundamental da Fenomenologia de Husserl: a Intencionalidade. Talvez seja apenas a
imagem rápida e obscura da explosão possa descrever a consciência intencional. E o “talvez” não
está aí por acaso; parece-nos bastante sugestivo que Sartre ateste as dificuldades de expressar o
movimento que caracteriza a consciência. Parece-nos, ainda, que essa dificuldade deriva
justamente da insuficiência da linguagem teórica em expressar “filosoficamente” a consciência.
Daí que Leopoldo e Silva, tal como foi dito no capítulo anterior, considere que através da criação
338
Idem, A Náusea, p. 287-8.
130
ficcional Sartre “diz e não diz as mesmas coisas”. Ou seja, literatura e filosofia apresentam uma
dupla insuficiência, e, por isso mesmo, uma relação de complementaridade. Por conseqüência, se
a consciência é essa “existência que se sente existir”, então só me resta uma “pálida
recordaçãozinha” do Ego na consciência e, pouco a pouco, ela se desvanece, já não há nada que
possa habitá-la. Não há nada na consciência. Diz Sartre no ensaio A Transcendência do Ego:
“Nós queremos mostrar aqui que o Ego não está na consciência nem formal nem materialmente:
ele está fora, no mundo; é um ser do mundo, tal como o Ego de outrem”.339 A consciência é puro
vazio. No dizer de Roquentin: “Já ninguém a habita. Há bocadinho ainda alguém dizia eu, dizia
a minha consciência. Quem?” Evidentemente essa passagem remete ao referido ensaio
filosófico: o Ego não é um habitante da consciência; a consciência é pura espontaneidade
impessoal; se não há um Eu na consciência, então o Ego só é posto abstratamente, no âmbito da
consciência de segundo grau, da consciência reflexiva. O que novamente não implica afirmar
que Sartre busque ilustrar suas teses filosóficas por intermédio da literatura, pois, como
dissemos, a criação ficcional vai mais além porque configura um apelo concreto à liberdade do
leitor através do recurso ao imaginário.
Cabe então retomarmos algo do que já foi trabalhado no primeiro capítulo com o intuito
de lançar luz sobre a experiência do personagem, sempre lembrando que não aceitamos a
interpretação que defende a literatura como uma forma de ilustrar teses filosóficas, pois o que é
dito aqui é expresso sempre como um recurso ao imaginário, o que nos remete a todas as
implicações que buscamos destacar em nosso percurso. Assim, detenhamo-nos outra vez nesta
passagem de A Transcendência do Ego:
Ele [o Eu] não aparece nunca senão por ocasião de um ato reflexivo. Nesse caso, a
estrutura complexa da consciência é a seguinte: há um ato irrefletido de reflexão sem Eu
[Je] que se dirige para uma consciência refletida [réfléchie]. Esta torna-se o objeto da
consciência refletinte [réfléchissante], sem deixar, todavia, de afirmar o seu objeto
próprio (uma cadeira, uma verdade matemática, etc.). Ao mesmo tempo, um objeto
novo aparece, o qual é ocasião de uma afirmação da consciência reflexiva e não está,
por conseguinte, nem no mesmo plano da consciência irrefletida (porque este é um
absoluto que não precisa da consciência reflexiva para existir) nem no mesmo plano do
objeto da consciência irrefletida (cadeira, etc.). Este objeto transcendente do ato
340
reflexivo é o Eu [Je].
Vemos que Sartre busca ressaltar que o Ego é algo que só é posto num âmbito reflexivo
quando a consciência se volta para uma consciência refletida, isto é, no passado. A perda do
339
340
Idem, A Transcendência do Ego, p. 43.
Ibidem, p. 55. (Grifo nosso).
131
passado, proporcionada pela experiência da Náusea, reflete esse processo vivido pelo
personagem, ou seja, o passado só é capaz de proporcionar a segurança que Roquentin deseja se
ele agir de má-fé. Por conseqüência, é só através de um recurso ilusório que a consciência é
capaz de inverter o processo natural, ou seja, negar o primado da consciência espontânea e
impessoal e colocar o Ego como fonte e motivo dos atos intencionais.
341
Diz o autor: “a
consciência projeta sua própria espontaneidade sobre o objeto Ego para lhe conferir o poder
criador que lhe é absolutamente necessário”.342 Por essa razão, o filósofo afirma que não há
nada na consciência, não há motivo a priori que possa justificar a ação humana. Parece-nos claro
o paralelo entre a passagem referida do romance e as análises filosóficas de Sartre. Mas a
passagem literária acima citada diz mais do que isso. Como sustenta o filósofo em outro
momento,“é na estrada, na cidade, no meio da multidão, coisa entre coisas, homem entre
homens”343 que devemos buscar um “nós mesmos”. É exatamente por esse viés que entendemos
aquilo que o personagem diz: “Lúcida, imóvel, deserta, a consciência encontra-se entre as
paredes”, ou seja, lançada no mundo. Assim, o romance expressa singularmente, ou seja,
concretamente, através da imagem, o apelo do escritor à liberdade do leitor para que juntos
construam a obra e assumam sua situação histórica.
Logo, parece-nos pertinente retomar as palavras de Sartre no romance, por sua
capacidade de “dizer e não dizer” as mesmas coisas presentes neste registro teórico. Vejamos:
A consciência existe como uma árvore, como um pedacinho de erva. Tem sono,
aborrece-se. Pequenas existências fugitivas povoam-na como aves nos ramos. Povoamna e desaparecem. Consciência esquecida, abandonada entre as paredes, sob o céu
cinzento. Eis o sentido da sua existência: é que essa consciência é consciência de ser
demais. Dilui-se, dispersa-se, procura perder-se na parede escura, ao largo daquele
candeeiro, ou além, nos fumos da tarde. Mas nunca esquece-se de si mesma; é
consciência de ser consciência a esquecer-se de si. O seu destino é esse. [...] Não está
entre as paredes, não está em parte nenhuma. Desaparecer; substitui-a um corpo
arqueado com uma cabeça ensangüentada, que se afasta a passos lentos, parece deter-se
a cada passo e não para nunca. Há consciência desse corpo que caminha lentamente por
uma rua escura.344
O que significa dizer que “a consciência existe como uma árvore”? E quais são as
implicações dessa concepção? Tal como foi dito acima, dizer que a consciência existe “entre as
paredes” é o mesmo que afirmar que ela só é em relação ao mundo, e que fora dessa relação ela
não é nada, ou melhor, “seu destino é esse”, a consciência “é consciência de ser consciência a
341
Veremos com mais cuidado o problema da “motivação” dos atos intencionais no próximo tópico.
Ibidem, p. 70.
343
Idem, Uma Idéia Fundamental da Fenomenologia de Husserl: a Intencionalidade, p. 57.
344
Idem, A Náusea, p. 288.
342
132
esquecer-se de si”. Novamente, temos aqui os dois âmbitos da consciência, como exposto pelo
autor em A Transcendência do Ego. Ou seja, o modo de ser da consciência é ser consciência
tética do objeto transcendente intencionado e consciência não-tética (de) si. Em outras palavras,
toda consciência é consciência de alguma coisa e simultaneamente é consciência de ser
consciência dessa coisa. A consciência é esse puro nada que se “perde” no mundo. Ela é
processo, fluxo contínuo. Entendemos, assim, porque a consciência se dilui, dispersa-se, perde-se
no mundo, pois sem o mundo ela não existe, ela é no mundo. O existente é um ser-no-mundo,
sempre em situação.
Mas se compreendemos o que isso significa ainda nos resta perscrutar quais são as
implicações desta concepção. A primeira é que o Ego só poderia ser posto enquanto um objeto
para a consciência, pois, se a consciência é essa pura relação que descrevemos, então não resta
espaço para que se forme um “Eu” por detrás da consciência, na consciência. É curioso notar
que, na passagem anteriormente referida, o personagem comece por falar em um “eu”, com letra
minúscula e entre aspas, isto é, em sentido fraco, e termine por falar de um EU, com letra
maiúscula em sentido forte, mas um “Eu” que se enfraquece, e “se enfraquece a ponto de, zás!,
apagar-se”. Daí a pergunta do personagem: “que vem a ser isso, essa coisa chamada Antoine
Roquentin?” O que significa agora dizer “EU”? Assim, “o que atemoriza Roquentin é que o Ego
se perca num mundo que se vai tornando massa informe”.345 Para além das teses contidas em A
Transcendência do Ego, a Náusea contempla diretamente a dimensão contingente da existência.
Eis porque o personagem vivencia a experiência do “demais”, o “demais das coisas e da
consciência”. Daí as coisas existirem “exageradamente”, em demasia. Analisemos com um
pouco mais de acuidade essa “experiência do demais”.
Comecemos por citar a célebre passagem que melhor representa essa experiência do
personagem, quando Roquentin deseja que todos os objetos a sua volta “existissem com menos
intensidade”, pois essa intensidade o atemoriza:
Éramos um montão de existentes incomodados, embaraçados com nós mesmos;
não tínhamos a menor razão para estar ali, nem uns nem outros; cada existente, confuso,
vagamente inquieto, se sentia de mais em relação aos outros. De mais: era a única
relação que eu podia estabelecer entre aquelas árvores, aquelas grades, aquelas pedras.
Em vão procurava contar os castanheiros, situá-los em relação à Véleda, comparar-lhes
a altura com a dos plátanos: cada um deles fugia às relações em que eu procurava
encerrá-los, se isolava, transbordava. Essas medidas (que eu teimava em manter para
adiar o desabamento do mundo humano, das medidas, das qualidades, das direções),
345
LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Op. Cit., p. 89.
