UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA THIAGO RODRIGUES FENOMENOLOGIA CRÍTICA, FILOSOFIA E LITERATURA: UMA INCURSÃO NOS PRIMEIROS TEXTOS DE SARTRE Guarulhos 2012 UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA THIAGO RODRIGUES FENOMENOLOGIA CRÍTICA, FILOSOFIA E LITERATURA: UMA INCURSÃO NOS PRIMEIROS TEXTOS DE SARTRE Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Filosofia da Universidade Federal de São Paulo como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia. Orientadora: Profª. Drª. Rita Paiva. Guarulhos 2012 THIAGO RODRIGUES FENOMENOLOGIA CRÍTICA, FILOSOFIA E LITERATURA: UMA INCURSÃO NOS PRIMEIROS TEXTOS DE SARTRE Guarulhos, 25 de Junho de 2012. Profª. Drª. Rita Paiva (Orientadora) Universidade Federal de São Paulo Prof. Dr. Hélio Salles Gentil Universidade São Judas Tadeu Profª. Drª. Thana Mara de Souza Universidade Federal do Espírito Santo Para o Pedro – Pedrinho –, pedra basilar da minha existência e para Érica Marta Costa dos Santos, meu esteio. AGRADECIMENTOS Agradeço, primeiramente, à professora Rita Paiva, que aceitou me orientar e que conduziu com delicadeza e, principalmente, com muita sensibilidade, a vivência transformadora de realizar essa pesquisa. Sem a sua presença, gentil e paciente, certamente “este trabalho seria um outro”. Aos professores Thana Mara de Souza e Hélio Salles Gentil, pelas preciosas contribuições quando do Exame de Qualificação. A todos os professores que durante minha vida acadêmica me provocaram, de modo que ela se inscrevesse, em larga medida, neste projeto. Nesse sentido, gostaria de fazer uma menção especial aos professores: Fernando Rocha Sapaterro, Newton Gomes Pereira, Edson Dognaldo Gil, Neide Coelho Boëchat e João Epifânio Régis de Lima, os quais, em algum momento, me conduziram por este itinerário filosófico. Gostaria também de fazer uma referência afetiva aos professores: Luizir de Oliveira (maestro primeiro), Roque Fagiotto, Isaar Soares de Carvalho, Ivanir Signorini, Marcelo Carvalho. Um agradecimento especial àqueles que são para mim muito mais do que singulares referências intelectuais: Olgária Mattos e Franklin Leopoldo e Silva. Aos amigos, interlocutores constantes, além de primeiros leitores: Bruno Lemes, José Lima e, especialmente, ao Paulo (Pablo). Aos companheiros de labuta intelectual, Ivan De bruyn e Edvan Aragão. Agradeço também, e de coração, a todos aqueles que direta ou indiretamente contribuíram com este processo de pensée vécue e que por alguma razão não citei aqui. Por fim, não poderia deixar de mencionar minha família, que sempre me apoiou: minha mãe, Conceição Kühl, e minha irmã, Camila Luiza Rodrigues. E finalmente, meu tio, Eduardo Kühl, que sempre foi como um pai para mim. Esta dissertação foi parcialmente financiada pela Capes. E parcialmente financiada por meu mecenas, tio Eduardo. A EDUCAÇÃO PELA PEDRA Uma educação pela pedra: por lições; para aprender da pedra, freqüentá-la; captar sua voz inenfática, impessoal (pela de dicção ela começa as aulas). A lição de moral, sua resistência fria ao que flui e a fluir, a ser maleada; a de poética, sua carnadura concreta; a de economia, seu adensar-se compacta: lições da pedra (de fora para dentro, cartilha muda), para quem soletrá-la. * Outra educação pela pedra: no Sertão (de dentro para fora, e pré-didática). No Sertão a pedra não sabe lecionar, e se lecionasse, não ensinaria nada; lá não se aprende a pedra: lá a pedra, uma pedra de nascença, entranha a alma. (João Cabral de Melo Neto) RESUMO Rodrigues, T., FENOMENOLOGIA CRÍTICA, FILOSOFIA E LITERATURA: UMA INCURSÃO NOS PRIMEIROS TEXTOS DE SARTRE 2012. 165 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, 2012. O escopo desta dissertação consiste em apresentar e analisar a maneira pela qual se estabelece a relação entre literatura e filosofia na obra de Jean-Paul Sartre. Para tanto, tomar-se-á como principal referência alguns textos do jovem Sartre, em especial, o ensaio a Transcendência do Ego e o romance A Náusea. O método heterodoxo de buscar apoio tanto na obra teórica como na obra ficcional do autor justifica-se diante da necessária relação de interdependência que estes dois registros adquirem na obra do autor. Em decorrência, é imperativo analisar também algo do necessário desdobramento ético que esta concepção acarreta. Posto isto, cabe frisar que o percurso a ser percorrido vai da análise do texto filosófico acima mencionado, passando pela relação entre criação ficcional e reflexão filosófica e culminando com a retomada de toda a problemática desenvolvida durante o trabalho, porém, sob perspectiva literária e ética. Palavras-Chave: Intencionalidade. Literatura. Filosofia. Imagem. Ética. RÉSUMÉ Rodrigues, T., PHÉNOMÉNOLOGIE CRITIQUE, LITTÉRATURE ET PHILOSOPHIE: UNE INCURSION DANS LES PREMIERS TEXTES DE SARTRE 2012. 165 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, 2012. Le but de cette recherche est de présenter et d'analyser la façon dont s’établit la relation entre la littérature et la philosophie dans l’oeuvre de Jean-Paul Sartre. À cette fin, nous allons utiliser comme support les premiers textes de Sartre, en particulier, l'essai La Transcendence de L'Ego et le roman La Nausée. La méthode peu orthodoxe de la recherche, qui cherche le soutien du travail théorique autant que de l'œuvre romanesque de l'auteur, se justifie par la nécessaire interdépendance entre ces deux domaines acquise par le travail de l'auteur. Par conséquence, il est impératif aussi d'analyser les conséquences éthiques impliqués par cette conception. Cela dit, il convient de souligner que le chemin parcouru commence par l'analyse d'un texte philosophique, passe par la relation entre la création romanesque et la réflexion philosophique et arrive, enfin, à la reprise des problèmes développés pendant le travail, maintenant dans une perspective littéraire et éthique. Mots-clés: Intentionnalité. Littérature. Philosophie. Image. Éthique. SUMÁRIO INTRODUÇÃO........................................................................................................................... 11 CAPÍTULO I: Do Ego Transcendental à transcendência do Ego.......................................... 19 1. Introdução........................................................................................................ 19 2. A apropriação sartriana da fenomenologia...................................................... 20 3. A incompatibilidade entre a presença do Eu na consciência e a intencionalidade............................................................................................... 31 4. A constituição do Ego..................................................................................... 35 a) O ato reflexivo e a origem do Eu............................................................... 35 b) Um parêntese acerca de O Ser e o Nada................................................... 36 c) Estrutura dual da consciência e os estados como unidade de consciências............................................................................................... 40 d) A pseudo-espontaneidade do Ego............................................................. 42 5. O Ego nunca é visto senão pelo canto do olho ou “Eu é um outro”............... 44 6. Crítica à idéia de interioridade: o eu e o mundo como objetos impessoais....................................................................................................... 48 CAPÍTULO II: Existência, filosofia, literatura: onde o limite?............................................. 54 1. Introdução........................................................................................................ 54 2. Vizinhança comunicante: a simultaneidade entre a obra filosófica e a literária............................................................................................................. 56 3. Das variações imaginárias ao caráter contingente da existência: uma literatura de situações extremas...................................................................................... 66 4. Imaginário: o irreal que desvela o real............................................................ 74 CAPÍTULO III: Da experiência violenta e radical da Náusea ao necessário desdobramento ético............................................................................................................................................... 89 1. Introdução........................................................................................................ 89 2. A experiência violenta e radical da Náusea vivenciada por Roquentin.......... 94 3. A consciência enquanto fluxo contínuo e a pura espontaneidade do presente: a Náusea enquanto manifestação profunda da existência................................ 122 4. A dissolução do Ego...................................................................................... 130 5. Algo sobre necessário desdobramento ético................................................. 136 6. Do necessário desdobramento ético à questão da narrabilidade................... 145 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................... 157 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................................... 159 INTRODUÇÃO O pensamento de Jean-Paul Sartre conheceu inúmeros comentadores e intérpretes. Estes leitores, no entanto, e em sua maioria, acabaram por privilegiar os aspectos sociais e políticos de sua obra ou seus aspectos fenomenológico-existenciais. Alternativas que, de modo geral, polarizaram sua produção em duas grandes fases: a fase da filosofia da consciência, de influência fenomenológico-existencial e a fase da filosofia da História, de orientação marxista. Por outro lado, como costuma ocorrer com a obra de autores amplamente divulgados, como foi o caso de Sartre, sua filosofia foi muitas vezes mal interpretada e, talvez por isso, vulgarizada. Não seria exagero assinalar que o próprio filósofo talvez tenha contribuído para os equívocos interpretativos sobre suas idéias, se consideramos que é característico do seu estilo recorrer a frases de efeito e jargões filosóficos, muitas vezes polêmicos e até mesmo contraditórios. A título de exemplo: “o homem está condenado à liberdade”, ou então, “não importa o que fazem do homem e sim o que ele faz com o que fizeram dele”, e ainda, “o inferno são os outros” etc. Daí decorre que ao iniciarmos uma incursão na obra sartriana, certas interrogações tornam-se imperativas: como escapar às armadilhas dos estereótipos? Como fugir a esta facilitação vulgar? Ou ainda: como abordar obra tão abrangente e diversificada, sem recair na referida polarização entre o registro da ontologia fenomenológica e o registro da dialética materialista? Se reportarmos estas questões ao âmbito das obras de caráter ficcional do filósofo, interrogações similares se configuram: como abordar a criação ficcional no registro do existencialismo sartriano sem recair na cilada da polarização facilitadora? Como evitar uma abordagem reducionista que se limite à condição de instrumento divulgador das idéias filosóficas do autor? Como não vulgarizar uma obra que, por si só, busca o conflito e o embate? No nosso entender, essa última questão parece oferecer elementos para uma resposta. Uma filosofia que tenha a pretensão de apreender a existência em movimento, a ação humana imersa na história, ou, mais diretamente, uma filosofia que pretenda abarcar simultaneamente a existência concreta e o registro teórico irrenunciável, realizando uma síntese entre teoria e prática, entre ontologia e existência, repousa necessariamente sobre uma tensão. Um estudo acerca da obra de Sartre defronta-se, pois, com a exigência de assumir a dimensão tensa da obra, o que só se efetivará com uma investigação que, a despeito da ênfase temática 11 escolhida pelo pesquisador, contemple as suas diferentes faces, quais sejam, literatura e filosofia, ontologia-fenomenológica e filosofia da história, e, finalmente, filosofia, literatura e existência. Eis o modo pelo qual torna-se possível escapar aos estereótipos. Nesse estudo, dentro dos limites que a ele se impõem, procuramos nos pautar por esse critério. Oxalá tenhamos sido bem sucedidos. No entanto, convém que nos debrucemos sobre essa “tensão”. São múltiplas as facetas da tensão que percorre a obra sartriana. Todas elas repousam sobre um aspecto primordial: a oposição entre ser e existência. Esse aspecto reflete-se, inclusive, no modo pelo qual o autor se dividiu entre o caminho da reflexão filosófica, metafísica, abstrata e os imperativos da ação política. Ambivalência que poderia ser interpretada como uma incoerência – ou mesmo contradição – em relação à imagem tradicional do filósofo. Notadamente, esta imagem implica um afastamento do mundo, como condição para pensá-lo abstratamente, numa atitude fundamentalmente contemplativa. Ou seja, sob a égide da metafísica clássica, o filósofo construiria um fosso entre o âmbito concreto da ação e o âmbito teórico da reflexão filosófica. Mas, no caso de Sartre, sua ontologia adquire uma conotação concreta e abarca a dimensão ativa do existir. É nesse sentido que entendemos que o seu engajamento político revela-se coerente com sua obra teórica. Por outro lado, uma filosofia que busque abarcar o concreto da existência humana, e que se constitui como uma metafísica que não se dissocia da experiência, necessita também contemplar o caráter relativo de toda escolha singular. Nesse caso, se nos ativermos ao exemplo da biografia do próprio Sartre, perceberemos que, em diversos momentos de seu percurso intelectual e pessoal, o filósofo reconsiderou seus posicionamentos políticos, chegando por vezes a se contradizer. Fiquemos em apenas um exemplo: o apoio do filósofo ao regime stalinista foi incondicional, ao menos até a invasão soviética da Hungria em 1956, chegando inclusive a omitir informações acerca da realidade da URSS.1 No entanto, os eventos ocorridos em 1956 levaramno a rever seus posicionamentos e, mesmo que com pesar, a abandonar seu apoio ao regime soviético. O que queremos evidenciar com a alusão a esse episódio é que uma filosofia que se quer concreta, atenta à dimensão singular do existir, deve abarcar também a dimensão contingente das escolhas igualmente singulares, bem como a possibilidade de seus equívocos e reviravoltas. Nesse sentido, os reveses, as idas e vindas da postura política do autor, bem como o 1 ROWLEY, Hazel, Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre: Tête-à-Tête, p. 275. 12 radicalismo de suas posições em determinados momentos, não contraditaria uma ontologiafenomenológica que se recusa a negligenciar a dimensão dramática e concreta da existência.2 Ademais, no registro da dimensão ética que permeia toda filosofia de Sartre – ainda que ele só tenha se voltado claramente para as questões dessa ordem em momentos mais tardios de sua produção – toda escolha se quer absoluta, mesmo que relativa. Nesse sentido, escolher é eleger valores, é comprometer-se. Esse compromisso se quer absoluto, mesmo que relativo a um contexto específico. Vem a propósito a esclarecedora imagem tecida pelo filósofo: a escolha se assemelha à criação de uma obra de arte. Em outras palavras, tal como na criação artística, onde o valor da obra reside nela mesma, o valor atribuído à escolha reside na própria ação, na dimensão criadora do ato. É a própria ação que estabelece o valor absoluto da escolha, não há nada que possa me redimir dessa responsabilidade. Eis a correlação entre uma moral da criação e o ato de invenção.3 Ao escolher, um homem promove à condição de valor absoluto a sua escolha singular. Sem dúvida, estamos no âmbito de uma filosofia que rompe com a separação entre teoria e práxis, entre pensamento e existência. Deparamo-nos, aqui, com algo poucas vezes notado na história da filosofia. Ou seja, em contraposição à tradição, a filosofia de Sartre se quer concreta, imersa na realidade, na relatividade do contexto epocal. Trata-se de uma filosofia que pretende compreender o homem imerso na história. Notemos que essa postura deve-se também ao momento vivido por ele e por seus contemporâneos. De fato, podemos encontrar uma certa unidade na geração da filosofia francesa a partir dos anos 30, a qual – confrontada com a 2 No que tange às polêmicas e, por vezes, contraditórias posições políticas de Sartre, cabe uma alusão às análises de Ronald Aronson em Camus e Sartre: O Polêmico Fim de uma Amizade no Pós-Guerra. Para Aronson, a polêmica ruptura entre Sartre e Camus teve como principal razão o antagonismo ideológico dos filósofos, e isso se deve, principalmente, à defesa veemente que Sartre assume em prol do processo revolucionário, justificando inclusive a ação violenta. Nesse sentido, Aronson chega a afirmar que Sartre, em dado momento, defende inclusive que a liberdade individual deve se submeter à causa revolucionária. É nesse sentido que o autor comenta: “Até aqui Sartre havia falado sobre história e engajamento, ou havia criado sua própria revista ou uma nova organização. Mas ‘não se pode criar um movimento’. A hora chegou para dar o próximo passo: juntar-se à luta que já acontece, uma luta totalmente além do seu controle” (p. 193). Ainda sob esta perspectiva, Aronson sintetiza a ruptura entre os autores: “Vimos Sartre se tornando revolucionário e Camus, um revoltado. A construção político-dramáticointelectual central de Sartre foi Goetz [personagem principal da peça O Diabo e o Bom Deus, de Sartre], o líder que aceita a violência como preço da mudança social. Camus trabalhou tão profundamente quanto para modelar sua própria criação, o homem revoltado, para o qual a violência nunca poderia ser justificada” (p. 198). No entanto, Aronson alerta-nos para os perigos de uma interpretação maniqueísta decorrente do contexto da Guerra Fria o que, por conseqüência, gerou uma leitura ambígua do ocorrido, levando o leitor mais incauto a buscar a solução da questão ou em Sartre ou em Camus, ignorando, desse modo, as nuances que caracterizaram o debate intelectual da época (p. 200). Evidentemente, não defendemos aqui o antagonismo e acreditamos que ambos os autores tinham razões que justificavam seus posicionamentos. A despeito disso, parece-nos importante, no que toca à nossa discussão, frisar que não vemos o posicionamento de Sartre como uma incoerência e sim como uma decorrência natural de seus pressupostos teóricos fundamentais. 3 SARTRE, Jean-Paul, O Existencialismo é um Humanismo, p. 18. 13 presença constante dos grandes genocídios do século XX, pela iminência da Segunda Guerra Mundial e com todos os seus desdobramentos políticos e sociais – rompe com as tendências espiritualistas que imperavam no universo filosófico francês desde o nascer do século. Prevalece, assim, um pensamento filosófico que se abre para o homem e para o seu momento. Doravante, a filosofia já não pode negligenciar a história.4 Por essa razão, a oscilação da obra sartriana entre suas manifestações ideológico-políticas e sua dimensão mais teórica, e mais que isso, entre pensamento e existência, parece desvelar não apenas o seu comprometimento, mas a sua coerência com seus próprios pressupostos filosóficos. Compreendemos, assim, a exigência de que o filósofo existencialista se posicione politicamente, se lance em direção ao cerne da situação que o envolve, inclusive porque não se posicionar implica igualmente uma forma de tomar posição. Afirma ele, em mais uma de suas célebres máximas: “sempre se é responsável por aquilo que não se tenta impedir”.5 Parodiando Dostoiévski, “tudo é permitido”, exceto não agir. Sob essa perspectiva, o que fica interditado é a abstenção. Aquele que escolhe não agir, de certo modo, já está agindo. Se reformularmos essa exigência a partir do vocabulário ontológico de Sartre, veremos que o para-si é no mundo, em situação. Não se é possível, portanto fugir a esse pressuposto fundamental. Já não há espaço para o distanciamento requerido pela contemplação filosófica tradicional; só faz sentido, sob o registro do existencialismo, uma filosofia para e na vida. Em outras palavras, para que o autor permaneça coerente com os fundamentos ontológico-fenomenológicos de sua filosofia é imperativo que ele, enquanto subjetividade singular, contemple e mergulhe na dinâmica existencial. Sartre não vacila ante tal necessidade. Assim, convém a referência à máxima que fundamenta a filosofia existencialista de Sartre: “[...] a existência precede a essência, ou, se se quiser, [...] temos que partir da subjetividade”.6 O homem será aquilo que ele fizer dele mesmo; não há essência ou determinação que possa justificar a ação humana, existe sempre também a possibilidade de que o homem, em suas escolhas, acabe por se contradizer, como, afinal, ocorreu com o filósofo em suas controversas posições políticas. Cumpre observar que a idéia de contradição aqui se refere justamente ao fato de que a máxima existencialista livra o homem de toda e qualquer determinação, ou seja, não há nada a priori que possa justificar minha ação. Eis aí um pressuposto que vem legitimar a assunção de posições contraditórias em diferentes momentos 4 Para mais, ver: WORMS, Frédéric. La philosophie en France au XXe. Siècle, Paris, Gallimard, 2009. SARTRE, Jean-Paul, O que é a Literatura?, p. 212. 6 Idem, O Existencialismo é um Humanismo, p. 5. 5 14 históricos. Afinal, se o homem se caracteriza como puro projeto de si mesmo, se o que define a existência é a ação, então, parece-nos lícito afirmar que é sempre possível, e até mesmo coerente, que ele aja e “pense contra si mesmo”. Para que o homem continue a ser aquilo que ele faz de si mesmo é necessário que ele escolha permanentemente, pois, no esteio de Heidegger, Sartre afirma: “o Para-Si é o ser para o qual, sendo, está em questão o seu próprio ser”. Máxima que requer a assunção integral da responsabilidade implicada na escolha, que, como dito anteriormente, se quer universal, consiste na eleição de valores, os quais, embora partam de uma escolha singular, remetem ao absoluto. Sob essa perspectiva, não nos parece um abuso afirmar que a incoerência comumente atribuída a Sartre seja em relação à postura tradicional do filósofo, seja em relação às suas polêmicas e contraditórias posições políticas, consiste, em última instância, numa decorrência da tensão que caracteriza o seu pensamento teórico. Deste modo, exigir a famigerada “coerência” biográfica de Sartre, como o fazem alguns, significaria lançar sua filosofia no registro da imobilidade e da determinação. Significaria negar o caráter transcendente que define a própria existência. O pensar e o agir devem andar juntos, pois o homem, nada mais é do que o conjunto de suas escolhas, o conjunto de suas ações. Vale insistir: a ontologia-fenomenológica da filosofia sartriana remete necessariamente ao âmbito da existência concreta. Essas considerações, ainda que de modo oblíquo, sugerem uma pista acerca do problema que norteará nosso estudo. A questão fundamental que nos guiará consiste em indagar por que se torna necessário ao filósofo lançar mão do registro literário para expressar seu pensamento. Ora, se o que caracteriza sua produção é a tensão inerente aos pressupostos existenciais, então é impositivo que busquemos subsídios para o nosso estudo tanto em sua reflexão filosófica como em sua criação ficcional. Expliquemos. Uma filosofia que pretenda abraçar o existente em situação, precisa buscar modos de expressão que se prestem a esse propósito. O registro da abstração teórica parece permanecer aquém dessa pretensão. Abre-se, pois, a necessidade do apelo ao registro literário, o qual nos inseriria mais enfaticamente na dimensão concreta da existência, âmbito em que os atos humanos e o homem em situação são efetivamente retratados. No entanto, é relevante frisar que, com isso, Sartre não pretende diluir as especificidades dos registros. Fazer filosofia não é fazer literatura e o seu contrário também não parece se justificar. Daí que uma nova questão se delineia: como se estabelece a relação entre o registro da reflexão filosófica e da criação ficcional na produção sartriana? Sartre, como lembra Françoise Noudelmann, é um autor avesso a sistemas filosóficos, embora tenha desenvolvido rigorosamente seu pensamento através de tratados filosóficos como 15 O Ser e o Nada e a Crítica da Razão Dialética. Isso talvez se deva ao referido caráter tensional que marca o teor de sua filosofia, bem como o estilo de toda a sua produção. E esse aspecto é relevante porque ele nos conduz a questões fundamentais, tais como: haveria, de fato, uma insuficiência da reflexão filosófica para pensar a condição humana? Em contrapartida, a criação ficcional daria conta de expressar essa realidade em sua totalidade? O que nos autorizaria interrogar acerca de uma dupla insuficiência do registro teórico e ficcional? Questões que, uma vez submetidas à reflexão, poderiam legitimar a abordagem simultânea da obra filosófica e literária do autor. Eis alguns dos pontos cruciais sobre os quais se debruçam estas páginas. Ainda no que toca a esta problemática, parece-nos que essa aparente dupla insuficiência – que, como pretendemos pontuar no decorrer deste estudo, constitui uma dupla complementaridade –, evidencia ainda mais o caráter tensional sempre presente no pensamento sartriano. Notadamente, da tensão fundamental – entre pensamento e existência – desdobram-se outras tensões internas de sua filosofia: a contraposição entre o particular e o universal; as escolhas singulares e o movimento da história; o ser e o nada; o para-si e o em-si. Noudelmann chega a afirmar que Sartre desenvolve mesmo uma “teoria da tensão”. Ao revisar a ligação entre conceito e imagem em Sartre, o comentador sustenta que o filósofo [...] desenvolve assim uma teoria da tensão: a significação põe em relação os termos, exerce sua complementaridade ou alcança seu sentido total. Sua intenção é realizar a adequação entre o ser e a existência, objetivo impossível de realizar, mas que constitui o horizonte necessário à tentativa de totalização.7 As palavras do comentador parecem expressar exatamente aquele que é nosso pressuposto, isto é, as ambigüidades são inerentes ao pensamento de Sartre, de tal modo que a adequação entre existência e ser – a tensão fundamental de sua filosofia – seja, de fato, impossível. Parece-nos que o recurso a essa “teoria da tensão” surge com um desdobramento necessário de um pensamento que busca abarcar a existência lançada no mundo. Novamente, se recorrermos ao vocabulário ontológico sartriano, veremos que é justamente o descompasso entre o Ser-Para-Si, isto é, o homem imerso em sua existência, e o Ser-Em-Si, o mundo, o Ser, que sustenta essa supracitada teoria da tensão, a qual se evidencia na conhecida asserção: “o homem é uma paixão inútil”. O existente é puro projeto fadado a nunca realizar-se enquanto Ser; no 7 NOUDELMANN, François, L’Incarnation Imaginaire, p. 248. “Ensuite, Sartre revise le lien qui unit concept et image. Il développe ainsi une théorie de la tension: la signification met en rapport les termes, fait jouer leur complémentarité ou leur atteindre la totalité du sens. Son ambition este d’accomplir l’adéquation de lêtre et de l’existant, objectif impossible à réaliser, mais qui constitue l’horizon nécessaire à l’entreprise de totalisation”. (Tradução nossa). 16 entanto, justamente por ser fluxo contínuo, não é possível ao homem abandonar essa pretensão de ser o que ele jamais será. Em suma, a existência é tensa. Um desajuste inscreve-se no âmago da condição humana. Seria justamente a tensão – de uma realização em perpétuo curso, sempre inacabada – que mantém o arco de sua filosofia teso. Logo, se esta filosofia permanece tensa entre a reflexão teórica e necessidade de posicionamento político, ela reflete a condição de seu objeto privilegiado, o homem, este ser sempre inacabado. Aspecto que se exprimirá também na urgência de conciliar o registro filosófico e o literário. Ante o exposto, um estudo conjunto de aspectos da obra literária e da obra filosófica do autor parece se justificar, uma vez que fornece subsídios para que compreendamos melhor a tensão em que este pensamento se movimentará. No que tange ao caminho metodológico, pretendemos fazer um recorte, percorrendo alguns textos do jovem Sartre, em especial, o ensaio A Transcendência do Ego (1934); o pequeno – mas não menos importante – artigo Uma Idéia Fundamental da Fenomenologia de Husserl: a Intencionalidade (1936); e, finalmente, seu romance de estréia, A Náusea (1938). Aludiremos ainda aos textos A imaginação (1936) e ao Imaginário (1940). Eventualmente nos remeteremos a alguns textos de maturidade do autor, principalmente, ao tratado de ontologia fenomenológica O Ser e o Nada (1943), e ao ensaio O que é a Literatura? (1947). Aludiremos, ainda, à transcrição de sua célebre conferência O Existencialismo é um Humanismo (1946). Nesse itinerário, pretendemos iniciar nossa análise refletindo acerca da apropriação realizada pelo autor da teoria fenomenológica de Husserl, passando por sua crítica à formulação fenomenológica do Ego Transcendental, bem como pelo papel que o conceito de intencionalidade adquire para o registro francês da fenomenologia. Em seguida, é nosso objetivo explicitar a relação, propriamente dita, que se estabelece entre a criação ficcional e a reflexão filosófica no registro do existencialismo sartriano. Este movimento reflexivo nos conduzirá a uma inspeção acerca da concepção sartriana de imagem e do papel que o imaginário exerce enquanto fonte de acesso legítimo ao real, ou, como pretendemos esclarecer posteriormente, do irreal que desvela o real. Assim, a literatura parece surgir como uma linguagem capaz de exprimir o modo de ser-no-mundo da consciência, o que nos conduz a problematizar a relação que se estabelece entre existência, literatura e filosofia. Nesta etapa de nosso estudo, dois dos textos acima mencionados serão necessariamente evocados: A Imaginação (1936) e O Imaginário (1940). Por fim, no último capítulo pretendemos retomar os conceitos filosóficos problematizados nas discussões antecedentes, mas sob uma perspectiva outra, qual seja, tomando como referencial uma obra ficcional: o romance A Náusea. Assim, a dissolução do Ego, a 17 concepção da consciência enquanto pura intencionalidade, ou seja, enquanto fluxo contínuo, conduzem nosso estudo para a revelação da contingência manifestada pela experiência violenta e radical da Náusea. Nesse movimento, as necessárias implicações éticas que a literatura adquire sob a perspectiva existencialista tornam-se relevantes para a nossa reflexão. Assim, à medida que vislumbrarmos a condição de total gratuidade da existência desvelando-se na criação ficcional, indagaremos acerca das dimensões éticas implícitas nesse desvelamento. Eis as questões que pautarão nosso estudo. Em síntese, poderíamos afirmar que nosso estudo se refere à relação que se estabelece entre criação ficcional e a reflexão filosófica em Sartre, bem como à dimensão ética que esta relação assume no corpo teórico do autor, em especial em suas primeiras obras. 18 CAPÍTULO I Do Ego Transcendental à transcendência do Ego “Mas já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas” (Clarice Lispector) 1. Introdução Sartre é herdeiro da fenomenologia de Husserl. No entanto, como grande filósofo que foi, sua relação com a filosofia de seu mestre não foi pacífica. Como disse Nietzsche certa vez, “retribui-se mal a um mestre, continuando-se sempre apenas aluno”.8 Dispensável dizer que Sartre muito rapidamente evadiu-se dessa condição. Evidentemente, a apropriação da fenomenologia realizada pelo filósofo foi uma apropriação crítica. No texto A Transcendência do Ego, o filósofo francês reconhece sua dívida para com a fenomenologia husserliana, mas não deixa de tecer uma importante crítica à concepção de Ego Transcendental defendida pelo filósofo alemão. Com certeza, este último não admitiria a interpretação sartriana da fenomenologia, oposição que se inicia com a distinção estabelecida por Husserl entre a orientação natural e a orientação filosófica, o que faz da fenomenologia uma filosofia teórica destituída de vínculos com a vida prática. Característica que se dissipa na filosofia sartriana. Publicado pela primeira vez em 1936, A Transcendência do Ego é o primeiro texto filosófico de Sartre e inaugura uma perspectiva que se consolidará em O Ser e o Nada (1943). Se olharmos mais atentamente, perceberemos que a cronologia atesta a inegável unidade das preocupações filosóficas de Sartre nesta época. Entre 1933 e 1934 o filósofo estuda em Berlin a filosofia fenomenológica e é justamente deste período que data a redação das obras: o ensaio A Transcendência do Ego escrito em 1934 e publicado em 1936 nos Recherches Philosophiques,9 o 8 9 NIETZCHE, Friedrich, Ecce homo, p. 20. LE BON, Sylvie, Introdução de La Transcendance de L’Ego, p. 8. 19 romance A Náusea (1938) e o importante artigo Uma Idéia Fundamental da Fenomenologia de Husserl: a Intencionalidade (1938). Período no qual, aliás, a nossa pesquisa mais se detém. É relevante ressaltar que, embora boa parte da concepção defendida por Sartre seja revista posteriormente, no que se refere à estrutura da consciência e, à “idéia fundamental do Ego como objeto psíquico transcendente”,10 o filósofo jamais abandonará sua posição. O que Sartre busca, de fato, é negar a existência formal e material do Ego na consciência. Esse problema aparece formulado da seguinte maneira na clássica citação de A Transcendência do Ego: Para a maior parte dos filósofos, o Ego é um “habitante” da consciência. Alguns afirmam a sua presença formal no seio das Erlebnisse [vivência] como um princípio vazio de unificação. Outros – psicólogos na maior parte – pensam descobrir a sua presença material, como centro dos desejos e dos atos, em cada momento da nossa vida psíquica. Nós queremos mostrar aqui que o Ego não está na consciência nem formal nem materialmente: ele está fora, no mundo; é um ser do mundo, tal como o Ego de outrem.11 O que temos, então, é, por um lado, a inegável dívida de Sartre em relação à fenomenologia e, por outro, suas críticas à filosofia de seu mestre. Interessa-nos aqui, em especial, sua objeção à concepção de Ego transcendental, sua radicalização do conceito de intencionalidade e a forma pela qual essa objeção se desdobra em uma filosofia que busca resgatar o homem concreto em suas relações com o mundo. Adentremos, pois, o primeiro desses temas. 2. A apropriação sartriana da fenomenologia No que concerne à fenomenologia, é sabido que Husserl pretende voltar “às coisas mesmas” e, com isso, fundar uma filosofia das essências. Através do exercício da epoché, o filósofo alemão quer colocar o mundo entre parênteses a fim de buscar as essências ideais. Assim, o método descritivo fenomenológico empreende uma crítica ao psicologismo e se pretende uma ciência pura. Sob essa perspectiva metódica, as vivências são consideradas unicamente enquanto se referem à consciência em sua relação com o mundo, daí a famosa máxima: “toda consciência é consciência de alguma coisa”. 10 11 Ibidem, p. 9. SARTRE, Jean-Paul, A Transcendência do Ego, p. 43. 20 Mas o que é a fenomenologia afinal de contas? Procedamos a uma breve descrição do método fenomenológico, tal como empreendido por Husserl. A interrogação fundamental do filósofo concerne ao sentido do conhecimento, isto é, trata-se de interrogar: o que é conhecer uma coisa? Qual a relação que se estabelece entre o sujeito que conhece e o objeto conhecido, entre a consciência e o mundo? A fenomenologia, entendida como o método da crítica do conhecimento universal das essências, se constitui como a própria ciência da essência do conhecimento e se converte, nas palavras de Husserl, na “doutrina universal das essências”. Ela se configura, mais explicitamente, como um método que busca realizar a crítica do ato de conhecer. Nos dizeres do filósofo, a fenomenologia “torna apta a teoria do conhecimento para ser crítica do conhecimento ou, mais claramente, para ser crítica do conhecimento natural em todas as ciências naturais”.12 Deparamo-nos, assim, com a distinção entre o que Husserl denomina orientação natural e orientação estritamente fenomenológica. Distinção a ser esclarecida pela discussão subseqüente. Antes, porém, sublinhemos que essas alusões à Fenomenologia Transcendental, que procuramos descrever brevemente, concernem à fase madura da filosofia de Husserl, a qual encontra sua representação a partir de sua obra A Idéia da Fenomenologia (1913).13 Momento em que o mestre alemão realiza sua “crítica da razão” em todas as suas dimensões. Mencionamos acima que a fenomenologia husserliana propõe o “retorno às coisas mesmas”. O retorno aqui referido pressupõe a redução fenomenológica ou a epoché. Notadamente, Husserl busca superar o dualismo moderno típico do que ficou conhecido como as filosofias do sujeito, que põem de um lado a postura ingênua de um empirismo radical e, por outro, a postura, não menos ingênua, de um transcendentalismo “realista”.14 Daí deriva que o filósofo proponha como método fenomenológico um retorno radical à consciência em sua relação com o mundo. A redução operada pela fenomenologia, consiste, portanto, num retorno à consciência na sua relação com as coisas, o que permite que os objetos se apresentem em sua constituição, ou seja, enquanto correlatos de uma consciência que os apreende. Sob essa perspectiva, evadimo-nos da idéia de um método que busca uma explicação para um dado fenômeno; doravante, ele se configura como um procedimento que realiza uma descrição 12 HUSSERL, Edmund, A Idéia da Fenomenologia, p. 44. MOURA, Carlos A. Ribeiro de, Crítica da Razão na Fenomenologia, p. 10. 