133
bem lhes sentia o arbitrário; tinham deixado de morder as coisas. De mais, o
castanheiro, ali, na minha frente, um nadinha à esquerda, De mais a Véleda... 346
Essa intensidade com que a realidade se apresenta a Roquentin nada mais é do que a
manifestação explícita da condição contingente do homem, da total gratuidade da existência. O
mundo ordenado das categorias abstratas se mostra insuficiente. Tudo é demais; o Ego ameaça
diluir-se com o desabamento do mundo. Daí o grito desesperado de Roquentin: “Quem?” Quem
sou eu? O que significa dizer Antoine Roquentin agora? Comenta Leopoldo e Silva: “o Ego
participa do desabamento do mundo: uma vez a exterioridade desarticulada, uma vez anulado o
quê das coisas, também já não é possível responder a pergunta pela pseudo-interioridade:
quem?”347 Desse modo, tal como afirmado anteriormente, a idéia de interioridade não se
fundamenta, pois o Ego se mostra como um objeto do mundo, um objeto transcendental como
qualquer outro, meu próprio Ego deixa de ser uma propriedade exclusiva minha. Assim, o Ego é
um objeto contingente entre outros objetos contingentes. Nesse sentido, o ser-aí deve ser
entendido como pura facticidade. Compreendemos, pois, porque Sartre se refere aos “riscos” que
o Eu corre diante do mundo:
Esta consciência absoluta, quando é purificada do Eu, nada mais tem que seja
característico de um sujeito, nem é também uma coleção de representações: ela é muito
simplesmente uma condição primeira e uma fonte absoluta de existência. E a relação de
interdependência que ela estabelece entre o Eu [Moi] e o Mundo basta para que o Eu
[Moi] apareça como “em perigo” diante do Mundo, para que o Eu [Moi] (indiretamente
348
e por intermédio dos estados) retire do Mundo todo o seu conteúdo.
Convém uma referência ao momento em que, em A Transcendência do Ego, o filósofo
discute o artifício que faz com que o Eu apareça como o fundamento último da consciência,
enquanto um alicerce estável e seguro capaz de justificar as ações do homem. Com essa
estratégia, opera-se uma inversão fundamental, de modo que aquilo que é constituinte apareça
como constituído, ou seja, o âmbito pré-reflexivo que, como vimos, é condição de possibilidade
do âmbito reflexivo, aparece como decorrente do âmbito reflexivo. Em outras palavras, o Ego,
em vez de aparecer como um objeto para a consciência, surge como aquilo que justifica os
próprios atos intencionais. Na realidade, o que ocorre é que “o Eu [Moi] não tem nenhum
domínio sobre esta espontaneidade [consciência], pois a vontade é um objeto que se constitui
346
SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 218-9.
LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Op. Cit., p. 90.
348
SARTRE, Jean-Paul, A Transcendência do Ego, p. 83.
347
134
para e por esta espontaneidade”.349 Daí a involuntariedade da experiência da Náusea a que nos
referíamos antes. Não é possível ao homem induzir a experiência instauradora da Náusea.
Evoquemos novamente o dizer do personagem: “Se pudesse fazer com que não pensasse! [...]
Não quero pensar... Penso que não quero pensar. [...] o ódio à existência, a repulsa pela
existência, são outras tantas maneiras de a cumprir [...]” Ou seja, aqui não há nada de seguro e
voluntário, a experiência instauradora fundamental se impõe impreterivelmente.
Essa questão aparece de forma bastante clara nesta passagem já referida no primeiro
capítulo: “A consciência reflexiva inverte a produção real, numa espécie de projeção de sua
própria espontaneidade no objeto Ego, para fugir de si mesma”.350 É por isso que entender o
Ego enquanto uma instância criadora equivale a entendê-lo enquanto uma pseudoespontaneidade, pois a espontaneidade requerida pertence à consciência, em sua característica
fundamental que é ser fluxo temporal. “A verdadeira espontaneidade [consciência] deve ser
perfeitamente clara: ela é o que produz e não pode ser nenhuma outra coisa.351
De fato, todos os artifícios buscados por Roquentin – narrar a si mesmo no intuito de
verter a vida em aventura; a busca de justificativa existencial no trabalho de inspeção
historiográfica; a compreensão da perspectiva salvacionista da arte, atribuindo assim à arte a
função de oferecer refúgio; – nada mais são do que formas diversas de agir de má-fé, de se
acovardar diante do absurdo que caracteriza a realidade. Temos, assim, uma cisão entre o Ego e
o mundo, ou seja, se a consciência é no mundo, e se o Ego é mais um objeto transcendente para a
consciência, então o Ego não pode ser identificado à consciência, que é o que o protagonista
busca fazer através desses subterfúgios, isto é, ele pretende constituir-se enquanto uma coisa
acabada. Desse modo o mundo não pode ser reduzido ao Ego. Cabe lembrar então: “o Ego é um
objeto que não aparece senão à reflexão e que, por esse fato, está radicalmente cortado do
mundo. Ele não vive no mesmo plano”.352 Explicita-se, pois, como buscamos defender aqui, que
é a consciência e, desse modo, o próprio existente – ou seja, a consciência existindo seu corpo
(novamente o gerúndio não é casual) –, que está lançada no mundo. O homem é um ser-nomundo. E o Ego só surge enquanto um objeto para a consciência e que, por isso mesmo, está
apartado do mundo; ele só surge enquanto objeto da consciência reflexiva.
349
Ibidem, p. 79.
Ibidem, p. 41.
351
Ibidem, p. 69.
352
Ibidem, p. 71.
350
135
Chegamos, finalmente, ao último ponto de nossa reflexão: se o Ego surge para “encobrir
à consciência sua própria espontaneidade”,353 se essa inversão resulta em fuga e má-fé, não há
como nos furtarmos às necessárias implicações éticas que daí decorrem. Cabe interrogar, então,
qual o sentido da narrabilidade a que aludimos ao fim do primeiro capítulo, pois, é preciso exigir
do escritor “uma forma mais autêntica de narrar, em que a expressão da subjetividade esteja
mais diretamente atravessada pelas exigências éticas da representação humana”.354 Antes,
porém, convém indagar porque a filosofia existencialista como um todo parece exigir um
desdobramento ético.
5. Algo sobre necessário desdobramento ético
Nesse ponto, portanto, torna-se imprescindível remetermo-nos a esse necessário
desdobramento ético derivado da concepção sartriana do imaginário e, por conseqüência, da
literatura na filosofia existencialista de Sartre. De acordo com o que foi abordado anteriormente,
se uma nova forma de fazer filosofia redefine a relação dessa filosofia com a literatura, é preciso
observar que algo na condição humana, tal como Sartre a compreende, fornece elementos para
que essa relação seja mais claramente elucidada. Sendo assim, cabe retomarmos a discussão
acerca da relação que se estabelece entre a criação ficcional e a reflexão filosófica em Sartre, só
que agora ressaltando as implicações éticas que dela decorrem.
Essa discussão está diretamente relacionada à noção de situação,355 bastante explorada
por Sartre em textos diversos e à qual já aludimos em momentos diversos. Para o filósofo, a
liberdade humana é radical e o contexto histórico representa o “horizonte limite” ao exercício da
liberdade; ao mesmo tempo, a história é a condição para o empreendimento do ato livre. Dessa
maneira, fica patente que a obra ficcional exerce um papel fundamental dentro da obra do
filósofo, pois, a partir da perspectiva existencial-fenomenológica de Sartre, todo homem existe
particularmente dentro de uma situação concreta, isto é, na história. Deste modo, a literatura
353
Ibidem, p. 80
Ibidem, p. 45.
355
Referimo-nos diversas vezes a noção de situação defendida por Sartre. Parece-nos interessante elucidar melhor
o que essa noção significa. Sartre assim descreve a noção em O Ser e o Nada: “Minha posição no meio do mundo,
definida pela relação de utensilidade ou de adversidade entre as realidades que me circundam e minha própria
facticidade, ou seja, a descoberta dos perigos que corro no mundo, dos obstáculos que neles posso encontrar, das
ajudas que podem me ser oferecidas, à luz de uma nadificação radical de mim mesmo e de uma negação radical e
interna do Em-si, operadas do ponto de vista de um fim livremente posicionado – eis o que denominamos a
situação” (p. 672).
354
136
aparece como o lugar privilegiado para a representação da existência particular dos homens
lançados na história, em dada situação concreta, ou seja, dentro de um contexto histórico
determinado.
Ora, se, como dissemos anteriormente, existe uma relação de interdependência entre
“experiência ficcional” e “reflexão filosófica”, na qual, os textos ficcionais representam a
situação particular de determinado homem, em determinado contexto histórico, e, por
conseqüência, cada escolha particular traz um caráter universal e absoluto, podemos concluir que
toda escolha particular tem um viés ético. Toda escolha implica um valor, ou seja, escolher é
atribuir valor ao escolhido, de modo que toda escolha particular tem um caráter de
universalização: “[...] é essa universalidade concreta implicada na conduta singular que
manifesta o teor ético absoluto da ação individual”.356 Inversamente, a “reflexão filosófica”,
partindo do método fenomenológico, trabalha no âmbito do universal, mas tomando como ponto
de partida o particular. Podemos, dessa maneira, afirmar com muita segurança que o pensamento
sartriano assume sempre conotações éticas. É por isso que as palavras de Saint-Sernin remetem
diretamente ao desdobramento ético que esta filosofia adquire. De acordo com o comentador, o
nosso filósofo considera que , na literatura, “a partir do singular, pode-se remeter ao universal;
[e que] ao se estudar um homem, se fala, na verdade, de todos os homens”.357 Nessa mesma
direção, G. Borheim assinala: “toda a análise existencial do mestre francês conduz necessária e
obrigatoriamente a uma ética”.358
É o próprio filósofo que evidencia esse desdobramento ético de sua filosofia quando, ao
final de O Ser e o Nada, promete a redação de outro volume tratando especificamente do
problema moral.359 Assim, ele mesmo vislumbra implicações éticas em sua ontologiafenomenológica. No entanto, sabemos que esse volume nunca foi escrito. Em outra ocasião, em
uma entrevista intitulada Sartre par lui-même, já nos últimos anos de sua atividade intelectual, o
filósofo também admite a necessidade de se redigir um tratado sobre esse tema; no entanto, este
projeto permanece irrealizado. Assim, gostaríamos de enfatizar que a reflexão ética, ainda que
356
LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Ética e Literatura em Sartre: Ensaios Introdutórios, p. 32.
SAINT-SERNIN, Bertrand, Philosophie et fiction, p. 175. “[...] à partir du singulier, on peut remonter à l’universel;
en étudiant un homme, on parle em vérité de tous lês hommes”.
358
BORHEIM, Gerd, Sartre: Metafísica e existencialismo, p. 123. É o que também afirma a maioria dos
comentadores da obra do filósofo, como, por exemplo, Franklin Leopoldo e Silva em O Imperativo Ético em Sartre.
“*...+ nós podemos afirmar com muita tranqüilidade que talvez não haja em toda a obra de Sartre uma só frase
onde não haja uma ressonância ética e, portanto, o existencialismo sartriano é, sem dúvida nenhuma, uma filosofia
moral, e Sartre é um filósofo moralista na mais pura tradição francesa”.
359
SARTRE, Jean-Paul, O Ser e o Nada, p. 765. “Todas essas questões, que nos remete à reflexão pura e não
cúmplice, só podem encontrar sua resposta no terreno da moral. A elas dedicaremos uma próxima obra”.
357
137
latente nos primeiros textos, configura um desdobramento necessário de toda a filosofia
sartriana. Ela se explicitará fundamentalmente em sua concepção do intelectual engajado, que
será desenvolvida em diversos momentos de sua obra. Dos vários textos em que o autor se
debruça sobre essa questão, destaca-se em importância, para nós, o ensaio Que é a literatura? de
1947, no qual será desenvolvida sua concepção de literatura engajada e do irrecusável
engajamento do escritor. Não é, no entanto, nosso objetivo aqui explorar as razões pelo qual um
volume que tivesse a ética como tema fundamental nunca foi escrito; queremos apenas ressaltar a
presença constante desse caráter ético no conjunto desse pensamento.
Sob essa perspectiva, assinala Saint-Sernin:
Nesta perspectiva, o que é essencial, é a situação: ela interpela, obriga,
esclarece, impõe uma decisão. Carregar os personagens de uma natureza só turva o
desenho, estende a mola trágica, o que implicaria em um declínio do teatro. O choque
entre as liberdades, não seria mais que a combinação, em si previsível, de forças.
Portanto, teatro de situações e filosofia da liberdade tem o mesmo tema: <<O homem
livre nos limites de sua própria situação, o homem que escolhe, quer queira ou não, para
todos os outros quando escolhe para si mesmo – aqui está o tema de nossas peças>>. 360
A referência à Sartre feita por Saint-Sernin vem ao encontro daquilo que buscamos
evidenciar, ou seja, a literatura como o desvelamento do necessário comprometimento ético do
escritor com sua situação concreta. Ou seja, é justamente o caráter ético que a escolha particular
implica que se constitui como o tema da literatura361 de Sartre – pois “o homem que escolhe para
si mesmo escolhe para todos os outros”. É o homem concreto, em situação, que desvela aos
outros homens seu caráter contingente e, por conseqüência, sua liberdade. Ao desvelar sua
liberdade, ele evidencia aos outros que toda escolha particular carrega em si um caráter
universal, e que, portanto, escolher-se é escolher por toda humanidade. O que, nas palavras do
autor, significa que “o homem escolhe-se ao escolher todos os homens”.362 Ressalta-se aqui,
ainda uma vez, o imbricamento entre as questões éticas e toda a obra do filósofo. Nesse sentido,
Sartre assevera em O Existencialismo é um Humanismo:
360
SAINT-SERNIN, Bertrand, Op. Cit., p. 176-177. “Dans cette perspective, ce qui est essentiel, c'est la situation: elle
interpelle, oblige, éclaire, impose de décider. Lester les personnages d'une nature ne ferait que brouiller le dessin,
détendrait le ressort tragique, entrâinerait un déclin du théâtre. Au choc entre des libertés, on n'aurait plus que la
combinaison, en soi prévisible, de forces. Dès lors, théâtre de situations e philosophie de la liberté ont le même
thème: <<L'homme libre dans les limites de sa propre situation, l'homme qui choisit, qu'il le veuille ou non, pour
tous les autres quand il choisit pour lui-même - voilà le sujet de nos pièces>>”.
361
Como insistimos anteriormente, tomamos como um pressuposto que tudo que foi dito acerca do teatro aplicase igualmente à prosa.
362
SARTRE, Jean-Paul, O Existencialismo é um Humanismo, p. 7.
138
[...] o homem ligado por um compromisso e que se dá conta de que não é
apenas aquele que escolhe ser, mas que é também legislador pronto a escolher, ao
mesmo tempo que a si próprio, a humanidade inteira, não poderia escapar ao sentimento
da sua total e profunda responsabilidade. 363
Logo, o homem que se descobre livre, simultaneamente, percebe que à sua liberdade é
intrínseca a responsabilidade. É por isso que Sartre – que gostava de polemizar com suas
famosas frases, por vezes, propositalmente contraditórias – dizia que “o homem está condenado
a ser livre”.364 Para melhor compreendermos o significado dessa máxima aparentemente tão
simples, cabe aprofundarmos um pouco essa discussão. Para tanto, é pertinente nos remetermos a
um esclarecedor artigo de Leopoldo e Silva, Liberdade e Valor.
Efetivamente, só existe
liberdade e, por conseqüência, responsabilidade, se existe a ação humana. Aquelas se revelam,
pois, como pressupostos éticos dessa última. Mas o que é a ação humana? É justamente esse um
dos pontos abordados pelo autor no referido artigo. De acordo com sua análise, a liberdade, em
Sartre, é constitutiva da condição humana, ou seja, é justamente através da elucidação da noção
de ação humana que vemos surgir o sentido do binômio liberdade/responsabilidade enquanto
fundamento dessa condição. Porque livre, o homem não tem como escapar à responsabilidade
por suas escolhas; evidencia-se desse modo o caráter ético do existencialismo sartriano. Vem a
propósito a famosa passagem de Sartre em O Ser e o Nada:
Com efeito, somente pelo fato de ter consciência dos motivos que solicitam
minha ação, tais motivos já constituem objetos transcendentes para minha consciência,
já estão lá fora; em vão buscaria recobrá-los: deles escapo por minha própria existência.
Estou condenado a existir para sempre para-além de minha essência, para-além dos
móbeis e motivos do meu ato: estou condenado a ser livre. Significa que não poderia
encontrar outros limites à minha liberdade além da própria liberdade, ou, se preferirmos,
que não somos livres para deixar de ser livres. 365
Nessas linhas, a máxima apresentada em O Existencialismo é um Humanismo, segundo a
qual “o homem está condenado a ser livre”,366 aparece como um desdobramento inexorável do
caráter espontâneo da consciência intencional. Assim, quando Sartre diz que o homem está
“condenado a existir para sempre para-além de [sua] essência”, podemos entender essas
palavras como mais uma tradução para a máxima fundamental do existencialismo: “a existência
precede a essência”. Mas, se a consciência é puro-ato, pura espontaneidade, ou melhor, se a
consciência é sempre intencional, resta-nos ainda a pergunta: qual é o motivo da ação humana?
363
Ibidem, p.7.
Ibidem, p. 9.
365
Idem, O Ser e o Nada, p. 543-544.
366
Idem, O Existencialismo é um Humanismo, p. 9.
364
139
Dizer que a consciência é sempre intencional implica dizer que toda ação humana tem um
motivo. No entanto, isso não recai necessariamente numa relação causal, pois, como veremos, “o
motivo faz parte do ato”. O que significa que “o ato não é produzido a partir de uma causa;
[mas antes que] ele é imediatamente vinculado à finalidade intencional pela qual é
produzido”.367 O motivo de uma ação só existe no próprio ato, ou seja, “quando algo é vivido
como motivação da ação”, o que significa que o motivo é algo intrínseco à ação humana, ao ato
intencional. Por conseqüência, qualquer relação causal que possa justificar a ação a priori está
descartada por princípio, pois pressupõe sempre uma causa exterior. Colocado nestes termos o
problema remete ao âmbito da temporalidade. Quando se pensa em causalidade é preciso pensar
em uma linearidade temporal; há sempre algo antes que determinará o que virá depois.
Entretanto, o caráter fluido da consciência que faz com que ela só exista enquanto pura relação
com o mundo interdita a possibilidade de qualquer anterioridade temporal em relação à ação
humana. É por isso que “a transcendência do para-si para fora de si encontra o motivo do ato
na realização do [próprio] ato”.368 Essa articulação aparece de forma mais explicita se analisada
sob o registro da temporalidade, assim, como sintetiza Leopoldo e Silva:
O ato é a ser realizado no futuro e enquanto tal é um fim; é ao mesmo tempo o
motivo pelo qual pretendo realizá-lo e assim a finalidade torna-se motivo que me
impulsiona a partir do meu passado; e o presente é o momento de surgimento do ato. 369
Em outras palavras, é simultaneamente que a consciência constitui o motivo e efetua a
ação. Nesse sentido, dentre as articulações da temporalidade, o futuro adquire maior relevância,
pois é sempre enquanto projeto de si que o homem se constitui. É por isso também que o futuro
pode ser motivo sem, com isso, ser causa do ato, justamente porque é no próprio ato que o valor
e o significado da ação são postos pela consciência: “O projeto tem sempre de forma imanente o
valor a ele atribuído, pela simples razão de que me projeto no que desejo ser, no que julgo que
devo ser”.370
Em suma, é porque o Para-Si é transcendência de si, é porque ele é puro movimento para
fora de si, que ele pode transcender a factualidade e relacionar-se mais com valor e significação
do que com fatos. Ocorre então uma espécie de inversão fundamental, visto que não apenas a
367
LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Ética e Literatura em Sartre: Ensaios Introdutórios, p. 136.
Ibidem, p. 137.
369
Ibidem.
370
Ibidem, p. 138.