14 De modo geral, a referência aqui é feita considerando-se as correntes filosóficas que se caracterizam por uma metafísica que se ocupa com uma teoria de especulação transcendental, isto é, que tematizam o sujeito transcendental em detrimento da experiência, e que, portanto, se ocupam com a transcendentalidade da coisa mesma. Em outras palavras, que buscam o fundamento do real no nível transcendental-ontológico. Esta oposição, em termos antagônicos, visa destacar o dualismo típico do paradigma moderno, no qual era necessário se posicionar em um dos pólos descritos. 13 21 sistemática das condições, dos limites e das possibilidades do conhecimento das coisas mesmas. A descrição configura-se, pois, como um retorno do sujeito sobre si mesmo. Cabe, então, a explicitação da distinção entre aquilo que o filósofo entende como a ciência eidética e a ciência restrita ao conhecimento dos fatos empíricos. É sabido que, a partir de sua obra Idéias I (1913), Husserl busca distanciar-se de uma “fenomenologia psicológica descritiva”, que se limita à esfera das vivências, isto é, no sentido de um “eu que vive”, e passa a buscar uma fenomenologia transcendental, de sorte que sua doutrina gnosiológica, cujo propósito consiste em alcançar a essência do conhecimento, se afaste da referência empírica. Assim sendo, com o Husserl das Investigações Lógicas (1901), as vivências serão descritas a partir de um “eu que vive” em relação com aquilo que é do âmbito da objetividade de natureza empírica. No que concerne à fenomenologia transcendental, será a consciência constituinte, isto é, que não se dirige aos objetos “fora” da consciência, que pautará sua pesquisa. Trata-se de descrever aquilo que se refere exclusivamente à esfera das vivências em consonância com seu conteúdo incluso. Por conseguinte, aquilo que remete à objetividade empírica fica restrito às ciências objetivas, às ciências naturais, cujos limites Husserl pretende ultrapassar. Em síntese, a fenomenologia transcendental objetiva apreender a consciência enquanto ato que se dirige aos fenômenos, enquanto “consciência de alguma coisa”, de modo que os fenômenos passam a ser visados “transcendentalmente”. A pergunta gnosiológica fundamental que orienta a busca de Husserl, no que concerne à relação entre o Ser e o Conhecer, tal como anteriormente mencionado, permite de fato que o filósofo ultrapasse o âmbito das ciências naturais. A partir de então, o objeto da investigação fenomenológica passa a ser as relações que se estabelecem entre o ato de conhecer, a consciência significante e o objeto significado, constituindo-se assim como filosofia transcendental. É nesse sentido que o filósofo afirma que é possível “resolver os problemas concernentes à relação entre conhecimentos, sentido do conhecimento e objeto do conhecimento, graças à inquirição da essência do conhecimento”.15 Enquanto crítica da razão, através da redução fenomenológica, buscando a essência universal do conhecimento absoluto, a Filosofia Transcendental permitirá um retorno às coisas mesmas. Compreendemos, assim, porque Husserl diz que “o conhecimento é, pois, apenas conhecimento humano, ligado às formas intelectuais humanas, incapaz de atingir a natureza das próprias coisas, as coisas em si”.16 Compreendemos, outrossim, porque a fenomenologia 15 16 HUSSERL, Edmund, A Idéia da Fenomenologia, p. 45. Ibidem, p. 44. 22 transcendental impõe a necessária superação da orientação natural, fortemente criticada por Husserl. No entanto, sob esse prisma, a fenomenologia parece aproximar-se do idealismo transcendental, visto que se caracteriza por uma crítica da razão enquanto fenômeno da consciência constituinte. Ela pretende se constituir como uma ciência transcendental dos fenômenos da consciência enquanto consciência. Postura que culminará, vale notar, com a publicação de Idéias para uma Fenomenologia Pura (1913). É sob a influência da fenomenologia de Husserl que Sartre vislumbra a relação de interdependência entre a consciência que apreende o mundo e o mundo que é apreendido pela consciência. A fenomenologia configurará, sob a perspectiva sartriana, a possibilidade de efetiva superação de uma série de dualismos característicos da epistemologia moderna. 17 No entanto, será justamente ao Husserl da Fenomenologia Transcendental, ou seja, a partir da publicação de A Idéia da Fenomenologia (1913), que Sartre elaborará suas críticas, particularmente porque com ela Husserl inicia seu distanciamento das teses fundamentais defendidas em Investigações Lógicas (1901), sustentando a necessidade de um Eu Puro que subsista à consciência.18 De acordo com Sartre, se a relação de imanência transcendental que se estabelece entre a consciência e o mundo pressupõe uma consciência transcendental enquanto correlato do mundo, ela finda por exigir também um Ego Transcendental como substrato último e como núcleo unificador da consciência e de constituição do significado do mundo. Movimento que contradita o propósito central de Sartre, o qual consiste em negar toda e qualquer substancialidade à consciência. Para fundamentar a crítica sartriana, uma pequena digressão se impõe. Cumpre retornar um pouco àquele que talvez seja o termo mais importante para a fenomenologia, o “fenômeno”. Segundo Ales Bello,19 “fenômeno” etimologicamente significa “aquilo que se mostra”, logo é tarefa da fenomenologia buscar o “sentido daquilo que se mostra” para além daquilo que “aparece”. Nesse sentido, a autora chega a comparar o fenômeno a uma epifania religiosa. O que fundamenta o “aparecer” referido, ou, como prefere Ales Bello, o mostrar, é a correlação 17 SARTRE, Jean-Paul, O Ser e o Nada, p. 17-18. Para Sartre, a fenomenologia de Husserl, ao afirmar que a aparência é a própria essência, substituiu uma série de dualismos típicos da epistemologia moderna por um único dualismo: o do finito e infinito. 18 Cabe ressaltar que, segundo Carlos Alberto Ribeiro de Moura, muitas das críticas da assim chamada “primeira escola fenomenológica”, ou, em outras palavras, de seus primeiros discípulos, se devem a uma apropriação equivocada que esses discípulos fazem de sua filosofia. Parece ser esse o caso de Sartre, segundo o professor. (Moura, Carlos A. Ribeiro de, Crítica da Razão na Fenomenologia, p. 19) No entanto, não é essa nossa leitura. Consideramos que aquilo que se mostra, a princípio, como um equívoco de Sartre, na realidade faz parte de sua apropriação crítica. O filósofo busca radicalizar o conceito de intencionalidade desenvolvido por Husserl, tal como pretendemos explicitar no decorrer deste estudo. 19 ALES BELLO, Angela, Introdução à fenomenologia, p. 17-18. 23 ou a interdependência entre o aparecer e aquilo que aparece. Daí decorre que o fenômeno designe tanto aquilo que aparece quanto o seu aparecer. Estabelece-se, desse modo, uma relação de interdependência entre o sujeito do conhecimento e o mundo conhecido, entre a consciência “conhecedora” e os objetos cognoscíveis. Se o fenômeno abarca simultaneamente o aparecer e o que aparece, torna-se incontestável o caráter indissociável da relação entre o sujeito e o mundo, entre a consciência e seus objetos. Um não pode ser pensado sem o outro. É sob esse registro que devemos entender a máxima de Husserl, segundo a qual “toda consciência é consciência de alguma coisa”, que é o mesmo que dizer que não existe uma consciência em si, e, por conseqüência, não existe também um ser em si. O que temos efetivamente é uma consciência que só é passível de apreensão em “relação”, de sorte que toda consciência é consciência no mundo e de um ser-no-mundo, o que ao mesmo tempo nega a materialidade do Ego e remete à existência concreta, categoria central dentro do pensamento existencialista de Sartre. Assim, voltemos à crítica ao ego transcendental. Sartre considera que pressupor um núcleo duro que, em última instância, definiria a consciência, tal como parece sugerir Husserl, seria o mesmo que negar o que a fenomenologia tem de mais original e radical, a saber, a intencionalidade. Para o filósofo, se a consciência aparece primeiramente em relação ao mundo, devemos ter como ponto de partida o existente, sem, entretanto, isolá-lo. Logo, não seria incorreto afirmar que se Sartre aceita a fenomenologia, o faz radicalizando-a, ao mesmo tempo em que procura evidenciar o que seria, segundo ele, uma incoerência interna dentro do projeto fenomenológico do filósofo alemão. É importante observar que Sartre, assim como Husserl, mais especificamente em As Investigações lógicas, afirma o caráter processual da consciência, ou seja, para ambos a consciência só existe em ato. Isso significa que o dualismo clássico da metafísica tradicional entre a substância que subjaz àquilo que aparece, ou melhor, o dualismo entre essência e aparência, não tem sentido. É o que se evidencia em afirmações como esta: “A aparência não esconde a essência, mas a revela: ela é essência”.20 Portanto, dentro desta concepção, não há nada para além do fenômeno. A essência é tudo aquilo que aparece. Mas há uma distinção importante entre a concepção de Husserl e a apropriação que Sartre faz de sua fenomenologia no que concerne ao “ser do fenômeno”. Para o primeiro, o fenômeno se reduz ao conhecimento que se tem dele; para o segundo, o ser do fenômeno existe mesmo quando não se tem conhecimento dele. Em outras palavras, o fenômeno que aparece revela todo o seu ser, sem, no entanto, se 20 SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 16. 24 suprimir quando ele não aparece a uma consciência. Esta distinção é importante, uma vez que permite ao filósofo francês ultrapassar o âmbito epistemológico da filosofia husserliana. Com base na relação que se estabelece entre o “fenômeno de ser” e o “ser do fenômeno”, ou seja, o ser da aparição, Sartre interroga se o fenômeno se limitaria ao seu próprio aparecer. Pergunta que se justifica, pois, como diz o filósofo: O fenômeno é o que se manifesta, e o ser manifesta-se a todos de algum modo, pois dele podemos falar e dele temos certa compreensão. Assim, deve haver um fenômeno de ser, uma aparição do ser, descritível como tal. O ser nos será revelado por algum meio de acesso imediato, o tédio, a náusea, etc. 21 E conclui que “o ser do fenômeno não pode reduzir-se ao fenômeno do ser”. Assim: [...] o ser do fenômeno, embora coextensivo ao fenômeno, deve escapar à condição fenomênica – na qual alguma coisa só existe enquanto se revela – e que, em conseqüência, ultrapassa e fundamenta o conhecimento que dele se tem. 22 Cabe ressaltar que esta relação entre o ser do fenômeno e o fenômeno do ser denota que, para além do âmbito epistemológico, subsiste um fundamento ontológico, o que desvela ainda mais a dissidência de Sartre em relação à filosofia de seu mestre. Desvio que se explicita, por exemplo, na seguinte passagem: “O objeto não remete ao ser como se fosse uma significação: seria impossível, por exemplo, definir o ser como presença – porque a ausência também revela o ser, já que não estar aí é ainda ser”.23 O ser não se limita ao fenômeno, mas é coextensivo ao fenômeno. Isso significa que, para Sartre, subsiste o ser do fenômeno, o que, como foi dito, caracteriza uma ontologia. Mas como Sartre aborda essa ontologia? Positivamente, por meio dos próprios fenômenos, o que significa que a ontologia deve ser buscada concretamente no mundo, na vivência. No entanto, paradoxalmente, buscar o fundamento da ontologia no mundo é o mesmo que perceber que o seu fundamento está no próprio fenômeno É exatamente aqui que reside o afastamento crucial de Sartre em relação ao pensamento de Husserl, pois, para o existencialismo sartriano, o ser está no próprio fenômeno, o que suprime a necessidade de se encontrar um núcleo de unidade qualquer e que reconduza, em última instância, ao idealismo, tal como faz seu mestre. Portanto, para Sartre, falar do fenômeno equivale a falar do próprio ser, o 21 Ibidem, p. 19. Ibidem, p. 20. 23 Ibidem, p. 19. 22 25 que vem caracterizar, em sua filosofia, uma ontologia do concreto: “[...] o fenômeno é enquanto aparência, quer dizer, indica a si mesmo sobre o fundamento do ser”.24 O substrato dessa concepção reside na prerrogativa de que “a consciência nasce tendo por objeto um ser que ela não é”,25 o que implica em caracterizá-la enquanto pura transcendência. Desse modo a consciência “exige apenas que o ser do que aparece não exista somente enquanto aparece. O ser transfenomenal do que existe para a consciência é, em si mesmo, em si”.26 Em outras palavras, a radicalidade da noção de consciência enquanto pura transcendência exige que ela seja fundamentalmente sempre em relação a um ser transcendente que não ela mesma. É sob esta perspectiva, portanto, que Sartre resgata o estatuto ontológico do fenômeno, seu ser. Para além desta distinção, a coisa aparece à consciência como algo radicalmente outro, e, portanto, de maneira alguma derivada da consciência. Vemos, pois, que Sartre distancia-se do registro cartesiano27 no qual, como bem define Franklin Leopoldo e Silva, “o Eu penso é estabelecido como núcleo essencial e substancial a partir da qual se compreendem todas as modalidades de pensamento como variações dessa unidade fundamental”,28 a saber, do cogito. Para Sartre, a consciência se define como intencionalidade. Daí a “necessidade da consciência de existir como consciência de outra coisa que não ela mesma”.29 É nesse sentido então que o filósofo busca radicalizar o projeto fenomenológico.30 O que se evidencia nesta passagem de Uma Idéia Fundamental da Fenomenologia de Husserl: a Intencionalidade: 24 Ibidem, p. 20. Ibidem, p. 34. 26 Ibidem, p. 35. 27 O tema será retomado no decorrer deste capítulo. 28 LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Ética e Literatura em Sartre: Ensaios introdutórios, p 34. 29 SARTRE, Jean-Paul, Uma Idéia Fundamental da Fenomenologia de Husserl: a Intencionalidade, p. 57. 30 Dizer que o projeto sartriano visa radicalizar a noção husserliana de intencionalidade significa afirmar que, se o existencialismo tem por objetivo a inserção do homem no mundo, isto é, afirmar que o homem está lançado no mundo e em situação, esse projeto tem por fundamento justamente a noção de intencionalidade. Assim, se Sartre nega a concepção de Ego Transcendental defendida por Husserl, isso se dá porque o filósofo francês acredita que seu mestre não teria sido fiel aos seus próprios fundamentos. Essa crítica aparece em diversos momentos da obra sartriana. Mencionemos aquele em que, no nosso entender, a crítica aparece com mais contundência: “Ao longo de toda a sua carreira filosófica, Husserl foi obcecado pela idéia de transcendência e ultrapassamento. Mas os instrumentos filosóficos de que dispunha, em particular sua concepção idealista da existência, privaram-no de meios para se dar conta dessa transcendência: sua intencionalidade é apenas uma caricatura. A consciência husserliana, na verdade, não pode se transcender nem para o mundo, nem para o futuro, nem para o passado.” (SARTRE, Jean-Paul, O Ser e o Nada, p. 161, Grifo nosso). É justamente nesse sentido que Sartre sustenta em A Transcendência do Ego: “Sejamos mais radicais [que Husserl] e afirmemos sem temor que toda transcendência deve ficar ao alcance da epoché” (da redução fenomenológica), inclusive o Ego, exatamente porque ele não é da mesma natureza da consciência transcendental. (Idem, A Transcendência do Ego, p. 53-4). É nesse sentido que devemos entender a máxima de Husserl. Diz Sartre: “Toda consciência, mostrou Husserl, é consciência de alguma coisa. Significa que não há consciência que não seja posicionamento de um objeto transcendente, ou, se 25 26 [...] A consciência e o mundo são dados de uma só vez: por essência exterior à consciência, o mundo é, por essência, relativo a ela. É que Husserl vê na consciência um fato irredutível, que nenhuma imagem pode exprimir. A não ser talvez, a imagem rápida e obscura da explosão.31 Parece claro que a crítica sartriana à noção de Ego Transcendental não pode ser compreendida independentemente da apropriação e radicalização da filosofia fenomenológica realizada pelo filósofo. Desse modo, a compreensão da intencionalidade como fundamento da consciência é chave para compreender sua crítica. É nesse sentido, portanto, que se entende a esclarecedora passagem: Imaginem agora uma seqüência encadeada de explosões que nos arrancam de nós mesmos, que não deixam a um “nós mesmos” sequer o ócio de se formar atrás delas, mas que nos jogam, ao contrário, além delas, na poeira seca do mundo, sobre a terra rude, entre as coisas; imaginem que somos assim repelidos, abandonados por nossa própria natureza em um mundo indiferente, hostil e recalcitrante. Vocês terão capturado o sentido profundo da descoberta que Husserl exprime nesta famosa frase: “Toda consciência é consciência de alguma coisa”.32 Para melhor fundamentar essa concepção da consciência como pura intencionalidade, num sentido mais radical do que o husserliano, cabe aqui um pequeno desvio para destacar a relação que se estabelece entre dois conceitos-chave na filosofia sartriana: o conceito de Ser-EmSi [être-en-soi] e o conceito de Ser-Para-Si [être-pour-soi]. Conceitos estes que só seriam desenvolvidos posteriormente dentro do projeto de constituição de uma ontologia fenomenológica, ou seja, em O Ser e o Nada, mas que, no entanto nos ajudam a compreender a concepção do filósofo acerca do conceito de intencionalidade.33 Partindo da fenomenologia de Husserl, a consciência, para Sartre, é entendida como um movimento em direção às coisas, ou – mencionemos ainda uma vez – como não se cansa de preferirmos, que a consciência não tem conteúdo” (Idem, O Ser e o Nada, p. 22). Ou seja, segundo o filósofo a consciência é pura transcendência; ela é no mundo, sempre em relação a um objeto transcendente. Portanto, é justamente a apropriação e a crítica sartriana à noção de intencionalidade, tal como entendia seu mestre, que possibilitam ultrapassar o idealismo de Husserl e promover a radicalização da fenomenologia e a crítica ao Ego Transcendental. Enfim, para o filósofo francês, o caráter fundamental de toda consciência é a intencionalidade. Bornheim vem em nossa direção: “Sartre pretende que a validez desse seu argumento repousa sobre uma interpretação conseqüente da intencionalidade da consciência, tal como o tema aparece em Husserl, todavia, [seu mestre] não teria sabido radicalizar suficientemente a questão”, assim, “se Sartre aceita a fenomenologia é com a intenção de radicalizá-la ontologicamente”. (Sartre: Metafísica e Existencialismo, p. 30) 31 SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 56. 32 Ibidem, p. 56. 33 É importante ressaltar que para Husserl a concepção de uma ontologia fenomenológica se configuraria como algo absurdo, pois, para o filósofo, a fenomenologia seria uma filosofia transcendental e, portanto, voltada para o âmbito teórico. 27 repetir Husserl: “toda consciência é consciência de alguma coisa”. Ou então, como afirma Sartre, a consciência “é aquilo que não é, e não é aquilo que é” 34 destacando, assim, o seu caráter de “inacabamento” e fluidez, ou seja, revelando que a consciência é algo que se lança em direção a alguma coisa, mas que nunca se realiza. O Ser-Para-Si é aquele ser cujo seu próprio ser está em jogo35, ou, em outras palavras, o Para-Si é aquele ser que é puro projeto de si mesmo, é movimento incessante em direção a realizar-se. Assim, o Para-Si é dinâmico. Ou, como diz Sartre, referindo-se ao conceito de intencionalidade de Husserl, conhecer é “explodir em direção a”,36 ressaltando, dessa maneira, o caráter processual da consciência. Como conseqüência, esse movimento para fora contradita a possibilidade de substancialidade da consciência. Desse modo, é preciso ressaltar o caráter de interdependência entre consciência e Ser, e assim, de inacabamento do Para-Si. Talvez essa relação se explicite melhor com a distinção entre consciência [Para-Si] e coisa [Em-Si]. Nesse sentido as palavras de Paulo Perdigão, quando aludem ao inacabamento do Para-Si, são esclarecedoras: Essa separação interna do Para-Si faz dele uma espécie de Ser inacabado, ao qual está sempre faltando alguma coisa para se completar e preencher o seu miolo. Se fosse algo dado e acabado, a consciência seria idêntica a uma coisa. Mas há no Para-Si uma separação interna que não pode ser suprimida, a menos que o Para-Si se perca como tal e se converta em Em-Si.37 A separação interna a que se refere Perdigão diz respeito ao vazio constitutivo do ParaSi, ou seja, a intencionalidade requerida por Sartre denota a consciência enquanto instauradora do Nada no Ser. Por conseqüência, isso implica uma relação de interdependência entre a consciência e as coisas, assim: “Sartre desenvolveu o conceito de intencionalidade de Husserl para mostrar que o Para-Si precisa do Em-Si para existir”.38 Portanto, é justamente esse caráter de inacabamento do Para-Si que instaura a relação de interdependência com o Ser, impossibilitando qualquer interpretação substancialista da consciência. O Ser-Em-Si, em contrapartida, se constitui como um ser estático, completo e realizado. Deste modo, se o Para-Si se define como projeto de si mesmo, como liberdade, o Em-Si se caracteriza como “coisa opaca”, como ser acabado, como positividade pura. Mas no que 34 SARTRE, Jean-Paul, O Ser e o Nada, p. 38. Como também afirma Heidegger em Ser e Tempo, e que constitui um dos fundamentos da filosofia da existência. “A pre-sença [Dasein] é um ente que, sendo, está em jogo seu próprio ser.” Heidegger, Ser e tempo, p. 256. 36 SARTRE, Jean Paul. Uma Idéia Fundamental da Fenomenologia de Husserl: a Intencionalidade, p. 56. 37 PERDIGÃO, Paulo, Existência e Liberdade: Uma Introdução à Filosofia de Sartre, p.44. 38 Ibidem, p. 46. 35 28 concerne ao Em-Si, G. Bornheim é categórico ao assinalar que as análises de Sartre, não obstante a relevância do tema, são decepcionantemente sucintas.39 A esse respeito, é imprescindível ressaltar que, se, por um lado, tal como afirma o comentador, as análises de Sartre são bastante restritas, por outro, elas se constituem enquanto conseqüência natural de um movimento análogo ao de Heidegger em Ser e Tempo. Mais claramente, ao se perguntar sobre o Ser (Em-Si), Sartre chega à mesma conclusão do filósofo alemão, sustentando que quem faz a pergunta sobre o Ser é o Para-Si. Assim, o projeto sartriano ganha outra conotação, o que legitima o fato de que filósofo dedique a maior parte de O Ser e o Nada às análises do Para-Si em detrimento do Em-Si. Portanto, na contramão do que sugere Bornheim, consideramos que não se trata aqui de negligenciar o Em-Si, mas antes de reconhecer o papel central que o homem (Para-Si) exerce dentro da filosofia existencialista. Destarte, como define o próprio Sartre ao final da introdução de O Ser e o Nada, a fórmula que define o Ser-Em-Si é: “O ser é. O ser é em si. O ser é o que é”.40 Trata-se, pois, de uma positividade radical, de uma tangibilidade que o Para-Si jamais conhecerá. O texto de Perdigão é esclarecedor: “O Em-Si não possui consciência, e seu existir não depende de qualquer consciência que se tenha dele, em nada é afetado pelo Para-Si. [...] o Em-Si é pura facticidade, algo que está dentro do mundo”.41 Daí o sentido da conclusão de Sartre: “O Em-Si é pleno de si mesmo e não se poderia imaginar plenitude mais perfeita do conteúdo ao continente: não existe o menor vazio no ser, a menor fissura por onde pudesse introduzir o nada”.42 Podemos dizer, enfim, que o Para-Si é o ser para o qual está em questão o seu ser, e dessa maneira, se caracteriza como negatividade pura, ou seja, é através da nadificação que o Para-Si se constitui. Grosso modo, podemos identificar o Para-Si ao homem e o Em-Si às coisas, ao mundo, pois o único ente que tem seu próprio ser como “totalização em curso”, ou seja, inacabado, é o homem. Sob essa perspectiva, a relação que se estabelece entre o Para-Si e o Em-Si nos oferece uma melhor compreensão daquilo que Sartre pretende ao radicalizar o conceito de intencionalidade. De fato, o que o filósofo busca mostrar quando diz que o “Para-Si é aquilo que ele não é, e não é aquilo que ele é”, é que o Para-Si relaciona-se com o Em-Si, na medida em que o Para-Si só é algo em relação ao Em-Si, visto que o Para-Si não é, e o Em-Si, por sua vez, é. Sendo assim, o Para-Si depende do Em-Si enquanto objeto da consciência, pois, a consciência 39 BORNHEIM, Gerd, Sartre: Metafísica e Existencialismo, p. 33. SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 40. 41 PERDIGÃO, Paulo, Existência e Liberdade: Uma Introdução à Filosofia de Sartre, p. 50. 42 SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., apud Bornheim, Gerd, Sartre: Metafísica e Existencialismo, p. 35. 40 29 é sempre um movimento em direção a algo. Ela se traduz em ato. No entanto, pode-se afirmar que o Em-Si é, independentemente da consciência que o intenciona, mas é somente através do Para-Si que o Em-Si ganha sentido. È é o Para-Si que generosamente atribui significado às coisas [Em-Si], ao mundo. Talvez, neste ponto de nosso trabalho, caiba ressaltar que, para Sartre, é através da realidade humana que o Ser se manifesta, ou, nas palavras do autor, “o homem é o meio pelo qual as coisas se manifestam”.43 Neste sentido o famoso “exemplo da árvore” presente em Que é a Literatura? é esclarecedor. É a inserção do homem no mundo que multiplica a teia de relações que permeia o Ser. Assim: [...] somos nós que colocamos essa árvore em relação com aquele pedaço de céu; graças a nós essa estrela morta há milênios, essa lua nova e esse rio se desvendam na unidade de uma paisagem; é a velocidade do nosso automóvel, do nosso avião que organiza as grandes massas terrestres; a cada um dos nossos atos, o mundo nos revela uma face nova.44 Desvela-se então o caráter paradoxal da existência humana, pois da “nossa certeza interior de sermos “desvendantes”, se junta aquela de sermos inessenciais em relação à coisa desvendada”.45 Deriva daí um dos principais motivos da criação artística se apresentar como a necessidade intrínseca à condição humana, uma vez que por meio dela busca ser essenciais ao mundo. Ou seja, a arte, e mais especificamente a literatura – como veremos –, oferece ao homem a ilusão de que ele é essencial em relação ao mundo. Eis um indício de que a concepção sartriana de literatura alicerça-se em sua ontologia. Portanto, o Para-Si talvez fosse melhor expresso como “para-fora-de-si”, o que ressalta, ao mesmo tempo, o caráter processual da consciência, sua relação com o mundo e a superação da dimensão cognitiva da fenomenologia, pois, se a consciência depende do mundo [Em-Si], o mundo é, mesmo quando não se tem conhecimento dele. A consciência se define, por meio dessa relação que se estabelece entre o Ser-Para-Si e o Ser-Em-Si, ou seja, por aquilo que Sartre entende por intencionalidade. Voltamos, assim, ao tema central de A Transcendência do Ego, isto é, se a consciência é uma “seqüência encadeada de explosões” “para fora de si”, no mundo, haveria espaço para a constituição de um Ego Transcendental enquanto um habitante da consciência? O que Sartre 43 Idem, Que é a Literatura?, p. 33. Ibidem, p. 34. 45 Ibidem, p. 34. 44 30 defende é que a consciência lança aquilo que chamamos de Ego no mundo, “na poeira seca do mundo, sobre a terra rude, entre as coisas”. É patente que o distanciamento de Sartre em relação à necessidade de um Eu Transcendental habitante da consciência, como aparece na concepção de Husserl, e que, em última instância unificaria a própria consciência, fomenta um arranque mais autônomo em sua filosofia no que tange à sua filiação à fenomenologia do mestre alemão. 3. A incompatibilidade entre a presença do Eu na consciência e a intencionalidade Sob a perspectiva sartriana, a intencionalidade aparece como algo incompatível com a presença do Ego Transcendental na consciência. Se, como afirma Sartre, a consciência pode ser definida como intencionalidade, então, como foi dito acima, há a “necessidade da consciência de existir como consciência de outra coisa que não ela mesma”. 46 Entende-se, assim, a radicalidade com que o filósofo francês se apropria da fenomenologia. Sob esse registro outro, a fenomenologia assevera que é no mundo que devemos buscar um “nós mesmos”, “é na estrada, na cidade, no meio da multidão, coisa entre coisas, homem entre homens”47 que devemos buscar um “Eu”. Será justamente esta crítica à presença do Ego na consciência que Sartre tomará como ponto de partida em A Transcendência do Ego. A crítica sartriana remete-nos à tese segundo a qual haveria uma presença formal do Eu [Je]48 na consciência, tal como aparece em Kant na famosa passagem de A Crítica da Razão Pura acerca do Eu Penso cartesiano: “[...] o Eu Penso deve poder acompanhar todas as minhas representações”.49 O que Sartre questiona aqui é se de fato podemos concluir que existe um Eu que habite todos os nossos estados de consciência, tal como um núcleo unificador e de constituição de significado do mundo. Assim, o filósofo destaca que, na frase de Kant, o “Eu penso” aparece como algo que “deve poder acompanhar”, e não como algo que “acompanha”. Daí, que Kant, sob o viés da leitura sartriana, teria visto que existem momentos de consciência marcados pela ausência do Eu. Nas palavras do filósofo: 46 Idem, Uma Idéia Fundamental da Fenomenologia de Husserl: a Intencionalidade, p. 57. Ibidem, p. 57. 48 Sartre estabelece uma distinção entre Eu [Je] e eu [Moi], sendo que o primeiro representa a unidade das ações, e o segundo concerne à unidade dos estados e das qualidades, em outras palavras, o Je representa a parte ativa da consciência refletinte e Moi a parte passiva da consciência refletida. 49 SARTRE, Jean Paul, A Transcendência do Ego, p. 43. 47 31 [...] o Eu Penso deve poder acompanhar todas as nossas representações, mas acompanha-as de fato? [e, portanto,] [...] o Eu que nós encontramos na nossa consciência é tornado possível pela unidade sintética das nossas representações ou é antes ele que unifica de fato as representações entre si? 50 Com efeito, o problema sartriano assim se configura: existe de fato um Eu formal na consciência? Ora, toda a argumentação subseqüente, desenvolvida pelo autor neste texto, se empenhará em negar a existência tanto formal quanto material de um Eu na consciência. Se Sartre recorre à fenomenologia como contraposição à necessidade de um Eu Penso que acompanhe todas as nossas representações, tal sustenta a referida tese kantiana, é para, em seguida, negar que a filosofia de Husserl necessite de um Eu transcendental enquanto um pressuposto formal que garanta a unidade da experiência.51 No entanto, afirmar que o Eu transcendental não é necessário à consciência implica conseqüências que não podem ser negligenciadas: 1ª se o campo transcendental não tem um Eu [Je], ele se torna, portanto, impessoal ou “pré-pessoal”, isto é, o Eu que fundamenta o campo transcendental deixa de existir; 2ª o Eu [Je] só aparece no nível da humanidade, ou seja, como a face ativa do eu, e que, portanto, representa apenas uma das faces do Eu [Moi]; 3ª o Eu Penso pode acompanhar nossas representações, pois surge sobre um fundo de unidade prévia, o qual não é criado por ele; 4ª Impõe-se a questão acerca da possibilidade de se conceber consciências absolutamente impessoais, o que nos conduz a interrogar: a personalidade é mesmo necessária?52 O objetivo de Sartre é claro: ao contestar a existência de fato do Ego na consciência, o que o filósofo busca é apresentá-la como algo impessoal. Esse caráter impessoal é correlato de sua imaterialidade; só faria sentido postular uma consciência pessoal se ela fosse entendida como algo material e substancial, isto é, como um objeto, e é justamente a isso que o filósofo quer se contrapor. Para Sartre é o “Eu” que aparecerá como um objeto psíquico transcendente, como se esclarecerá no decorrer deste estudo. 50 Ibidem, p. 45. Segundo Sartre, Husserl afirma a necessidade de uma Eu [Je] por detrás da consciência: “Depois de ter considerado que o EU [Moi] era uma produção sintética e transcendente da consciência (nas Logische Untersuchungen) retornou, nas Ideen, à tese clássica de um Eu [Je] transcendental que estaria como que por detrás de cada consciência, que seria estrutura necessária dessas consciências cujos raios (Ichstrahl) cairiam sobre cada fenômeno que se apresentasse no campo de atenção.” Ibidem, p. 47. 52 Ibidem, p. 46. 51 32 Sob essa perspectiva, Damon Moutinho afirma que “nem do lado transcendente, que é unidade real, não representação, nem do lado imanente, que é fluxo auto-unificante, não fluxo unificado, o Eu transcendental parece necessário”.53 Consequentemente, para Sartre, não só a existência de um Eu unificante e individualizante é inútil, como representaria a própria “morte da consciência”. Mais claramente, se a consciência se define pela intencionalidade, e se, portanto, “ela transcende-se a si mesma” unificando-se ao “se escapar”, então é coerente entendermos que a unidade das consciências encontra-se no objeto, o que significa, nas palavras do próprio autor, que “o objeto é transcendente às consciências que o apreendem e é nele que se encontra sua unidade”.54 Assim, torna-se desnecessária a existência de um centro de unidade no fluxo contínuo que caracteriza o Eu, pois ele se unifica a si mesma sempre que se lança como consciência dos objetos transcendentes. E, como dissemos, é justamente como “fluxo contínuo em direção às coisas” que a consciência se define, ou seja, ela é pura translucidez. Portanto, se é “a consciência que torna possível a unidade e a personalidade do meu Eu [Je]”, conseqüentemente, “o eu transcendental não tem razão de ser”.55 Daí a conclusão sartriana: “todos os resultados da fenomenologia ameaçam entrar em ruína se o Eu não é, do mesmo modo que o mundo, um existente relativo, quer dizer, um objeto para a consciência”.56 Dessa asserção decorrerá que a consciência se configurará em dois graus. Enquanto consciência irrefletida ou de primeiro grau, quando a consciência não é objeto para si, ou seja, quando o “objeto está face a ela com a sua opacidade característica, mas ela, ela é pura e simplesmente consciência de ser consciência desse objeto”57. Nesse caso, o objeto está fora da consciência. Mas é relevante ressaltar que, para Sartre, mesmo no âmbito desta consciência de primeiro grau, duas formas de consciência coexistem. Trata-se, por um lado, da consciência tética do objeto; por outro, da consciência não tética de si mesma. Logo, “toda consciência posicional do objeto é ao mesmo tempo consciência não-posicional de si”.58 É exatamente nesse sentido que se deve entender o clássico exemplo “da contagem de cigarros” presente em O Ser e o Nada. Conquanto um pouco longo é pertinente citá-lo, visto que vem caracterizar exatamente a concepção do filósofo que buscamos aqui explicitar: 53 MOUTINHO, Luiz Danton, Sartre: Psicologia e Fenomenologia, p. 29. SARTRE, Jean Paul, Op. Cit., p. 47. 55 Ibidem, p. 48. 56 Ibidem, p. 49. 57 Ibidem, p. 48. 58 Idem, O Ser e o Nada, p. 24. 