368
140
escolha não é determinada pelo motivo, como também, e simultaneamente, o Para-Si projeta um
modo de ser e atribui valor à escolha que fundamenta esse projeto. Assim:
[...] isso que projeto ser é válido para todos os homens, minha escolha institui um
valor cujo sentido e radicalidade derivam do que ele é, ipso facto, universal. Essa
dimensão ético-existencial do valor instituído repercute na escolha concreta feita a partir
dele.371
Mas o caráter ético-existencial assim descrito traz implícito aquilo que Sartre chamou de
“projeto fundamental” do Para-Si, ou seja, o Para-Si – que tem como principal característica o
não-Ser – busca constituir-se enquanto um Em-Si, enquanto Ser absoluto, e mais do que isso, o
Para-Si traz como projeto fundamental o desejo de tornar-se “Em-si-Para-si”, ou seja, tornar-se
Ser, sem com isso perder o caráter dinâmico que o define. Por isso mesmo, esse projeto se
mostra, por princípio, fadado ao fracasso, visto que é impossível que, sendo “Nada de Ser”, o
Para-Si se constitua enquanto Ser plenamente constituído. É justamente essa falta constitutiva de
Ser, característica basilar do Para-Si, o fundamento do caráter ético-existencial que buscamos
explicitar. É por isso também que:
[...] cada projeto individual de se fazer ser é algo que implica a tentativa de ser,
absolutamente; tentativa constitutivamente vã. Por isso, a experiência da liberdade
absoluta é a experiência da fragilidade absoluta. Para um ser absolutamente frágil, cujo
ser não passa do desejo de ser, o absoluto não é repouso e estabilidade, mas antes
alucinação e vertigem. Ter-de escolher absolutamente a partir da mais absoluta
fragilidade é o que faz da liberdade a origem da angústia.372
Quando Sartre trata da relação entre liberdade e responsabilidade, fica claro que é sob a
égide da fragilidade absoluta que o homem está condenado a ser livre e, por conseqüência, à
responsabilidade. Se o homem é sempre responsável por suas ações, ele não pode ser responsável
por sua responsabilidade, ou seja, ele não pode nunca deixar de ser responsável, pois não pode
ser seu próprio fundamento, ou, como diz Sartre, “o Para-si [...] é responsável por sua maneira
de ser sem ser fundamento de seu ser”.373 Vemos, assim, que mesmo que o homem se queira um
Em-si-Para-si, ele não pode ser fundamento de si mesmo porque sua marca ontológica é a
espontaneidade da consciência intencional. É sob esse registro que entendemos as palavras do
filósofo:
371
Ibidem, p. 139.
Ibidem, p. 143.
373
SARTRE, Jean-Paul, O Ser e o Nada, p. 671.
372
141
[...] Sou responsável por tudo, de fato, exceto por minha responsabilidade
mesmo, pois não sou fundamento de meu ser. Portanto, tudo se passa como se eu
estivesse coagido a ser responsável. Sou abandonado no mundo, não no sentido de que
permanecesse desamparado e passivo em um universo hostil, tal como a tábua que
flutua sobre a água, mas, ao contrário, no sentido de que me deparo subitamente sozinho
e sem ajuda, comprometido em um mundo pelo qual sou inteiramente responsável, sem
poder, por mais que tente, livrar-me um instante sequer desta responsabilidade, pois sou
responsável até mesmo pelo meu próprio desejo de livrar-me das responsabilidades.374
Daí a situação histórica se constituir como o horizonte de possibilidade ao exercício da
minha liberdade: “cada pessoa só realiza uma situação: a sua”.375 Desse modo, ao se escolher,
ao se fazer, o homem se faz e faz sua situação; ao fazer sua situação ele se faz, uma ação não
existe sem a outra. O homem não existe sem sua situação e sua situação não existe sem o
homem. É nesse sentido que Sartre sustenta que “as mais atrozes situações da guerra, as piores
torturas” são resultado de uma “decisão humana e que [portanto] tenho que assumir total
responsabilidade por ela”.376A situação histórica de determinado homem constitui, portanto, a
oportunidade, a ocasião, de “realizar este ser que está em questão em nosso ser”.377 A
significativa passagem de um artigo de Leopoldo e Silva vem ao encontro dessas considerações:
Mas, como fatalidade e liberdade se identificam, como o destino é sempre a construção
prática de uma vida e de uma história, a responsabilidade é assumida como corolário de
uma liberdade da qual não se pode fugir. Esta é a razão pela qual é necessário que o
escritor “abrace estreitamente sua época; ela é sua única chance; ela é feita para ele e ele
é feito para ela”. Este é o significado concreto da situação, como hora e como lugar da
liberdade, mas ao mesmo tempo como escolha absoluta, isto é, como invenção de si e de
seu tempo.378
No caso do escritor, cujo instrumento de trabalho é a palavra, a literatura torna-se o meio
pelo qual ele se engaja na situação histórica em que está inserido. Nesse sentido, as palavras de
Sartre em Que é a Literatura? são significativas:
Quanto ao escritor, o caso é mais complexo, pois ninguém é obrigado a
escolher-se escritor. Assim, na origem está a liberdade: sou escritor em primeiro lugar
por meu livre projeto de escrever. Mas de imediato vem o seguinte: eu me torno um
homem que os outros homens consideram como escritor, isto é, que deve responder a
certa demanda e se vê investido, de bom grado ou à força, de certa função social.
Qualquer que seja o papel que ele queira desempenhar, tem de fazê-lo a partir da
representação que os outros têm dele. Pode querer modificar o papel atribuído ao
374
Ibidem, p. 680.
Ibidem, p. 674.
376
Ibidem, p. 678.
377
Ibidem, p. 681.
378
LEOPOLDO E SILVA, Franklin. Literatura e Experiência em Sartre: o Engajamento.
375
142
homem de letras numa dada sociedade, mas para mudá-lo é preciso primeiro se amoldar
nele.379
Poderíamos pensar que realmente aqui a literatura é reduzida a sua função social. No
entanto, cabe ressaltar que a compreensão sartriana refere-se também à capacidade que a
literatura adquire em sua filosofia – tal como o filósofo não se cansa de repetir – de ultrapassar o
real e, nesse movimento, reinserir-se no seio da própria realidade. Assim, se o escritor escolhe
livremente seu ofício, esse ofício, no entanto, requer dele uma inserção profunda na situação
histórica. É por isso que “para mudar o papel atribuído ao homem de letras”, por exemplo, “é
preciso primeiro se moldar nele [no papel atribuído]”, é preciso se assumir na condição de
“homem de letras”. Numa palavra, ao escritor compete a assunção simultânea de sua liberdade e
de sua na situação histórica. Isto é, a liberdade se dá em situação; é preciso situar-se na história
para agir. Nesse sentido, ou seja, acerca do trabalho do escritor e de sua função, cabe completar:
Não há mais caracteres: os heróis são liberdades aprisionadas, como todos nós.
Quais são as saídas? Cada personagem será tão-somente a escolha de uma saída e não
valerá mais que a saída escolhida. É de se desejar que toda a literatura se torne moral e
problemática, como esse novo teatro. Moral – não moralizadora: que ela mostre
simplesmente que o homem é também valor e que as questões que ele se coloca são
sempre morais. Sobretudo que mostre nele o inventor. Em certo sentido, cada situação é
uma ratoeira, há muros por todos os lados: na verdade me expressei mal, não há saídas a
escolher. Uma saída é algo que se inventa. E cada um, inventando sua própria saída,
inventa-se a si mesmo. O homem é para ser inventado a cada dia.380
Desse modo, o que Sartre faz é requerer do escritor que ele desvele ao homem sua própria
liberdade, que expresse da única maneira que lhe é possível – ou seja, pelas vias da escrita e da
criação – que o homem é aquilo que ele fizer de si, que é imperioso que ele se invente
continuamente. Aliás, talvez devêssemos falar em libertação em vez de liberdade, pois compete a
cada homem, singularmente, “inventar suas saídas”, libertar-se no sentido de se assumir como
ser livre e, portanto, responsável. Evidentemente há aqui uma relação de complementaridade: a
liberdade se exerce na história e a história é resultado do encontro das liberdades singulares. Não
é possível fugir à responsabilidade implicada nesta formulação. Mesmo quando um homem age
de má-fé, ele é responsável por aquilo que não tenta impedir. Então, compreendemos melhor
porque Sartre diz que “as mais atrozes situações da guerra, as piores torturas” são frutos da
ação humana e compete a cada um assumir sua responsabilidade. Atribuir essa dimensão ética à
literatura não significa, de forma alguma, reduzi-la a sua dimensão social. Encontraremos uma
379
380
SARTRE, Jean-Paul, Que é a Literatura?, p. 62.
Ibidem, p. 215.
143
oportunidade para compreender melhor essa concepção se nos voltarmos para os comentários de
François Noudelmann em L‟Incarnation Imaginaire, quando o autor busca esclarecer o papel do
imaginário na produção sartriana:
A prática da imagem implica assim uma reflexão sobre a encarnação do
sentido. Ela permite compreender como a consciência vê sua intenção derramada
[débordée] por sua realização, notadamente no seio da situação histórica. A história é,
de fato, constituída por sucessivas encarnações que correspondem às realizações de
múltiplas vontades.381
O primeiro ponto que se mostra relevante enfatizar é que a imagem, tal como destaca o
comentador, remete necessariamente, e como dissemos anteriormente, mesmo que por negação,
ao “seio da situação histórica”. É justamente porque o fundamento da condição existencial é a
liberdade humana que, em última instância, a história é construída pelo encontro de múltiplas
vontades, pelo encontro do conjunto das ações humanas historicamente situadas.
Assim, para compreender a inteligibilidade da história, a abordagem sartriana
abarca uma tensão entre uma concepção unilinear e determinada da história, e não mais
se apóia sobre o sentido, mas sobre os sentidos da história e, então, as expressões e as
interpretações são partes integrantes do seu movimento. No plano da linguagem, a
encarnação nas palavras compromete o ser-no-mundo da consciência, e Sartre,
estudando a escolha de Flaubert, apreende a dimensão ontológica da imaginação. 382
Não cabe agora nos aprofundarmos na questão desta “encarnação nas palavras”, que,
como observa o comentador, decorre de sua compreensão da imaginação, mas objetivamos com
essa alusão aos comentários de Noudelmann, salientar que a dimensão histórica relaciona-se
diretamente com a concepção de imagem em Sartre e que, por isso mesmo, a literatura adquire
um papel fundamental em sua filosofia. À guisa de exemplo, vale lembrar que é na obra e na
vida de Flaubert que Sartre busca uma compreensão da situação histórica do escritor. 383 Após
essa breve digressão encontramos o gancho necessário para reencontrarmos nosso problema.
381
NOUDELMANN, François, L’Incarnation Imaginaire, p. 249. “La pratique de l’image implique ainsi une réflexion
sur l’incarnation du sens. Elle permet de comprendre comment la conscience voit son intention débordée par sa
realization, notamment au sein de la situation historique. L’histoire est en effet constituée d’incarnations successive
qui correspondent aux réalisations de volontés multiples”. (Nossa tradução).
382
Ibidem, p. 249. “*…+ Ainsi, pour comprendre l’intelligibilité de l’Histoire, la démarche sartrienne ménage une
tension entre une conception unilinéaire et déterminée de l’histoire, et une prise em charge non plus du sens mais
des sens de l’histoire, donc les expressions et les interprétations sont parties intégrantes de son movement. Au plan
du langage, l’incarnation dans les mots engage l’être-dans-le-monde de la conscience, et Sartre, en étudiant les
choix de Flaubert, appréhende la dimension ontologique de l’imaginaire”. (Nossa tradução).
383
Esta alusão ao O Idiota da Família visa ressaltar a tese da unidade ao mesmo tempo dinâmica e orgânica na
obra de Sartre a que nos referimos anteriormente, pois, se em sua obra dita “madura” o filósofo se ocupará mais
com a questão do engajamento, não nos parece certo afirmar que ele abandone o pressuposto da consciência
144
Vale ratificar: é em decorrência da literatura que o escritor é capaz de instaurar
realidades. Assim, a ficção, a partir do caráter negativo da imagem, isto é, a partir do seu caráter
de irrealidade que desvela a realidade, possibilita ao escritor desvelar ao leitor seu caráter
contingente. Ele o faz através da imagem, lançando o aquele que o lê em sua situação histórica.
Então, se todo homem é livre e, portanto, responsável, o escritor é responsável de um modo
especial, uma vez que ele lida diretamente com um modo privilegiado de desvelar ao homem sua
condição.
Logo, com já assinalamos, parece-nos, de fato, que a interpretação feita por Leopoldo e
Silva acerca da relação entre literatura e filosofia, dentro do pensamento sartriano, mostra-se
mais pertinente que a de Paulo Perdigão, e do que outras que se lançam na mesma direção deste
último. Tal como ressaltamos no início de nosso percurso, para Perdigão a literatura surge como
uma forma de ilustrar o pensamento filosófico de Sartre. Lembremos que, pare este comentador,
a produção ficcional de Sartre representa “uma expressão simplificadora da obra teórica”.384
Efetiva-se, assim, uma redução da relevância da criação ficcional no conjunto da obra sartriana.
Leopoldo e Silva, em contrapartida, ressalta a idéia de comprometimento entre a criação literária
e o contexto histórico, sem com isso submetê-la às reflexões filosóficas. Sob tal perspectiva, o
texto ficcional e o texto filosófico estão intrinsecamente relacionados. Essa relação mostra-se,
por sua vez, fundamental para entendermos a filosofia de Sartre como um todo, contraditando a
possibilidade de uma hierarquia entre esses dois âmbitos de sua produção intelectual.
Agora resta-nos adentrar um pouco mais a questão da narrabilidade e seus necessários
desdobramentos éticos para além da relação que se estabelece entre o escritor e o leitor, e à qual
nos referimos anteriormente. A pergunta que ressoa é a seguinte: em que medida o sujeito pode
narrar-se a si mesmo a sua existência se não há nada a priori que o defina? E por conseqüência, o
que seria essa “reinvenção da escrita” a que aludimos anteriormente?
6. Do necessário desdobramento ético à questão da narrabilidade
intencional. Nesse sentido, acreditamos que a análise da obra e da biografia de Flaubert represente um resgate do
pressuposto da vivência [Erlebniss] enquanto fundamento da psicanálise existencial. Tratando-se de uma de suas
últimas obras parece-nos que se justifica a referida tese da unidade. Nesse sentido, vale uma menção ao
interessante artigo de Simeão Donizeti Sass, Consciência e Conhecimento na Fenomenologia de Sartre, no qual o
autor afirma que O Idiota da Família pode ser entendido como uma “demonstração” do método biográfico
presente na psicanálise existencial de Sartre. (Consciência e Conhecimento na Fenomenologia de Sartre In: Ensaios
sobre Filosofia Francesa Contemporânea, p. 227).
384
PERDIGÃO, Paulo, Existência e Liberdade: Uma Introdução à Filosofia de Sartre, p, 19.
145
Neste momento de nossa reflexão, tomemos como ponto de partida uma das principais
teses de A Transcendência do Ego. Sabemos que Sartre chega à conclusão de que é só através de
uma inversão fundamental que o Ego surge como fundamento e criação, pois, na realidade, é a
própria espontaneidade da consciência de primeiro grau que possibilita que o saber reflexivo crie
o Ego. Sendo assim, não se pode falar em espontaneidade do Ego; podemos falar, no máximo de
uma pseudo-espontaneidade. O cogito pré-reflexivo, já o sabemos, é condição de possibilidade
ao cogito reflexivo, âmbito no qual o surge o Ego. Portanto, o fundamento e a criação competem
à pura espontaneidade da consciência de primeiro grau. Diz Sartre: “A verdadeira
espontaneidade deve ser perfeitamente clara: ela é o que produz e não pode ser nenhuma outra
coisa”.385 E, mais adiante, complementa:
[...] o Ego é um objeto apreendido, mas também constituído pelo saber reflexivo.
É um foco virtual de unidade e a consciência constitui-o no sentido inverso ao que a
produção real segue: o que é primeiro realmente são as consciências, através das quais
se constituem os estados, depois, através destes, o Ego. 386
Interessa-nos enfatizar que é justamente através dessa inversão fundamental que o Ego
surge como criador e que, na realidade, é a consciência que projeta a sua própria espontaneidade
sobre o objeto transcendente que é o Ego. Porque nada pode agir sobre a consciência, isto é,
porque nada pode determiná-la, o Ego só pode ser um objeto que surge sempre à consciência de
segundo grau, ou seja, no âmbito reflexivo. Esta compreensão, por conseqüência, leva à
impossibilidade de se conhecer o Ego no plano da consciência de primeiro grau. Ora, se o Ego só
surge para a consciência reflexiva, tentar apreendê-lo no registro das vivências [Erlebniss] é, por
princípio, uma empresa fracassada.
Desse modo, tentar se beneficiar de um contato íntimo para conhecer o Ego revela-se
como algo ocioso, pois o “Ego não é a totalidade real das consciências, [...] mas unidade ideal
de todos os estados e acções”.387 O que significa que é no mundo que nos constituímos, e que “o
Ego é um objeto que não aparece senão à reflexão e que, por esse facto, está radicalmente
cortado do mundo. Ele não vive no mesmo plano”.388 Compreendemos então as palavras de
Sartre quando este conclui que o Ego é “por natureza fugidio”. Vejamos:
385
SARTRE, Jean-Paul, A Transcendência do Ego, p. 69.
Ibidem.
387
Ibidem, p. 73.
388
Ibidem, p. 71.
386
146
[...] o Ego só aparece quando não o olhamos. É preciso que o olhar reflexivo se
fixe na <<Erlibniss>>, enquanto ela emana do estado. Então, por detrás do estado, no
horizonte, aparece o Ego. Ele não é nunca visto senão pelo canto do olho. Assim que
volto meu olhar para ele e que quero atingi-lo sem passar pela <<Erlibniss>> e o estado,
ele dissipa-se. É que, com efeito, ao procurar apreender o Ego por ele mesmo e como
objeto directo da minha consciência, recaio no plano irreflectido e o Ego desaparece
com o acto reflexivo.389
Em outras palavras, o Ego só surge enquanto algo forjado pela consciência de segundo
grau, ou seja, a consciência reflexiva. Assim o ato criador, na realidade, é resultado da pura
espontaneidade da consciência de primeiro grau, o que é o mesmo que dizer que o que possibilita
o surgimento do Ego à consciência de segundo grau é o âmbito pré-reflexivo, assim, no que
tange à pura espontaneidade da consciência, seu caráter intencional, o Ego é algo forçosamente
falso. E isso se dá porque o registro reflexivo é sempre acompanhado pelo registro pré-reflexivo.
Desse modo a consciência de segundo grau realiza uma inversão fundamental pois coloca como
criador um âmbito que na realidade é criado. O Ego não justifica a consciência intencional, mas
antes é por ela justificado. Em outras palavras, é justamente porque há a pura espontaneidade da
consciência intencional, ou melhor, da consciência de primeiro grau, que o Ego pode ser criado.
Portanto, tal como afirmado anteriormente, a consciência de primeiro grau é condição de
possibilidade para o surgimento do cogito reflexivo. Conclusão: “o Ego não é proprietário da
consciência, ele é o objeto”.390 O que significa que “a consciência transcendental é uma
espontaneidade impessoal”. Chegamos ao ponto que nos interessa. Para Sartre a função
essencial do Ego seria “encobrir à consciência sua própria espontaneidade”. Diz o autor:
Talvez, com efeito, que a função essencial do Ego não seja tanto teórica como
prática. Nós sublinhamos, com efeito, que ele não encerra a unidade dos fenômenos, que
ele se limita a refletir uma unidade ideal, ao passo que a unidade concreta e real está
executada desde há muito. Mas talvez que o seu papel essencial seja encobrir à
consciência a sua própria espontaneidade.391
Portanto, se o Ego surge como uma forma da consciência que dissimula sua própria
espontaneidade, parece-nos lícito interrogar se isso não tem implicações de ordem ética. Ou seja,
se o Ego surge como uma maneira de forjar a estabilidade almejada pela consciência – pois,
como vimos, é característico desta a pura espontaneidade impessoal, o que significa que não há
nada que garanta sua estabilidade – então, forjar um núcleo duro que garanta sua estabilidade não
389
Ibidem, p. 73-4.