54 33 Se conto os cigarros desta cigarreira, sinto a revelação de uma propriedade objetiva do grupo de cigarros: são doze. Esta propriedade aparece à minha consciência como propriedade existente no mundo. Posso perfeitamente não ter qualquer consciência posicional de contar os cigarros. Não me “conheço enquanto contador”. Prova é que crianças capazes de fazer espontaneamente uma soma não podem explicar em seguida como o conseguiram: os testes de Piaget que mostraram isso constituem excelente refutação da fórmula de Alain: “Saber é saber que se sabe”. E, todavia, no momento em que estes cigarros revelam-se a mim como sendo doze, tenho consciência não tética de minha atividade aditiva. Com efeito, se me perguntam “o que você está fazendo?”, responderei logo: “contando”; e esta resposta não remete somente a consciência instantânea que posso alcançar pela reflexão, mas àquelas que passaram sem ter sido objeto de reflexão, àquelas que são para sempre irrefletidas (irréfléchies) no meu passado imediato.59 É por isso que, como veremos, Sartre chega à conclusão de que não há primazia da reflexão sobre a consciência refletida, mas antes que a consciência irrefletida é condição de possibilidade para a consciência reflexiva. Assim, para Sartre, se no âmbito da consciência de primeiro grau ou irrefletida a consciência não é objeto de reflexão para si, ou seja, ela não visa a si mesma reflexivamente, ainda assim ela continua sendo consciência não tética de si, pois “toda existência consciente existe [sempre] como consciência de existir”,60 ainda que seja enquanto consciência não-posicional de si. Por isso o filósofo passa a empregar o “de” entre parênteses para indicar que não se trata de uma idéia de conhecimento. Conclui então: “Esta consciência (de) si não deve ser considerada uma nova consciência, mas o único modo de existência possível para uma consciência de alguma coisa”.61 A consciência aparece ainda enquanto consciência de segundo grau ou reflexiva. Este seria o âmbito no qual apareceria o Ego e que analisaremos mais atentamente na discussão subsequente. A consciência reflexiva configura o lugar onde a própria consciência aparece enquanto um objeto para a consciência; ela é a consciência que se volta reflexivamente para a própria consciência. Cumpre notar, no entanto: mesmo aqui a consciência (de) si ou irrefletida é um pressuposto, ou seja, mesmo quando a consciência é objeto para a própria consciência o âmbito pré-reflexivo persevera como sua condição prévia e necessária. Uma interrogação irrompe: como se efetiva, enfim, nessa processualidade que caracteriza a consciência, o delineamento desse Ego que se faz objeto? Essa problemática nos conduz, de pronto, à segunda parte do texto de Sartre, a qual poderíamos denominar “positiva”, porquanto é nela que o filósofo reflete sob o processo efetivo de constituição do ego. 59 Ibidem, p. 24. Ibidem, p. 25. 61 Ibidem, p. 25. 60 34 4. A constituição do Ego a) O ato reflexivo e a origem do Eu A chave para se compreender a constituição do Ego se encontra na distinção realizada por Sartre entre a consciência “pré-reflexiva” ou irrefletida, e a consciência reflexiva. Assim, é o ato reflexivo [conscience réfléchissante] que dá origem ao Eu [Moi] a partir da consciência refletida [réfléchie]62. Desse modo, é no âmbito da consciência que reflete sobre a consciência refletida que se dá o surgimento do Ego. Nas palavras de Sartre: Assim, [...] o eu não deve ser procurado nem nos estados irrefletidos de consciência nem por detrás deles. O Eu [moi] aparece apenas com o acto reflexivo e como correlato noemático de uma intenção reflexiva. 63 No exato momento em que escrevo este texto, por exemplo, tenho consciência de que escrevo; entretanto, nesse momento, não há um Eu habitando minha consciência, a consciência aparece enquanto consciência não posicional [não-tética]64 de si e consciência posicional [tética] do objeto transcendente. O objeto transcendente está fora da consciência, e é no mesmo “ato que ela o põe e o apreende”. Quando a consciência se encontra no “mundo dos objetos”, consciência pré-reflexiva, são os objetos que garantem sua unidade, não existe um Eu. Não há, pois, sentido em falarmos de um Eu no âmbito da consciência irrefletida ou pré-reflexiva. Nessa esfera, a consciência é pura relação com o mundo. Por fim, essa concepção aparece sintetizada no texto do filósofo: Ele [o Eu] não aparece nunca senão por ocasião de um ato reflexivo. Nesse caso, a estrutura complexa da consciência é a seguinte: há um ato irrefletido de reflexão sem Eu [Je] que se dirige para uma consciência refletida [réfléchie]. Esta torna-se o objeto da consciência refletinte [réfléchissante], sem deixar, todavia, de afirmar o seu objeto próprio (uma cadeira, uma verdade matemática, etc.). Ao mesmo tempo, um objeto novo aparece, o qual é ocasião de uma afirmação da consciência reflexiva e não está, por conseguinte, nem no mesmo plano da consciência irrefletida (porque este é um absoluto que não precisa da consciência reflexiva para existir) nem no mesmo plano do 62 Sartre apresenta uma distinção bastante sutil entre o ato reflexivo [conscience réfléchissante] ou consciência refletinte e a consciência refletida [réfléchie]. O ato reflexivo é, portanto, o momento em que a consciência refletida surge como objeto da consciência refletinte, ou seja, é o momento em que a consciência aparece como consciência de consciência. 63 SARTRE, Jean Paul, A Transcendência do Ego, p. 58. 64 Sartre mantém a terminologia adotada por Husserl, no qual “posicional” aparece como sinônimo de “tético”, do grego thetikós, que significa “próprio para colocar ou estabelecer”. PERDIGÃO, Paulo. Existência e Liberdade: Uma Introdução à Filosofia de Sartre, p. 56. 35 objeto da consciência irrefletida (cadeira, etc.). Este objeto transcendente do ato reflexivo é o Eu [Je].65 Assim, não resta dúvida de que, para Sartre, é no âmbito da consciência reflexiva ou de segundo grau que o objeto transcendente que é o Eu se constitui. b) Um parêntese acerca de O Ser e o Nada66 Como anteriormente mencionado, as teses fundamentais defendidas por Sartre em A Transcendência do Ego jamais seriam abandonadas pelo filósofo. Sendo assim, cabe retomar algo do que foi apresentado acerca desta compreensão dentro da terminologia presente em O Ser e o Nada. Podemos dizer que o Ego não pertence ao domínio do Para-Si, e, visto que o Ego se configura como um “objeto psíquico transcendente”, devemos entendê-lo como um Em-Si. Ora, se o Ego estivesse na consciência – o que o definiria como um fundamento à translucidez que caracteriza o Para-Si –, isso seria o mesmo que introduzir nela um núcleo de opacidade e, portanto, negar aquilo que a consciência tem de mais fundamental que é a intencionalidade. Assim, o que Sartre quer dizer quando se refere à máxima de Husserl segundo a qual toda consciência é consciência de algo, é que não há consciência que não seja posicionamento de um objeto transcendente, o que equivale a dizer que a consciência não tem conteúdo. Nesse sentido, os objetos não estão na consciência, nem mesmo a título de representação, “uma mesa está”, por exemplo, “no espaço, junto à janela, etc”67 e não na consciência. Daí decorre que o Ego apareça à consciência “como Em-Si transcendente, um existente do mundo humano, e não como [algo] da consciência”.68 Devemos ressaltar que o Eu se dá como tendo sido antes da consciência, asserção que, na terminologia de A Transcendência do Ego, significa dizer que “há um ato irrefletido de reflexão sem Eu [Je] que se dirige para uma consciência refletida [réfléchie]”.69 Ou seja, é no âmbito da consciência de segundo grau ou reflexiva que o Ego se constitui. 65 SARTRE, Jean Paul, Op. Cit., p. 55. Grifo nosso. Nosso objetivo ao apresentar alguns dos conceitos abordados em O Ser e o Nada é unicamente explicitar a compreensão que o filósofo tem do processo de constituição do Ego em A Transcendência do Ego. Por isso, não nos aprofundaremos em suas análises, como no caso do circuito de ipseidade, ou então, da relação com o outro, por exemplo. 67 SARTRE, Jean Paul, Op. Cit., p. 22. 68 Idem, O Ser e o Nada, p. 155. 69 Idem, A Transcendência do Ego, p 55. 66 36 Entretanto, o que Sartre destaca é que toda consciência é consciência posicional de algo e, simultaneamente, consciência não posicional (de) si.70 O momento da reflexão consiste no ato em que o Para-Si torna-se consciente de si mesmo. Deste modo, mesmo quando a consciência se põe a si mesma como objeto psíquico transcendente, ela é consciência posicional [tética] da consciência refletida e consciência não posicional de si mesma. A consciência reflexiva, no entanto, aparece como uma nova consciência, pois, se é a consciência pré-reflexiva (ou seja, consciência sem Eu) que põe a consciência refletida, isso significa que a consciência está em contínuo processo de autoconstituição e que o cogito pré-reflexivo é um pressuposto necessário à reflexão. Assim, não há primazia da reflexão sobre a consciência refletida: esta não é revelada a si por aquela. Ao contrário, a consciência não-reflexiva torna possível a reflexão: existe um cogito pré-reflexivo que é condição [de possibilidade] do cogito cartesiano.71 Desvela-se, assim, a impossibilidade de que o Para-Si seja dotado de uma dimensão objetiva. Postular que a consciência pré-reflexiva consiste num pressuposto à consciência reflexiva equivale a afirmar que é só através da consciência refletida que a consciência reflexiva constitui o Ego. Em outras palavras, trata-se de uma espécie de artifício, segundo o qual a consciência volta-se para o passado e institui um Eu como autor das ações do Para-Si, que, por sua vez, se caracteriza como pura relação com o mundo. Em suma, o Para-Si nunca é, pois configura-se como pura relação espontânea com o Em-Si, ou seja, está sempre em processo, em relação com o mundo. Sob esse prisma, é apenas enquanto algo que já se realizou que posso colocar um Eu, ou seja, a partir da consciência refletida. É nesse sentido que se entende que o Eu é dado antes da consciência reflexiva. Ora, se é só no passado que o Eu se constitui, e se esse Eu se constitui com algo forjado pela consciência reflexiva, então talvez seja pertinente relacionar esse processo àquilo que ficou caracterizado dentro da filosofia sartriana como a má-fé. Pois, afirmar o caráter processual da consciência, seu constante estado de transcendência, não implica necessariamente negar sua imanência. Dito de o outro modo, é preciso assumir os atos da consciência intencional, mas sem com isso negar sua transcendência, sem recair na má-fé. Analisemos brevemente esse ponto, o qual não tem nesse momento um papel privilegiado, mas que reaparecerá em nosso percurso. 70 O uso do “de” entre parênteses busca indicar que no âmbito da consciência de primeiro grau ou pré-reflexiva não há relação de conhecimento entre o “Eu penso” e a consciência, ou seja, o que há é uma relação imediata de si a si. 71 SARTRE, Jean-Paul, O Ser e o Nada, p. 24. 37 O que melhor caracteriza o modo de ser da consciência é ser consciência do nada de ser que a define, o que equivale a dizer que o homem nunca poderá ser plenamente. O homem, de fato, só é capaz de realizar-se negativamente. Comenta Bornheim “há um duplo fato a ser reconhecido: de um lado, o homem não coincide plenamente com o ser; mas de outro, tende necessariamente ao ser”.72 Por um lado, o homem é puro processo, pois o Para-Si é pura relação com o mundo; por outro, ele tende ao ser, ele quer realizar-se enquanto ser. Desse modo, o que caracteriza a má-fé é o processo pelo qual a consciência nega seu caráter mais fundamental que é a própria negação. Destarte, quando o homem nega sua negatividade e busca fundamentar sua natureza em algo fixo, ele foge de sua condição fundamental e atribui a sua condição a natureza das coisas, assumindo-se como um Em-Si, pleno de ser e acabado. É nesse sentido que o filósofo afirma que “a má-fé [...] tem por objetivo colocar-se fora do alcance; é fuga”.73 Um exemplo bastante elucidativo abordado por Sartre é o do garçom que representa para si mesmo o papel de garçom, isto é, que se configura para si enquanto um ser acabado e com isso nega o estatuto processual da consciência. Quando esse indivíduo pensa-se a si mesmo como algo plenamente constituído, análogo a um objeto, ele nega seu caráter negativo, fugindo da transcendência e reduzindo sua condição humana ao plano da pura imanência. É justamente nesse sentido que Sartre analisa o fenômeno da sinceridade, diz ele: “o homem sincero se faz o que é para não sê-lo”, ou seja, ele se constitui como coisa. Assim, aquele que “se confessa malvado trocou sua inquietante „liberdade-para-o-mal‟ por um caráter inanimado de malvado: ele é mau, adere a si, é o que é”. 74 Consideramos que esta breve alusão ao problema da má-fé permite evidenciar o modo pelo qual essa temática perpassa, ainda que implicitamente, o problema da constituição do Ego. Em face do acima exposto, a presença do outro se configura como fonte reveladora. O outro aparece como aquele que desvela a “impossibilidade que sou de ser objeto, salvo para outra liberdade”. É nesse sentido que o filósofo afirma: Não posso ser objeto para mim mesmo porque sou o que sou; abandonado aos próprios recursos, o esforço reflexivo rumo à dissociação resulta em fracasso, sempre sou recuperado por mim. E quando afirmo ingenuamente que é possível que eu seja um ser objetivo sem me dar conta disso, pressuponho implicitamente, por isso mesmo, a existência do outro; porque, como eu poderia ser objeto se não fosse para um sujeito? 75 72 BORNHEIM, Gerd, Sartre: Metafísica e Existencialismo, p. 50. SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 113. 74 Ibidem, p. 112. 75 Ibidem, p. 347. 73 38 Na esteira de Husserl, que pensa a relação com a alteridade como uma relação de intersubjetividade, ou seja, que entende que a totalidade do “mundo” [Lebenswelt] é constituída pela subjetividade de todos os homens, Sartre vê no outro, mais especificamente no olhar do outro, a figura central da constituição do Ego. Observa Paulo Perdigão, “Sartre inverteu a perspectiva da experiência do „encontro com o Outro‟: não basta pensar o Outro como „aquele que é visto por mim‟, mas devemos pensá-lo também ou sobretudo como „aquele que me vê‟, aquele que invade minha subjetividade”.76 Ou ainda: [...] o Outro é um ser que me vê, assim como eu o vejo. Essa dimensão de “ser visto” condiciona mesmo a existência do Outro em mim: só posso negar ser o Outro porque me sei visto por ele. Esse saber acha-se na origem da minha consciência e antecede a aparição do Outro. Sofremos a experiência perpétua de “ser objeto de olhar” porque faz parte do nosso modo de ser original a dimensão de “existir sob o olhar”. É por saber-me, a priori, “visto pelo Outro” que posso, ao encontrá-lo pela primeira vez, reconhecê-lo como consciência alheia, cuja existência real não ponho em dúvida. 77 Sob essa perspectiva, talvez não haja formulação mais precisa do que aquela descrita pelo próprio Sartre em Entre Quatro Paredes [Huis Clous], quando o personagem Garcin profere a emblemática frase: “O inferno são os outros”.78 No contexto da peça, essa máxima explicita exatamente o sentido que o olhar do outro carrega enquanto fonte reveladora da “impossibilidade que sou de ser objeto [para mim], salvo para outra liberdade”. Ao mesmo tempo em que o olhar do outro me constitui enquanto objeto transcendente, ele me revela a impossibilidade do Ego de se constituir para mim mesmo. É nesse sentido ainda que se entende a esclarecedora afirmação de Perdigão: “[...] a aparição do Outro e a consciência de “ser visto” provocam uma brusca modificação no Para-Si. Como que “arrancado” para fora, o Para-Si adquire uma dimensão de exterioridade e passa a situar-se no mundo”79. Ou seja, é só diante do olhar de outrem que eu posso aparecer enquanto um ser acabado, pois o Para-Si é, de si para si, sempre puro projeto de si mesmo, inacabado. É justamente enquanto negação da minha consciência enquanto fluxo contínuo que os outros se mostram “infernais” para mim. A leitura de Perdigão coaduna-se com a de Bornheim, quando este afirma que, para Sartre, “a realidade humana é para-si-para-outro”. A intersubjetividade é descrita pelo autor da seguinte forma: “[...] entre eu e o outro há uma „ligação fundamental‟, e que nela se manifesta a modalidade de presença do outro irredutível ao conhecimento que tenho de um objeto. A 76 PERDIGÃO, Paulo, Existência e Liberdade: Uma Introdução à Filosofia de Sartre, p. 136. Ibidem, p. 139. 78 SARTRE, Jean-Paul, Entre Quatro Paredes, p. 125. 79 PERDIGÃO, Paulo, Existência e Liberdade: Uma Introdução à Filosofia de Sartre, p. 142. 77 39 experiência decisiva aqui reside no fato de que o outro me vê”.80 É justamente nesse sentido que se entende as palavras de Sartre citadas por Bornheim: [...] tenho de repente, consciência de mim enquanto escapo a mim mesmo, não enquanto sou fundamento de meu próprio nada, mas enquanto tenho meu fundamento fora de mim. Só sou para mim como pura devolução ao outro. [Assim:] O olhar é, antes de mais nada, um intermediário que remete de mim a mim mesmo. 81 A condição humana, entendida como “para-si-para-outro”, traz como pressuposto fundamental a relação com o outro; o olhar do outro, desse modo, ele realiza a mediação necessária entre a minha consciência e a constituição daquilo que o filósofo entende por Ego. Para Sartre, a consciência nunca é em sentido forte, ela está sempre em um fluxo temporal contínuo em relação ao mundo. Destarte, ela talvez fosse mais bem definida com a expressão “estar-sendo-ter-sido”,82 o que acaba por ressaltar a noção de temporalidade tão cara à filosofia existencialista do autor. Para esta filosofia, a temporalidade não deve ser entendida como um conjunto de instantes, pois o que a caracteriza é a duração. Afirmar a espontaneidade ou a intencionalidade da consciência é o mesmo que dizer que aquilo que chamamos de instantes se encontram em processo no fluxo contínuo que é o que caracteriza a consciência. Dizer que a consciência se constitui enquanto fluxo temporal implica considerar que a relação que se estabelece entre o passado, o presente e o futuro é dada simultaneamente, ou seja, “o passado é ligado ao presente e a um certo futuro, ele não está isolado, encerrado, sem relação, pois ele é passado deste presente”.83 Decorre disto que a temporalidade se estabeleça como a estrutura interna da consciência, ou seja, para a consciência, ser é o mesmo que passar – como quando digo: eu sou egoísta, rancoroso, etc. Daí o fato de que é sempre na consciência refletida (passado) que a consciência reflexiva pode buscar constituir o Ego. É justamente a estrutura temporal da consciência que possibilita a constituição do Ego. Compreendemos, enfim, que é sempre no passado que encontro um Eu. Cabe agora acompanhar de modo mais estrito o movimento do raciocínio do filósofo no que concerne à constituição do Ego, tal como delineado em A Transcendência do Ego. c) Estrutura dual da consciência e os estados como unidade de consciências 80 BORNHEIM, Gerd, Sartre: Metafísica e Existencialismo, p. 86. SARTRE, Jean-Paul, O Ser e o Nada, apud Bornheim, Gerd, Sartre: Metafísica e Existencialismo, p. 86. 82 Tomamos por empréstimo aqui a expressão que dá título a um livro de Hilda Hilst. 83 MOUTINHO, Luiz Damon S. Sartre: Existencialismo e Liberdade, p. 69. 81 40 Neste ponto, tal como foi dito acima, faz-se necessário ratificar que a consciência se apresenta de duas formas possíveis, a saber, a consciência de primeiro grau ou pré-reflexiva, que é pura espontaneidade, pura relação de si para si, e a consciência de segundo grau ou reflexiva, que é consciência que visa a si própria enquanto objeto intencionado. Evidencia-se, desse modo, a estrutura dual da consciência, que deve sempre ser considerada no âmbito irrefletido e no âmbito reflexivo. Entretanto, já o sabemos, Sartre afirma algo que podemos chamar de primado do âmbito irrefletido da consciência, o que significa que o irrefletido tem prioridade ontológica sobre o refletido. No dizer do autor: “a consciência irrefletida deve ser considerada autônoma. É uma totalidade que não tem necessidade nenhuma de ser completada”.84 Como se constitui, então, o Ego? Onde encontrar o Eu? Certamente, assinala Sartre, “o eu não deve ser procurado nem nos estados irrefletidos de consciência nem por detrás deles”.85 Convém aludir à famosa referência ao “ódio a Pedro”, exemplo emblemático do modo pelo qual um estado aparece à consciência reflexiva. Antes, porém, cumpre abrir um breve parênteses para explicitar o que Sartre entende por “estados”. Segundo Moutinho, os “estados” aparecem como unidades transcendentes das consciências, os estados surgiriam então como núcleos unificadores de espontaneidades, tal como no clássico exemplo que analisaremos a seguir. No entanto, antes, é imprescindível ressaltar que é no âmbito reflexivo que os estados aparecem, ou seja, eles se configuram à medida que uma consciência põe uma consciência. No âmbito irrefletido, a consciência é pura relação com o mundo, é puro movimento espontâneo em direção às coisas. Nesse sentido o ódio a Pedro apareceria como um estado “unificador daqueles vividos para a reflexão impura”.86 Compreendemos melhor o argumento de Moutinho na seguinte passagem de A Transcendência do Ego de Sartre: Ele [o estado] dá-se-lhe e constitui o objeto de uma intuição concreta. Se odeio Pedro, o meu ódio de Pedro é um estado que posso apreender pela reflexão. Este estado está presente diante do olhar da consciência reflexiva, ele é real.87 Quando sinto uma “profunda perturbação de repulsa e cólera” ao ver Pedro, isso significa que sou uma pessoa rancorosa? Ora, se me limito a dizer que no momento em que vejo Pedro sinto por ele uma violenta repulsa, isto significa que não ultrapasso aquilo que mostra minha consciência reflexiva. No entanto, se, para além do vivido, busco definir aquilo que sou, 84 SARTRE, Jean-Paul, A Transcendência do Ego, p. 57. Ibidem, p. 58. 86 Retomaremos a noção de reflexão impura a seguir. 87 SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 59. 85 41 por conseqüência, nego aquilo que caracteriza a consciência, isto é, sua espontaneidade. Quando faço afirmações que ultrapassam esse caráter dinâmico da consciência, acabo por engajá-la em todas as suas manifestações futuras, e, como Sartre insiste, introduzir qualquer núcleo de opacidade na consciência é negar sua intencionalidade, é cristalizá-la. É nesse sentido que devemos entender a afirmação do filósofo, segundo a qual “Este estado está presente diante do olhar da consciência reflexiva, ele é real”, ou seja, os estados, enquanto unidades de vividos aparecem, para a reflexão impura, como unidades transcendentes das consciências. O Ego não se dá no momento em que sinto a repulsa por Pedro, ele não é da mesma natureza que a consciência; antes, constitui o próprio estado que aparece como a unidade transcendente de consciências. Assim, os “direitos da reflexão” aparecem limitados, ou seja, “é certo que Pedro me repugna, mas é e ficará sendo duvidoso que eu o odeie. Com efeito, esta afirmação extravasa infinitamente o poder da reflexão”.88 Vemos, pois, que se ultrapasso o limite dessa consciência particular e atribuo a ela um sentido transcendente, a reflexão se reveste de um caráter duvidoso. Logo, para o filósofo existem dois modos da reflexão para se atribuir um sentido às consciências. O primeiro, consiste num modo adequado ou puro e se configura quando ela não ultrapassa o limite da descrição. Um segundo modo, inadequado ou impuro, delineia-se quando a reflexão se reveste de um caráter de “dubitabilidade”, porquanto ultrapassa a esfera do vivido. Assim: O Ego não é, diretamente, unidade das consciências refletidas. Existe uma unidade imanente destas consciências: é o fluxo da consciência que se constitui ele mesmo como unidade dele mesmo – e uma unidade transcendente: os estados e as ações. O Ego é unidade dos estados e das ações – facultativamente, das qualidades. Ele é unidade de unidades transcendentes e é ele mesmo transcendente.89 É ele mesmo, o Ego, um objeto transcendente para a consciência. Deste modo, o esforço fundamental de Sartre consiste em negar que o Ego seja o “pólo X” que serviria de suporte aos fenômenos psíquicos. Mesmo que a tendência seja apresentar o Ego como anterior e como princípio que garanta a unidade da consciência ele não é uma coisa, uma solidez que garanta o alicerce de suas representações. d) A pseudo-espontaneidade do Ego 88 89 Ibidem, p. 60. Ibidem, p. 59. 42 No entanto, como sustentado anteriormente, o Ego tende a se dissimular e a aparecer como sendo anterior à consciência e como princípio de sua unidade. E isso acontece porque “a consciência projeta sua própria espontaneidade sobre o objeto Ego para lhe conferir o poder criador que lhe é absolutamente necessário”.90 O que ocorre é uma inversão, de modo que aquilo que é constituinte – ou seja, a consciência (ativa) – aparece como constituído e aquilo que é constituído – isto é, o Ego (passivo) – aparece como constituinte. O Eu, enquanto um objeto psíquico transcendente da consciência, não se confunde com a própria consciência. O que ocorre, então, é uma cisão. Por um lado temos a consciência, esfera transcendental, lugar da espontaneidade e da pura relação com o mundo, âmbito que pertence à fenomenologia; por outro lado, temos o Ego, o Eu psíquico, reservado à psicologia. Com esta cisão, o Ego aparece em oposição à consciência como opacidade. Assim, o Ego, de acordo com Sartre, “aparece à reflexão como um objeto transcendente que realiza a síntese permanente do psíquico”.91 A consciência mantém todas as suas características e o Ego surge como um objeto da consciência com toda a carga de opacidade que isso implica. Daí deriva o seu caráter passivo. O que Sartre salienta, ao referir-se a essa duplicidade do ego, é que a relação que se estabelece entre o Ego e “as qualidade, estados e ações não é nem relação de emanação [...] nem uma relação de atualização [...]. É uma relação de produção poética [...] ou, se se quiser, de criação”.92 Se o Ego é um objeto apreendido nos estados e ações vividos, ele é também constituído ou criado pelo movimento reflexivo e não por uma fonte unitária e substancial. Assim, se é a consciência que espontaneamente constitui os estados e as ações, é o “saber reflexivo” que ulteriormente postula o Ego. Daí a legitimidade em se afirmar o primado da consciência, ou seja, simultaneamente o Ego é apreendido e constituído no plano da reflexividade. A consciência realiza uma espécie de inversão fundamental quando, em vez de apresentar o Ego como algo constituinte, apresenta o Ego constituído como anterior às consciências. Ocorre que o processo efetivo, já o sabemos, é o inverso disso. Sartre assim se expressa: [...] o Ego é um objeto apreendido, mas também constituído pelo saber reflexivo. É um foco virtual de unidade e a consciência constitui-o em sentido inverso ao que a 90 Ibidem, p. 70. Ibidem, p. 65. 92 Ibidem, p. 67. 91 43 produção real segue: o que é primeiro realmente são as consciências, através das quais se constituem os estados, depois, através destes, o Ego. 93 Essa dimensão criadora da consciência à qual Sartre alude, é comentada por Moutinho com bastante propriedade, quando o autor considera que a constituição do ego no plano da reflexão impura é feita de forma invertida. Segundo o autor, a consciência é apresentada como derivada do Ego, enquanto que, na realidade, é a consciência que constitui o Ego. “O Ego, objeto e portanto passivo, aparece paradoxalmente como produtor, como espontâneo, no momento mesmo de sua constituição”.94 Ou, mais adiante, no mesmo texto: “A consciência reflexiva inverte a produção real, numa espécie de projeção de sua própria espontaneidade no objeto Ego, para fugir de si mesma”.95 Esse processo de inversão, tal com mencionado pelo comentador, sugere que o Ego é produtor das consciências, ou seja, subverte o verdadeiro processo no qual é a consciência espontânea que possibilita a constituição do Ego. Conclui-se, portanto, que, para Sartre, a espontaneidade do Ego enquanto unidade ou fonte criadora é uma pseudo-espontaneidade, e que não pode ser confundida com a verdadeira espontaneidade que é a da consciência, em sua infinita processualidade temporal. “A verdadeira espontaneidade [a da consciência] deve ser perfeitamente clara: ela é o que produz e não pode ser nenhuma outra coisa.96 Por conseguinte, uma nova cisão se configura: a separação entre o Ego e o mundo: “o Ego é um objeto que não aparece senão à reflexão e que, por esse fato, está radicalmente cortado do mundo. Ele não vive no mesmo plano”.97 Antes de nos debruçarmos sobre esta segunda clivagem, detenhamo-nos no caráter fictício do autoconhecimento e da interioridade subjetiva. 5. O Ego nunca é visto senão pelo canto do olho ou “Eu é um outro” Tendo em vista todos estes pressupostos, – ou seja, que a unidade da consciência é dada por seu caráter intencional; que a consciência transcendental é uma espontaneidade impessoal; que há um primado do âmbito pré-reflexivo, isto é, da consciência em sua temporalidade; e, por 93 Ibidem, p. 69. MOUTINHO, Luiz Danton, Sartre: Psicologia e Fenomenologia, p. 40. 95 Ibidem, p. 41. 96 SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 69. 97 Ibidem, p. 71. 94 44 fim, que o Ego transcendental é uma criação da consciência reflexiva – estamos prontos para afirmar a impossibilidade para a consciência intencional de instituir e conhecer o Ego em sentido forte, isto é, de forjar para si mesma uma unidade, um núcleo de unificação. Daí que o Ego se configure, sob a perspectiva do filósofo, como algo “fugidio”. Qualificação que evidencia por si mesma o quanto a concepção sartriana ultrapassa o âmbito epistemológico da fenomenologia husserliana. No intuito de aprofundar essa questão, vem a propósito a famosa frase de Rimbaud citada por Sartre: “Eu é um outro”.98 Com base na argumentação até aqui tecida, podemos sustentar que o Ego não pode ser o núcleo de unificação da consciência ou um substrato orientador de suas ações. Mas detenhamo-nos no dizer de Rimbaud. O que significa propriamente dizer que “Eu é um outro”? Ou, como o afirma Sartre, como compreender que é unicamente com o canto do olho que podemos vislumbrar o Ego? O avanço no movimento do texto A Transcendência do Ego é esclarecedor. Sartre busca demonstrar que a consciência, tal como é – fluxo contínuo em direção à realização, mas que, no entanto, não se realiza, posto que é justamente seu movimento que a caracteriza –, nunca será capaz de instituir o Ego em sua completude; assim, este será sempre algo que nos permanecerá desconhecido. Ou seja, é só a partir da perspectiva de um outro que podemos buscar alguma compreensão do nosso Ego. Como afirmado anteriormente, é o outro que nos oferece objetividade. O outro se apresenta simultaneamente como aquele que nos constitui e, por conseqüência, como aquele que oferece um obstáculo ao movimento que define a consciência. Assim, aquilo que chamamos, comumente, de “autoconhecimento” nada mais é do que um falso conhecimento, pois pressupõe o ponto de vista do outro, sendo assim, “um ponto de vista forçosamente falso”. Mais do que isso, o que fica evidente a partir desta configuração apresentada por Sartre é que o Ego sempre se constitui “de fora para dentro”, ou seja, enquanto um objeto transcendente qualquer seja para a própria consciência que se volta para si mesma, seja no âmbito da alteridade. Não se trata de um processo de autoconhecimento, de uma consciência que se volta para sua interioridade, mas antes, da consciência que se lança para fora e busca constituir-se, e que, sob esse registro, o Ego se mostra obviamente como algo forjado. Desta maneira, resta ao indivíduo interpretar os fatos objetivos que lhe concernem sob a perspectiva do outro, o que significa dizer que em si mesmo o acesso ao meu Eu é interdito. Nas palavras de Sartre: 98 Ibidem, p. 78. 45 Serei eu preguiçoso ou trabalhador? Decidirei, sem dúvida, se me dirigir àqueles que me conhecem e lhes perguntar a sua opinião. Ou posso ainda colecionar os fatos que me dizem respeito e tentar interpretá-los tão objetivamente como se se tratasse de um outro. Mas seria inútil dirigir-me diretamente ao Eu [Moi] e tentar beneficiar da sua intimidade para o conhecer. Pois é ela, ao contrário, que nos barra o caminho. Assim, “conhecer-se bem” é, fatalmente, tomar sobre si o ponto de vista de outrem, quer dizer, um ponto de vista forçosamente falso. 99 A citação acima vem, pois, ao encontro da afirmação de Rimbaud. Tomemos o exemplo do amor. O que significa dizer que amo determinada pessoa, senão que a amo enquanto ela se coloca como objeto transcendente do meu amor? O amor que sinto não é algo que eu tenha e que me defina como um ser amante, e sim, algo do objeto transcendente que se mostra passível de ser amado. O mesmo se dá no clássico exemplo do ódio a Pedro, ao qual já aludimos. Se digo que sou rancoroso porque sinto um forte sentimento de repulsa ao ver Pedro, ultrapasso aquilo que a vivência [Erlebnisse] me permite concluir. Se me defino como rancoroso, engajo as vivências futuras que não necessariamente se manifestarão desse mesmo modo. Se, como diz Sartre, “o Ego não é a totalidade real das consciências, mas uma unidade ideal de todos os estados e ações”, ele aparece como “uma miragem perpetuamente falaz”. Engana-se, assim, quem pensa poder “capturar” seu Ego de forma objetiva. Daí a asserção do filósofo, segundo a qual somos “feiticeiros” de nós mesmos toda vez que consideramos o nosso Ego 100. Evidencia-se, assim, o caráter de criação do âmbito reflexivo ao qual nos referimos acima. Outra vez, o autor: [...] o Ego só aparece quando não o olhamos. É preciso que o olhar reflexivo se fixe na <<Erlibnis>>, enquanto ela emana do estado. Então, por detrás do estado, no horizonte, aparece o Ego. Ele não é nunca visto senão pelo canto do olho. Assim que volto meu olhar para ele e que quero atingi-lo sem passar pela <<Erlibnis>> e o estado, ele dissipa-se. É que, com efeito, ao procurar apreender o Ego por ele mesmo e como objeto direto da minha consciência, recaio no plano irrefletido e o Ego desaparece com o ato reflexivo.101 Em suma, o que o filósofo afirma é que toda vez que busco definir meu Ego nele mesmo e diretamente, recaio no âmbito do irrefletido e, por isso, ele me escapa. Se permanecemos no âmbito da terminologia de O Ser e o Nada, é como se o Para-Si buscasse se definir enquanto um Em-Si, mas sem perder sua espontaneidade, ou seja, é como se tentasse constituir-se enquanto um “Para-Si-Em-Si”, o que seria absurdo porque contraditaria a ordem mesma do humano. Seria como se a consciência buscasse um núcleo duro de opacidade, mas sem, no entanto, perder seu caráter de inacabamento. Fica clara a incoerência de tal concepção; sustentá-la seria o mesmo 99 Ibidem, p. 73. Grifo nosso. Ibidem, p. 70. 101 Ibidem, p. 73-74. Grifo nosso. 100 46 que dizer que a consciência se quer inacabada e acabada ao mesmo tempo, objeto e fluxo contínuo, positividade e negatividade simultaneamente. Definir-se enquanto rancoroso, trabalhador, ou preguiçoso equivale a negar o caráter de inacabamento e fluidez que é justamente aquilo que melhor caracteriza a consciência, a saber, a intencionalidade. Não obstante, se frisamos até então o caráter transcendente da ontologia sartriana, é preciso ratificar o elo entre tal transcendência e a imanência. O filósofo compreende que o homem carrega uma dupla propriedade, qual seja, a de “ser facticidade e transcendência” simultaneamente. E por isso “é preciso afirmar a facticidade como sendo transcendência e a transcendência como sendo facticidade”.102 É nesse sentido que cabe resgatar a máxima existencialista que concebe a “realidade humana como ser que é o que não é e não é o que é”.103 Daí o problema fundamental: Como o homem pode ser o que é, se seu modo de ser é ser enquanto consciência de ser? Ou melhor, “Mas que somos, afinal, se temos a obrigação constante de nos fazermos ser o que somos, se nosso modo de ser é dever ser o que somos?”104 A interrogação do autor evidencia que não se trata de negar a imanência, mas antes de assumi-la de um modo transcendente, um vez que ela implica superação. Ou seja, se o homem de fato “é”, ele não pode ser do mesmo modo que o Em-Si. De fato, o homem é sendo o que ele não é. Assim, a consciência: [...] é porque se faz, pois seu ser é consciência de ser. Mas isso significa que o fazer sustenta o ser; a consciência deve ser seu próprio ser, nunca é sustentada pelo ser, mas sim quem sustenta o ser no seio da subjetividade – o que significa, uma vez mais, que está habitada pelo ser, mas não é o ser: ela não é o que é. 105 Novamente, as análises de Sartre acerca da má-fé fornecem alicerces para nossa discussão. Em O Ser e o Nada o filósofo se utiliza do exemplo de um casal homossexual para apresentar a simultaneidade entre o âmbito imanente e o âmbito transcendente da condição humana. Com este célebre exemplo temos, por um lado, aquele que assume a sua condição de forma análoga à do Em-Si, isto é, assume totalmente seu ser tal como um objeto, “sou homossexual, tal como aquela mesa é uma mesa”. Desse modo, ele assume sua imanência, mas se recusa a assumir a transcendência. Diz Sartre, “o homem sincero se constitui como coisa exatamente a fim de escapar dessa condição de coisa”, assim o “homem sincero se faz o que é 102 SARTRE, Jean-Paul, O Ser e o Nada, p. 102. Ibidem, p. 105. 104 Ibidem, p. 105. 105 Ibidem, p. 109. 