Ibidem, p. 78.
391
Ibidem, p. 80.
390
147
significaria recair em má-fé? Não significaria negar aquilo que a consciência tem de mais
fundamental e com isso buscar se eximir da responsabilidade que essa formulação exige?
Neste ponto nossas análises encontram respaldo, mais uma vez, nas reflexões de Franklin
Leopoldo e Silva em Ética e Literatura em Sartre: Ensaios introdutórios:
[...] a consciência constitui o Ego e nele se projeta como para escapar de si
mesma, da própria espontaneidade que, por não se reportar a nenhum solo fundador, é
angustiante pelo que apresenta de instável e movediça. Há, portanto, uma questão ética
envolvida na representação do Ego; há uma motivação moral para que representemos o
Ego como condição de nós mesmos, aquilo a partir do qual somos o que somos. Isso
conferiria à existência um fundamento estável ao qual poderíamos remeter a expressão
subjetiva: opções e compromissos. É angustiante pensar que o que somos se constitui
fora de nós, na contingência das coisas e da história.392
Destarte, torna-se possível afirmar que constituir o Ego enquanto um núcleo duro do
sujeito, capaz de garantir estabilidade à consciência é recair na inautenticidade e recorrer à máfé. A problemática que levantamos parece se encontrar com o pressuposto fundamental das
reflexões do comentador, isto é, quando se busca, na constituição do Ego, um solo fundador
capaz de garantir a estabilidade almejada, recai-se necessariamente num ato de covardia.
Encontramo-nos outra vez em face da inversão fundamental que ocorre todas as vezes que a
consciência intencional surge como decorrência do Ego, ao invés de instância criadora. Daí
decorre que a questão da narrabilidade carrega por si só um teor necessariamente ético.393 Ou
seja, ao buscar na narrativa literária – e no caso de Roquentin, na auto-narrativa – um
fundamento capaz de justificar a existência o horizonte só pode ser a má-fé daquele que escreve.
Fazer literatura buscando unicamente fugir da condição contingente da existência e da angústia
que dela decorre é, certamente, uma tentativa de se dissimular a condição humana, isto é, a
liberdade enquanto fundamento ontológico da existência.
Se o Ego é algo constituído, e portanto, forçosamente falso, então há a negação da
espontaneidade da consciência nessa dissimulação implicada na constituição do Eu. Novamente
aqui, a referência à dissimulação visa explicitar a inversão fundamental realizada pela
consciência de segundo grau ao converter o pólo criador, isto é, o cogito pré-reflexivo, no pólo
criado, o cogito reflexivo. Essa inversão fundamental recai necessariamente em má-fé pois faz
392
LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Ética e Literatura em Sartre: Ensaios introdutórios, p 45.
Assim é definida essa relação por Franklin Leopoldo e Silva: “A narrabilidade, entendida como modalidade
temporal do surgimento do sujeito para si mesmo, aparece assim como um aspecto intrínseco, pelo menos no nível
reflexivo, da constituição do Ego”. (LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Ética e Literatura em Sartre: Ensaios Introdutórios,
p. 33.)
393
148
insurgir um núcleo duro que, em última instância, justificaria as escolhas. De pronto, estamos no
cerne das questões levantadas no decorrer de nosso estudo: a constituição do Ego requer o
âmbito reflexivo, e, por isso mesmo, está aquém da espontaneidade que caracteriza a consciência
(lembrando que mesmo aqui persiste o nível pré-reflexivo). Se a consciência busca refúgio no
Ego como uma forma de negar sua “própria espontaneidade”, é porque, em si mesma, ela é
“instável e movediça”. Assim, se transportarmos essas questões para o registro da criação
ficcional, temos a questão fundamental: o que significa a tentativa constante de Roquentin de
constituir uma narrativa coerente, capaz de proporcionar a estabilidade temporal requerida para
afastar a angústia decorrente do sentimento da Náusea?
É patente que ao tentar narrar a si mesmo o seu passado como um romance de aventuras,
Roquentin percebe o quanto é vão esperar que o passado o livre do sentimento da Náusea, visto
que o desvelamento do caráter contingente trás inegavelmente um aspecto ético. Assumir a
contingência significa aceitar a gratuidade da existência, e num só tempo, mergulhar no contexto
histórico em que se está lançado. Somos livres e portanto responsáveis. Para que isso se torne
mais claro, é apropriado aludir novamente à distinção, presente no romance entre vida e
aventura, o que nos lança no cerne da questão da narratividade. Mais especificamente, trata-se de
pontuar a inversão temporal que a caracteriza. Analisemos as palavras do personagem:
Viver é isto. Mas quando se conta a nossa vida tudo muda; somente, é uma
mudança que ninguém nota: a prova é que se fala de histórias verdadeiras! Os
acontecimentos produzem-se num sentido inverso. Dir-se-ia que começamos pelo
princípio. << Era numa linda tarde de Outono, em 1922.>> E na realidade foi pelo fim
que começamos. O fim já está nessas poucas palavras, invisível e presente; é ele que
lhes dá pompa e o valor dum princípio. <<Andava a passear, tinha saído da vila sem dar
por isso, a pensar nas minhas dificuldades de dinheiro.>> Esta frase, tomada
simplesmente pelo que é, que dizer que o homenzinho estava absorto, deprimido, a cem
léguas duma aventura, precisamente no gênero de humor, em que se deixam passar os
acontecimentos sem lhes dar atenção. Mas o fim já está nela a transformar tudo. Para
nós, o homenzinho é, desde já, o herói da história. 394
O que vemos aqui, claramente, é uma inversão na ordem natural dos acontecimentos,
convertendo a narrativa do “homenzinho que, por si só, estaria a cem metros de uma aventura”,
no herói da história. É justamente a presença implícita do autor que garante que cada pequeno
acontecimento não seja gratuito, tudo parece obedecer a uma ordem que se explicitará no
decorrer da trama. É como se o fim da narrativa justificasse cada mínima ação do personagem,
de modo que nada é gratuito, tudo obedece a esse fim. E isso só é possível porque há algo a
priori que modifica o sentido daquela narração, ou seja, o que possibilita esse movimento é
394
SARTRE, Jean-Paul, A Náusea, p. 74-5.
149
justamente uma inversão do fluxo temporal dos acontecimentos. Sabemos de antemão que é para
aquele “homenzinho” que a história é narrada, e é em função dele que o autor conta aquela
história. Por isso, esperamos que daqueles fatos banais resulte algo de extraordinário, como se
esse “algo de extraordinário” já estivesse presente desde o começo da narrativa determinando as
ações do próprio personagem. Condicionando-a, garantindo sua estabilidade e justificando-a.
E o personagem continua:
A sua depressão, as suas dificuldades de dinheiro, são muito mais preciosas do
que as nossas; doura-as a luz das paixões futuras. E a narração prossegue ao contrário:
os instantes cessaram de se empilhar ao acaso uns por cima dos outros, morde-os o fim
da história, que os atrai, e cada um deles atrai, por sua vez, o instante que o precede:
<<Estava no escuro na rua deserta.>> A frase é atirada com negligência, traz um jeito
de supérflua; mas não caímos no logro e pomo-la de reserva: é uma informação, cujo
valor aparecerá mais tarde. E temos o sentimento de que o herói viveu todos os
pormenores dessa noite como anunciações, como promessas, cego e surdo em relação a
tudo quanto não anunciasse a aventura. Esquecemos que o futuro ainda não estava com
ele; o homenzinho andava a passear numa noite sem presságios, que lhe oferecia à
matroca as suas riquezas monótonas, e que ele não escolhia. 395
Mas Roquentin pensa em sua própria vida: “mas quando se conta a nossa vida tudo
muda”396. E é este o cerne da questão da narratividade, o personagem busca constituir sua vida
como uma história contada a si mesmo, como a aventura de um herói que, por conseqüência,
obedece à referida inversão do fluxo temporal que caracteriza a narrativa literária. Portanto,
ficam claras as implicações éticas dessa estratégia de Roquentin. Isto é, ao realizar esse exercício
de auto-narração, narrando a si mesmo os episódios de seu passado, constituindo-se como o
personagem de um romance de aventura, ele nega a própria liberdade fundadora da sua condição
existencial. É exatamente nesse sentido que a constituição do Ego se mostra como uma estratégia
de fuga.
Daí da conclusão do personagem: “Quis que os momentos da minha vida se seguissem e
se ordenassem como os duma vida que se rememora. O mesmo, ou quase, que tentar apanhar o
tempo pelo rabo”.397 Vê-se, claramente, as intenções de Roquentin, mesmo que já se anteveja
também sua derrocada.
Em síntese, perece-nos que aqui tudo se encontra: as teses contidas em A Transcendência
do Ego – a impossibilidade de qualquer tentativa de substancialização da consciência –, e a
395
Ibidem, p. 75.
Ibidem, p. 74.
397
Ibidem.
396
150
dimensão contingente que, como frisamos, surge com o romance A Náusea, no qual descortinase um universo ficcional, uma criação, na qual Sartre “diz e não diz as mesmas coisas”.