103 47 para não sê-lo”.106 É como se ele dissesse, “sou isto e pronto, nada há a fazer”. Por outro lado, aquele que afirma a transcendência negando a imanência se recusa a assumir seus atos. O que equivale a colocar-se fora da história; desse modo, ele reconhece os fatos, mas se recusa a assumir as conseqüências que deles decorrem. Este exemplo é importante, porque por meio dele vemos o modo pelo qual a transcendência pode ser afirmada sem implicar uma negação da imanência. Ou seja, o que Sartre busca explicitar é que ambos, o sujeito que afirma a imanência ou aquele que afirma a transcendência, agem de má-fé. Assim, cumpre insistir: a má-fé se revela quando um indivíduo busca colocar-se a si mesmo fora do alcance de seus atos, como se fosse possível justificar sua condição por causas que lhe escapam. Eis uma forma de se esquivar da condição humana e da responsabilidade que lhe é correlata. Daí a necessidade, assinala o autor, de que todo homem afirme seus atos e o que ele é, mas não à maneira de uma essência, como se algo a priori determinasse seu ser. É nesse sentido que devemos entender a afirmação de que “sou a maneira do não ser”, ou seja, é preciso afirmar a imanência, mas afirmá-la como transcendência. Em outras palavras, podemos dizer que o correlato necessário à liberdade é a responsabilidade, pois a transcendência é o modo de ser do homem. Ao mesmo tempo, o homem é responsável por suas ações justamente porque não pode negar sua imanência – ou sua facticidade – exceto, claro, se agir de má-fé. 6. Crítica à idéia de interioridade: o eu e o mundo como objetos impessoais Uma das conseqüências mais importantes da postulação da incompletude da consciência, tal como o faz a filosofia sartriana, reside na negação de uma das idéias mais caras à tradição moderna: a idéia de interioridade. Analogamente às conclusões de Wittgenstein e grande parte de seus contemporâneos, embora por um caminho diametralmente oposto,107 Sartre chegará a uma conclusão similar, ou seja, de que a idéia de interioridade, tal como desenvolvida por essa tradição, não se sustenta. Para filósofo, o Ego é um objeto do mundo, um objeto transcendental como qualquer outro, e, se como afirmamos acima, não temos um acesso privilegiado a esse objeto, então o meu próprio Ego deixa de ser uma propriedade exclusiva minha. 106 Ibidem, p. 112. É curioso notar que Wittgenstein, considerado como a principal influência do assim chamado positivismo lógico, chega à uma conclusão análoga à de Sartre ao negar a interioridade. É sabido, no entanto, que o pensador austríaco tem como referência as suas analises da filosofia da linguagem, enquanto Sartre busca apoio na tradição moderna desde Descartes, chegando às análises fenomenológicas de Husserl. 107 48 Tradicionalmente, na esteira da concepção substancialista herdada da tradição cartesiana, entende-se que o sujeito tem acesso privilegiado a seu próprio eu, pois se trata de uma mesma substância. Daí afirmações como “só eu sei o que sinto”, tão criticadas por Wittgenstein, e que denotam, segundo o autor, a afirmação da interioridade e, mais especificamente, do primado da privacidade epistêmica. Em Sartre, a problematização do Eu cartesiano é precípua. Como sustentado anteriormente, o cogito cartesiano aparece como “núcleo essencial e substância”, a concepção cartesiana implica a associação entre eu e substância ou entre eu e coisa. Em contrapartida, sabemos que Sartre não aceitará a substancialização da consciência, pois isso implicaria negar a intencionalidade, sua principal característica. Fica claro que Sartre, embora tome a subjetividade como ponto de partida para a sua filosofia, supõe a constituição do eu no âmbito da consciência de segundo grau, como foi dito acima, o que, portanto, contradita toda e qualquer tendência à substancialização da consciência, bem como de uma suposta vida interior. São esclarecedoras as considerações de Leopoldo e Silva quando aborda o tema em seu ensaio A Transcendência do Ego: Subjetividade e Narrabilidade: Como constatou Descartes, cada vez que penso, sou eu que penso – daí a inseparabilidade, julgava Descartes, entre Eu e pensamento ou entre Eu e consciência. Mas é preciso atentar também para o caráter reflexivo do cogito, isto é, para o fato de que se trata de uma consciência “de segundo grau”. [ou seja, de uma consciência de uma consciência] [...] a consciência da consciência é chamada de reflexionante e a outra de refletida. Ora, se o cogito é obtido como resultado da reflexão, então o Eu do “Eu penso” é o eu da consciência refletida e não da consciência reflexionante, isto é, o Eu afirmado no cogito é o Eu que aparece como objeto para a consciência reflexionante. 108 O que é patente nesta afirmação – de que o “Eu penso é objeto da consciência refletida” –, é que o cogito cartesiano nada mais é do que um objeto para a consciência, que se configura como pura espontaneidade, e que não há nada aí que possa atestar qualquer espécie de núcleo de opacidade na consciência. Nesse sentido, para Sartre, alerta-nos o comentador: [...] o cogito afirma “demais”. A intuição do Eu não deveria ser suficiente para sustentar o seu caráter fundante e unificador, quando afirmo, por exemplo: eu tenho consciência dessa cadeira. Mais correto seria dizer: há consciência dessa cadeira, o verbo indefinido indicando o campo transcendental e não o núcleo pessoal do Eu. 109 108 109 LEOLPOLDO E SILVA, Franklin, Ética e Literatura em Sartre: Ensaios introdutórios, p 40. Ibidem, p. 41. 49 Destarte, a compreensão psicológica só poderia ser feita por analogia. De fato, se tenho acesso privilegiado a minha interioridade, só eu sei o que sinto. Assim, quando digo que amo alguém, só eu poderia estar certo se de fato amo determinada pessoa. Ou, como aparece no exemplo do próprio Sartre, “[...] quando Paulo tenta compreender um estado psíquico de Pedro [seu amor por alguém, por exemplo], ele não podia atingir este estado, cuja apreensão intuitiva pertencia apenas a Pedro”.110 A despeito disso, a fenomenologia, ao menos como Sartre a entende, rompe com essa tradição, pois, se meu Ego é um objeto do mundo como qualquer outro, o “sentimento de Pedro não é mais certo para Pedro do que para Paulo”. Isso significa que: em primeiro lugar, “o Ego não é propriedade da consciência, ele é o objeto”.111 Em definitivo, não há nada na consciência, a consciência é nada, ela é colada ao mundo sem, no entanto, se confundir com ela, e, por conseguinte, o Ego só pode estar fora; por isso mesmo, ele se revela tão acessível a mim quanto para qualquer outro. Em face disso, nenhuma concepção substancialista se sustenta, visto que “o Eu [Moi] não tem nenhum domínio sobre esta espontaneidade [a da consciência], pois a vontade é um objeto que se constitui para e por esta espontaneidade”.112 Inferimos, pois, que o autoconhecimento do Ego, enquanto um objeto constituído, será coisa que sujeito algum jamais logrará. É sob essa perspectiva que Sartre encontra a solução para o problema do solipsismo. Se meu Ego é um objeto transcendente como qualquer outro, o problema acerca da existência de outros Egos não tem legitimidade alguma: “[...] o meu Eu [...] não é mais certo para a consciência que o Eu dos outros”.113 Outro desdobramento da concepção sartriana acerca do Ego enquanto objeto psíquico transcendente, ao qual devemos atentar, diz respeito à relação que se estabelece entre o Ego e o mundo. Ou seja, quais são as conseqüências de se conceber o Eu [Moi] como “um existente rigorosamente contemporâneo do mundo e cuja existência tem as mesmas características essenciais que o mundo”?114 Ora, isso significa, em primeiro lugar, que tanto o mundo como o Eu [Moi] são objetos transcendentais, o que revela a inconsistência da relação entre sujeito e objeto que caracteriza o 110 SARTRE, Jean-Paul, A Transcendência do Ego, p. 77. Ibidem, p. 78. 112 Ibidem, p. 79. 113 Ibidem, p. 82. 114 Ibidem, p. 82. 111 50 pensamento moderno. Nas palavras do autor: “a dualidade sujeito-objeto, que é puramente lógica, desaparece definitivamente das preocupações filosóficas”.115 Desse modo, não é nem o mundo que é constituído pelo o Ego e nem o Ego que é constituído pelo mundo, é justamente a consciência que faz a ligação entre eles. Se a consciência projeta no Ego sua espontaneidade, é no mundo que ela espontaneamente se projeta. Mais precisamente, é através do poder criador falsamente atribuído ao Ego pela consciência, que a consciência refletida ou o ato espontâneo da consciência, possibilita que a consciência de segundo grau ou reflexiva crie o Ego e falsamente afirme seu primado. A consciência é, para Sartre, “uma condição primeira e uma fonte absoluta de existência”. O que é o mesmo que dizer que o âmbito pré-reflexivo é pressuposto do âmbito reflexivo e que não existiria Ego sem consciência de primeiro grau. O que caracteriza uma relação de interdependência entre o Ego e o mundo mediada e fundamentada pela consciência. Vejamos como essa relação é apresentada por Sartre: Esta consciência absoluta, quando é purificada do Eu, nada mais tem que seja característico de um sujeito, nem é também uma coleção de representações: ela é muito simplesmente uma condição primeira e uma fonte absoluta de existência. E a relação de interdependência que ela estabelece entre o Eu [Moi] e o Mundo basta para que o Eu [Moi] apareça como “em perigo” diante do Mundo, para que o Eu [Moi] (indiretamente e por intermédio dos estados) retire do Mundo todo o seu conteúdo. 116 De fato, o mundo aparece como o horizonte que possibilita à consciência sua existência, ou seja, é no mundo que o Para-Si se lança, é através do Em-Si que o Para-Si se realiza. Se a consciência é um nada de consciência, se ela é pura relação com o mundo, é no mundo e através da positividade que o caracteriza que a negatividade que fundamenta a consciência pode se realizar. É desse modo que a filosofia de Sartre busca voltar-se para as coisas e é nesse sentido que devemos interpretar a famosa passagem de seu artigo Uma Idéia Fundamental da Fenomenologia de Husserl: a Intencionalidade, já citado no começo de nosso estudo. Eis-nos libertados de Proust. Libertados ao mesmo tempo da “vida interior”; em vão procuraríamos, como [Henri-Frédéric] Amiel, como uma criança que se aninha no colo, as carícias, os mimos de nossa intimidade, pois afinal de contas tudo está fora, tudo, até nós mesmos [ou seja, até mesmo nosso Ego]: fora, no mundo, entre os outros. Não é em sabe-as lá qual retraimento que nos descobrimos: é na estrada, no meio da multidão, coisa entre coisas, homem entre homens. 117 115 Ibidem, p. 83. Ibidem, p. 83. 117 Idem, Uma Idéia Fundamental da Fenomenologia de Husserl: a Intencionalidade, p. 57. 116 51 Podemos considerar, enfim que, passando pela apropriação da fenomenologia, a crítica sartriana à concepção substancialista de “vida interior” se desdobra na afirmação de uma filosofia que se volta para o homem concreto em suas vivências no mundo, para além de todo ego objetivado, para além de toda e qualquer interioridade. O último ponto que cabe retomar e que servirá de mote ao nosso próximo capítulo, diz respeito àquela função essencial que Sartre atribui ao Ego, que consiste em “encobrir à consciência sua própria espontaneidade”.118 Como foi dito anteriormente, a consciência, que é pura espontaneidade e pura relação de si para si, atribui sua espontaneidade ao Ego, e assim, exerce uma inversão fundamental pois faz com que ele apareça como criador ao invés de criado. Essa inversão fundamental acarretará algumas implicações morais, como ressalta Leopoldo e Silva numa passagem que sintetiza o problema: [...] a consciência constitui o Ego e nele se projeta como para escapar de si mesma, da própria espontaneidade que, por não se reportar a nenhum solo fundador, é angustiante pelo que apresenta de instável e movediça. Há, portanto, uma questão ética envolvida na representação do Ego; há uma motivação moral para que representemos o Ego como condição de nós mesmos, aquilo a partir do qual somos o que somos. Isso conferiria à existência um fundamento estável ao qual poderíamos remeter a expressão subjetiva: opções e compromissos. É angustiante pensar que o que somos se constitui fora de nós, na contingência das coisas e da história. 119 Se a consciência constitui o Ego como uma forma de escapar de si mesma, o que, em outras palavras, seria o mesmo que negar a espontaneidade e liberdade que a define, fica evidente o desdobramento ético que essa fuga acarreta. Partindo destas implicações morais, o comentador levanta a seguinte questão: se o Ego só é constituído posteriormente pela consciência, se não há nada a priori que o defina, em que medida o sujeito pode narrar-se a si mesmo a sua existência? Este questionamentos nos conduz ao reconhecimento de que a narratividade requerida pelo comentador deve se apresentar não mais como um obstáculo, mas antes, a acima de tudo, como “um modo privilegiado de buscar a verdade da existência” e também, como “uma forma mais autêntica de narrar, em que a expressão da subjetividade esteja mais diretamente atravessada pelas exigências éticas da representação humana”.120 Nesse ponto, Leopoldo e Silva alude às análises de Saint-Sernin em Philosophie et Fiction.121 Neste texto, Saint-Sernin afirma que as teses defendidas por Sartre em A 118 Idem, A Transcendência do Ego, p. 80 LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Ética e Literatura em Sartre: Ensaios introdutórios, p 45. 120 Ibidem, p. 45. 121 Ibidem, p. 46. 119 52 transcendência do Ego, além das já mencionadas conseqüências filosóficas, apresentam desdobramentos no campo da narrativa literária, de sorte que torna-se necessário, na sugestiva expressão do autor, a “reinvenção da escrita”. É este quadro, portanto, que servirá de ponto de partida às nossas análises subseqüentes. 53 CAPÍTULO II Existência, filosofia, literatura: onde o limite? "Mas, como fatalidade e liberdade se identificam, como o destino é sempre a construção prática de uma vida e de uma história, a responsabilidade é assumida como corolário de uma liberdade da qual não se pode fugir. Esta é a razão pela qual é necessário que o escritor 'abrace estritamente sua época; ela é sua única chance; ela é feita para ele e ele é feito para ela'. Este é o significado concreto da situação, como hora e como lugar da liberdade, mas ao mesmo tempo como escolha absoluta, isto é, como invenção de si e do seu tempo." (Franklin Leopoldo e Silva) “Só porque viver não é relatável. Viver não é vivível. Terei que criar a vida. E sem mentir. Criar sim, mentir não. Criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade”. (Clarice Lispector) 1. Introdução Inequivocamente, Jean-Paul Sartre foi um escritor polivalente. Sua obra abarca desde tratados filosóficos, passando por textos teatrais, ficcionais, biografias, ensaios e até mesmo textos para periódicos e jornais engajados. Na filosofia, particularmente, O Ser e o Nada, um tratado de ontologia fenomenológica, constitui a sua obra maior. Ante produção tão diversificada é comum que se espere uma ênfase maior em alguma dessas áreas da produção intelectual. Não obstante, não é o que ocorre com este autor múltiplo, que logrou destaque em todos esses gêneros. É possível constatar, contudo que a maior parte dos infindáveis comentadores inspirados por esse pensamento atribuíram maior relevância aos trabalhos de caráter filosófico, chegando inclusive a considerar sua obra ficcional como uma “expressão simplificadora da obra teórica”.122 Eis uma afirmação que nos incita a interrogar o que caracteriza a relação entre filosofia e literatura na obra do mestre francês. Aproximar filosofia e literatura não é algo novo. Não obstante, ainda são poucos aqueles autores que não se mostram resistentes quando tal aproximação é proposta. Deste modo, todo 122 PERDIGÃO, Paulo, Existência e Liberdade: Uma Introdução à Filosofia de Sartre, p, 19. 54 trabalho que pretenda abarcar essa perspectiva deve, primeiramente, justificar-se. Tratando-se de um autor como Sartre, para o qual esta relação está no cerne de sua produção, é imperativo, mesmo em trabalhos que não lidem diretamente com o problema, passar pelo tema. Desse modo, o que buscamos neste capítulo é explicitar de que maneira esta relação se estabelece na obra deste autor. Ou seja, qual a relevância da criação ficcional dentro do itinerário existencialista? Por que Sartre lança mão da literatura para realizar sua filosofia? Em outras palavras, como se dá a relação entre literatura e filosofia para o pensador? As respostas a essas questões, juntamente com a análise precedente acerca da natureza do ego, constituirão os alicerces para nossa incursão pela A Náusea. Assim, se desde o início do pensamento filosófico a discussão acerca da relação entre a criação ficcional e a reflexão filosófica está presente, mesmo que implicitamente, no caso de Sartre essa discussão ganha estatuto central dentro de sua produção filosófica. Partindo da problemática do papel da criação ficcional dentro de sua obra, pode-se entender que a literatura tem nela a função de ilustrar conceitos filosóficos, tal como Paulo Perdigão o afirma no prefácio de seu livro, Existência e Liberdade: Uma Introdução à Filosofia de Sartre. O comentador sustenta que, neste universo teórico, os “romances e peças teatrais serviram como expressão simplificadora da obra teórica”.123Aqui se impõe o problema: o que Sartre faz, sob essa perspectiva, não seria, então, uma instrumentalização da literatura? Ante a afirmação do comentador citado, tendemos a supor que, em Sartre, a literatura não passa de recurso útil. Essa é também a posição de Gerd Bornheim que, no final de seu livro sobre Sartre, afirma: “[...] Sartre defende uma concepção instrumental da palavra e compreende a língua como uma técnica”.124 Observação com a qual, enfim, o próprio Sartre parece concordar: “a prosa é utilitária por essência: [assim] eu definiria de bom grado o prosador como um homem que se serve das palavras”.125 No entanto, não é essa a leitura que faríamos, assim como não é esse o enfoque que gostaríamos de defender. Se Sartre defende que a prosa, por ser um instrumento de comunicação, deve engajar-se, é também Sartre quem diz: Lembro, com efeito, que na „literatura engajada‟, o engajamento não pode, em nenhum caso, fazer esquecer a literatura e que nossa preocupação deve ser a de servir à 123 Ibidem, p, 19. BORHEIM, Gerd, Sartre: Metafísica e existencialismo, p.283. 125 SARTRE, Jean-Paul, O que é Literatura?, p. 18. 124 55 literatura infundindo-lhe sangue novo, assim como servir à coletividade tentando lhe oferecer a literatura que lhe convém. 126 Sob essa outra perspectiva sustentada pelo próprio filósofo, parece-nos que não há essa tendência a instrumentalizar a literatura, e, portanto, cabe-nos colocar a questão acerca do papel da criação ficcional na obra sartriana. Sob esse prisma, adquire relevância a seguinte afirmação do autor: “ninguém é escritor por haver decidido dizer certas coisas, mas por haver decidido dizê-las de determinado modo. E o estilo decerto, é o que determina o valor da prosa”.127 Ou seja, fazer literatura é antes de tudo assumir um estilo, uma posição no mundo; no limite, fazer arte. Parece-nos, portanto, que dizer simplesmente que Sartre realiza uma instrumentalização da literatura conduz a uma simplificação do problema e a uma minimização do lugar ocupado pela criação literária em sua obra e em seu pensamento. Assim, nesta aproximação entre essas duas esferas do pensar e do criar, nosso primeiro problema concerne ao modo pelo qual se estabelece a relação entre a reflexão filosófica e a criação ficcional na produção sartriana. Posto isso, resta-nos ainda perscrutar por que Sartre lança mão da literatura. Eis os problemas que constituirão a pauta das análises subseqüentes. 2. Vizinhança comunicante: a simultaneidade entre a obra filosófica e a literária Mais do que indagar se a literatura não é uma forma de ilustrar teses filosóficas, o que, sob a nossa perspectiva, caracterizaria uma instrumentalização da obra de arte, uma outra questão adquire relevância no caminho que teceremos a seguir. Trata-se de interrogar em que medida a reflexão filosófica, se tomada sob o registro da linguagem técnica que almeja a univocidade, dá conta de expressar aquilo que se busca. Mais claramente: quais são os limites da linguagem filosófica? Qual a relação que se estabelece entre a filosofia e a literatura, para Sartre, no que concerne à problematização do seu objeto mais crucial, qual seja, a condição humana? Nessa direção, Sartre ressalta a incapacidade da reflexão filosófica em oferecer ao homem uma imagem capaz de desvelar-lhe sua própria condição. É característica fundamental da filosofia existencialista se contrapor à maneira como tradicionalmente a metafísica lida com a 126 Idem, Présentation de “Les Temps Modernes”. Apud LEOPOLDO E SILVA, Franklin. Literatura e experiência histórica em Sartre: o engajamento. In: Filosofia e Crítica: Festschrift dos 50 anos do curso de filosofia da Unijuí. 127 SARTRE, Jean-Paul, O que é Literatura?, p. 22. 56 existência. Ou seja, Sartre se contrapõe às concepções filosóficas que se ocupam das essências imutáveis por detrás das coisas, e que assim negligenciam o homem concreto historicamente condicionado. O filósofo busca, pois, uma filosofia que se ocupe do homem concreto lançado em determinado contexto histórico, em determinada situação, sem negar a liberdade da ação humana. Logo, o método fenomenológico oferece o sustentáculo para a criação daquilo que Sartre chamou de ontologia fenomenológica, ou seja, uma filosofia na qual o homem, pensado em sua existência concreta, esteja no centro das preocupações teóricas. No entanto, mesmo sob essa chave filosófica, o pensamento teórico e conceitual apresenta-se como insuficiente para desvelar ao homem sua condição histórica. Isso não implica que o filósofo negue o conceito enquanto ferramenta basilar de sua filosofia, mas, como veremos, esta insuficiência abre as vias pelas quais se estabelece a relação de complementaridade entre o âmbito conceitual e o ficcional de sua obra. A filosofia fenomenológica, a qual, aos olhos do filósofo, deve descrever o homem, tem como recurso privilegiado o conceito. Se ela descreve a condição humana, o faz teoricamente, abstratamente, e, por conseqüência, à distância; ao contrário da literatura que retrata o homem concreta e individualmente. Mas deparamo-nos aqui com uma dupla insuficiência: por um lado, há a representação abstrata e conceitual, à qual a existência concreta escapa; por outro, mesmo que a literatura ofereça um reflexo do homem concreto ao próprio homem, ela não é capaz de representá-lo conceitualmente. Se a literatura coloca o homem diante de sua própria condição, ela faz isso ao particularizar aquilo que aparece abstratamente no âmbito conceitual, o que implica um afastamento em relação ao âmbito teórico. Na filosofia, mesmo quando o objeto não se distingue da literatura, como é o caso dessa filosofia fenomenológica sartriana, o instrumento continua sendo o conceito. No caso da literatura, esse lugar é ocupado pela imagem. É ela que poderá oferecer a experiência particular da condição existencial do homem, tal como veremos adiante de modo mais atento. É justamente a partir deste quadro que podemos compreender o modo pelo qual o filósofo apresenta, em Les Écrivains en Personne, o caráter dramático do pensamento filosófico. A filosofia, por si só, não estuda o indivíduo enquanto tal, ela não mergulha e não nos dá a ver a sua existência como efetivamente vivida e, ao mesmo tempo, tem como objeto a existência concreta. Daí decorre a necessidade de que o filósofo lance mão da criação ficcional. “Hoje, a filosofia é dramática”, diz Sartre. Com entender essa afirmação? Como mencionamos acima, sob a perspectiva existencialista, o filósofo deve se ocupar da condição humana em sua relação concreta com o mundo, pois o homem está lançado na história; 57 ele se faz na e para a história. É nesse sentido que devemos entender a famosa referência à Marx que Sartre fazia com freqüência: “A história faz o homem e o homem faz a história”.128 Esta afirmação reverbera igualmente sobre a criação literária. Sartre afirma que, na literatura, se “cada frase escrita não ressoa a todos os níveis do homem e da sociedade, ela não significa nada. A literatura de uma época é a época digerida por sua literatura”.129 A filosofia não escapa a essa correlação entre o tempo vivido e a construção do pensamento, de sorte que ela se depara com a urgência de encontrar um modo outro de teorizar. Numa palavra, a linguagem filosófica deve tornar-se dramática. Como entender essa proposta? O primeiro ponto que se evidencia dentro da perspectiva existencialista é o necessário rompimento com a metafísica tradicional e com suas análises abstratas. Sartre pretende, pois, ocupar-se da ação humana, do homem concreto. Mas qual a singularidade da ação humana? O que é o homem enquanto agente, enquanto liberdade que se constrói ao se escolher e, ao se escolher, constrói a história? Ao enfrentar tais questões, torna-se imprescindível para o filósofo instituir uma forma de pensar que abarque o homem em ato, em meio às contradições de seu contexto histórico. De modo mais claro, configura-se a necessidade de um pensamento filosófico que já não se atenha ao puramente abstrato ou que busque as essências ou leis para além do homem, mas que se volte de fato para a existência, mergulhando nas contradições intrínsecas à condição humana, refletindo sobre o sujeito que age no mundo. O homem, sob esta perspectiva, “representa seu drama” enquanto agente e ator na exata medida em que ele vive o drama das “contradições de sua situação” histórica. Eis o registro no qual Sartre defende uma filosofia dramática: Hoje, penso que a filosofia é dramática. Não se trata mais de contemplar a imobilidade das substâncias que são o que são, nem de encontrar as regras de uma sucessão de fenômenos. Trata-se do homem – que é ao mesmo tempo um agente e um ator – que produz e representa seu drama, vivendo as contradições de sua situação até o estilhaçamento de sua pessoa ou até a solução de seus conflitos. Uma peça de teatro (épico – como as de Brecht – ou dramático), é a forma mais apropriada, hoje, para mostrar o homem em ato (ou seja, o homem, simplesmente). E a filosofia, de um outro ponto de vista, pretende se ocupar deste homem. É por isso que o teatro é filosófico e a 130 filosofia é dramática. 128 SARTRE, Jean-Paul, Les Écrivains en Personne, p. 30. Tomamos como critério para as citações em língua estrangeira a tradução no corpo do texto seguida da reprodução do texto original em nota de rodapé. “L’histoire fait l’homme et l’homme fait l’histoire” (nossa tradução). A passagem referida aparece da seguinte maneira no texto do próprio Marx: “as circunstâncias fazem os homens tanto quanto os homens fazem as circunstâncias” (MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã, p. 36.) 129 Ibidem, p. 15. “[...] chaque phrase écrite ne résonne pás à tous lês niveaux de l’homme ET de La société, elle ne signifie rien. La littérature d’une époque, c’est l’époque digérée par sa littérature” (nossa tradução). 130 Ibidem, p. 13. Grifo nosso. “Aujourd'hui, je pense que la philosophie est dramatique. Il ne s'agit plus de contempler l'immobilité des substances qui sont ce qu'elles sont, ni de trouver les règles d'une sucession de 58 Destarte, evidencia-se que a filosofia tem como objeto privilegiado aquele que foi desde sempre o tema da literatura, qual seja, a existência e, portanto, a realidade humana e histórica, ou, se se preferir, situada. É por isso que Sartre afirma que, para a literatura, “o objeto total que figura em um romance, é um objeto humano e que não é nada sem seus significados humanos”.131 Ou seja, esse objeto não é nada fora da história. Vale insistir: “A literatura de uma época, é a época digerida por sua literatura”. Do mesmo modo que o teatro – como enfatiza Sartre na citação acima –, a literatura,132 em especial a prosa, se ocupa do homem concretamente. Em ambos, a dramaticidade 133 da existência é diretamente enfrentada; em ambos, não seria exagero dizer, o homem encontra-se em ato. À medida que a filosofia fenomenológica reconhece que seu tema não é outro senão aquele encenado nos palcos e abraçado pela literatura, a conexão com a história, que é imanente aos romances e às artes cênicas, torna-se também sua. Nesse sentido, o comentário de Leopoldo e Silva, em um interessante artigo acerca da relação entre os romances de Sartre e sua filosofia, vem ao encontro da perspectiva que procuramos defender aqui: “Penso que não nos desviaríamos do pensamento de Sartre se entendêssemos que aquilo que aqui é dito a respeito do teatro pode ser dito de toda a literatura: a literatura é filosófica e a filosofia é dramática”.134 Atentemos para a última afirmação do comentador, a qual nos instiga a pensar que há algo de filosófico na literatura, assim como há algo de literário na filosofia, mesmo que as diferenças entre as duas não se dissipem. Expliquemos. Ao problematizar a concretude da existência, ou seja, ao dramatizar, a literatura – como o teatro – revela uma dimensão que não deixa de se aproximar da filosofia, sem que deixe de ser literatura. O mesmo poderia ser dito a respeito de uma filosofia que toma a existência como objeto primordial. Mais precisamente, a oposição entre cada homem e a história, entre a liberdade – no exercício da qual os homens são forçados a phénomènes. Il s'agit de l'homme - qui est à la fois un agent et un acteur - qui produit et joue son drame, en vivant les contradictions de sa situation jusqu'à l'éclatement de sa personne ou jusqu'à la solutions de ses conflits. Une pièce de théâtre (épique - comme celles de Brecht - ou dramatique), c'est la forme la plus appropriée, aujourd'hui, pour montrer l'homme en acte (c'est-à-dire l'homme, tout simplement). Et la philosophie, d'un autre point de vue, c'est de cet homme-là qu'elle prétend s'occuper. C'est pour cela que le théâtre est philosophique et que la philosophie est dramatique” (nossa tradução). 131 Idem, Op. Cit., p. 20. “*...+ l’objet total qui figure dans um roman, c’est un objet humain et qui n’est rien sans ses significations humaines” (nossa tradução). 132 Excetuando-se o caso da poesia que, para Sartre, não exerce a mesma função que a prosa e o teatro dentro da criação ficcional. 133 A referência à dramaticidade em Sartre visa ressaltar o caráter dramático que a existência adquire na filosofia existencialista e, mais que isso, como veremos, busca frisar a necessidade ao filósofo existencialista de lançar mão da criação ficcional. 134 LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Romance e Filosofia no Existencialismo de Sartre, p. 76. 59 atuarem como autores de si mesmos – e as circunstâncias objetivantes que a constrangem, ou seja, o drama da existência comumente presente nas obras literárias, e mais plenamente na literatura contemporânea a Sartre, torna-se intrínseco ao pensar filosófico. Ao refletir acerca desses dilemas concretos, a filosofia torna-se dramática – ainda que não coincida com o estilo literário do drama. De fato, não há, num texto filosófico, personagens em perpétua tensão, não há o esforço artístico de ficcionalizar o dilema entre a liberdade e os limites impostos pela história, ou seja, não há o empenho em se criar situações de dramaticidade, tal como ocorre na criação literária. O que atesta o afastamento entre a literatura e a filosofia. Inequivocamente, entretanto, o objeto comum estabelece entre elas uma intrigante complementaridade, a despeito da diferença de forma com que se debruçam sobre ele; diferença que não deixa, por vezes de ser transgredida operando-se um contágio dos estilos: “[...] daí a presença de elementos literários em O ser e o nada, por exemplo, e a presença de elementos filosóficos nas obras de ficção, como acontece nos textos de Os caminhos da liberdade”.135 Notadamente, ao atribuir à filosofia um caráter dramático, evidenciando sua proximidade com a literatura, somos imediatamente inseridos no problema acerca da relação entre essas duas esferas da produção intelectual. Assim, torna-se lícito indagar se o que aproxima os dois gêneros legitimaria, por exemplo, a utilização de recursos literários em uma obra filosófica. Sob a perspectiva do filósofo, a resposta a essa questão é categoricamente negativa, porquanto esse tipo de atitude atesta a confusão de dois gêneros que permanecem distintos. Como já assinalado, para Sartre, a despeito de suas limitações, o instrumento da linguagem filosófica continua sendo o conceito, enquanto que a literatura é obra imaginária e, por conseqüência, trabalha com a multiplicidade significativa da palavra. Assim, enquanto a linguagem filosófica deve buscar, na medida do possível, certa estabilidade significativa no uso da palavra, a linguagem ficcional trabalha com a multiplicidade de significados que uma frase, uma imagem, por exemplo, comporta. Adiante, retomaremos mais detalhadamente essa problemática, mas, no momento, vêm a propósito os dizeres do autor: Se me deixo escrever uma frase que se quer literária em uma obra filosófica, tenho sempre um pouco a impressão de que vou enganar meus leitores: que ocorre um abuso de confiança. Escrevi uma vez esta frase – que se manteve porque tinha um aspecto literário: “O homem é uma paixão inútil”. Um abuso de confiança. Deveria ter escrito isso com palavras estritamente filosóficas. [...] São [literatura e filosofia], portanto, duas coisas bastante diferentes.136 135 Idem, Ética e literatura em Sartre: Ensaios Introdutórios, p. 242 SARTRE, Jean-Paul, L’Écrivain et sa Langue, p. 56. “Si je me laisse aller à écrire une phrase qui soit litéraire dans une oeuvre philosophique, j'ai toujours un peu l'impression que là je vais un peu mystifier mon lecteur: il y a abus de 136 60 Essa passagem atesta que, para Sartre, literatura e filosofia não se confundem. Justamente porque esses gêneros são diferentes, o filósofo considera um abuso de confiança prometer ao leitor um texto conceitual e recorrer a recursos literários para expressar sua filosofia. No entanto, lembremos que temos aqui formas distintas de abordar um mesmo problema ou objeto, de modo que essa distinção em si mesmo pode ser a chave da complementaridade entre dois registros fundamentalmente diversos. Mais precisamente, é por serem distintas, a criação ficcional e a reflexão filosófica, que torna-se necessário ao filósofo voltar-se para a literatura, de sorte que logre expressar perspectivas que a filosofia, desde que permaneça coerente com sua natureza, não alcança. Sob a perspectiva sartriana, quando se faz filosofia, busca-se a objetividade, a qual é apreendida pelo leitor que deve seguir o fio do raciocínio construído. A literatura, por sua vez, convida o leitor a participar do processo de significação daquilo que é expresso, incitando-o a empregar sua liberdade num exercício imaginário que é peculiar à obra ficcional. Conforme as considerações até aqui tecidas, vemos que entre filosofia e literatura as diferenças são concomitantes aos aspectos que as aproximam. Mas se as distinções entre filosofia e literatura nos são familiares, o que incomoda as perspectivas mais tradicionais, defensoras sistemáticas da separação entre os territórios, é a interdependência entre esses dois âmbitos, tal como pode ser apreendida na filosofia sartriana, sem que o autor titubeie ante a necessidade de estabelecer distinções. Voltemos, assim, à questão da complementaridade. Vimos que a filosofia, tradicionalmente, segundo Sartre, trata o homem de forma conceitual e abstrata, mas desde que a existência venha ocupar um lugar primordial no interesse filosófico, torna-se necessário abarcálo concreta e individualmente, imbricado na história. O compromisso da linguagem filosófica com a estabilidade significativa, sua contraposição à multiplicidade de significados que a linguagem ficcional implica, torna-a insuficiente para dar conta de seu objeto. Daí a necessidade de que o filósofo se manifeste por essa outra via, qual seja, a literária. E isso, evidentemente, não significa simplesmente ilustrar teses filosóficas. Muito mais radicalmente, trata-se de compreender que a literatura diz acerca do objeto da filosofia coisas que a filosofia não é capaz de dizer. Assim, ela “diz e não diz as mesmas coisas”. Ou seja, a literatura apresenta o existente em processo, enquanto liberdade concreta. Ao encenar o drama humano, em sua concretude, o texto literário nos dá a ver o homem que se constrói a partir de suas escolhas ao mesmo tempo confiance. J'ai écrit une fois cette phrase - on l'a retenue parce qu'elle a un aspect littéraire: <<L'homme est une passion inutile>>, abus de confiance. J'aurais dû dire ça avec des mots strictement philosophiques. [...] Ça fait donc deux choses très différentes” (nossa tradução). 61 em que tece história, enquanto agente da situação em que está inscrito. É por isso, então, que “uma peça de teatro [ou, como frisamos, uma obra literária][...] é a forma mais apropriada, hoje, para mostrar o homem em ato (ou seja, o homem, simplesmente)”. Nesse sentido, vale insistir: são esses também os horizontes perseguidos por uma filosofia fenomenológica, os quais, entretanto, jamais serão plenamente alcançados, uma vez que a filosofia – mesmo à deriva da tradição – não pode se desvencilhar de sua ferramenta mais crucial, qual seja, a linguagem conceitual. Evidencia-se, assim, que se Sartre não se esquivou do registro conceitual da filosofia, ele também não se furtou a explicitar seus limites, estabelecendo, à medida que construía sua obra, a necessária complementaridade entre sua obra ficcional e sua obra predominantemente filosófica. Muito mais radicalmente do que produzir uma filosofia que se serve de instrumentos literários com finalidades ilustrativas, o que seria, aos seus olhos, um embuste, o filósofo efetivamente enveredou pelas duas vias do pensar, ou seja, empenhou-se igualmente na criação filosófica e na criação literária. Daí que Leopoldo e Silva considere que a relação entre literatura e filosofia na obra de Sartre se caracterize por uma “vizinhança comunicante”, o que torna necessário tomar sua obra filosófica conjuntamente com sua obra literária. Isto, nas palavras do comentador, significa que: Entendemos que o centro de irradiação desse projeto determina a relação entre filosofia e literatura como uma vizinhança comunicante, e é responsável pela diferença e pela adequação recíproca dos dois modos da dualidade expressiva. Com isso, queremos dizer que a expressão filosófica e a expressão literária são ambas necessárias em Sartre porque, por meio delas, o autor diz e não diz as mesmas coisas.137 Deparamo-nos, enfim, com a interdependência ou com o enlace entre literatura e filosofia na obra de Sartre. Nesta relação de verdadeira coexistência entre ambas, digamos assim, a “experiência ficcional” desempenha o papel de particularizar conceitos universais, enquanto que a “reflexão filosófica”, por sua vez, universaliza a situação particular, ressaltando a noção de historicidade. Entrevemos aqui o tema da separação entre a ontologia fenomenológica de Sartre e a metafísica tradicional. Mais do que se ocupar com as implicações entre o âmbito abstrato conceitual e o âmbito particular concreto – coisa que a própria fenomenologia, em certa medida, já realiza – o que a criação ficcional faz é retirar o próprio indivíduo do âmbito abstrato e lançálo em sua situação concreta e particular. É por isso que, por intermédio da literatura e da filosofia, Sartre “diz e não diz as mesmas coisas”. Se a literatura expressa o universal 137 LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Ética e Literatura em Sartre: Ensaios Introdutórios, p. 12. 62 concretamente, ela simultaneamente explicita o caráter contingente da existência humana, o que implica retirá-lo do âmbito abstrato em que a filosofia o lançou. O ponto de partida da criação ficcional é a experiência subjetiva, ou seja, a situação concreta em que o homem se encontra face a face com sua existência particular. Entretanto, ao se explicitar na existência concreta, o particular focado pela criação literária remete-nos à universalidade da situação objetiva que concerne a todos os homens. É por isso que o comentador sustenta: “a compreensão das vivências individuais pela via da ficção só atinge o plano da existência concreta porque insere o drama existencial particular na estrutura universal do ser da consciência”.138 É porque o drama ficcional lança o homem em sua situação particular que as vivências individuais atingem a “estrutura universal do ser da consciência”, ou seja, é justamente ao lançar o homem em sua condição existencial particular que a literatura pode desvelar ao homem a condição existencial de todos os seus contemporâneos. Decorre daí, talvez, a razão pela qual Sartre se refere aos seus romances como uma forma legítima de se vivenciar os problemas referentes à situação histórica de determinado homem. Nesse sentido, é possível “sustentar os nossos pensamentos pelas experiências fictícias e concretas que são os romances”.139 Os romances aparecem como uma forma de lançar os homens em sua situação histórica concreta através da experiência ficcional que caracteriza a prosa. Parece, portanto, que a criação romanesca constitui uma forma legítima de se vivenciar os problemas de determinada situação histórica através da experiência fictícia e concreta que a literatura é capaz de proporcionar. A literatura adquire, pois, esse caráter vivencial, ou seja, ela deve se ocupar do homem imbricado na história. Numa mesma direção, Sartre diz que, no tocante à filosofia, “não se trata mais de contemplar a imobilidade das substâncias que são o que são, nem de encontrar as regras de uma sucessão de fenômenos”. Isso significa que a filosofia existencialista, tal como a literatura, deve se ocupar do próprio homem em sua dinâmica com a vida, distanciando-se das preocupações de ordem puramente “metafísicas”, ou seja, desvinculadas das situações concretas. Em outras palavras, poderíamos dizer que Sartre instaura uma ontologia que pretende se ocupar do homem em sua relação efetiva com o mundo. No entanto, trata-se ainda de uma ontologia, mas de uma ontologia do concreto, à qual aludimos no primeiro capítulo deste estudo, ao trabalharmos com a relação entre o ser do fenômeno e o fenômeno do de ser. Com a ontologia assim concebida, ou seja, buscando seus fundamentos no concreto, o absoluto passa a residir no relativo e a metafísica mergulha na história. Sob esse prisma, torna-se lícito asseverar que, em 138 139 Ibidem, p. 13. SARTRE, Jean-Paul, O que é a literatura?, p. 165. 63 Sartre, não encontramos uma metafísica clássica que se ocupa do estudo do ser enquanto ser; mas, de fato, deparamo-nos com uma metafísica, ancorada na idéia de que a unidade do fenômeno será dada pelo próprio mundo justamente porque há o ser, tal como exposto no capítulo anterior. Sob essa perspectiva, o filósofo se refere à literatura como “o lugar do universal singular ou o lugar do universal concreto” em contraposição ao lugar do “universal abstrato” representado pela filosofia clássica.140 Nesse registro, a fenomenologia se apresenta como o método privilegiado dessa filosofia, porquanto, tal como a literatura, busca abarcar o homem em sua relação com o mundo. Afinal, a consciência está no mundo. É também sob essa perspectiva que Saint-Sernin, ao comentar a relação entre filosofia e literatura em Sartre, afirma que “entre filosofia e ficção, a relação não é nem exterior nem acidental; é uma relação de inerência”.141 Mas em sua análise, esse autor, além de atribuir um lugar privilegiado à literatura dentro da produção sartriana, a ponto de afirmar a relação de inerência entre esses dois registros, parece defender a existência de certa contaminação entre esses dois âmbitos. Diz ele: Uma inversão se opera: na década de 40, o registro da filosofia e da ficção, ao mesmo tempo em que buscavam o mesmo fim, se revelavam distintos; no final dos anos 50, intensidade dramática e potência conceitual se concentram em uma obra que permanece "filosófica", e, ao mesmo tempo, épica. Sartre poderia retirar material para cinqüenta peças teatrais de Crítica da Razão Dialética.142 Saint-Sernin toma como pressuposto a separação da produção sartriana em dois momentos,143 ou, mais precisamente, em duas ontologias. Para o comentador, a partir dos anos 50, isto é, a partir da fase “madura” da produção intelectual de Sartre, ocorre uma contaminação da literatura na parte da obra que se pretende estritamente filosófica, caracterizando assim o que ele chama de uma segunda ontologia. Esta posição contradita diretamente com a posição que estamos defendendo neste estudo. Para nós, vale ratificar, mesmo em face da importância que a 140 Idem, L’Écrivain et sa Langue, p. 56. “[...] le lieu de l’universel singulier ou l’universel concret. [...] le lieu de l’universel abstrait” (nossa tradução). 141 SAINT-SERNIN, Bertrand, Philosophie et fiction, p. 165. “Entre philosophie et fiction, la relation n’est ni extérieure ni accidentelle; c’est un rapport d’inhérence” (nossa tradução). 142 Ibidem, p. 177. “Un renversement s'est opéré: dans les années 40, registre de la philosophie et de la fiction, tout en concourant au même but, sont distincts; à la fin des années 50, intensité dramatique et puissance conceptuelle se concentrent dans une oeuvre qui demeure "philosophique", tout en étant épique. Sartre aurait pu tirer la matière de cinquante pièces de théâtre de Critique de la raison dialectique” (nossa tradução). 143 Sobre a separação da obra de Sartre em dois momentos, ou duas ontologias, tomamos como pressuposto aqui que esta divisão se mostra artificial. Tal como afirma Thana Mara de Souza em Sartre e a literatura engajada: Espelho Crítico e Consciência Infeliz, ver nota 97, p. 60. 64 literatura adquire para Sartre, talvez exatamente por isso, filosofia e literatura não se confundem e guardam sua especificidade no âmbito da perspectiva existencialista. Nossa interpretação da obra sartriana, portanto, não visa aproximar os registros – filosofia e literatura – a ponto de amalgamá-los, tal como parece sugerir o comentador. Ao contrário, o que procuramos ressaltar é a necessidade de se lançar mão da linguagem ficcional mesmo em face da inegável separação que existe entre esses dois âmbitos da produção sartriana. Por essa razão, destacamos as críticas que Thana Mara de Souza dirige à Saint-Sernin quando este afirma que, no assim chamado segundo Sartre, há uma contaminação entre o âmbito ficcional e o âmbito teórico da obra do filósofo. É justamente nesse sentido que a comentadora afirma: [...] ao contrário do que afirma Saint-Sernin, a distinção entre filosofia e literatura se dá em toda a filosofia de Sartre, e de modo ainda mais claro em A Crítica da Razão Dialética, livro no qual as palavras se mostram de forma mais rude e seca, longe do sentido literário que se poderia dar as frases [...] de O Ser e o Nada.144 Não é nossa intenção aqui aprofundarmos a discussão acerca da separação entre essas duas esferas – literária e filosófica – do pensamento de Sartre; limitamo-nos a afirmar que é justamente a partir da separação entre filosofia e literatura que a ficção aparece como um meio teórico privilegiado de acesso ao real. Ou seja, é justamente porque esses dois âmbitos não se confundem que é imprescindível ao filósofo perseguir também a via da linguagem ficcional. Ora, se a filosofia não dá conta de lançar o homem em sua existência concreta, em virtude de seu caráter conceitual, então a literatura se impõe como único meio de desvelar ao homem sua verdadeira condição. Desse modo, concordamos com a observação de T. M de Souza, segundo a qual Saint-Sernin se equivoca ao afirmar que há contaminação literária na obra filosófica de Sartre. Como nota a estudiosa, mesmo que o próprio Sartre admita ter se utilizado de imagens literárias em sua obra filosófica, é ele também que se apressa em afirmar o equivoco de tal abordagem, pois elas – literatura e filosofia – não se confundem. A imagem não constitui um recurso filosófico precípuo. A questão das imagens adquire, pois, absoluta relevância para nossa discussão. 144 Ibidem, p. 61. 65 3. Das variações imaginárias ao caráter contingente da existência: uma literatura de situações extremas Evoquemos Saint-Sernin, uma vez mais. Mas agora o fazemos com a intenção de destacar a necessária relação que se estabelece entre a filosofia existencialista e o método fenomenológico, além de ressaltar também o modo pelo qual este método legitima a criação ficcional – ou imaginária – enquanto via de acesso ao real. Para o autor, no conjunto da obra de Sartre, [...] a fenomenologia traz uma garantia maior. Husserl, de fato, esclarece e legitima duas operações praticadas por Sartre: a suspensão da adesão à existência e a de colocar o imaginário à serviço da verdade. Sob certas condições, as descrições, para além de seu valor estético, constituem os instrumentos de exploração verídicos do real.145 Se, por um lado, a fenomenologia recoloca a filosofia em sua relação com as coisas, visto que, através da epoché, propõe um retorno às coisas mesmas, despojando a filosofia de toda contaminação prévia, por outro lado, a perspectiva fenomenológica, aponta também para uma concepção mais veemente da literatura, na medida em que reconhece na linguagem ficcional a capacidade de explicitar ao homem sua condição contingente, retratando-a. Desse modo, a criação literária aparece não apenas como um meio de expressar a filosofia existencialista, mas também, e principalmente, como uma forma “verídica” de acesso ao real através do imaginário.146 Aprofundemos um pouco essas asserções. Usualmente na literatura, ou “na tipologia romanesca tradicional”, os personagens representam uma essência arquetípica e, desse modo, mantêm o leitor no domínio da abstração. A figura do herói, por exemplo, obedece àquilo que é característico do arquétipo do herói, o que leva a uma construção que poderíamos chamar de “pré-determinada”, ou “pré-condicionada”, indicando ao leitor que toda a ação da trama obedece a uma essência metafísica. Inversamente, a partir das variações eidéticas decorrentes do método fenomenológico, a literatura que adota essa perspectiva, – e Saint-Sernin alude aqui aos romances de Sartre – liberta-se de uma construção condicionada por uma natureza humana dada a priori e, em decorrência, coloca o leitor em 145 SAINT-SERNIN, Bertrand, Op. Cit., p. 172-173. “[...] la phénoménologie apporte une caution majeure. Husserl, en effet, éclaire et légitime deux opérations pratiquées par Sartre: la suspension de l'adhésion à l'existence; la mise de l'imaginaire au service de la vérité. Sous certaines conditions, au-delà de leur valeur esthétique, constituent des instruments d'exploration véridique du réel” (nossa tradução). 146 Dada a centralidade da questão do imaginário para a compreensão da criação ficcional na obra de Sartre o tema será retomado em um tópico dedicado especificamente ao problema. 66 contato com sua condição humana, contingente e absurda. Logo, a literatura existencialista lança o homem no plano do drama existencial, negando qualquer tipo de “pré-determinação” que possa justificar a ação dos personagens. É por essa razão que Leopoldo e Silva observa que “[...] a fenomenologia não apenas provocou as profundas alterações no pensamento filosófico [...] como também influiu em outros campos da cultura e, notadamente, na elaboração da narrativa literária”.147 A literatura, para Sartre, a partir da aproximação com o método fenomenológico, passa a ter por função explicitar a condição contingente do homem. Nesse sentido, o filósofo sustenta que é preciso “criar uma literatura capaz de reunir e reconciliar o absoluto metafísico [filosofia fenomenológica] e a relatividade do fato histórico [criação ficcional propriamente dita]”,148 pois contingente. É por isso que Sartre afirma também que, para além da causalidade fenomênica, está “a liberdade humana como sua fonte e fundamento original”.149 Ou seja, a causalidade fenomênica, que se explicita a partir da redução fenomenológica, revela que seu fundamento último é a liberdade humana. Nessa direção, a literatura surge como um instrumento capaz de desvelar a liberdade do escritor que, em última análise, é autor da falsa causalidade implicada na construção de um romance, e falsa justamente porque pressupõe a liberdade do autor como seu fundamento. Mas a criação literária requer também a liberdade do leitor para completar a construção significativa da obra. É exatamente nesse sentido que Sartre assinala: [...] o autor escreve para se dirigir à liberdade dos leitores, e a solicita para fazer existir sua obra. Mas não se limita a isso e exige também que eles retribuam essa confiança neles depositada, que reconheçam a liberdade criadora do autor e a solicitem, por sua vez, através de um apelo simétrico e inverso. [Assim] quanto mais experimentamos a nossa liberdade, mais reconhecemos a do outro. 150 A literatura aparece simultaneamente como aquilo que desvela a liberdade humana enquanto fundamento de sua condição existencial e também como apelo ao exercício da própria liberdade. Assim, quando o leitor reconhece nessa liberdade o fundamento de sua condição, simultaneamente ele vislumbra na liberdade alheia o fundamento de sua própria liberdade. Numa palavra, a liberdade solicita a liberdade. É por isso que “o escritor decide apelar para a liberdade dos outros homens para que, através das implicações recíprocas das suas exigências, eles reapropriem a totalidade do ser para o homem e fechem a humanidade sobre o 147 LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Ética e Literatura em Sartre: Ensaios Introdutórios, p. 46. SARTRE, Jean-Paul, O que é a Literatura, p. 164. 149 Ibidem, p. 46. 150 Ibidem, p. 43. 148 67 universo”.151 Trata-se de lançar novamente o homem no domínio de sua condição de ser livre, enquanto agente construtor de si e de sua situação histórica. Assim, entendemos porque o filósofo dirá em O Existencialismo é um Humanismo que: [...] ao querermos a liberdade, descobrimos que ela depende inteiramente da liberdade dos outros, e que a liberdade dos outros depende da nossa. Sem dúvida, a liberdade como definição do homem não depende de outrem, mas, uma vez que existe a ligação de um compromisso, sou obrigado a querer ao mesmo tempo a minha liberdade e a liberdade dos outros.152 A liberdade parece requerer a liberdade por intermédio do compromisso e a literatura aparece como um meio privilegiado para desvelá-lo. É justamente por isso que Sartre assevera que os romances escritos contemporaneamente a sua produção tinham por tema desvelar ao homem sua própria condição histórica. Eis a tônica sob a qual Sartre pensa o papel do romance em seu tempo ou o que ele buscava na literatura de seus pares. Assim, tornam-se bastante elucidativas as considerações tecidas num artigo intitulado Sobre John dos Passos e 1919. 153 Nele, o autor indaga justamente o sentido filosófico do romance: Um romance é um espelho: todo mundo diz. Mas o que é ler um romance? Creio que seja saltar para dentro do espelho. De repente nos encontramos ali, do outro lado, em meio a gente e objetos que nos parecem familiares. Mas é apenas aparência, pois na verdade jamais os tínhamos visto. E as coisas do mundo, por sua vez estão lá fora e se tornam reflexos. Fechamos o livro, transpomos a beirada do espelho e reentramos neste honesto mundo daqui: reencontramos os edifícios, os jardins, as pessoas que nada nos dizem; o espelho, que se recompôs logo atrás, reflete-o placidamente. Depois disso juraríamos que a arte é um reflexo; os mais maliciosos irão até falar em espelhos deformantes. Essa ilusão absurda e obstinada, Dos Passos a utiliza muito conscientemente para nos levar à revolta.154 151 Ibidem, p. 47. Idem, O Existencialismo é um Humanismo, p. 19. 153 Não nos esqueçamos de que aquilo que é dito acerca de John dos Passos vale, de uma maneira mais ou menos geral, aos escritores: Stendhal, Kafka, Faulkner, Hemingway entre outros. Mesmo que aqui Sartre ainda considere Dos Passos o maior dentre eles, como atenta Bento Prado Jr. na introdução de Situações I. Essa postura, no entanto, seria relativizada pelo próprio autor posteriormente. No texto mencionado, Sartre advoga: “O mundo de Dos Passos é impossível – como o de Faulkner, o de Kafka, o de Stendhal – porque é contraditório. Mas é por isso que é belo: a beleza é uma contradição velada. Considero Dos Passos o maior escritor do nosso tempo”. (SARTRE, Jean-Paul, Situações I, p. 45. Grifo nosso.) Ainda nesse sentido Sartre afirmou, certa vez, comentando a obra de Kafka: “[...] eu diria que [ele] quis descrever a condição humana. Mas o que nos tocava especialmente é que, nesse processo perpetuamente em curso, que termina bruscamente e mal, cujo os juízes são desconhecidos e inacessíveis, nos vãos esforços dos acusados para saber de que são acusados, nessa defesa pacientemente arquitetada, que acaba por se voltar contra o defensor e figurar entre as provas da acusação, nesse presente absurdo que as personagens vivem aplicadamente e cujas chaves estão ausentes, nisso tudo reconhecíamos a história, e a nós mesmos na história”. (SARTRE, Jean-Paul, Que é a Literatura?, p. 167-8). 154 SARTRE, Jean-Paul, Sobre John dos Passos e 1919 In: Situações I, p. 37 152 68 Chegamos ao ponto. Eis o que Dos Passos tem de melhor e, por conseqüência, toda a literatura admirada por Sartre: a revolta, a capacidade de retirar o leitor do mundo para recolocálo, mas, só que agora, “revoltado atrás do espelho”. Dos Passos quer mostrar o mundo sem explicações nem comentários. E “mostrar o mundo sem explicações e sem comentários” significa desvelá-lo, retirar o véu que encobre “o real por detrás da realidade”. Mas o escritor, tal como entende Sartre, deve retirar sua matéria do nosso mundo, deve estar próximo a nós. No entanto isso não significa negar aquilo que a arte tem de mais característico, ou seja, seu substrato estético. Afinal fazer arte ainda é criar o belo. Sendo assim, é curioso, e aparentemente contraditório, que o mesmo autor que diz que “na sociedade capitalista os homens não tem vidas tem apenas destinos”;155 também nos brinde com essa máxima que, no seu estilo, lembra-nos Oscar Wilde: “a beleza é uma contradição velada”. Aqui já se anuncia, em entrelinhas, claro, algo que buscaremos esclarecer adiante: a relevância do leitor dentro deste processo. Cabe aos homens engajar sua liberdade em seu contexto; é preciso se insurgir contra seu tempo. O romance, digamos, solicita tal postura de quem o lê. Daí a importância do leitor, pois sem ele “haveria apenas borrões negros sobre folhas brancas”.156 Estamos prontos para compreender as palavras do autor: Daí a vergonha e esse mal-estar que Dos Passos tão bem sabe provocar em seu leitor; cúmplice a contragosto – e ainda nem tenho certeza de sê-lo a contragosto –, ao nosso tempo criando e recusando os tabus; de novo, em meu próprio âmago, contra mim mesmo, revolucionário.157 Essa discussão remete a questões sobre as quais nos debruçaremos adiante, entre elas, a idéia de que à literatura cabe lançar o homem em seu próprio contexto, despertá-lo para sua própria “realidade”. Nesse sentido, o recurso ao imaginário é apelo à liberdade do leitor. Daí a necessidade de se “fazer uma literatura de situações extremas”,158 uma vez que não é possível fugir de determinado contexto histórico: “não se trata de escolher a sua época mas de se escolher nela”.159 É nesse sentido que a metafísica tradicional não tem mais lugar enquanto fundamento de uma filosofia – ou de uma literatura, poderíamos dizer – que se quer concreta, isto é, que busca abarcar o homem inserido na história. Conseqüentemente, também a metafísica adquire uma nova tônica, visto que se evade das vias abstratas e mergulha na 155 Ibidem, p. 40. Ibidem, p. 43. 157 Ibidem, p. 43. 158 Idem, Que é a Literatura?, p. 164. 159 Ibidem, p. 176. 156 69 experiência: “a metafísica não é uma discussão estéril sobre noções abstratas que escapam à experiência, mas um esforço vivo para abranger, a partir de dentro, a condição humana em sua totalidade”.160 Acerca da influência da fenomenologia na criação ficcional em Sartre, vem a propósito o dizer de Saint-Sernin, para o qual “a ficção desempenha um papel determinante, uma vez que a invenção de „variações eidéticas‟ imaginárias é a única maneira de evidenciar a contingência do que advém e a constituição dos fenômenos que surgem”.161 Ora, se a liberdade humana é o fundamento último da literatura, a contingência surge como corolário de um processo de libertação, no qual a ficção aparece como um meio privilegiado de acesso ao real. Dito de o outro modo, se o fundamento último da produção literária é a liberdade humana, e se esse fundamento requer a liberdade do leitor enquanto seu contraponto necessário e complementar, então, a variação imaginária que a fenomenologia proporciona surge como uma forma privilegiada de desvelar ao homem o caráter contingente da existência, pois ressalta que a realidade humana em última instância não obedece a nenhuma essência dada a priori. Desse modo, o significado profundo das variações eidéticas remete justamente ao caráter gratuito, aleatório e contingente que fundamenta a existência humana. Para uma melhor compreensão desta questão, os comentários de Leopoldo e Silva são esclarecedores, diz ele: “[...] a variação imaginária da existência permite visá-la também na sua especificidade e originalidade, que, nesse caso, não será a essência, mas precisamente a contingência. A verdade da existência será a sua contingência”.162 O que essa passagem parece evidenciar é o papel central que a fenomenologia adquire seja para a filosofia existencialista, seja para a criação literária. É justamente a partir das descrições fenomenológicas e das variações eidéticas referidas, que a literatura revela seu potencial para a exploração verídica do real. O recurso à variação imaginária logra realizar o necessário distanciamento da “vida natural”, isto é, de uma concepção que entenda a vida como naturalmente ordenada obedecendo a essências universais. Esse procedimento provoca a desconstrução da “adesão à existência” enquanto algo natural, o que destaca o caráter contingente da existência. A filosofia fenomenológica busca o homem concretamente, no entanto, segundo o que buscamos evidenciar, ela não é capaz de colocar o homem diante de sua condição contingente de forma vivencial e particularizada, tal 160 Ibidem, p. 164. SAINT-SERNIN, Bertrand, Op. Cit., p. 172-173. “La fiction y joue un rôle déterminant, puisque l'invention de <<variations eidétiques>> imaginaires est seule à pouvoir mettre en évidence la contingence de ce qui advient et la constitution des phénomènes qui surgissent” (nossa tradução). 162 LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Ética e Literatura em Sartre: Ensaios Introdutórios, p. 48 (grifo nosso). 161 70 como a literatura o faz. Daí decorre que o esforço de descrição, ainda que teórico e conceitual, aproxima-se do esforço literário e imaginário de explicitar os múltiplos perfis da existência em sua contingência radical, afastando-se das estreitas perspectivas instauradas pela objetividade. Assinala Leopoldo e Silva: [...] o trabalho da imaginação é uma “exploração verídica do real”: exatamente por darse como variação imaginária e, portanto, liberada da factualidade ordenada segmentadamente nas frações categoriais do “mundo da experiência”, “põe em 163 evidência” “a contingência daquilo que advém”. Vimos que a relação entre filosofia e literatura se redefine com a fenomenologia, uma vez que a filosofia ao se contrapor a toda a tradição metafísica e ao voltar-se para o homem em sua vivência histórica – ou seja, em seu retorno ao concreto – adquire um caráter dramático. Ao buscar o concreto da experiência existencial, o existencialismo requer a literatura enquanto percurso fundamental do pensar. Essa criação literária que se torna relevante para a inspeção filosófica já não se ancora em instâncias pré- determinadas, mas se constrói no confronto com a contingência e com a história, as quais serão desveladas pelas vias da variação imaginária. Eis que a questão do imaginário torna-se crucial para nossa discussão. Antes, porém, de enveredarmos por esse caminho, cabe ainda nos determos sobre um aspecto da necessária diferença entre filosofia e literatura, mais especificamente no que tange à questão da linguagem. Se literatura e fenomenologia buscam retratar o homem em sua totalidade, mas visando-o enquanto universal concreto, ocorre que ambas – a literatura e a fenomenologia – adquirem um caráter ambíguo. E esse caráter ambíguo decorre do fato de que a linguagem nunca se apresenta completamente liberada de sua condição polissêmica. No entanto, mesmo que a linguagem filosófica não se apresente como unívoca, a filosofia deve buscar a univocidade da linguagem científica para, na medida do possível, oferecer ao leitor uma demonstração clara e objetiva. Nesse sentido, não deve haver contaminação entre o registro teórico e o registro ficcional. Sob a perspectiva sartriana, um tratado filosófico repleto de imagens literárias se configura como um “mau trabalho filosófico”. Nas palavras do autor: Na filosofia cada frase deve ter um só sentido. O trabalho que fiz em As Palavras, por exemplo, tentando dar a cada frase sentidos múltiplos e superpostos, seria um mau trabalho filosófico. Se tenho de explicar o que é o Para-si e o Em-si, isso pode ser difícil, posso utilizar diferentes comparações, diferentes demonstrações para chegar 163 Ibidem, p. 48. 71 a ela, mas é preciso utilizar idéias que devem poder fechar-se: não é nesse nível que se encontra o sentido completo – o qual pode e deve ser plural no nível da obra completa –, eu não quero dizer, com efeito, que a filosofia, como a comunicação científica, seja unívoca.164 A linguagem filosófica busca a univocidade, ainda que não logre atingi-la por completo. Eis uma preocupação que escapa à literatura. De acordo com Sartre, a criação ficcional comporta um caráter duplamente ambíguo, pois cada frase comporta múltiplos significados, ou seja, uma imagem literária nunca pode se limitar a um único sentido, de sorte que cada frase em uma obra ficcional pode ser reescrita de diversas maneiras diferentes, comportando sempre diversos sentidos. Assim, em literatura, “nada do que eu digo é totalmente expresso pelo que digo. Não há nessa linguagem a pretensão – no limite, sempre inalcançável – à objetividade e à univocidade que permeia a linguagem técnica da filosofia. A literatura sempre se relaciona com o vivido, com aquilo que é do âmbito da existência onde os significados fixos inexistem. Sua tônica é, pois, a da multiplicidade significativa. Voltemos, pois, ao texto do filósofo: Em literatura, que de certa maneira sempre tem ligações com o vivido, nada do que eu digo é totalmente expresso pelo que digo. Uma mesma realidade pode ser expressa de maneiras diferentes. E é o livro inteiro que indica o tipo de leitura que cada frase requer, e até o tom de voz que essa leitura requer, quer leia em voz alta ou não [...] Este trabalho é mais ou menos longo, mais ou menos trabalhoso, segundo os autores. Todavia, de maneira geral, é sempre mais difícil escrever quatro frases em uma que só uma em uma, como em filosofia.165 A partir deste quadro descrito por Sartre podemos concluir, seguindo a análise de T. M. de Souza, que se a comunicação científica requerida pela filosofia busca encontrar um “sentido completo” – mesmo que isso se mostre impossível em sentido absoluto, o que a torna, também, e de certo modo, ambígua –, na construção literária cada frase se apresenta através de uma multiplicidade de significados. Daí decorre que a literatura se caracterize, como evidencia o filósofo, por uma dupla ambigüidade. A autora busca diferenciar esses dois registros através de uma distinção bastante sutil entre o retratar da linguagem ficcional e o mostrar conceitual da filosofia. [...] a literatura, através dessa linguagem que diz muitas frases em apenas uma, consegue retratar a realidade humana. Mas justamente porque se caracteriza por ser uma linguagem múltipla, ela não consegue conceitualizar as situações humanas. Apenas 164 SARTRE, Jean-Paul, Autoportrait à soixante-dix ans, p. 137-138 apud SOUZA,Thana Mara. Sartre e a literatura engajada: Espelho Crítico e Consciência Infeliz, p. 63 (tradução da autora). 165 Ibidem, apud SOUZA, Thana Mara de. A Literatura para Sartre: a Compreensão da Realidade Humana, p. 131 (tradução da autora). 72 a filosofia, com sua linguagem una (um único sentido para cada frase), é capaz de conceitualizar [mostrar].166 Se, por um lado, a linguagem literária é ambígua porque toda frase literária é polissêmica, ela o é também porque é fundamentalmente obra imaginária. A imagem, ao comportar uma multiplicidade de sentidos, consegue retirar o homem de um mundo naturalmente ordenado, que obedece a sentidos dados a priori; ela o predispõe para a aceitação e para o enfrentamento de sua condição contingente. Nesse sentido, é o caráter ambíguo da linguagem ficcional que permite à literatura – cujo fundamento reside no imaginário, isto é, no irreal –, desvelar o real da condição humana ao próprio homem. Logo, a imagem é capaz de oferecer a vivência necessária ao homem para que este se dê conta de sua própria condição, que, caso contrário, se mostraria como estável e naturalmente determinada, uma vez que compreendida unicamente sob os cânones do que é incontestavelmente dado. Voltaremos a esse ponto com maior acuidade. No momento, essa indicação tem sua importância porque nos permite vislumbrar um outro aspecto que aprofunda os limites do conceito. A linguagem conceitual mantém o leitor diante de um mundo no qual tudo tem um sentido, no qual o inesperado inexiste, visto que completamente desconectado das vivências particulares. Seu intuito, lembremos, consiste na objetividade decorrente da busca da univocidade. Assim, voltamos à questão da insuficiência da linguagem filosófica e da necessidade de que ela se complemente com a criação ficcional. A ampla ambigüidade que caracteriza a linguagem literária, decorrente de sua multiplicidade significativa, bem como o seu caráter imagético, desvelam facetas impensáveis para a abordagem conceitual. Sob esse prisma, o caráter desvendante da literatura, particularmente da prosa, ultrapassa a filosofia. Uma vez mais, a comentadora: E nesse sentido, apenas a prosa pode ser ambígua, já que a filosofia não é imaginário. A prosa é, portanto, ambígua nesses dois sentidos: tanto por conter vários significados em cada frase – o que a torna mais ambígua que a filosofia –, quanto por ser obra imaginária, o que lhe permite essa passagem do real para o irreal e deste novamente para o real, mostrando assim o real imaginário, dando-o ao mesmo tempo como real. E são justamente essas ambigüidades que fazem com que a prosa adquira, em Sartre, um papel essencial no desvendamento da realidade humana. 167 Vale insistir: com base em seu caráter duplamente ambíguo, a literatura aparece como a forma por excelência de acesso ao real através do irreal, isto é, do imaginário. Se a filosofia – mesmo a fenomenológica com seu retorno “às coisas mesmas” – aparece como insuficiente para 166 167 SOUZA, Thana Mara de, A Literatura para Sartre: a Compreensão da Realidade Humana, p. 133 (grifo nosso). Idem, Sartre e a literatura engajada: Espelho Crítico e Consciência Infeliz, p. 64. 73 abarcar a realidade humana, a literatura se apresenta não apenas como uma referência, mas também como uma das formas de se “fazer” essa filosofia. Ou seja, o filósofo reconhece sua necessidade de se expressar também pelas vias da literatura. E isso acontece justamente, como foi dito antes, porque esses dois âmbitos da produção intelectual – literatura e filosofia – são distintos. Torna-se, pois, evidente a complementaridade entre ambas, à qual aludíamos acima. A filosofia, tal como delineada na obra sartriana, desenvolve-se tanto pelas vias da abordagem fenomenológica como por aquelas outras da criação ficcional. Em ambas as vertentes ela se ocupa da realidade humana. Seu objeto sempre será o homem em sua relação com o mundo, ou, se se quiser, o homem em situação ainda que problematizado em linguagens distintas. Em síntese, sob a perspectiva sartriana, literatura e filosofia não se confundem, mas se complementam. No entanto, a “exploração verídica do real”, descrita por Saint-Sernin como característica fundamental da literatura, se dá por intermédio da imaginação, jamais pelo conceito que constitui a ferramenta filosófica, mesmo quando nos encontramos no âmbito da fenomenologia. É a literatura, através de sua inserção no imaginário, que retrata diretamente o caráter contingente da existência humana. Torna-se necessário, pois, analisarmos mais cuidadosamente o papel do imaginário na criação ficcional no pensamento de Sartre. 4. Imaginário: o irreal que desvela o real Comecemos por apresentar o que Sartre entende por imaginação. Para tanto é preciso, primeiramente, explicitar a distinção que o filósofo faz entre imagem e percepção, pois Sartre se opõe à maneira como tradicionalmente a filosofia entende esses conceitos. Ou melhor, ele critica a indistinção com que esses conceitos são tratados pela tradição.168 Para explicitarmos essa concepção faz-se necessário recorrermos principalmente a dois textos do autor: O Imaginário e A Imaginação. Ressaltemos que, segundo o filósofo, consciência imaginante169 e consciência perceptiva não se confundem. A imagem será assim definida como “um ato que visa em sua 168 Na apresentação de O Imaginário, Bento Prado Jr. e Damon Moutinho afirmam que, para Sartre, a tradição mais ou menos se equivale no que concerne ao conceito de Imagem. Segundo os comentadores, o projeto de realizar uma redução fenomenológica da Imagem, se constitui em duas etapas, a primeira, a “crítica”, realizada em A Imaginação, é dedicada à tarefa de evidenciar a maneira como a tradição lida com o problema; A segunda, a “científica”, busca ultrapassar as análises propostas por seu mestre, Husserl e se dá em O Imaginário. SARTRE, Jean-Paul, O Imaginário, p. 6. 169 Entendemos que o termo consciência imaginante é preferível à imaginação, visto que ressalta o caráter de fluxo continuado que caracteriza a consciência e, por conseqüência, a imaginação, tal como veremos a seguir. 