Logo, se é apenas através de um artifício dissimulador que a consciência realiza a referida
inversão fundamental de atribuir o poder criador àquilo que, na realidade, é criado, postular um
núcleo duro com base no qual nossas ações possam se justificar é necessariamente recair em máfé. Por essa razão, assumir a espontaneidade da consciência significa assumir nossa total
liberdade e, por conseqüência, nossa total responsabilidade, a qual nos atrela à nossa época, ao
nosso contexto histórico. Em decorrência do acima exposto, faz-se necessário encontrar “um
modo privilegiado de buscar a verdade da existência” como “uma forma mais autêntica de
narrar, em que a expressão da subjetividade esteja mais diretamente atravessada pelas
exigências éticas da representação humana”.398 A “reinvenção da escrita” mencionada no
início deste estudo significa que é preciso realizar uma literatura que represente a total aceitação
da liberdade humana e a responsabilidade nela implicada, desvelando ao homem “o real por
detrás de realidade”, o que, no caso de Sartre, significa levá-lo a revolta, à condição do homem
“revoltado atrás do espelho”, tal como aparece na expressão do filósofo em relação a John dos
Passos.399
Perece-nos então que, agora, as expressões do personagem de A Náusea ganham uma
conotação completamente outra. Atentemos para a seguinte passagem:
Algo vai se produzir: na sombra da Rua Basse-de-Vieille há qualquer coisa à
minha espera; é além, precisamente à esquina desta rua calma, que a minha vida vai
começar. Vejo-me a avançar, com o sentimento da fatalidade. [...] e então a aventura
começará;400
Estas linhas explicitam com muita clareza que a postura de Roquentin é, na maior parte
do tempo, aquela que enfatizamos, ou seja, a postura de quem busca refúgio em vez de assumir a
radical liberdade desvelada pela experiência instauradora da Náusea. A autonarrativa permeada
pela fatalidade se apresenta como uma alternativa de fuga, como uma forma de escapar ao
398
Ibidem, p. 45.
Cf. abordado anteriormente, Capítulo II, Item 3. Para Sartre é imperativo ao escritor lançar um apelo à liberdade
do leitor para que, juntos, constituam a obra de arte, que, como vimos, é uma via de acesso legítimo ao real. No
entanto, é importante ressaltar que cabe ao autor também oferecer um espelho crítico da condição histórica em
que ambos, escritor e leitor, estão inseridos. Tal como abordado anteriormente também, o recurso ao imaginário
surge, portanto, como uma imersão profunda no concreto da realidade historicamente situada. (SARTRE, JeanPaul, Sobre John dos Passos e 1919 In: Situações I, p. 37). Na referida passagem, afirmamos que, para Sartre, John
Dos Passos representa o romance de “situações extremas” requerido pelo filósofo, pois tem a grande vantagem de
desvelar a “revolta atrás do espelho” que é característica fundamental do romance existencial, ou seja, que o
romance oferece um espelho crítico capaz de desvelar ao leitor sua própria condição, isto é, sua situação histórica.
400
SARTRE, Jean-Paul, A Náusea, p. 98.
399
151
caráter fluido da consciência; ela caracteriza uma forma de negar a liberdade e, com ela, a
responsabilidade. Roquentin busca constituir uma auto-imagem determinada pela seqüência
lógico-temporal da narrativa de aventura. “Tudo quanto eu pedia era um pouco de rigor”.401
Como se tudo já estivesse dado de antemão, sua vida corresponderia a um enredo prédeterminado, atitude essa que, obviamente, caracteriza a má-fé.
Entendemos agora com clareza as palavras de Leopoldo e Silva, pois a literatura, a
narrativa, é algo que se constitui sempre no plano ético-histórico, ou seja, a partir de uma
liberdade singular historicamente situada. É justamente porque Roquentin busca negar sua
transcendência que ele acaba por se colocar fora da história, fora da temporalidade, para se
lançar na linearidade temporal da narrativa:
[...] para Sartre a ficção pode articular de forma mais completa – “totalizadora” –
aquilo que a experiência ético-histórica fornece em fragmentos e lacunas, que afetam
obrigatoriamente os fatos, razão pela qual a facticidade em si mesma não poderia ser, no
âmbito da vivência imediata e no plano de sua elucidação analítica, objeto de
“exploração totalizadora”.402
As palavras do comentador vêm ratificar a perspectiva aqui sustentada, segundo a qual a
tentativa de Roquentin de autonarrar-se como o personagem de um romance de aventura,
forjando assim sua própria identidade, na realidade, constitui uma estratégia para negar sua a
própria liberdade, e com ela, sua transcendência. Deste modo, a ficção é mais efetiva que a
elucidação analítica porque oferece uma visão totalizadora. Ao visar na literatura apenas uma
forma de sustentar sua identidade, Roquentin acaba por recair em má-fé pois atribui à literatura
uma função que não lhe compete, qual seja, de estabilizar aquilo que é fundamentalmente
fugidio, isto é, a contingência.
Essa discussão remete novamente à questão acerca da relação entre a criação ficcional e a
reflexão filosófica. Nesse sentido, a criação ficcional parece transitar por um registro que não é
nem o da “vivência imediata” – no qual a realidade parece obedecer a alguma ordem natural –
nem o da “elucidação analítica” – registro insuficiente da filosofia. Inversamente, a proposta
sartriana nos desvela uma concepção segundo a qual a literatura se traduz como a única forma de
expressão capaz de oferecer uma visão “totalizadora” da realidade. Ou melhor, a criação
ficcional surge como o âmbito da expressão do concreto da vivência singular, sem, no entanto,
negar a dimensão universal da representação de uma singularidade encarnada. A literatura
401
402
Ibidem, p. 70.
LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Op. Cit., p. 46.
152
oferece o espelho crítico da situação histórica do próprio leitor, filtrada pelo recorte do autor. Daí
que a obra literária incite aquele que lê a se engajar na situação histórica que o circunscreve.
Sob o prisma do apelo do escritor àquele que lê, a literatura emerge como uma porta de
acesso à realidade “profunda” da existência. Esta formulação contempla a dimensão histórica das
ações humanas, da existência humana. Destarte, entendemos porque Sartre, tal como
desenvolvemos anteriormente, não aceita que a dimensão da reflexão filosófica dê conta da
realidade humana. Os instrumentos da “razão analítica” tratam do homem abstratamente, apenas
em sentido lógico, o que foge às especificidades das relações humanas. Aqui podemos aludir à
distinção que aparece no registro existencialista quando falamos do HOMEM (no singular), isto
é, da humanidade, e dos HOMENS (no plural), contemplando a dimensão particular que essa
filosofia resgata.403 Esta distinção vem explicitar a diferença entre a abordagem abstrata do
humanismo clássico e a abordagem concreta contemplada pelo existencialismo sartriano.
Nessa senda, justifica-se a alusão às palavras de Hannah Arendt em sua resposta à crítica
realizada por Gershom Scholem, quando da publicação de seu livro Eichmann em Jerusalém –
um Relato Sobre a Banalidade do Mal, ao acusá-la de não amar o povo judeu:
Eu nunca “amei”, em toda minha vida, qualquer povo ou coletividade – nem os
alemães, nem os franceses, nem o povo americano, nem a classe operária ou algo desse
gênero. De fato, amo “apenas” os meus amigos e o único tipo de amor que eu conheço e
em que acredito é o amor a pessoas. Em segundo lugar, este “amor aos judeus” me
parecia algo muito suspeito, uma vez que eu mesma sou judia. 404
A despeito da aparente desconexão com a reflexão aqui desenvolvida, essa citação vem a
propósito em virtude da força expressiva que apresenta ao aludir a essa abstração do humano,
característica do registro teórico, e, por conseqüência, daquilo que Sartre chamou de “literatura
de sobrevôo”, ou seja, aquela produção ficcional que se ocupa dos grandes temas de forma
abstrata, retirada da história ou, na expressão do autor, “extrínseca ao conjunto da
sociedade”.405
Parece-nos agora bastante evidente que as implicações éticas da concepção de literatura
para Sartre são inegáveis. No romance, a tentativa de fuga através da autonarrativa,
403
É digno de nota a irônica e alegórica referência ao humanismo abstrato presente no romance A Náusea. Sartre
faz com que o personagem do Autodidata, que representaria esse amor abstrato do humanista clássico, seja o
mesmo que é pego molestando os “rapazinhos” na biblioteca ao final do romance. Ou seja, amar abstratamente
não garante, e nem justifica, o sentido da ação particular. Portanto, há uma implicação ética nesse distanciamento
requerido pelo registro abstrato do humanismo clássico.
404
ARENDT, Hannah, apud Adriano Correa, Hannah Arendt, p.12.
405
SARTRE, Jean-Paul, Que é a Literatura?, p. 169.
153
evidentemente, fracassa. Só resta ao personagem assumir sua condição contingente ou negá-la, o
que significaria sustentar sua má-fé e conseqüentemente também a Náusea doce que lhe sobe à
boca. É por isso que Roquentin dirá: “Alguma coisa começa a acabar: a aventura não admite
prolongamentos artificiais”.406 É preciso, portanto, assumir, como o faz o personagem: “não tive
aventuras. Sucederam-me histórias, acontecimentos, incidentes, tudo o que se quiser. Mas
aventuras, não”.407
De fato, o que existe é esse fluxo temporal contínuo de vivências que caracteriza a
própria consciência, o que existe é a consciência enquanto pura transcendência, enquanto pura
liberdade. É preciso assumir essa condição de modo livre e responsável, o que, em outras
palavras, significa que não devemos abandonar também o plano da contingência. É exatamente
nesse sentido que se desvela a Roquentin a derrocada de seu projeto. Uma vez vivenciada, a
Náusea não permite subterfúgios que permitiriam escapar à condição contingente da existência e
ao sentimento da angústia que dela decorre. É preciso assumir sua responsabilidade pelas
escolhas que o constituem, mesmo que, em última instância, nunca o personagem se constitua de
fato. Roquentin vê, portanto, esvanecer-se seu projeto de criar uma espécie de “autonarrativa”
que o exima de sua liberdade.
Em síntese, se o Ego só aparece como um núcleo duro do sujeito para que ele possa negar
seu caráter transcendente fundamental, uma vez que representar-se enquanto substância revela-se
necessariamente falso, a experiência violenta e radical da Náusea impõe que o homem se
posicione eticamente ou que se refugie no reduto da má-fé, horizonte para o qual acena a
substancialização do ego. Mas, se ao contrário, reivindica-se o caráter transcendente da
consciência, cumpre assumir a condição livre do homem. Essa experiência é sempre algo que
ocorre do âmbito particular; é sempre um indivíduo que a vive em sua unicidade. No entanto, ela
ganha simultaneamente um caráter universal, uma vez que a liberdade daquele que age e escolhe
implica a liberdade dos outros. Desse modo, cabe ao escritor e à literatura, com sua capacidade
de requerer a liberdade do leitor e de instaurar realidades impensadas, desnudar o real naquilo
que ele tem de mais profundo, em seu substrato, qual seja, a condição contingente do homem.