74 corporeidade um objeto ausente ou inexistente” enquanto uma representação analógica do objeto visado.170 Notadamente, o pressuposto implícito aqui é que a imagem se apresenta enquanto ato não enquanto coisa. A tradição entende a imagem como a reprodução em miniatura da coisa imaginada na mente, como uma espécie de “coisa menor” na consciência. O que implica, em primeiro lugar, uma identificação entre imagem e percepção; e, por conseqüência, uma relação de falsidade e veracidade. Se a imagem é uma reprodução em miniatura da coisa real, então ela teria um menor grau de veracidade se comparada à coisa mesma, assim a imagem aparece como uma espécie de cópia menor da percepção. Dentro da concepção clássica ou, como prefere Sartre, da “metafísica ingênua da imagem”, “a imagem existe como o objeto”. “Essa metafísica consiste em fazer da imagem uma cópia da coisa, existindo ela mesma como uma coisa”.171 Confunde-se, desse modo, “identidade de essência” com “identidade de existência”. Sob esse registro, é como se houvessem dois objetos no mesmo plano: o objeto real e o objeto imaginado. Ou seja, é como se houvesse uma identidade de existência entre esses dois objetos, invertendo, deste modo, a relação natural em que há um mesmo objeto em dois planos diferentes: o plano da consciência imaginante e o plano da consciência perceptiva. Haveria, assim, uma identidade de essências. Para Sartre, trata-se de um mesmo objeto, mas num momento percebido, noutro imaginado. Por exemplo, dentro da concepção tradicional quando percebo este lápis em minha frente tenho uma coisa real, o lápis percebido, se me viro e imagino este lápis teria uma outra coisa, só que agora em minha consciência, uma reprodução imperfeita deste lápis real na consciência. Evidencia-se aqui uma concepção substancialista da imaginação, pois, sob o registro da tradição, a consciência aparece como uma espécie de lugar habitado por pequenos simulacros. Para compreendermos melhor o que Sartre entende por imagem, portanto, é preciso que estejamos calçados pela discussão que abriu nosso percurso e que procurou elucidar a natureza da consciência neste universo filosófico. Pois é daí que deriva a distinção entre o entendimento da imagem enquanto ato, como o faz Sartre a partir da fenomenologia, ou enquanto coisa, como o faz a tradição da “metafísica ingênua da imagem”. Dizer que a imagem é em ato significa dizer que a imagem é consciência de alguma coisa e não que a imagem é alguma coisa na consciência. Daí a categórica afirmação do filósofo: “Não há, não poderia haver imagens na consciência. Mas a imagem é um certo tipo de consciência. A imagem é um ato e não uma 170 171 SARTRE, Jean-Paul, O Imaginário, p. 37 e 79. Idem, A Imaginação, p. 35. 75 coisa. A imagem é consciência de alguma coisa”.172 É patente aqui a dívida de Sartre para com Husserl em relação ao conceito de imagem, ainda que O Imaginário tenha sido, segundo o autor, escrito contra Husserl, mas apenas na medida em “que um discípulo pode escrever contra o seu mestre”.173 Desse modo, como bem destaca Françoise Noudelmann, tal “como a consciência, a imagem é sempre imagem de alguma coisa. A consciência imaginante deve então ser estudada como um certo tipo de relação com o objeto”.174 Noudelmann parodia a máxima husserliana de que “toda consciência é consciência de alguma coisa”, com o propósito de ressaltar a inegável vinculação entre a teoria da imagem em Sartre e a fenomenologia. 175 É sob o registro da fenomenologia então que Sartre demarcará o verdadeiro caráter da imagem em relação à percepção, isto é, “elas são duas atitudes irredutíveis da consciência que se excluem mutuamente”.176 O que equivale a dizer que quando imagino, não percebo, e quando percebo, não imagino, pois são dois modos distintos de se intencionar o objeto. Como vimos no capítulo anterior, desde A Transcendência do Ego, ou seja, desde seus primeiros escritos, Sartre deixa bem claro a necessidade de se dessubstancializar a consciência, o que significa, que não é possível afirmar a existência de algo na consciência, ou melhor, a consciência mesma é Nada, ela é pura relação com o mundo, ela é ato-puro:177 [...] a existência da consciência é um absoluto porque a consciência está consciente dela mesma. Isto quer dizer que o tipo de existência da consciência é o de ser consciência de si. E ela toma consciência de si enquanto ela é consciência de um objeto transcendente. Tudo é portanto claro e lúcido na consciência: o objeto está face a ela com a sua opacidade característica, mas ela, ela é pura e simplesmente consciência de ser consciência desse objeto.178 172 Ibidem, p. 106 (grifo nosso). Idem, Diário de uma Guerra Estranha, p. 176. Sartre aqui se refere à Husserl ao admitir a inegável influência da filosofia Heideggeriana sob seu pensamento isto é, ao admitir seu afastamento da fenomenologia, que era, até então, reconhecidamente sua maior influência. Notemos, contudo, que Sartre nunca abandonará a perspectiva fenomenológica; o que ele fará, como antes comentado, é apropriar-se criticamente das idéias de Husserl. 174 NOUDELMANN, Françoise, L’Incarnation Imaginaire, p. 21. “Comme la conscience, l’image est toujours image de quelque chose. La conscience imageante doit être étudiée comme un certain type de relation à l’objet” (nossa tradução). 175 É importante ressaltar que Sartre não se limita à reproduzir as teorias de seu mestre, Husserl. Para o filósofo francês, o próprio Husserl foi “vítima da ilusão da imanência, caindo no mesmo erro que o estudo crítico [isto é, A Imaginação] denunciara nos clássicos”. No entanto, não é nosso objetivo aqui nos aprofundarmos nas críticas de Sartre à Husserl, basta-nos ressaltar a crítica do autor a tradição. Para mais, ver: SARTRE, Jean-Paul. O Imaginário, p. 6. 176 BERNIS, Jeanne, A Imaginação: Do Sensualismo Epicurista à Psicanálise, p. 25. 177 Este tema, como dissemos, já foi abordado de maneira minuciosa no primeiro capítulo deste estudo, no entanto, cabe retomar algo dessa discussão com o intuito de esclarecer a noção de consciência imaginante para o autor. 178 SARTRE, Jean-Paul, A Transcendência do Ego, p. 48. 173 76 Em outras palavras, a consciência é pura relação com o mundo e, em decorrência, não há nada na consciência. Desse modo, o objeto transcendente, ou seja, a coisa que se mostra à consciência, nada mais é do que esse processo da consciência enquanto consciência de si. Isso equivale a dizer que a consciência, na perspectiva existencial fenomenológica de Sartre, é pura relação com o mundo, ela é um fluxo contínuo lançado no mundo. Portanto, o Para-si é em relação ao Em-Si, ou seja, o Para-si nunca é, ele é sempre um “estar-sendo”. Ele é um processo, um fluxo contínuo. Ou, como sintetiza Sartre, o Para-si é sempre um projeto de si mesmo. A consciência é para si mesma translúcida pois ela só é no mundo, o que é o mesmo que dizer que a única forma de existir da consciência é ser consciência de si mesma enquanto relação com o mundo. É por isso que Sartre diz que a consciência é espontânea. Como antes assinalado, ela é sempre consciência de alguma coisa, mas sem nunca deixar de ser consciência de si. De acordo com Moutinho, para Sartre,“não apenas sou consciente deste objeto diante de mim, mas sou consciente de ser consciente deste objeto”.179 E é justamente sob esse registro que Sartre afirmará em O Ser e o Nada que “uma mesa não está na consciência, sequer a título de representação”. Não seria ocioso citá-lo uma vez mais: Toda consciência, mostrou Husserl, é consciência de alguma coisa. Significa que não há consciência que não seja posicionamento de um objeto transcendente, ou, se preferirmos, que a consciência não tem “conteúdo”. [...] Uma mesa não está na consciência, sequer a título de representação. Uma mesa está no espaço, junto à janela, etc. [...] O primeiro passo de uma filosofia deve ser, portanto, expulsar as coisas da consciência e restabelecer a verdadeira relação entre esta e o mundo. Toda consciência é posicional na medida que se transcende para alcançar um objeto, ela esgota-se nesta posição mesma: tudo quanto há de intenção na minha consciência atual está dirigido para o exterior, para a mesa;180 Em decorrência deste pressuposto, o filósofo conclui que introduzir qualquer núcleo de opacidade na consciência “seria levar ao infinito o inventário que a consciência pode fazer de si”, e, por conseqüência, convertê-la em coisa, negando assim o que ela tem de mais fundamental que é sua espontaneidade. Por isso, é imprescindível à consciência ser pura relação com o mundo. Daí a “necessidade da consciência de existir como consciência de outra coisa que não ela mesma”.181 Trata-se, neste ponto, do âmbito pré-reflexivo da consciência. Vale ressaltar que, sob esse registro, simultaneamente à consciência tética do objeto, que aparece na citação 179 MOUTINHO, Luiz Damon S., Sartre: Existencialismo e Liberdade, p. 47. SARTRE, Jean-Paul, O Ser e o Nada, p. 22. 181 Idem, Uma Idéia Fundamental da Fenomenologia de Husserl: a Intencionalidade, p. 57. 180 77 acima como “consciência de outra coisa que não ela mesma”, se pressupõe também a consciência não tética (de) si. Ou seja, isso equivale a dizer que a consciência não tética (de) si sempre acompanha a consciência tética do objeto intencionado, são dois pólos de uma mesma relação, tal como buscamos explicitar anteriormente. Desse modo, é pertinente atentarmos para o que Sartre afirma sobre o tema em A Imaginação, para, em seguida, explicitarmos o que o autor entende propriamente pelo conceito de imagem, passando então pela distinção entre consciência imaginante e consciência perceptiva. Vejamos: Chamamos espontânea uma existência que se determina por si mesma a existir. Em outras palavras, existir espontaneamente é existir para si e por si. Uma só realidade merece, pois, o nome de espontânea: a consciência. Para ela, na realidade, existir e ter consciência de existir são a mesma coisa. Ou, por outra, a grande lei ontológica da consciência é a seguinte: a única maneira de existir para uma consciência é ter consciência de que existe.182 Essa concepção de consciência leva à compreensão da imaginação enquanto ato, o que contradita com a tradição substancialista. Nesse viés, imaginação e percepção apresentam-se como dois modos distintos da consciência intencionar um objeto transcendente. Assim, a imagem (consciência imaginante) não se confunde com o objeto imaginado, pois, de um lado tenho a consciência que se volta para um objeto que não é ela; por outro lado, ou eu percebo o objeto ou o imagino, isto é, imaginar e perceber são dois modos de se intencionar um objeto que não se confundem. Novamente aqui, cabe ressaltar o papel da consciência não-tética (de) si, pois é justamente porque há a consciência não-tética da percepção quando percebo e porque há a consciência não-tética da imaginação quando imagino que sei que esses dois modos de se intencionar o objeto são diferentes. Chegamos finalmente à distinção entre consciência imaginante e consciência perceptiva. A imagem é então um dos modos da consciência intencionar um objeto; a percepção, outro. Na percepção, sempre há a relação de aprendizado, ela sempre apresenta algo de novo, pois o objeto transcendente se apresenta por perfis diferentes e infindáveis. Se percebo um cubo, sempre posso observá-lo por outros ângulos, sempre há algo que posso não ter percebido, e, portanto, sempre posso aprender algo novo sobre esse objeto. Nesse caso, o processo de conhecimento é sempre algo mediado pela observação, o que demanda algum tempo para se conhecer o objeto intencionado. Na imaginação, por outro lado, por se tratar de um ato de 182 Idem, A Imaginação, p. 90. 78 criação, nada é apreendido do objeto, não há aprendizado, tudo já está posto de imediato, assim a imagem nada me dá de novo. Na imaginação, a consciência não pode captar nada do objeto que ela mesma já não saiba por antecedência. Sartre afirma: “[...] o objeto da percepção é constituído por uma multiplicidade infinita de determinações e de relações possíveis. Ao contrário, a imagem mais determinada não possui senão um número finito de determinações, precisamente aquelas de que temos consciência”.183 Assim, na imaginação as qualidades da coisa imaginada dependem da consciência imaginante, o que pressupõe uma “criação continuada”, ou seja, se imagino um cubo, para que este cubo continue a existir enquanto objeto imaginado é necessário que eu continue a imaginálo. Uma distinção fundamental entre percepção e imaginação é que “a consciência é passiva na percepção e criadora na imaginação”.184 Daí, portanto, a imagem ser um ato e, desse modo, salta aos olhos o absurdo da tese clássica que entende a imagem como uma coisa. Esta afirmação remete-nos a um ponto importante em nossa pesquisa, visto que na literatura, a atividade criadora da imaginação é soberana. Talvez encontremos uma imagem preciosa capaz de explicitar a distinção defendida por Sartre entre o objeto percebido e o objeto imaginado no conto de Jorge Luis Borges, Funes, o Memorioso. Neste conto, o protagonista da história tem a capacidade de se lembrar185 exatamente de tudo que viveu, ou seja, Funes é capaz de criar imagens mentais como se as tivesse percebendo. A partir da imagem literária proposta por Borges, podemos levantar o seguinte problema: confundir consciência imaginante com consciência perceptiva não nos levaria à uma concepção absurda e paradoxal da consciência? Ou seja, se fôssemos capazes de imaginar com exatidão tudo aquilo que vivemos, percebendo cada mínimo detalhe, imaginar equivaleria a perceber. No conto, tudo o que foi percebido é vivenciado imaginariamente pelo personagem exatamente como fora percebido anteriormente; se temos em mente os pressupostos sartrianos, a correlação buscada pelo personagem é absurda, uma vez que equaliza duas modalidades de consciência absolutamente díspares: perceber e imaginar. A absurdidade do esforço do personagem se revela quando nos damos conta da insensatez que há em pensar que a consciência intenciona do mesmo modo o objeto percebido e o objeto imaginado; quer dizer, mesmo que o objeto seja o mesmo, o modo de intencioná-lo certamente não o será. Uma figura que talvez 183 SARTRE, Jean-Paul, O Imaginário, p. 30. MOUTINHO, Luiz Damon S., Op. Cit., p. 36. 185 Cabe um breve parêntese para frisar que, contrariamente à Husserl, Sartre, tanto em seu livro O Imaginário como em A Imaginação, não realiza a distinção entre memória e consciência imaginante. Nas referidas obras o filósofo fala basicamente em três modos da consciência intencionar um objeto, a saber, a consciência imaginante, a consciência perceptiva e a concepção. 184 79 expresse bem essa relação da consciência seja a figura, caricata, da pessoa que “se belisca para ter certeza de que não está sonhando”, ou seja, é justamente porque, como frisamos acima, a consciência não tética (de) si sempre acompanha a consciência tética do objeto intencionado que seria absurdo, e cômico, “me beliscar para saber que não estou sonhando”. Assim, a absurdidade do conto nos remete à necessária distinção entre consciência imaginante e consciência perceptiva, tal como sustentado pelo filósofo. O conto vem também explicitar um outro aspecto das teses sartrianas, qual seja, a necessidade do real enquanto sustentação do imaginário. Por conseqüência, o conto parece explicitar também a necessidade do real enquanto alicerce do imaginário, porquanto pressupõe a consciência lançada no mundo como fundamento da imaginação. Em outras palavras, a imaginação requer o mundo percebido como um pressuposto necessário. Nesse ponto talvez caiba aludir ainda a um outro exemplo retirado também da literatura de Borges, em Sobre o Rigor da Ciência. Aqui cabe citar o texto do próprio autor, pois a imagem se presta com precisão ao que queremos expressar: ... Naquele império, a Arte da Cartografia alcançou tal Perfeição que o mapa duma única província ocupava uma cidade inteira, e o mapa do império uma província inteira. Com o tempo esses Mapas Desmedidos não bastaram e os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império que tinha o Tamanho do Império e coincidia com ele ponto por ponto. Menos Dedicadas ao Estudo da Cartografia, as Gerações Seguintes decidiram que esse dilatado Mapa era Inútil e não sem Impiedades entregaram-no às Inclemências do Sol e dos Invernos. Nos Desertos do Oeste perduram despedaçadas Ruínas do Mapa habitadas por Animais e por Mendigos; em todo o País não há outra relíquia das Disciplinas Geográficas. 186 O que podemos denotar dessa imagem? A passagem evidencia que a pretensão de construir uma representação imaginária do mundo que corresponda exatamente ao próprio mundo é tão ociosa quanto fazer um mapa que ocupe exatamente o mesmo tamanho que o espaço representado. Novamente aqui a imagem é perpassada por certa comicidade. A ironia de Borges é capaz de desvelar com precisão a tese sartriana: o mundo real como substrato necessário à construção de uma representação imaginária e irreal. De acordo com a distinção entre consciência perceptiva e consciência imaginante, sabemos que nunca nada de novo é posto à imagem imaginada; no entanto, sempre é possível apreender algo que não estava posto imediatamente na percepção. Decorre daí que o mundo percebido configura-se como um pressuposto necessário ao imaginário. Notadamente, o pressuposto sartriano que alicerça nossa interpretação aqui é a idéia segundo a qual para que a consciência imagine, é necessário que ela 186 BORGES, J. L., História Universal da Infâmia, p. 111. 80 esteja inserida no mundo, ou como o prefere Sartre, é preciso que a consciência esteja em “situação-no-mundo”. Ou seja, é a inserção concreta e singular da consciência lançada no mundo que oferece o pressuposto necessário à criação do irreal, desse modo o real da situação concreta surge como condição de possibilidade da criação imaginária. Assim, na imagem de Borges, nunca poderíamos construir uma representação imaginária capaz de suprimir o real, um mapa que correspondesse exatamente, “ponto por ponto”, àquilo que ele representa seria algo no mínimo absurdo. Com base nessa imagem, caminhamos para o ponto que nos interessa, qual seja, a concepção do mundo imaginário, irreal, como uma porta de acesso ao mundo real. Antes, torna-se importante que nos detenhamos nessa distinção entre o real e o irreal, enquanto derivada dessa relação entre consciência perceptiva e consciência imaginante. Se a imaginação é o âmbito da criação, ela é o ato em que a consciência põe o objeto imaginado enquanto negação do objeto real, pois a imagem é um irreal. Diz Sartre: “Colocar uma imagem é constituir um objeto à margem da totalidade do real, é manter o real a distância, libertar-se dele – numa palavra, negá-lo, [...] colocar o mundo como um nada em relação à imagem”.187 Consequentemente, torna-se necessário à consciência imaginante a existência de um mundo real, não criado pela consciência. É por isso que Paulo Perdigão, ao comentar esse aspecto do pensamento sartriano, considera que a imagem, por ser um irreal, “só pode ser Nada de alguma coisa real e existir sobre um fundo de mundo real”.188 Portanto, o real é um pressuposto necessário à existência do irreal imaginado, e, por conseqüência, à existência da criação ficcional que é o objeto de nossa pesquisa. Cabe então recorrermos ao nosso autor: Chamaremos “situações” os diferentes modos imediatos de apreensão do real como mundo. Podemos dizer assim que a condição essencial para que uma consciência imagine é que ela esteja “em situação no mundo” ou, mais brevemente, que ela “estejano-mundo”. É a situação-no-mundo, apreendida como realidade concreta e individual da consciência, que serve de motivação para a constituição de um objeto irreal qualquer, e a natureza desse objeto irreal é circunscrita por essa motivação. Desse modo, a situação da consciência não deve aparecer como uma pura e abstrata condição de possibilidade para todo o imaginário, mais sim como motivação concreta e precisa da aparição de tal imaginário particular.189 A citação, embora um pouco longa, se justifica, pois esclarece exatamente aquilo que buscamos evidenciar, ou seja, o real enquanto fundamento necessário para a constituição do 187 SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 239. PERDIGÃO, Paulo, Existência e Liberdade: Uma Introdução à Filosofia de Sartre, p. 65. 189 SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 241. 188 81 imaginário. Desse modo, para que a consciência imagine, é preciso que ela esteja lançada no mundo, em dado contexto histórico e em dada situação concreta e particular. E mais do que isso, a imagem enquanto nadificação do mundo, enquanto sua negação, mais do que “o mundo negado, pura e simplesmente, ela é o mundo negado de um certo ponto de vista”190 que é sempre particular e concreto. É por isso que Sartre fala em motivação e não em determinação, o que ressalta o caráter espontâneo da consciência, sua liberdade. Quando a consciência imaginante nega o mundo, ela o faz sobre um fundo real que a sustenta, sem, no entanto, ser determinada por este fundamento. Logo, ela não perde seu caráter livre e espontâneo. Nesse sentido, observa Sartre: “Para que a consciência possa imaginar, é preciso que por sua própria natureza possa escapar ao mundo, é preciso que possa extrair de si mesma uma posição de recuo em relação ao mundo. Numa palavra: ela precisa ser livre”.191 Portanto, além do real, da situação concreta enquanto seu fundamento, a consciência imaginante se caracteriza por sua liberdade, sem a qual a imagem não se constituiria, o “estar-no-mundo” se constitui enquanto uma condição necessária à imaginação, mas sem negar a característica fundamental da consciência que é sua liberdade. É importante atentarmos um pouco mais para essa relação entre o real e o irreal com a intenção de desvelar o caráter ambíguo que a literatura, mais especificamente a prosa, comporta. Quando dissemos que na percepção observamos o objeto enquanto que na imaginação o objeto se apresenta por completo, deixamos de mencionar que, para Sartre, na imaginação ocorre o fenômeno da “quase-observação”. Ao imaginarmos, de certo modo, observamos o objeto. Mas, nesse caso, como foi dito, não há nada no objeto imaginado que não seja posto pela própria imaginação, portanto o que ocorre é a “quase-observação”. Por “quase-observação” o filósofo entende o fenômeno que fica entre a percepção e a concepção192. Ou seja, é quando se “observa”, mas nada se aprende de novo do objeto, não há conhecimento. Daí, as palavras de Sartre, no “objeto como imagem já se encontra incluído o conhecimento do que ele é”.193 Na imagem há uma “observação” – ou melhor, “quase-observação” –, que nada ensina. Daí o caráter ambíguo da imagem, ressaltado pela análise de T. M Souza. “[É] por ser ambigüidade, que o objeto imaginado nos é apresentado de fora (concepção) e de dentro (percepção) ao mesmo tempo: e é por isso que a imagem pode ser extremamente pobre e ao mesmo tempo ter um sentido profundo 190 Ibidem, p. 240. Ibidem, p. 240. 192 A concepção, segundo Sartre, se dá quando a consciência coloca o objeto por inteiro (não há conhecimento) enquanto consciência de si. Não é nosso objetivo uma análise minuciosa da concepção de imagem para Sartre, mas apenas explicitar a importância do conceito para a relação que se estabelece entre literatura e filosofia na obra do autor. 193 SARTRE, Jean-Paul, O Imaginário, p. 23. 191 82 e rico”.194 Se a imagem se dá como uma observação que nada ensina, então, ela não é nem uma percepção nem uma concepção, o que faz dela algo ambíguo. Em O Imaginário, Sartre apresenta a imagem como intermediária entre o conceito e a percepção. Assim, voltamos ao problema da relação entre conceito e imagem: A imagem, intermediária entre o conceito e a percepção, nos dá o objeto em seu aspecto sensível, mas de uma maneira que por princípio a impede de ser perceptível. É que, na maior parte do tempo, ela o visa em toda a sua inteireza. [E conclui o filósofo] (...) o objeto como imagem é liberado de uma só vez por toda a nossa experiência intelectual e afetiva.195 O que Sartre ressalta é que, mesmo que ocorra a ilusão da observação, na imaginação o objeto é sempre posto por inteiro. Se isto, a princípio, pode ser interpretado como um indício de empobrecimento, ao refletirmos mais atentamente vemos que, na verdade, essa revelação completa do objeto consiste na verdadeira riqueza da linguagem literária. Ou seja, a literatura, através da imagem, possibilita ao leitor vivenciar concreta e plenamente o que é por ela sugerido. Assim, aquilo que a imagem sugere representa de pronto o recorte que o escritor faz do real, e constitui o objeto irreal enquanto negação do real que o fundamenta. Daí decorre que a literatura, por ser obra imaginária, transite numa zona intermediária entre o conceito (que é o âmbito da reflexão filosófica) e a percepção (lugar do império dos sentidos). Assim, a literatura não diz algo de forma objetiva e técnica como na filosofia nem se apresenta como um conhecimento empírico, como na percepção. Ela expõe através da imagem a inteireza de um mundo irreal enquanto negação do real que a fundamenta. É nesse sentido que devemos entender as palavras de Sartre, “o objeto imaginado é liberado de uma só vez por toda a nossa experiência intelectual e afetiva”. Neste ponto, cabe ressaltar o caráter negativo da literatura, que, por ser obra imaginária, e assim, irreal, faz com que o real seja um pressuposto necessário para a criação do irreal imaginado enquanto negação desse real. Noutros termos, isso significa que a consciência imaginante põe o irreal como negação “explicita ou implícita da existência natural e presente do objeto”.196 Eis porque devemos, como anteriormente sublinhado, entender que a criação ficcional se apresenta como uma “exploração verídica do real”. Ao se dar como variação e negação imaginária, ela se lança para além da factualidade ordenada da existência natural e desvela o caráter contingente e indeterminado da existência. 194 SOUZA, Thana Mara de, Sartre e a literatura engajada: Espelho Crítico e Consciência Infeliz, p. 87. SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 127. 196 SOUZA, Thana Mara de, Op. Cit., p. 88 195 83 Chegamos desse modo às duas características fundamentais da imagem, a saber, a imagem enquanto negação (Nada) e espontaneidade (Liberdade). É por isso que se pode afirmar que “é na imaginação que as características essenciais da consciência parecem encontrar-se realizadas de modo supereminente. Aí, o vazio, a espontaneidade, o nada, a negatividade e a liberdade da consciência encontram as condições ideais para sua plena afirmação”.197 Ou seja, é através da literatura, da criação ficcional enquanto obra imaginária e irreal, que o existencialismo encontra a maneira de afirmar suas características fundamentais. Pelas vias da criação literária explicita-se a realidade do Nada ou a negação enquanto fundamento da própria realidade criada ou imaginada. Explicita-se também a espontaneidade da consciência enquanto fundamento da liberdade radical do homem, na sua condição de existente historicamente condicionado, ou melhor, enquanto um ser-no-mundo, um ser em situação. É nesse sentido que o filósofo que se debruça sobre a existência é forçado a lançar mão da linguagem ficcional como um meio de desvelar ao homem sua própria condição. Aqui deparamo-nos com outro problema: se a imaginação é negação do real, ela não se apresenta também como fuga da realidade e, desse modo, ela não seria uma forma de fuga do real, o que contraditaria toda a idéia de engajamento presente em Sartre? Observa a comentadora: [segundo Sartre], [...] a literatura, como toda arte, é criação e tentativa de alcançar o Em-si-Para-si através da imaginação; a literatura é ambigüidade justamente por ser imaginário: ao mesmo tempo que a imaginação é pobre por ter um saber imediato e completo de seu objeto, por nada aprender com ele; ela é rica justamente porque pode tudo colocar nesse objeto.198 Considerando-se que o caráter irreal das obras da imaginação possibilita uma via de acesso privilegiado ao real, então, é através da negação do real que o real em sua amplitude se desvela. Na criação ficcional, abre-se a possibilidade de instaurar realidades, isto é, de criar e desvelar os múltiplos aspectos do caráter contingente da condição humana, desde sempre inacessíveis a uma perspectiva natural ou objetivante. Assim, é com a imaginação, na irrealidade fundada pela criação artística, pela negação, que o homem conhece perfis inauditos do real e é capaz de instaurar possibilidades radicais de transformação do real efetivamente dado. 199 197 COELHO, Ildeu, Sartre e a Interrogação Fenomenológica do Imaginário, p. 179 apud SOUZA, Thana Mara. Op. Cit., p. 89. 198 SOUZA, Thana Mara de, Op. Cit., p. 89. 199 Assim, podemos considerar, contra as interpretações que entendem que a obra imaginária é fuga do real, como atenta T. M. de Souza, cabe afirmar que é justamente porque a literatura é obra imaginária que ela desvela ao homem sua própria condição contingente. Assim, não faz o menor sentido dizer que a literatura se apresenta como uma forma de alienação. 84 Sartre afirma que ante sua fragilidade existencial, o homem se projeta como um ser realizado, sem, no entanto, perder o caráter processual que caracteriza sua consciência. Na terminologia do filósofo, isto significa que o homem busca tornar-se um Em-Si e simultaneamente continuar a ser um Para-Si, ou seja, o homem busca tonar-se um Em-si-Parasi200. Talvez aqui a imagem de Deus enquanto fonte e ato criador, enquanto um ser completo, sem limitações e com todas as suas potencialidades já realizadas, mas ainda consciente de si e do mundo, seja a que melhor expresse essa idéia de Sartre. O homem, originariamente, “projeta tornar-se Deus”. Projeto vão, nós o sabemos, visto que a consciência é fluxo continuo, isto é, inexoravelmente inacabada, de modo que ela nunca poderá se constituir enquanto um Ser-Em-Si. Daí a famosíssima e não menos polêmica máxima de Sartre: “o homem é um paixão inútil”. Para o filósofo, o homem deseja realizar uma síntese impossível entre a consciência (Nada) e o mundo (Ser), entre o Para-Si e o Em-Si. É por isso que ele entende essa síntese como “um ser que seria seu próprio fundamento, não enquanto nada, mas enquanto ser, e manteria em si a translucidez necessária da consciência, ao mesmo tempo que a consciência consigo mesmo do Ser-Em-Si”.201 Portanto, como bem atenta T. M. Souza, o artista é aquele que busca realizar essa síntese impossível através da criação ficcional, é aquele que, através da negação do real, ou seja, da instauração do irreal da criação ficcional buscar realizar-se enquanto um Em-siPara-Si202. Parece ser este pressuposto a fonte das interpretações que colocam o artista como aquele que busca essencialmente a fuga do real, pois, se ele busca tornar-se um Em-si-Para-si através da criação imaginária, realmente, parece que finda por esconder-se por detrás do universo ficcional criado. Sob essa perspectiva, o que caracterizaria o escritor seria o fato de que ele vê na criação ficcional um meio de se sentir essencial ao mundo, uma forma de criar ordem no caos que a contingência instaura, e que, por isso mesmo, lança o homem no absurdo da sua gratuidade existencial.203 No entanto, como frisamos logo no início deste texto, Sartre define a imagem como um ato mágico capaz de, por intermédio da negação, remeter a um objeto ausente ou inexistente, assim a imagem surge como “um ato que visa em sua corporeidade um objeto ausente ou 200 Tal como descrito anteriormente no primeiro capítulo deste estudo. SARTRE, Jean-Paul, O Ser e o Nada, p. 140. 202 SOUZA, Thana Mara de, Op. Cit., p. 80. 203 Assim, “o imaginário se apresenta como possibilidade de salvação, de criação do mundo que desejamos e, portanto, como possibilidade de exercitar uma liberdade absoluta (uma liberdade que se exerceria indiferente ao real, às circunstâncias)”. Ibidem, p. 92. 201 85 inexistente” enquanto uma representação análoga do objeto visado.204 Neste ponto T. M. de Souza frisa que, se o imaginário pode surgir como fuga do real, limitá-lo a esse âmbito seria negar seu caráter ambíguo, ou, se se preferir, dialético, e reduzi-lo a um dos pólos desse movimento que o caracteriza. Portanto, quando imagino nego o real, mas só posso negar esse real sob um fundo real, é por isso que “ao mesmo tempo que, pelo ato de imaginar, a consciência parece libertar-se momentaneamente do mundo, ela também só imagina em situação no mundo”.205 É sob esse prisma também que devemos entender a passagem anteriormente citada de Paulo Perdigão, segundo a qual a imagem “só pode ser Nada de alguma coisa real e existir sobre um fundo de mundo real”.206 São, portanto, reducionistas as interpretações que negam esse caráter de “inserção profunda no mundo” que caracteriza a literatura em Sartre. Destarte, pela imaginação desvelam-se as vias de inserção mais radical na mundanidade, ainda que o seu pressuposto seja a negação da realidade concreta. Desse modo, se, por um lado, o imaginário pode se apresentar enquanto fuga do real, por outro lado, justamente em virtude da necessária negação do real que ele pressupõe, ou seja, seu recuo em relação ao mundo, o imaginário também desvela “um modo de a consciência ser-no-mundo e dela compreender sua situação, de compreender-se como situada e inserida no mundo”.207 Logo, a afirmação – já referida – de Sartre em O Imaginário, é esclarecedora: o estar-nomundo aparece como um pressuposto necessário à imaginação. Se “a consciência deve ser livre em relação a toda realidade particular, [...] essa liberdade deve poder [também] definir-se por um „estar-no-mundo‟”, o que significa “que [a consciência imaginante] é ao mesmo tempo constituição e nadificação do mundo”.208 A consciência aparece enquanto “motivação” da constituição do irreal. Sartre assim se coloca: [A] consciência no mundo deve a cada instante servir de motivação singular à constituição do irreal. Dessa maneira, o irreal – que é sempre duplo nada: nada de si mesmo em relação ao mundo, e nada do mundo em relação a si – deve sempre ser constituído sobre o fundo do mundo que ele nega, ficando bem entendido, além disso, que o mundo não se entrega somente a uma intuição representativa e que esse fundo sintético requer simplesmente ser vivido como situação.209 204 SARTRE, Jean-Paul, O Imaginário, p. 37. SOUZA, Thana Mara de, Op. Cit., p. 102. 206 PERDIGÃO, Paulo, Existência e Liberdade: Uma Introdução à Filosofia de Sartre, p. 65. 207 Ibidem, p. 107. 208 SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 242. 209 Ibidem, p. 242. 205 86 Parece evidente, deste modo, que o real é um pressuposto necessário à constituição do irreal. Mais que isso, poderíamos considerar que ele é sua motivação e que, portanto, o irreal requer a situação concreta como seu fundamento. Só por isso as teses que defendem o imaginário como fuga e má-fé já não se sustentam. No entanto, cabe frisar ainda que é justamente através desse irreal – que retira o homem da sua situação concreta para recolocá-lo nessa mesma situação, mas só que agora tendo vivenciado sua condição contingente –, que se desvela o caráter profundo desse real, seu substrato, a saber, a contingência. A comentadora vem complementar nossas análises, contrapondo-se à todas as teses que defendem a necessária alienação implicada na concepção de criação ficcional em Sartre: O imaginário, na filosofia de Sartre, não deve ser visto primordialmente como alienação e abstração, mas sim como uma imersão ainda mais profunda na realidade, justamente por ser negação, um afastamento do mundo que exige um mergulho mais profundo ainda na situação.210 Portanto a concepção defendida por T. M. Souza ponta para um necessário desdobramento ético à filosofia, ou melhor, à criação ficcional, em Sartre. Sob essa perspectiva, as afirmações de Sartre parecem crescer em força e relevância: “a consciência está sempre „em situação‟ porque é sempre livre, para ela há sempre e a cada instante uma possibilidade concreta de produzir o irreal”.211 Mas esse irreal produzido nunca perde seu fundo de real; ao contrário, é ele que desvela o real profundo para além daquilo que nos aparece como naturalmente ordenado. Assim, complementa o filósofo: “o irreal é produzido fora do mundo por uma consciência que permanece no mundo, e é porque é transcendentalmente livre que o homem imagina”.212 Ou seja, é porque o homem é transcendentalmente livre que ele é capaz de ultrapassar sua condição naturalmente dada para “apreender a nadificação do mundo como sua condição essencial e como sua primeira estrutura”.213 Como vimos, a criação ficcional instiga a instauração de inéditas realidades. É a partir do caráter negativo da imagem, isto é, a partir de sua dimensão irreal que desvela a realidade, que o escritor é capaz de revelar ao leitor seu caráter contingente e, por conseqüência, lançá-lo em sua situação histórica. É através da literatura que o escritor lança o leitor novamente ao concreto, à “poeira seca do mundo, sobre a terra rude, entre as coisas”. Destarte, a capacidade de instaurar realidades a partir da imaginação aparece como um imperativo ético, ou seja, o escritor é 210 SOUZA, Thana Mara de, Op. Cit., p. 103. SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 243. 212 Ibidem, p. 243. 213 Ibidem, p. 243. 211 87 impelido por seu ofício a engajar-se, desvelando nesse processo a sua própria situação e a situação histórica de seus contemporâneos. Retomando um pouco a discussão anterior, é justamente sob essa perspectiva que devemos entender Saint-Sernin quando ele afirma que na literatura, “a partir do singular, podese remeter ao universal; ao se estudar um homem, se fala, na verdade, de todos os homens”. A ficção se apresenta como um caminho de desnudamento do real, “ela deve conferir à descrição o estatuto epistemológico de um concreto universal”.214 Ora, se, como buscamos ressaltar no decorrer deste capítulo, a literatura é capaz de desvelar a condição contingente do homem ao próprio homem, e se isso se dá no recurso a linguagem ficcional com seu caráter imaginário enquanto negação e, simultaneamente, afirmação profunda do real, então parece pertinente interrogarmos o modo pelo qual isso se dá mais especificamente na produção ficcional de Sartre. Eis o que tentaremos fazer no próximo capítulo, isto é, a partir da análise do romance A Náusea. Com base na experiência do personagem Roquentin, será nosso propósito elucidar como o mergulho nas imagens criadas pelo romance nos brinda com uma compreensão mais profunda da condição do homem e de sua existência. 214 SAINT-SERNIN, Bertrand, Philosophie et fiction, p. 175. “[...] à partir du singulier, on peut remonter à l’universel; en étudiant um homme, on parle em vérité de tous lês hommes” [...] “Elle doit conférer à la description le statut épistémologique d’un concret universel” (nossa tradução). 88 CAPÍTULO III Da experiência violenta e radical da Náusea ao necessário desdobramento ético “Distintamente do existencialismo, um movimento literário francês da última década, a filosofia da Existenz tem pelo menos um século de história...” (Hannah Arendt) 1. Introdução Se há, efetivamente, uma relação de interdependência entre o âmbito filosófico e o âmbito ficcional da obra de Sartre – posição que procuramos defender no decorrer desse estudo – e se essa relação está assentada sobre uma dupla insuficiência dessas duas esferas do saber – como depreendemos dos escritos do autor –, torna-se pertinente retomar a problemática levantada anteriormente, mas agora num âmbito mais específico: o interior de uma obra literária. No primeiro capítulo de nosso estudo, vimos que Sartre, embora reconheça sua dívida ante a filosofia fenomenológica, se opõe veementemente à tese de Husserl em relação ao Ego transcendental, isto é, o filósofo contradita qualquer possibilidade de se substancializar a consciência, o que implica a dissolução do Ego tal como compreendido pela tradição. Vimos também que, sob a perspectiva existencialista, Sartre busca radicalizar a noção de intencionalidade. Daí decorre uma concepção da consciência que se traduz em pura relação com o mundo, enquanto fluxo contínuo em direção à auto-constituição, mesmo que isso nunca possa se realizar por completo. Assim uma importante questão se configura: seria possível entrevermos essas direções da filosofia sartriana em ato, ao mergulharmos na leitura de seu primeiro romance A Náusea? Assim, se a tese segundo a qual o recurso à criação ficcional é algo necessário a uma filosofia que se debruça sobre a existência, devido à insuficiência da linguagem filosófica, resta-nos saber como esse processo poderia ser vislumbrado no interior da criação ficcional propriamente dita. Para tanto será pertinente retomarmos as discussões acerca do papel do imaginário, ou como chamamos anteriormente do irreal como uma forma de acesso legítimo ao real, do irreal 89 que desvela o real. Este será o percurso desse capítulo, uma vez que essa problemática nos insere de pronto na questão da relação entre imaginário e contingência, ou ainda, entre a necessidade, característica predominante no universo literário – da prosa, mais exatamente – e a contingência absoluta. A partir deste quadro buscaremos corroborar a tese da interdependência entre os registros literário e filosófico, sem com isso recair nas interpretações que entendem a literatura sartriana como “romances de tese”, o que, sob o nosso entender, significaria novamente atribuir à Sartre uma instrumentalização da literatura. No entanto, antes de adentrarmos a proposta acima, ousemos ainda uma digressão. Cumpre interrogar: o que se entende por um romance de tese? Tomemos como mote as palavras de Maurice Blanchot em Os Romances de Sartre: [...] não há arte literária que, direta ou indiretamente, não queira afirmar ou provar uma verdade. Mas então por que esse descrédito que atinge de preferência uma obra de tese? Uma condenação dessas não seria o mesmo que rejeitar o escritor que sabe o que quer dizer, em favor do escritor que não sabe e sustenta a inconsciência até o ponto de se acreditar sem idéias, enquanto ele é o servidor das idéias de todo o mundo, o que chamamos imparcial, objetivo e verdadeiro?215 Como sabemos, Blanchot tecerá uma dura crítica àquilo que habitualmente se entende por um romance de tese, ou seja, que a obra engajada deve ser “honesta com o leitor e apresentar claramente uma visão de mundo”, ou, em outras palavras, que o romance de tese deve agir de “boa fé”; ele deve se posicionar claramente. Esse posicionamento que o romance de tese requer, parece exigir que o escritor submeta sua literatura ao ideal defendido. Ora, Sartre não se cansará de afirmar que fazer literatura engajada não significa submeter a literatura à ideologia de um partido ou algo do gênero; na realidade, o que o filósofo busca afirmar é justamente o contrário, ou seja, ao escritor cabe preservar sua liberdade nunca se submetendo a qualquer princípio que possa condicionar sua literatura.216 Daí o seu dizer: “ninguém é escritor por haver decidido dizer certas coisas, mas por haver decidido dizê-las de determinado modo. E o estilo decerto, é o que determina o valor da prosa”.217 Para o filósofo, fazer literatura engajada não significa reduzi-la a um instrumento de divulgação de idéias. Portanto, não é ocioso insistir: 215 BLANCHOT, Maurice, Os Romances de Sartre In: A Parte do Fogo, p. 187. Nesse sentido é célebre a recusa do prêmio Nobel pelo autor. É nesse sentido também que Sartre diz em Que é a Literatura?: “Caso se pergunte hoje se o escritor deve, para atingir as massas, oferecer os seus serviços ao partido comunista, respondo que não: a política do comunismo stalinista é incompatível com o exercício honesto do ofício literário.” (SARTRE, Que é a Literatura?, p. 188) 217 SARTRE, Jean-Paul, Que é a literatura?, p. 22. 216 90 [...] na “literatura engajada”, o engajamento não pode, em nenhum caso, fazer esquecer a literatura e que nossa preocupação deve ser a de servir à literatura infundindo-lhe sangue novo, assim como servir à coletividade tentando lhe oferecer a literatura que lhe convém.218 Mas Blanchot não negligencia o alerta sartriano e lembra que “a arte literária é ambígua”,219 e que à literatura cabe a “transmutação contínua do real em irreal e do irreal em real”.220 Afirmação que se coaduna com o que afirmamos anteriormente ao nos debruçarmos sobre o papel que a incursão no irreal tem para o conhecimento do real. Assim, se Sartre defende o engajamento da literatura, isso não significa que a literatura deva se reduzir às teses nela contidas. Daí a ambigüidade que caracteriza a arte literária, a qual deve manter a tensão entre as exigências opostas que a caracterizam, ou seja, a forma e o conteúdo. Daí que “o engajamento não pode, em nenhum caso, fazer esquecer a literatura”. É justamente nesse sentido que Blanchot vai mais além. Ao referir-se à geração de Sartre, o comentador assevera: Pode acontecer que a filosofia, renunciando a se sair bem com sistemas, rejeitando conceitos prévios e construções implícitas, se volte para as coisas, para o mundo e os homens e procure retomá-los em seu sentido não-obscurecido. Essa filosofia descreve o que aparece, isto é, o que realmente se mostra próximo no que aparece, ela se interessa por situações reais, aí mergulha para chegar ao nível de profundidade em que acontece o drama da existência. 221 Nesse sentido, chegamos à perspectiva que procuramos defender até aqui no decorrer deste estudo. Ou seja, a idéia segundo a qual a literatura se volta para o concreto à medida em que reinventa o real pela criação do irreal, oferecendo, deste modo, uma imagem legítima da realidade. A criação romanesca expressa algo que é próprio da criação ficcional e que, por isso mesmo, escapa ao âmbito teórico da filosofia. Como ressalta Blanchot, no contexto do existencialismo, a tensão entre ficção e teoria se intensifica, e cada vez mais há um “apelo a 218 Idem, apud. LEOPOLDO E SILVA, Franklin. Literatura e experiência histórica em Sartre: o engajamento. In: Filosofia e Crítica: Festschrift dos 50 anos do curso de filosofia da Unijuí. 219 BLANCHOT, Maurice, Op. Cit., p. 188. Nesse sentido, vale mencionar, ainda uma vez, a esclarecedora análise de Thana Mara de Souza em Sartre e a Literatura engajada: “[...] o imaginário, para Sartre, deve ser pensado como ambigüidade e tensão, que inclui o desejo de se alienar, de realizar o Em-si, Para-si, mas também a impossibilidade de realizar autenticamente esse desejo, e com isso a inserção no mundo passa a ser compreendida de modo especial: a necessidade e impossibilidade de realizar a síntese impossível entre Para-si e Em-si se tornam explícitas no ato mesmo de imaginar. Se por um lado o imaginário é recuo em relação ao real, é transcendência, por outro ele é inserção no mundo, na imanência, e justamente por ser negação e recuo. O caráter de negação no imaginário não implica necessariamente apenas abstração da realidade, da existência contingente, implica também o mergulho profundo no real”. (p.111) 220 BLANCHOT, Maurice, Op. Cit., p. 188. 221 Ibidem, p. 189. 91 problemas que exigem uma expressão concreta”. Portanto, se retomarmos a questão acerca do romance engajado, podemos afirmar, com o comentador, que a criação romanesca “nada tem a temer de uma tese, com a condição de a tese aceitar nada ser sem o romance”.222 É justamente nesse sentido que acreditamos que a questão se equaciona nas reflexões de Sartre. Sob esse mesmo registro, Julio Cortázar é quem talvez melhor sintetize a posição que buscamos defender aqui acerca deste problema. Buscando relacionar a situação do romance contemporâneo com a sua produção, ele assinala: a “situação do homem enquanto homem, que marca a mais inquieta novelística destes dias, nada tem a ver com o „romance social‟ entendida como complemento literário de uma produção política, histórica ou sociológica”.223 Assim, o literato define o que denomina “romance existencial”, o qual se revelaria como o [...] próprio estado de coisas, o problema coexistindo com sua análise, sua experiência e elucidação [...] o que fez este romance foi mostrar e expressar o existencial em suas próprias situações, em sua circunstância; quer dizer, mostrar a angústia, o combate, a liberação ou a rendição do homem a partir da situação em si e com a única linguagem que podia expressá-la: a do romance, que procura desde tanto tempo ser de certo modo a situação em si, a experiência da vida e seu sentido no grau mais imediato.224 Deste modo, o que o autor parece sugerir é uma perfeita complementaridade entre a problemática existencialista e sua necessária expressão literária, isto é, o “romance existencial” expressa sua teoria da única forma em que ela pode ser expressa, qual seja, a partir da situação concreta do homem. Perspectiva que coincide com a formulação de Blanchot, segundo a qual a filosofia existencialista “se interessa por situações reais, aí mergulha para chegar ao nível de profundidade em que acontece o drama da existência”.225 Compreendemos, portanto, a conclusão de Cortázar, em seu comentário acerca de um ponto que, afinal, é o nosso: a “experiência do personagem de La Nausée só se pode apreender mediante uma situação como a sua, e uma situação como a sua só pode comunicar ao leitor mediante um romance”.226 Tornase lícito afirmar que Sartre não escreve ficção para ilustrar teses filosóficas, pura e simplesmente, mas para expressá-las com a única linguagem capaz de traduzir o drama da existência, capaz de expressar uma filosofia que se ocupe do concreto das situações reais. 222 Ibidem, p. 201. grifo nosso CORTÁZAR, Julio, Valise de Cronópio, p. 78. Grifado no original. 224 Ibidem, p. 78. Grifo nosso. 225 BLANCHOT, Maurice, Op. Cit., p. 189. 226 CORTÁZAR, Julio, Op. Cit., p. 78-9. 223 92 Por fim, cabe uma última alusão às instigantes reflexões de Blanchot acerca dos romances de Sartre, no intuito de ressaltar que, no nosso entender, engajar a literatura não implica, de forma alguma, uma instrumentalização da criação ficcional. Assevera o autor ao se referir ao romance A Idade da Razão: O drama não se desenrola em debates interiores. Também não se expressa numa história, que, como vimos, é nula. Mas ele pousa sobre as coisas, escorre no mundo, mistura-se à realidade exterior como a água que com a areia forma o cimento. É esse o grande talento de Sartre, o que melhor mostra nele a perfeita correspondência entre o teórico e o romancista. 227 Ao atestar a inegável excelência da criação ficcional em Sartre, assinalando ao mesmo tempo que há na obra do filósofo uma “perfeita correspondência entre o teórico e o romancista”, Blanchot aponta para o que estamos a sustentar nessas linhas, ou seja: a literatura sartriana de modo algum se reduz à uma forma de ilustrar teses filosóficas. Nesse sentido, parece-nos claro que as interpretações dos dois comentadores – o filósofo e o literato – convergem. Elas vêm alicerçar as nossas análises subseqüentes, nas quais procuraremos enfatizar que o engajamento em Sartre não resulta numa redução de sua literatura a “romances de tese”, ao menos não no sentido mais superficial com que se compreende a idéia de engajamento. É a partir desse pressuposto também que devemos entender a relação de interdependência a que nos referimos entre criação ficcional e reflexão filosófica, posto que esses são caminhos complementares no âmbito da filosofia existencialista. Essas questões servirão de norte às reflexões que compõem os tópicos subseqüentes. Em vista disso, muito do que já foi explicitado anteriormente será retomado, mas sob a perspectiva da novelística sartriana, mais exatamente de seu romance A Náusea. O percurso que nos propusemos a percorrer se inicia com a análise da experiência violenta e radical da Náusea vivenciada por Roquentin, porque é justamente essa experiência que desvela ao homem sua própria condição, a saber, o caráter absolutamente contingente da existência. Nessa incursão pelo romance sartriano, será, portanto, imperioso retomar os pontos desenvolvidos nos capítulos precedentes. Adentremos, pois, essa experiência literária. 227 BLANCHOT, Maurice, Op. Cit., p. 197. 93 2. A experiência violenta e radical da Náusea vivenciada por Roquentin Análogo ao que faz Clarice Lispector em A Hora da Estrela, poderíamos elencar uma série de títulos para este tópico: “A existência como uma exuberância desordenada”; “O desabamento do mundo humano”; “A descoberta da existência”; “Rasga-se o véu da ordem e do curso das coisas”; “Em lugar do ser e da necessidade a existência e a contingência”; “Tudo pode acontecer” etc. 228 No entanto, mesmo que cada um desses títulos enriquecessem a descrição, nem todos juntos seriam capazes de reproduzir a experiência que o personagem Roquentin, de A Náusea, vivencia. O primeiro ponto que cabe ressaltar diz respeito ao termo “experiência”229 presente no título deste tópico e que é referência constante para a maioria dos comentadores que se propõe a discutir essa problemática em Sartre.230 Chama a atenção o fato de que já nas primeiras páginas do romance, o personagem Roquentin, ao decidir-se a registrar algo que lhe sucedera em um diário, fale em “sentir de novo aquela impressão de anteontem”231, ou ainda: “senti na mão um objeto frio que me chamava a atenção, como se possuísse uma espécie de personalidade. Abri a mão, olhei: era simplesmente o fecho da porta”232. Essas asserções indicam que o movimento que leva à constatação da condição de absoluta contingência da existência, que é pontuado pela manifestação violenta e radical da Náusea, se origina numa experiência. Daí que o fundamento da revelação e do substrato metafísico da existência concreta do homem resida no registro da vivência. Como ressalta Moutinho, a experiência que acomete o personagem acontece num 228 A menção a Clarice Lispector não é casual. Conforme as brilhantes análises de Benedito Nunes, em O Dorso do Tigre e também em O Drama da Linguagem, é notória a relação que podemos estabelecer entre a perspectiva existencialista e o universo ficcional da autora. No que diz respeito ao sentimento da Náusea, ao analisar o conto Amor, o comentador diz: “a náusea clariceana é análoga a de Sartre” (O Drama da Linguagem, p. 119). 229 Neste ponto de nosso estudo estamos nos referindo de forma mais ou menos indistinta aos termos: sentido, vivência e experiência. No entanto, cabe ressaltar, que não ignoramos a especificidade desta terminologia, mas ao que nos propusemos não parece necessário pormenorizá-las. Não ignoramos também as instigantes análises de Moutinho acerca da oposição entre sensações e sentidos, assim como do corpo enquanto condição de possibilidade da vivência, o que implica a concepção de que o homem é um ser lançado no mundo, um ser-nomundo, um ser sempre em situação. No entanto, também aqui, não é nosso objetivo nos aprofundarmos. 230 Em dado momento, por exemplo, Franklin Leopoldo e Silva fala sobre “sentir-se existindo” (Ética e Literatura em Sartre: Ensaios Introdutórios, p. 85); Moutinho intitula o tópico sobre o sentimento da náusea de “A Experiência de Roquentin” (Sartre: Psicologia e Fenomenologia, p. 48) e também “as experiências acontecem involuntariamente” (Ibidem, p. 59); Benedito Nunes fala de um “sentimento específico e raro” ao se referir à Náusea sartriana (O Dorso do Tigre, p. 93). Poderíamos enumerar ainda diversos momentos em que a referência é explícita, mas fiquemos por aqui. 231 SARTRE, Jean-Paul, A Náusea, p. 12. 232 Ibidem, p. 16. Aqui poderíamos enumerar uma série de passagens que atestam esse mesmo aspecto que buscamos destacar. 94 crescendo que vai das sensações táteis, passando pelas sensações visuais, até o ponto em que a própria condição existencial se desvela.233 Já na primeira frase do diário, Roquentin escreve: “Aconteceu-me qualquer coisa; já não posso duvidar. Qualquer coisa que veio à maneira duma doença, não como uma vulgar certeza, não como uma evidência”.234 O que acomete o personagem vem “à maneira duma doença”, análogo ao registro grego do páthos; trata-se, pois, de algo do âmbito do involuntário, algo que “se sente”. Notemos que o pressuposto aqui consiste numa inversão do caminho seguido por Descartes: os sentidos não são fonte de erro, mas antes a única forma de acesso à experiência violenta e radical da Náusea, a qual, por sua vez, é fonte de acesso a uma visão mais profunda da realidade. Tanto é assim que Roquentin, quando tomado pelo sentimento da Náusea, assinala: A existência não é qualquer coisa que se deixe conceber de longe: é preciso que o sentimento dela nos invada repentinamente, se detenha em cima de nós, nos ponha um peso imenso no coração, como um grande animal imóvel – porque, a não ser assim, nunca se saberá o que ela é.235 É por esse viés que entendemos a parodia do cogito cartesiano realizada por Sartre no romance, ou seja, é por intermédio dos sentidos que o personagem se depara com a Náusea, ou melhor, ele se depara com o caráter absolutamente contingente da existência. Ou ainda, se quisermos retomar a terminologia existencialista de A Transcendência do Ego, a experiência da Náusea é algo do âmbito do cogito pré-reflexivo, o que significa que ela antecede a consciência de segundo grau, o cogito reflexivo. Trata-se de uma vivência. Portanto, tal como exposto no capítulo que nos propusemos a analisar o ensaio sobre a transcendência do Ego, o cogito préreflexivo é condição de possibilidade para que o cogito reflexivo aconteça. Como bem lembra Moutinho a referência à Descartes, que é explicitada em A Transcendência do Ego, se constrói principalmente na referida oposição entre o voluntário e o involuntário.236 Para Sartre, como dissemos, a consciência se caracteriza como pura espontaneidade impessoal, e por conseqüência, sem nada que possa motivá-la ou determiná-la; o autor veta, desse modo, qualquer tentativa de se substancializar a consciência. No entanto, sob o registro cartesiano, o cogito aparece como resultado de um “Eu que pensa”, como obra de alguém que se põe confortavelmente a pensar sobre a existência e que constata que há um “Eu 233 MOUTINHO, Luiz Damon Santos, Sartre: Psicologia e Fenomenologia, p. 49. SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 15. 235 Ibidem, p. 225. 236 MOUTINHO, Luiz Damon Santos, Op. Cit., p. 60. 234 95 pensante”, isto é, há o pressuposto da voluntariedade desse “Eu que pensa”. 237 Aqui acontece uma inversão, tal como alerta Sartre no referido ensaio, isto é, o âmbito reflexivo aparece como anterior ao âmbito pré-reflexivo, o que, como vimos, se mostra absurdo. É nesse sentido também que comenta Franklin Leopoldo e Silva: Não se pode contar com a tranqüilidade objetiva da reflexão que constata a realidade originária do pensamento e o Eu como essa instância cuja propriedade essencial é pensar. A reflexão está totalmente penetrada pelos afetos contraditórios de um sujeito que se constitui dolorosamente. 238 Estamos prontos, então, a entrar na paródia do cogito propriamente dita, pois o pensar a que se refere Sartre em A Náusea pressupõe a mediação dos sentidos como seu fundamento. Não se trata de demonstrar uma “evidência” ou qualquer “certeza vulgar”, mas, antes, de estabelecer o sentimento radical e violento da Náusea como pressuposto para o conhecimento visceral da realidade. Poderíamos dizer que é nesse sentido que Roquentin se manifesta em seu diário: Se pudesse fazer com que não pensasse! Tento, consigo: tenho a impressão de que a cabeça se me enche de fumo... mas eis que tudo recomeça: “Fumo... não pensar... Não quero pensar... Penso que não quero pensar. Porque isso mesmo é um pensamento.” Então isto nunca acaba? O meu pensamento sou eu: por isso é que não posso deter-me. Existo porque penso... e não posso deixar de pensar. Nesse momento preciso – é odioso –, se existo é porque tenho horror a existir. Sou eu, sou eu que me extraio do nada a que aspiro: o ódio à existência, a repulsa pela existência, são outras tantas maneiras de a cumprir, de mergulhar nela.239 Manifesta-se, assim, o caráter involuntário daquilo que ocorre ao personagem. Ele fala de um sentimento de ódio, de repulsa, e nunca de um ato voluntário e seguro de um “Eu que pensa”. Sartre se refere, deste modo, a uma vivência, a um sentimento que arremete o personagem. Tratase, portanto, tal como dissemos, do âmbito pré-reflexivo. Em outras palavras, a reflexão é sempre permeada pela pura espontaneidade do cogito pré-reflexivo. É ilustrativo o momento em que o personagem descreve: Estava então há bocadinho no jardim. A raiz do castanheiro mergulhava na terra, mesmo por baixo do meu banco. Não me lembrava, porém, que era uma raiz. As palavras tinham-se evaporado, e, com elas, o significado das coisas, os seus modos de emprego, os pálidos pontos de referência que os homens lhes traçaram à superfície. 240 237 Retomaremos a crítica sartriana ao “Eu” mais adiante; por hora, basta-nos a explicitação do sentimento da Náusea. 238 LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Ética e literatura em Sartre: Ensaios introdutórios, p. 55. 239 SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 172. 240 Ibidem, p. 216. 96 O que mais se evidencia, nesta passagem, é que ao sentimento da Náusea se acrescenta a constatação do desvanecimento de um mundo ordenado, no qual os objetos à sua volta obedecem a algum critério, e que, na realidade, não há necessidade alguma no mundo, que as coisas perderam seu significado; as palavras desvinculam-se, pois, de “seus modos de emprego, os pálidos pontos de referência que os homens lhes traçaram à superfície”. Esse desconcerto revela que por traz do tênue véu que encobre a realidade reside a total e absoluta gratuidade da existência. Os símbolos lingüísticos perderam seus sentidos porque a necessidade lógica implicada na linguagem já não é capaz de garantir a segurança almejada; tudo é gratuito. Não há uma essência capaz de justificar por si só a existência. Assim “a existência dera-se subitamente a conhecer”,241 e subitamente porque, como dissemos, não se trata de um ato voluntário, mas antes de uma experiência, de um sentimento análogo a uma doença, de uma vivência. Novamente aqui a idéia de que a Náusea é algo que se sente, é algo que toma de assalto Roquentin. Por conseqüência, a existência perde seu caráter causal passível de ser apreendido e dominado pelas categorias abstratas da razão; o mundo perde seu caráter inofensivo. Os objetos passam a incomodar Roquentin. Ele gostaria que eles “existissem com menos intensidade, duma maneira mais seca, mais abstrata, com mais recato”.242 Esse grau menor de concretude, digamos, permitiria que eles fossem reduzidos mais facilmente às categorias abstratas, àquilo que é dotado de necessidade lógica. Portanto, o mundo: [...] perdera o seu aspecto inofensivo de categoria abstrata: era a própria massa das coisas; aquela raiz estava amassada em existência. Ou antes, a raiz, o gradeamento do jardim, o banco, a relva rala do tabuleiro, tudo se tinha evaporado: a diversidade das coisas, a sua individualidade, já não era mais que uma aparência, um verniz. Esse verniz derretera-se; restam massas monstruosas e moles, em desordem – nuas, duma medonha e obscena nudez.243 Por detrás do caráter involuntário da vivência de Roquentin, o que vemos ocorrer ao personagem é o desvelamento do caráter processual da consciência lançada no mundo, sua completa espontaneidade. Desvela-se, assim, a contingência do existir. Se não há nada que possa justificar a condição humana, devido justamente ao seu caráter contingente, não há nada também capaz de eximir Roquentin de assumir suas ações. É por isso, como veremos, que a tentativa do personagem de negar sua transcendência imanente, digamos assim, está fadada ao fracasso. O 241 Ibidem, p. 217. Ibidem, p. 218. Grifo nosso. 243 Ibidem, p. 217. Grifo nosso. 242 97 contato com esse aspecto insuperável da existência, que se revela com o sentimento da Náusea, impossibilita a renúncia da transcendência – tal como compreendida por Sartre e como problematizamos anteriormente – exceto talvez se sustentada pela má-fé.244 O que temos aqui portanto é um duplo movimento: por um lado, o desvanecimento da ordem do mundo, a explicitação de seu caráter contingente; por outro, o caráter processual da consciência que implica em assumir suas ações. Daí a dissolução do Eu no mundo; Roquentin já não é capaz de sustentar sua identidade. Sabemos que sob a perspectiva do existencialismo, ser significa fazerse continuamente, de modo que a experiência vivenciada pelo personagem se justifica; sua angústia deriva do fato de que ele é tomado pelo desejo de um eu sólido que contradita completamente essa concepção do eu enquanto fluxo. Compreendemos, assim, a idéia de uma “fatalidade da espontaneidade”: “A fatalidade da espontaneidade exige que Roquentin assuma a existência, que ele se constitua para si. Não pode [portanto] fugir da imanência de si a si, mas há algo nesse entremeio que depende da liberdade”.245 Portanto, a paródia do cogito cartesiano ressalta a angústia existencial ante a constatação da condição de total gratuidade da existência. Esse mal estar ante a ausência de alicerces, quaisquer que sejam a sua natureza, suscita inevitavelmente “o ódio à existência, a repulsa pela existência” de que fala o personagem: “Se existo é porque tenho horror a existir”. Simultaneamente, desvela-se a verdade “clara e evidente”, a mesma procurada pela filosofia cartesiana, ainda que na experiência vivida por Roquentin, como antes salientado, nada haja de claro e evidente: “a existência, liberta, despida, reflui sobre mim. Eu existo”.246 É nessa direção que Moutinho acrescenta: “Daí por que o enunciado nada tem aqui da calma e sossegada reflexão cartesiana, mas é antes uma experiência dramática”.247 Depreende-se desta experiência elucidativa que a novelística existencialista exige o mergulho no concreto da condição humana, em sua dimensão histórica. Faz-se necessário, a essa filosofia, abarcar a experiência do drama da existência. Assim, o drama da existência se exprime na ação de se fazer sujeito em meio à facticidade, de modo que o palco dessa ação é a História em seu movimento incessante. O pensamento filosófico está sempre condicionado à história. É nesse sentido, vale ratificar, que 244 Aqui talvez caiba um paralelo com a concepção heideggeriana de existência inautêntica, na qual existir autenticamente pressupõe assumir a angústia existencial que dela decorre. Daí o paralelo possível, isto é, agir de má-fé significa, na terminologia heideggeriana, “existir inautenticamente”, pois existir autenticamente pressupõe assumir a angústia que daí decorre. Sob a perspectiva sartriana, trata-se de assumir sua transcendência, a responsabilidade que a ação humana implica. (Heidegger, Ser e Tempo, §40, p. 247ss). 245 LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Op. Cit., p. 55. 246 SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 170. 247 MOUTINHO, Luiz Damon Santos, Op. Cit., p. 56. 98 Sartre insiste em assinalar que, na contemporaneidade, a filosofia não pode escapar de sua dimensão dramática. Conquanto os comentadores se refiram a algo que se sente, ao sentimento da Náusea enquanto experiência radical, – a qual, como vimos, se origina em contraposição ao que propõe o cogito cartesiano –, Leopoldo e Silva atenta para um aspecto sutil deste sentimento: “[...] a Náusea não é algo que [Roquentin] sente, mas o próprio modo de sentir-se existindo”.248 Destarte, o que a princípio pode parecer uma contradição, ou seja, a passividade do “sentir” em contraposição à ação que esse “sentir-se existindo” exige, é, na realidade, a expressão do caráter fluido da consciência,249 a pura espontaneidade que melhor a define, tal como buscamos explicitar nos capítulos anteriores. E, mais do que isso, o “se sentir existindo” remete-nos de pronto ao aspecto concreto que a metafísica adquire em Sartre, tal como viemos insistindo, pois a “concepção sartriana de metafísica: não é algo que paira sobre o sujeito como uma referência essencial, mas algo que diz respeito àquilo que o constitui existencialmente”.250 Cabe ainda explorar um pouco mais de perto o significado do desabamento da ordem do mundo, do caráter necessário que aparentemente sustenta o real, pois, como afirma Sartre diversas vezes em sua obra, inclusive de forma literária, “o homem é uma paixão inútil”. Ou seja, o Para-Si busca constantemente se constituir enquanto um Em-Si sem, no entanto, negar seu caráter transcendente. Desse modo, a partir deste postulado, Roquentin tentará várias estratégias para fugir ou negar a espontaneidade desvelada pelo sentimento da Náusea. Em dado momento, o personagem se pronuncia claramente a esse respeito: “E eu também quis ser. Não quis mesmo outra coisa; eis a última palavra sobre minha vida: no fundo de todas aquelas tentativas que pareciam desligadas encontro sempre o mesmo desejo: expulsar a existência para fora de mim”.251 Assim, o personagem revela seu anseio de converter-se num Em-Si, de adquirir a materialidade daquilo que é. É importante frisar que durante todo o percurso do romance o personagem sempre buscará maneiras de negar sua condição contingente e livre. Sua reação ao sentimento da Náusea, o qual decorre da “clareza” acerca da ausência de solidez que ele constata 248 LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Op. Cit., p.87. Retomaremos ainda o caráter fluido da consciência, ou melhor, a consciência como pura translucidez, como movimento em “direção à”, no próximo tópico. 250 Ibidem, p.111. 251 SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 296. 249 99 nas coisas do mundo que o cerca, é sempre de fuga, como se a Náusea manifestasse um precedente necessário para o agir de má-fé.252 Assim, “se não há medidas, relações, quantidades, critérios, direções, então tudo é arbitrário e o „mundo humano‟ pode desabar. É uma desordem sentida, e Roquentin, sem compreendê-la, compreende que pode vir a sentir-se parte dessa desordem, algo que teme sobretudo”.253 É justamente porque Roquentin teme essa desordem, essa total gratuidade do “mundo humano”, que ele busca a segurança de um mundo ordenado. Com a manifestação da existência crua e explícita, Roquentin vê desfazer-se na contingência aquilo que o protegia. E aqui não é vão mencionar a leitura de Leopoldo e Silva, que alude ao ato de “compreender sem compreender” que acomete o personagem. Notadamente, não se trata de um movimento de reflexão, mas antes, de algo que é vivido de modo análogo a uma patologia; trata-se de “sentir-se existindo”. A existência não é um romance de aventuras, e não há nada que garanta um final feliz. É justamente por isso que o sentimento do absurdo existencial é algo tão caro à filosofia de Sartre. Nessa direção, Benedito Nunes analisa a relação entre o existencialismo sartriano e sua expressão literária presente na obra de Clarice Lispector. Não é nosso interesse enveredarmos pelo texto do filósofo paraense. Mas a alusão a esta análise tem sua pertinência, uma vez que os seus argumentos a um só tempo reforçam dois aspectos que procuramos enfatizar em nossa investigação: 1) a interpretação da literatura enquanto uma maneira de instaurar o irreal como uma porta de acesso legítimo ao próprio real; 2) a relevância do tema do absurdo existencial decorrente da constatação da condição contingente do homem na filosofia existencialista. Assim, sob o foco do autor, a Náusea sartriana configura-se como [...] um mal estar súbito e injustificável que do corpo se apodera e do corpo se transmite à consciência, por uma espécie de captação mágica emocional, a Náusea (mais primitiva do que a angústia e como esta esporádica) revela, sob a forma de um fascínio da coisa, a contingência do sujeito humano e o absurdo do ser que o circunda. Esse estado produz a suspensão dos nexos teóricos e práticos que nos ligam ao mundo, e de injustificável que é, passa a constituir uma experiência do caráter injustificável em geral.254 252 E esse alerta é importante, pois, quando retomarmos o problema da arte como possibilidade de salvação, ele permitirá compreender melhor porque, em Sartre, a literatura não pode representar apenas uma possibilidade de fugir ao sentimento da Náusea. 253 LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Op. Cit., 88-9. 254 NUNES, Benedito, O Drama da linguagem, p. 117. 