Essa concepção e ganha intensidade nos escritos de maturidade de Sartre. Torna-se,
então, pertinente aludirmos à questão posta pelo filósofo o faz em Que é a Literatura?: “Por que
escrever?”:
406
407
Ibidem, p. 71.
Ibidem, p. 70.
154
Cada um tem suas razões: para este, a arte é uma fuga: para aquele, uma maneira
de conquistar. Mas pode-se fugir para um claustro, para a loucura, para a morte: pode-se
conquistar pelas armas. Por que justamente escrever, empreender por escrito suas
evasões e suas conquistas?408
A bela e provocativa formulação de Sartre insere-nos no cerne do problema, qual seja,
por que escrever em vez de agir concretamente? Porque escrever é agir. Porque o “homem é o
meio pelo qual as coisas se manifestam”409 e a literatura é a expressão daquilo que doa sentido à
realidade. Somos seres “desvendantes”. Assim “o escritor decide apelar para a liberdade dos
outros homens para que, através das implicações recíprocas das suas exigências, eles
reapropriem a totalidade do ser para o homem e fechem a humanidade sobre o universo”.410 O
que significa que é o homem que desvenda o sentido da realidade, ou melhor, é o encontro dos
homens que a desvela. O mundo em si mesmo é pura contingência. “A árvore e o céu, a
natureza, só se harmonizam por acaso;”411 Estamos em pleno registro do romance, pois é
através da criação ficcional que o sentido se desvela; o escritor apela ao leitor para que juntos
desvelem a realidade. Surge, então, o necessário correlato do escritor: o leitor. Quando alguém
escreve, o faz para alguém.
A realidade em si mesma é contingente. Por isso a beleza artificial, isto é, criada através
da arte, solicita a liberdade do leitor. Este necessita compreender o fio condutor que o autor
estabeleceu atribuindo unidade à obra. Um romance exige que o leitor compreenda a ordem
interna que o escritor erigiu. É por isso que “no romance [...] os heróis se acham nessa torre,
nesta prisão, se passeiam por esse jardim,”412 por que assim o autor quis. Há um ser onipresente
que antecipa e doa sentido a tudo. A tão desejada ordem narrativa requerida por Roquentin no
romance encontra sua razão de ser, mas, como dissemos, a vida não é um romance de aventuras.
O romance obedece a uma cadeia causal que o justifica. Por conseqüência, é “da expressão de
uma finalidade mais profunda, pois o parque só ganhou existência para se harmonizar com
determinado estado de ânimo”,413 que o real se dá a conhecer, tal como no caso do nosso
romance. Em A Náusea, é num parque que o personagem tem a experiência da condição
contingente da existência. Conclui Sartre: “Aqui a causalidade é que é a aparência e
poderíamos designá-la por causalidade sem causa, e a finalidade é que é a realidade
408
Ibidem, p. 33.
Ibidem.
410
Ibidem, p. 47.
411
Ibidem, p. 45.
412
Ibidem.
413
Ibidem.
409
155
profunda”.414 Se acrescentarmos que o escritor lança um apelo à liberdade do leitor, então a
dimensão ética evidencia-se: “Através da causalidade fenomênica, o nosso olhar atinge a
finalidade, como a estrutura profunda do objeto e, para além da finalidade, atinge a liberdade
humana como sua fonte e fundamento original”.415
Evoquemos uma última vez as palavras do autor:
Assim a leitura é um pacto de generosidade entre o autor e o leitor; cada um
confia no outro, conta com o outro, exige do outro tanto quanto exige de si mesmo. Essa
confiança já é, em si mesma, generosidade: ninguém pode obrigar o autor a crer que o
leitor fará uso da sua liberdade; ninguém pode obrigar o leitor a crer que o autor fez uso
da sua. É uma decisão livre que cada um deles toma independentemente. [...] Assim a
minha liberdade, ao se manifestar, desvenda a liberdade do outro. 416
Por fim, tal como afirmara Saint-Sernin, na literatura, “a partir do singular, pode-se
remeter ao universal; ao se estudar um homem, se fala, na verdade, de todos os homens”. Sob a
perspectiva do pensamento do nosso filósofo, muito mais do que uma forma de clarificar
conceitos filosóficos, a literatura surge como o caminho que desvela o real ao homem, “ela deve
conferir à descrição o estatuto epistemológico de um concreto universal”.417 Portanto é
necessário que o escritor assuma sua condição e seu contexto histórico, oferecendo ao homem
contemporâneo uma literatura que reflita sua situação histórica.
Como buscamos expressar aqui, o personagem de A Náusea, na medida em que se
pretende escritor, fica aquém desta exigência que é também uma prerrogativa. Sua intenção, ao
sugerir a criação do irreal como uma forma de ultrapassar a condição contingente do homem,
finda antes por nega-lá do que por assumi-la autenticamente. Poderíamos, pois, sustentar que o
personagem sartriano esquiva-se do apelo ético realizado por uma literatura que se volta para o
homem.
Fiquemos, por fim, com o eco das palavras de Roquentin:
Nada mudou e, entretanto, tudo existe de outra maneira. Não posso descrever; é
como a Náusea, e afinal é exactamente o contrário: enfim, sucede-me uma aventura, e,
quando me interrogo, vejo que me sucede que sou eu que estou aqui: sou eu que fendo a
noite: sou feliz como um herói de romance. 418
414
Ibidem.
Ibidem, p. 46.
416
Ibidem.
417
SAINT-SERNIN, Bertrand, Philosophie et fiction, p. 175. “[...] à partir du singulier, on peut remonter à l’universel;
en étudiant um homme, on parle em vérité de tous les hommes” [...] “Elle doit conférer à la description le statut
épistémologique d’un concret universel” (nossa tradução).
418
SARTRE, Jean-Paul, A Náusea, p. 98.
415
156
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A motivação primeira e afetiva que originou esse estudo delineou-se numa inquietude.
Ou seja, o desejo de indagar e compreender porque Sartre, no desenvolvimento de sua produção
intelectual, recorreu simultaneamente ao registro filosófico e ao registro literário.
Neste sentido, a origem desta pesquisa está certamente relacionada à fortíssima impressão
que o registro da criação ficcional sempre foi capaz de suscitar na alma daqueles que sobre ela se
debruçam. O que, por si só, conduz a uma certa perplexidade. Ou seja, por que a obra literária é
capaz de proporcionar impressões tão intensas e reveladoras? E porque tal intensidade mostra-se
vetada à filosofia, a qual desde seus primórdios coloca-se no encalço da verdade? E mais do que
isso, por que, ao entrar em contato com a obra literária, o concreto se dá a ver? Essas
interrogações encontraram uma situação exemplar com a leitura de A Náusea, uma vez que tudo
o que era dito através do romance, de forma alguma alcançava a mesma intensidade quando
problematizado no âmbito da reflexão filosófica ou, mais especificamente, no ensaio A
Transcendência do Ego. Eis as questões que nos impulsionaram ao desenvolvimento dessa
pesquisa.
Uma vez iniciada a nossa busca, foi a reflexão acerca do método sartriano que norteou e
fundamentou esse ensaio interpretativo. Sabemos que Sartre recorreu tanto à filosofia como à
literatura com a intenção de expressar seu pensamento. Nosso percurso permitiu compreender
que essa relação se caracteriza por uma simultânea dupla insuficiência e complementaridade.
Ficou patente que, para uma filosofia que se pretenda dinâmica, que busca seu fundamento no
existente particular imerso em sua situação histórica, o registro da reflexão filosófica se mostra
insuficiente. É preciso recorrer então a algo capaz de expressar o particular, sem com isso
negligenciar a dimensão universal necessária ao rigor filosófico. A literatura entra, então, em
cena. Mas ela traz também a mácula da insuficiência, uma vez que o registro literário não dá
conta da dimensão abstrata – isto é, do particular universalizado – requerida pela filosofia.
Mostramos, assim, que é justamente na peculiaridade de cada registro que literatura e filosofia
são necessárias à Sartre. A complementaridade entre esses registros nos conduziu a uma reflexão
de natureza ética, uma vez que o escritor fala sempre a um leitor. Afinal, desde que aflore a
questão acerca do modo pelo qual se age em relação a outrem a questão ética está posta. Em face
disso, problematizamos a inautenticidade de toda e qualquer tentativa de instrumentalizar a
157
criação literária e romanesca, com o intuito de operar uma evasão da condição contingente da
existência. O percurso dessa reflexão exigiu um retorno à concepção de Ego, presente no
primeiro capítulo, evidenciando, assim, o modo pelo qual um apelo ético inscreve-se na narrativa
literária, quando permanecemos sob o registro dessa filosofia.
Em suma, esse percurso pelos textos sartrianos evidenciou que o que caracteriza a relação
entre filosofia e literatura em Sartre é a dupla insuficiência dos registros e também, talvez
principalmente, a sua dupla complementaridade. Por outro lado, como não se cansam de repetir
seus comentadores, toda a obra de Sartre remete a uma moral. Afirmação que não exclui a sua
dimensão ficcional. No âmbito da ficção, a exigência ética se traduz no apelo à liberdade, ao
diálogo entre a imaginação do escritor e aquela do leitor, o qual, pelas vias da negatividade,
amplia a compreensão de inserção objetiva do homem no mundo. Nesse movimento, as imagens
revelam toda a sua relevância. É através do apelo à imagem que o irreal traz à tona o real por
detrás do irreal. Destarte, o real se dá a conhecer por meio da invenção – no limite, da mentira –
que constitui a obra literária. Fiquemos, a título de conclusão, com as provocativas palavras do
autor:
Durante muito tempo tomei minha pena por uma espada: agora, conheço nossa
impotência. Não importa: faço e farei livros; são necessários; sempre servem, apesar de
tudo. A cultura não salva nada nem ninguém, ela não justifica. Mas é um produto do
homem: ele se projeta, se reconhece nela; só este espelho crítico lhe oferece a própria
imagem.419
419
SARTRE, Jean-Paul, As Palavras, p. 182.
158
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