100 Nesta passagem, Benedito Nunes ressalta, na experiência da Náusea, o sentimento de que o mundo, com seu caráter lógico, desaba, suspendendo os “nexos teóricos e práticos”; processo que simultaneamente desvela a gratuidade do mundo humano. Nesse sentido, nem mesmo o passado logra instaurar a segurança requerida pelo personagem.255 Isto é, de nada mais adianta ao personagem narrar a si próprio um passado de aventuras, pois o presente se impõe, mediado pelo sentimento violento e radical desta Náusea. Não há nada que garanta a vida de aventuras desejada por Roquentin; compreendemos, pois, sua afirmação: Não tive aventuras. Sucederam-me histórias, acontecimentos, incidentes, tudo que se quiser. Mas aventuras, não. Não é uma questão de palavras; começo a compreender. Há qualquer coisa que eu prezava mais que o resto – sem dar bem por isso. Não era o amor, oh, não!, nem a glória, nem a riqueza. Era... Enfim, tinha imaginado que, em certos momentos, a minha vida podia ganhar uma qualidade rara e preciosa. Não eram as circunstâncias extraordinárias: tudo quanto eu pedia era um pouco de rigor”.256 O que se desvela ao personagem é o caráter contingente da existência e, contra isso, nem mesmo o passado é capaz de garantir o “rigor” e a segurança perdidos. Aspecto esse também salientado pela instigante análise de Moutinho em Sartre: Psicologia e Fenomenologia. Nessa senda, clarifica-se também a distinção realizada pelo comentador entre “vida” e “aventura” presentes no romance, ou seja, a aventura aparece a Roquentin como uma maneira de forjar a segurança de um mundo ordenado e necessário. O que o personagem deseja, portanto, é resgatar a ordem perdida do passado através da segurança de uma narrativa de aventuras, como se essa narrativa pudesse restaurar o sólido conteúdo de um tempo pretérito. A angústia irromperá, contudo, visto que esta tentativa está fadada ao fracasso. Expliquemos. Para esquivar-se do desespero suscitado pela constatação do caráter evanescente do passado, Roquentin busca narrar-se a si próprio a sua história, pois “é a narração que converte um acontecimento banal em aventura como converteu em aventura o passado de Roquentin; a narração confere organicidade, um „rigor‟ aos acontecimentos que a simples sucessão quotidiana desconhece”.257 No entanto, a estratégia não vinga porque Roquentin percebe que mesmo que a ordem narrativa pareça capaz de restaurar a solidez do passado, ela é impotente 255 O passado já não figura como substância seja para o historiador em crise do romance de Sartre, seja, como nota B. Nunes, a dona de casa do conto Amor de Clarice Lispector. É justamente nesse sentido que ele afirma: “em Sartre como em Clarice Lispector, a náusea, que neutraliza o poder dos símbolos é o ponto de ruptura do sujeito com a praticidade diária.” (NUNES, Benedito, O Drama da linguagem, p. 121). Ou seja, é através da experiência da Náusea que é revelado o absurdo da existência humana com seu caráter gratuito. 256 SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 70. 257 MOUTINHO, Luiz Damon Santos, Op. Cit., p. 51. 101 para suprimir a contingência e a gratuidade da existência que assolam o presente, as quais se manifestam na experiência da Náusea. Essa evidência conduz o personagem à conclusão de que, na verdade, ele não teve aventuras: Alguma coisa começa para acabar: a aventura não admite prolongamentos artificiais; só da sua morte lhe vem o sentido. Sem possibilidade de voltar a trás, sou arrastado para essa morte, talvez seja também a minha. Cada instante só aparece para trazer os que se lhe seguem. Sinto-me ligado a cada um, do fundo do coração: sei que ele é único, insubstituível – e não faria, porém, um gesto para o impedir de voltar ao nada.258 A absoluta contingência do presente abole também a possibilidade de alguma consolidação do passado. Ou melhor, é sempre a posteriori que a aventura pode ser forjada; no limite, “só da sua morte lhe vem o sentido”. Se é no passado que o mundo se mostra ordenado, é por que a consciência lança sobre ele um olhar que o ordena, fixando-o para além da contingência que o marcara quando vivido. Destarte, se meu presente se mostra como resultado de um desencadeamento causal é porque busquei a posteriori um sentido e uma ordem para ele. Mas, de fato, o presente não obedece a ordem alguma, “tudo é possível”. No que tange ao passado, insistimos, essa ordem só é possível sob o registro do constructo ou da ficção. Comenta Leopoldo e Silva: A vida não é um romance de aventuras – descobrirá Roquentin – porque ela não depende de um narrador que articule os eventos e faça que a história vivida se produza a partir dessa articulação, o que significa que se poderia contar com o fio da narração como suporte dos acontecimentos e como sustentáculo temporal. 259 A conexão causal presente na narrativa do passado provém da expectativa de manter as coisas suspensas no tempo, do ato de narrar o passado como um romance de aventuras em contraposição à vida. No entanto, a assunção da fluidez do presente implica o sacrifício desse passado plenamente ordenado. Para ficar mais claro, o presente se desvela à Roquentin como um fluxo contínuo, espontâneo e gratuito, sem justificativas. Não há nada capaz de justificar a efemeridade do presente, falta-lhe a figura do autor do romance de aventuras, falta-lhe a ordem implícita. Daí que o esforço narrativo apareça como uma possível superação dessa instabilidade esmagadora. No entanto, ao confrontar o caráter teleológico da narrativa – seja ela auto-narrativa ou a narrativa literária – com a contingência insuperável da experiência concreta, o homem vê desvanecer-se o sentido dado a priori à existência. O caráter desvelador da experiência da 258 259 SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 71. Grifo nosso. LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Op. Cit., p. 82. 102 Náusea converte, pois, a aventura narrativa numa criação artificial porque injustificável. Noutros termos, a confrontação da ordem teleologicamente ordenada no romance com a gratuidade da realidade oferece uma porta de acesso legítimo não à superação da náusea, mas ao âmbito contingente da própria existência. A despeito disso, Roquentin persiste em constituir um mundo ordenado e seguro por intermédio da construção de narrativas. Mas, o mal já está feito. Nada é capaz de trazer de volta a segurança desse mundo almejado. A necessidade presente na narração de um romance de aventura se mostra completamente ilusória; ela vem apenas para reforçar a condição do homem. É significativa a constatação do personagem: Talvez não preze nada no mundo como o sentimento de aventura. Mas ele vem quando quer; e abandona-me tão depressa! E fico tão seco quando se vai embora. Farme-á ele estas visitas irônicas para me mostrar que falhei na vida? Atrás de mim, na cidade, pelas grandes ruas direitas, à luz fria dos candeeiros, um formidável acontecimento social agonizava: era o fim do domingo. 260 É como se o sentimento de aventura, da garantia de um mundo necessário, no qual tudo obedece a algum critério que antes permitiria o desvio da contingência – o que se deve à suposta estabilidade da arte – lograsse agora apenas a ratificação da contingência. Tudo se revela como fruto do acaso; o desbotar da ordem do mundo o transmuda em uma ameaça constante. Desse modo, compreende-se que “a necessidade de ser aparece como mero „verniz‟ que oculta a contingência” e também que “a descoberta da existência o deixou [ao personagem] „sem respiração‟. Pensar na existência e, sobretudo, sentir-se existindo é algo como perder o chão, não poder apoiar-se em mais nada”.261 É por isso que o personagem constata que “um formidável acontecimento social agoniza”. É porque a existência se apresenta como algo gratuito que a ordem social imposta, que sempre se mostrou estável e segura, já não se justifica. Não há nada capaz de justificar a priori a existência humana. Em síntese, a narrativa literária, tal como empreendida nesta experiência romanesca, mostra-se como o lugar no qual a contingência se impõe, pois a criação ficcional, elaborada por alguém que vivenciara a dissolução ordenada do mundo, como no caso de Roquentin, já não é capaz de oferecer consistência ao real ou ao passado.262 260 SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 101. LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Op. Cit., p. 85. 262 Notemos que isso ocorre, tal com analisaremos mais adiante, porque há uma inversão no fluxo temporal na narrativa literária, ou seja, é por oposição que a literatura evidencia a condição humana. Por outro lado, ela oferece simultaneamente uma abertura para a constatação da compreensão da consciência enquanto movimento, pois apresenta o existente em sua situação concreta, vivenciando sua condição contingente, e, ao empregar sua 261 103 Deste modo, a constatação que cada vez mais ganha força para o protagonista é a de que ele “foi livre para escolher: não havia fatalidade; a liberdade irrompe pouco a pouco”.263 É necessário lembrar que no âmbito da narrativa literária em “tudo há uma razão de ser”. A trama obedece a um propósito, aquele perseguido ou insinuado pelo autor. A arte surge, pois, como o lugar do tempo da necessidade. Por oposição, evidencia-se a falta de sentido inerente à “vida”, à existência em fluxo lançada no puro movimento da história; de fato, não há nada que possa garantir a permanência do mundo. Poderíamos colocar a questão do seguinte modo: o tempo da “vida” é o tempo do indeterminado, do contingente; em oposição, o tempo da arte (aventura) é o tempo do que é necessário, do determinado. Torna-se lícito, pois, afirmar com toda segurança que é a partir de uma inversão do fluxo temporal da realidade que a arte, – e mais especificamente no nosso caso a literatura, a prosa –, desvela o real através do irreal. Moutinho chama atenção para essa dimensão necessária da arte que desvela, por contraste, a contingência das coisas, ao mencionar um comentário de Simone de Beauvoir referindo-se ao próprio Sartre: ele “teve a revelação da necessidade da arte e descobriu, por contraste, a deplorável contingência das coisas dadas”.264 É no lastro desta afirmação que o comentador prossegue: A literatura [...] cria necessidade pelo recurso ao finalismo, conferindo aos acontecimentos uma fatalidade própria à arte. Essa fatalidade, “maneira diferente” de acontecer, é o que Roquentin tanto ambicionava para sua vida. É exatamente na medida em que a arte escapa à contingência, criando a necessidade, que ela tem um papel fundamental no romance [...] Todo o romance é permeado por uma mesma canção de jazz, “Some of these days”. É através dessa canção que Roquentin percebe, pela primeira vez, o abismo entre a arte e o mundo. 265 Essa passagem, ainda que por vias oblíquas, fornece-nos elementos para afirmar que a literatura oferece uma via de acesso legítimo ao real. Mas para além do fato de contrapor o passado estruturado a um presente desordenado, é como recurso à atitude imaginante, tal como buscamos ressaltar anteriormente, que a literatura oferece o acesso ao real. Isso porque “imaginar é fazer inexistir”, o que delineia perspectivas e perfis da realidade não apreensíveis quando permanecemos limitados aos contornos da objetividade. Assim, quando a literatura põe o homem à parte do real, ela, de fato, coloca-o em contato com a realidade profunda. Isso significa liberdade na leitura do romance, o leitor se depara com sua própria condição, qual seja, o caráter de inacabamento da consciência, enquanto puro fluxo contínuo. É justamente porque não há nada que possa fundamentar a existência a priori que cabe ao existente constituir-se continuamente, fazer-se. A subjetividade surge, desse modo, como auto-constituição contínua, o que acaba por ressaltar a liberdade como caráter fundamental da existência. 263 MOUTINHO, Luiz Damon Santos, Op. Cit., p. 53. 264 BEAUVOIR, Simone, Apud. MOUTINHO, Luiz Damon Santos. Op. Cit., p. 62. 265 MOUTINHO, Luiz Damon Santos, Op. Cit., p. 62. 104 que ao retirar – nem que seja por um átimo – o homem de sua condição contingente, o recurso imaginário ou a literatura finda por lançá-lo, por um jogo de contraposições, na existência, “no que ela tem de mais contingente e absurdo”. Lembremos o que Sartre diz em O Imaginário, “Para que a consciência possa imaginar, é preciso que por sua própria natureza possa escapar ao mundo, é preciso que possa extrair de si mesma uma posição de recuo em relação ao mundo. Numa palavra: ela precisa ser livre”.266 Assim o recurso ao imaginário faz com que o homem se perceba livre, sem, no entanto negligenciar o caráter contingente da existência. Portanto, se é necessário à consciência imaginante escapar ao mundo, isso só é possível se o real constituir seu fundamento, uma vez que o homem é sempre em situação, ou se se preferir, o homem é sempre um ser-no-mundo. Não seria ocioso voltarmos à passagem em que o autor esclarece: Chamaremos “situações” os diferentes modos imediatos de apreensão do real como mundo. Podemos dizer assim que a condição essencial para que uma consciência imagine é que ela esteja “em situação no mundo” ou, mais brevemente, que ela “estejano-mundo”. É a situação-no-mundo, apreendida como realidade concreta e individual da consciência, que serve de motivação para a constituição de um objeto irreal qualquer, e a natureza desse objeto irreal é circunscrita por essa motivação. Desse modo, a situação da consciência não deve aparecer como uma pura e abstrata condição de possibilidade para todo o imaginário, mais sim como motivação concreta e precisa da aparição de tal 267 imaginário particular. É exatamente nesse sentido que o recurso ao imaginário oferece uma via de acesso legítimo ao real, isto é, é ao negar o mundo através da literatura, o escritor oferece um recorte singular da realidade e, como conseqüência, o leitor é convocado a “ultrapassar o real constituindo-o como mundo”. É por essa razão que Sartre sustenta: “para poder imaginar, basta que a consciência possa ultrapassar o real constituindo-o como mundo, já que a nadificação do real está sempre implicada por seu constituir-se em mundo”. Portanto, se o imaginário surge como negação, como nadificação, na terminologia sartriana, isso não significa que o mundo é negado “pura e simplesmente”, mas essa negação se dá sempre mediada por uma singularidade, qual seja, a do autor. O filósofo, uma vez mais: “[...] uma imagem é o mundo negado, pura e simplesmente, ela é sempre o mundo negado de um certo ponto de vista, exatamente aquele que permite colocar a ausência ou a inexistência de um determinado objeto que será presentificado „enquanto imagem‟”.268 266 SARTRE, Jean-Paul, O Imaginário, p. 240. Ibidem, p. 241. 268 Ibidem, p. 240. 267 105 Retornemos ao romance e tentemos perceber o modo pelo qual Roquentin inverte o papel atribuído por Sartre ao imaginário a e à ficção. Ao ouvir uma cantora de jazz, Roquentin percebe que é apenas quando “a preta se põe a cantar” que a Náusea cessa. É unicamente enquanto está imerso na duração da música, uma duração que, nesse caso, exala uma necessidade ordenada, que a Náusea se dissipa. Neste sentido, Roquentin afirma: “Há ainda outra felicidade: fora de mim há aquela faixa de aço, a duração limitada da música que atravessa o nosso tempo de lado a lado, e o recusa, e o rasga com suas pontas secas e agudas; há um tempo diferente”. 269 O personagem sente que há “uma ordem inflexível” na música que garante a ordem do fluxo temporal, que concede a estabilidade; trata-se, sem dúvida, da “necessidade desta música”. É como se o personagem, lançado nesse fluxo contínuo – nessa duração isenta de indeterminação e de imprevisibilidade – deixasse de se sentir existindo, e, desse modo, fosse capaz de escapar ao sentimento da Náusea. É por isso que o personagem constata: “O que acaba de suceder é que a Náusea desapareceu. Quando a voz se levantou, no silêncio, senti meu corpo contrair-se, e a Náusea dissipou-se”.270 É a necessidade intrínseca a essa específica duração do jazz que o personagem gostaria que regesse sua vida. Roquentin deseja que tudo se passe de forma ordenada e previsível; ele deseja a segurança que essa ordem oferece. Deseja, enfim, que sua existência ganhe a consistência do Em-Si. Cabe, neste ponto, incorporar à nossa leitura a instigante análise que Leopoldo e Silva tece acerca do encontro do personagem Roquentin com a ordem presente na canção “Some of These Days”, a qual revela-se capaz de afugentar o sentimento da Náusea. O comentador alertanos quanto à simultânea experiência de bem estar e de esclarecimento pela qual passa o personagem. Mais propriamente, ao mesmo tempo em que ele se sente feliz porque a música parece capaz de afugentar o sentimento da Náusea, ele compreende com clareza a razão do prazer que ela lhe proporciona: “Roquentin percebe melhor por que a música o deixava feliz. Ela não existe. Ela não é contingente. Simplesmente é”.271 É a partir desta constatação que o personagem parece encontrar na arte uma alternativa de salvação, uma possibilidade de escapar ao sentimento da Náusea. Ao perceber que a música é, mas não existe, ele vislumbra a possibilidade de que uma: “obra o faria ser para os outros. A obra o faria ser. E isso talvez significasse escapar da existência contingente. [...] a música é suficiente para conferir àquele homem 269 SARTRE, Jean-Paul, A Náusea, p. 44. Ibidem, p. 45-6. 271 LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Op. Cit., p. 91. 270 106 contingente uma permanência e uma necessidade que não podem ser revertidas. Por isso, Roquentin pensa na literatura e se coloca a possibilidade de salvação”. 272 Em suma, a música leva Roquentin a pensar que talvez a salvação estivesse em criar algo que o lançasse para além da existência, algo que fosse, algo que é, “alguma coisa que não existisse, que estivesse acima da existência”. Algo capaz de fazer as pessoas pensarem nele para além da sua existência. E aqui a distinção entre ser e existir273 torna-se fundamental: se a arte surge como a possibilidade de criar algo que é, então talvez essa permanência permitisse a ele escapar da Náusea e da eterna instabilidade que retira todo sentido da existência, uma vez que nesta, nada é fixo ou acabado. Nesse registro, isto é, considerando-se a possibilidade de se pensar a arte como uma alternativa para ultrapassar a experiência da Náusea, o argumento de Moutinho oferece subsídios para nossa reflexão: “[...] a arte, por escapar à contingência, revela-se agora como o absolutamente outro do mundo, como inatingível, fora do mundo das existências. A arte não existe, ela é”.274 A arte surge, pois, como a possibilidade de negar o caráter contingente da existência, de modo que um homem possa se esquivar da angústia que dela emana. No entanto, circunscrita a essa concepção, a arte vem ao encontro de uma determinada postura no mundo, a qual foi alvo da crítica sartriana. Noutros termos, a compreensão da arte unicamente como uma forma de negar o caráter contingente da existência enlaça-se com a má-fé.275 Essa seria a postura de Roquentin. De fato, se nos reportamos ainda uma vez à discussão sartriana acerca do papel do imaginário, na qual a imagem, enquanto representação que encanta e enfeitiça, efetivamente nega a realidade mundana e atesta a busca da fusão entre o Em-Si e o Para-Si, não seria outro o papel da arte e das criações imaginárias. Sua meta restringir-se-ia a consumar um estado de alienação. Não obstante, se por um lado a necessidade inscrita na música ou na tessitura do romance se opõe à contingência do real, descortinando o caminho da evasão e da má-fé, é fundamental insistir que a criação artística não se limita a esse contraponto negativo. Ao 272 Ibidem, p 92-3. Talvez não se mostre ocioso lembrar que, sob registro existencialista, o único ente que existe, isto é, que tem seu próprio ser enquanto projeto de ser, é o para-si, isto é, o homem. Assim todos os outros entes são, mas não existem. O que significa que uma obra de arte é, mas não existe. A existência pressupõe o seu caráter processual. Existir é ser enquanto projeto de si mesmo. 274 MOUTINHO, Luiz Damon Santos, Op. Cit., p. 74. Grifado no original. Sobre a “perda da função terapêutica” Veremos isso melhor a seguir quando falarmos sobre a relação entre o real e o irreal, por hora basta-nos ressaltar que também Moutinho frisa a distinção entre existir e ser. 275 A esse respeito, citemos os comentários de M. T. Souza: “[...] embora Roquentin deseje o necessário e pense alcançá-lo por meio da literatura (do mesmo modo que todo homem tenta encontrar um meio para ser-em-si-parasi), nada nos indica que ele satisfez esse desejo, que o realizou. Mesmo que a Náusea seja o livro que Roquentin escreveu, a concretização da vontade de escrever, isso não nos indica, ainda, que a alienação foi alcançada por parte dele”. SOUZA, T. M., Op. Cit., p. 100. 273 107 contrário, ela o ultrapassa e mostra-se como caminho desvelador do real à medida que o negativiza, desnudando perspectivas, perfis e dimensões da inserção histórica, ou melhor, da situação do homem no mundo. Ou seja, se ela cria o inexistente, o faz a partir de um real preexistente, alargando assim as possibilidades da dimensão concreta do mundo, ainda que o faça negativamente. Com efeito, segundo Sartre, a negatividade resultante da criação imaginária opera naquele que a experiencia um recuo ante os estreitos contornos do mundo objetivamente percebido, exacerbando, assim, a compreensão deste real, que não é jamais ignorado, mas ampliado pela criação irreal. O comentário de T. M. Souza vem a propósito: “Assim, pensamos que imaginário [do qual a arte é produto, atentemos], na filosofia de Sartre, não deve ser visto primordialmente como alienação e abstração, mas sim como uma imersão ainda mais profunda na realidade, justamente por ser negação, um afastamento do mundo que exige um mergulho, mais profundo ainda na situação”.276 Nesse sentido, torna-se plausível considerar que o inexistente engendrado pela criação romanesca desvela a real condição histórica do homem. Se Roquentin vivencia o contraponto entre a necessidade inscrita na obra e a contingência de sua condição de existente, escapa-lhe, entretanto, este papel outro da arte, o qual, enfim, não pode ser apreendido pelo personagem em virtude da forma pela qual ele vivencia sua liberdade. Se a Náusea o conscientiza acerca da liberdade que lhe é constitutiva, a obra o livrará dela. Por essa razão, a realidade que emana da música ou do romance que ele pretende escrever configura-se, sob a sua perspectiva, devidamente ordenada, fatalmente estruturada. A obra o redimirá de sua condição de existente. Numa palavra, não seria exagero sustentar que Roquentin projeta na arte o estado alienado em que se encontra enquanto homem inserto historicamente. Leopoldo e Silva é preciso: “a possibilidade de salvação pela arte, isto é, pelo imaginário, deve-se ao fato de que ele [Roquentin] não está bem situado no mundo”.277 É por isso que podemos concluir que o que “falta a Roquentin é uma situação histórica extremada em que ele tenha de viver seu próprio limite”.278 Em síntese, torna-se lícito sustentar: para que o apelo ao imaginário tenha sentido é necessário que ele se conecte com a condição histórica do homem, ou seja, faz-se necessário o seu desdobramento ético. Detenhamo-nos um pouco mais sobre esse ponto. Com efeito, o binômio liberdade/contingência requer como substrato o caráter gratuito e absurdo da existência, assim 276 SOUZA ,T. M., Op. Cit., p. 103. LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Op. Cit., p. 103. 278 Ibidem, p. 105. 277 108 qualquer tentativa de atribuir algum sentido dado à existência significa recair na inautenticidade, isto é, significa negar a responsabilidade inserta no desdobramento ético que a concepção existencialista exige.279 Não é outra a postura do personagem, o qual busca a todo o momento um solo estável, capaz de justificar suas ações, fugindo assim do compromisso e da responsabilidade decorrentes da falta de fundamento para a existência. Se nos atemos ao âmbito da arte, o que o personagem busca com a criação do irreal é justamente negar esse caráter dialético que a configura, ou seja, o fato de que o imaginário representa a negação do real e simultaneamente a imersão mais profunda no seio da própria realidade. É exatamente essa tensão aparentemente paradoxal – negada pelo personagem – que caracteriza a concepção sartriana de literatura, isto é, a literatura é e não é fuga da realidade, pois ao negar o real o escritor lança o leitor no seio da realidade mesma. Entendemos então o comentário de Leopoldo e Silva: “O que Roquentin parece principalmente recusar é esse caráter dialético que afeta o compromisso num mundo contingente. Essa é a razão de querer comprometer-se com a arte, isto é, com a necessidade do objeto inexistente”.280 Todo o itinerário de Roquentin, portanto, se constitui sob a recusa das implicações éticas que se evidenciam através da manifestação da experiência instauradora da Náusea. Ressaltemos ainda algo acerca da relação entre o irreal da literatura e o real contingente, sob uma perspectiva interna ao romance. Em primeiro lugar, é preciso esclarecer melhor a questão acerca da arte enquanto possibilidade de salvação. É sintomática a indagação do personagem: “a espécie de alegria” que a canção oferece pode justificar nossa existência? Ou melhor, é possível, a partir da estabilidade oferecida pela criação da obra de arte, justificar a existência? Não poderia eu tentar... é claro que não se trataria de compor uma música... mas um livro: não sei fazer outra coisa. Mas não um livro de história: a história fala do que existiu – nunca um existente pode justificar a existência de outro existente. O meu erro era querer ressuscitar o Sr. de Rollebon. Outra espécie de livro. Não sei muito bem qual – mas era preciso que se adivinhasse nele, por trás das palavras impressas, por trás das páginas, alguma coisa que não existisse, que estivesse acima da existência. Uma história, por exemplo, como não pode suceder, uma aventura. Era preciso que fosse bela e dura como aço e que fizesse vergonha às pessoas da sua existência. 281 279 Cf. também atesta Leopoldo e Silva: “Liberdade e contingência andam sempre juntas com a gratuidade: mas se é assim, se podemos ser traídos pelos nossos atos livres não seria melhor se fôssemos determinados e totalmente isentos de responsabilidade?” Ibidem, p. 111. 280 Ibidem, p. 112. 281 SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 300-1. Grifo nosso. 109 Roquentin vislumbra na figura do Judeu e da Negra norte-americana uma oportunidade de se “lavar do pecado de existir”. Ou seja, ele Roquentin parece perceber na literatura uma oportunidade de criar algo capaz de proporcionar o caráter racional e necessário que ele tanto deseja, algo que permita escapar à condição contingente da existência. Os heróis de romance, de fato, parecem escapar da existência para se lançarem no Ser, de modo que o Para-Si se constitua finalmente enquanto um Em-Si. “Ele [Roquentin] que existia sem razão, como um castanheiro ou o gradil do jardim, entrevê agora a oportunidade de existir justificadamente, isto é, com razão e necessidade. Como um Ser”.282 Mas é preciso que esse livro seja de “outra espécie”, é preciso que ele seja a criação do inteiramente novo, pois como o personagem mesmo diz: “nunca um existente pode justificar outro existente”. Para o personagem, é preciso que essa obra tenha a espessura do Em-Si, o mesmo estatuto ontológico do Ser. Desse modo, “só o inexistente pode justificar a existência de um existente”. Daí que Leopoldo e Silva, em sua análise, nos remeta ao problema da irrealidade, pois elaborar algo que inexiste parece possibilitar ao protagonista ultrapassar a própria existência. Salvaguardando-se da experiência violenta da Náusea e da angústia que dela decorre, Roquentin acaba negando os imperativos de sua própria transcendência, aquela que se dá no interior da imanência, constitutiva de toda consciência em seu movimento em direção ao mundo. Logo, ao buscar algo que pudesse proporcionar a positividade ontológica, mesmo que seja através da criação ficcional, o personagem nega a própria existência e aquilo que ela tem de mais característico, ou seja, seu caráter processual. Em outras palavras, no nosso entendimento, o que faz Roquentin ao buscar essa positividade na literatura, é negar tanto a contingência da condição humana, quanto o caráter transcendente que o estar no mundo impõe à sua consciência. Mas, análogo ao que acontece no exemplo do casal homossexual, mencionado no capítulo anterior, postular o caráter puramente imanente e acabado que uma obra literária parece assumir quando pronta, não significa necessariamente negar a contingência do existir. Se a criação imaginária resulta numa irrealidade internamente necessária, isso não impede que ela insira seja o seu criador, seja aquele que a frui, mais radicalmente no real. Noutros termos, ela não exime aquele que com ela se defronta de seu perpétuo inacabamento, e não o livra, tampouco, da necessidade de que ele se lance em direção ao mundo ou aos outros. Numa palavra, a obra não salva ninguém do caráter transcendente de sua existência. No entanto, apesar da expectativa desenvolvida pelo personagem – isto é, de se refugiar nos meandros da criação ficcional –, a obra imaginária parece pressupor uma outra consciência 282 LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Op. Cit., p. 95. 110 livre para completá-la. O ato de transcender-se abarcado no processo criativo exige, em contrapartida, que aquele que se debruça sobre a obra, no caso o leitor, assuma sua própria transcendência. Portanto, e parece ser esse o grande alerta proposto por Leopoldo e Silva, a arte ganha uma dimensão também transcendente, pois, tal como buscamos evidenciar, a literatura oferece uma fonte de acesso legítimo ao real através do imaginário, através da negação mesma do próprio real. Configurando-se assim como um processo dialético. A respeito dessa questão, Leopoldo e Silva assim se expressa: Se a consciência depende do que ela visa, ela pode pôr-se como fora do mundo se visar objetos inexistentes, se visar a sua própria produção. Já que é difícil lidar com o mundo percebido, posso inatualizá-lo e instituir a atualidade da não-existência, presentificar o nada.283 Como sustentado pelo próprio comentador e como buscamos endossar no decorrer destas linhas, essas reflexões são, de fato, exteriores ao fluxo de reflexão do próprio Roquentin; através delas, entretanto, é possível elucidar “o apelo sartriano à teoria do imaginário, a possibilidade de presentificar a ausência, isto é, apontar a modalidade de consciência que se põe a partir da intencionalidade imaginante”.284 Cabe reiterar: o que o personagem pretende é “recusar o caráter dialético que afeta o compromisso num mundo contingente”, 285 ou seja, negar sua liberdade através da arte. Sob esse prisma, reduzir a criação romanesca à sua dimensão imanente, tomando-a como alternativa de fuga, como o faz Roquentin, parece simplificar a questão, visto que aceitar a imanência implicada na literatura não significa necessariamente negar seu caráter transcendente. O escritor pressupõe o leitor. Assim, tal como aparece no pacto tacitamente tecido entre ambos, – como o explicita Sartre em Que é a literatura? –, o primeiro lança um apelo para que o segundo generosamente mergulhe no mundo imaginário proposto pela literatura, e, deste modo, perceba, por detrás do véu que a encobre o real, a própria realidade:286 “Assim o escritor apela à 283 Ibidem, p. 104. Ibidem. 285 Ibidem, p. 112. 286 É importante observar que essa referência – como outras que se seguirão – à uma obra mais tardia do autor não é gratuita, posto que nossa interpretação busca evidenciar a unidade orgânica e ao mesmo tempo dinâmica das preocupações do filósofo. Isto é, as questões referentes às preocupações históricas em Sartre, no nosso entender, já estão presentes em suas primeiras obras, assim como as questões referentes à ontologiafenomenológica não o abandonam em suas obras posteriores. Nesse sentido, é pertinente nos reportarmos às obras de maturidade de Sartre em vista de elucidar questões referentes às suas primeiras obras, que, afinal, constituem mais diretamente o objeto de nosso estudo. 284 111 liberdade do leitor para que esta colabore na produção da sua obra”.287 Isso significa que a liberdade do escritor empreendida na criação de sua obra se apresenta como um apelo à liberdade do leitor, pois, como dissemos no capítulo anterior, a consciência imaginante pressupõe a liberdade.288 E é justamente por isso que Sartre afirma em Que é a Literatura? que a leitura é o correlato necessário da escrita. Novamente, o filósofo: A leitura, de fato, parece ser a síntese da percepção e da criação; ela coloca ao mesmo tempo a essencialidade do sujeito e do objeto. O objeto é essencial porque é rigorosamente transcendente, porque impõe as suas estruturas próprias e porque deve esperá-lo e observá-lo; mas o sujeito também é essencial porque é necessário, não só para desvendar o objeto (isto é, para fazer com que haja um objeto), mas também para que esse objeto seja em termos absolutos (isto é, para produzi-lo). Em suma, o leitor tem a consciência de desvendar criando, de criar pelo desvendamento.289 As palavras de Sartre não poderiam ser mais claras no que tange ao papel ativo do leitor. Ou seja, elas aludem à liberdade implicada no ato da leitura, no qual se prolonga a constituição da própria obra, que, sob esse registro, só se realiza no encontro entre leitor e escritor através da leitura (que é também criação) da própria obra. É nesse sentido que cabe reforçar aqui a idéia segundo a qual a temporalidade irrompe como categoria fundamental na relação que se estabelece entre o leitor e o escritor. Assim, vale aludirmos a uma passagem do autor em François Mauriac e a Liberdade, no qual ele afirma que a matéria que se manipula ao ler um romance é o “próprio tempo”: Pois o livro não é nada além de um pequeno monte de folhas secas, ou então uma grande forma em movimento: a leitura. Esse movimento, o romancista o capta, guia, desvia, faz dele substância de seus personagens; um romance, seqüência de leituras, de pequenas vidas parasitárias que não duram cada qual mais que uma dança, incha-se e nutre-se com o tempo de seus leitores.290 Destaca-se nesta passagem a ênfase na temporalidade enquanto categoria fundamental da criação literária. É através do tempo (consciência em puro movimento) implicado na leitura de 287 SARTRE, Jean-Paul, Que é a Literatura?, p. 39. No que tange ao apelo do escritor ao leitor para que, juntos, realizem sua obra, é inevitável não pensarmos no conceito de obra aberta desenvolvido por Umberto Eco em Obra Aberta. Sustenta o autor: “Obra aberta como proposta de um ‘campo’ de possibilidades interpretativas, como configuração de estímulos dotados de uma substancial indeterminação, de maneira a induzir o fruidor a uma série de ‘leituras’ sempre variáveis; estruturas, enfim, como ‘constelação’ de elementos que se prestam a diversas relações recíprocas”. (ECO, Umberto, Obra Aberta, p. 150) Mesmo que o registro teórico dos autores se distancie muito, parece-nos que em ambos a liberdade se apresenta enquanto um pressuposto necessário à criação ficcional. E nesse sentido, em ambos, o escritor reivindica a liberdade leitor. 289 SARTRE, Jean-Paul, Que é a Literatura?, p. 37. 290 Idem, François Mauriac e a Liberdade, in : Situações I, p.61. 288 112 um romance – que sem o leitor nada mais é do que “um pequeno monte de folhas secas” – que o leitor generosamente emprega sua liberdade a serviço da criação da obra de arte, e nesse movimento ele vê surgir, por oposição, sua própria liberdade. Ainda sob esse registro, qual seja, da literatura enquanto negação da realidade, poderíamos nos colocar a questão formulada com muita felicidade por Thana Mara de Sousa: Roquentin não representaria o percurso de quase todos os escritores que, ao se perceberem lançados na gratuidade da existência, buscam refugio na literatura? 291 Ou melhor, a literatura não se esgotaria, inversamente ao que sustentamos acima, numa forma de negar a transcendência? Ela não atualizaria, por fim, um caminho para negar a própria liberdade enquanto característica fundamental da existência humana? Essa compreensão da literatura não se sustenta se considerarmos a tese fundamental do existencialismo sartriano: aquela segundo a qual a “existência precede a essência”. Sob essa perspectiva, o homem sempre será aquilo que ele fizer de si, o que nos conduz ao reconhecimento de que não há nada capaz de suprimir a escolha enquanto um ato constitutivo da condição humana imersa na pura gratuidade, lançada na contingência. Em face disso, de modo algum poderíamos reduzir a literatura a uma forma de negar a liberdade em ato presente na criação ficcional, visto que o próprio ato de criação da obra de arte autêntica, tal como exposto acima, requer a liberdade tanto do autor como do leitor, o que finda por lançá-los – ou por despertá-los – para a sua própria condição. A ficção, à medida em que revela a contingência por inversão, vem ratificar a liberdade que nos constitui, jamais negá-la. Se pensarmos no contexto em que surge o pensamento existencialista, veremos que já não é possível conceber uma filosofia aquém do mundo, do contexto histórico.292 É nesse sentido que entendemos porque Sartre requer da literatura a reinserção no seio da própria realidade; os pressupostos fundamentais aqui são tanto a idéia da existência lançada no mundo, quanto uma concepção do homem sempre em processo. Assim, se o diagnóstico sartriano atesta que fazer literatura é recorrer à criação imaginária que, por sua vez, alarga a inserção no contexto histórico, então é preciso exigir do escritor que se assuma enquanto responsável, que abrace a dimensão ética constitutiva de toda criação ficcional. Ainda uma vez, o comentador: [...] nenhuma escolha consolida meu ser, ou o ser que escolhi ser na contingência da situação, todas são igualmente revogáveis. Não há um sustentáculo que apóie a 291 SOUZA, Thana Mara de, Sartre e a literatura engajada: Espelho Crítico e Consciência Infeliz, p. 94. Nesse sentido as palavras de Frédéric Worms são bastante elucidativas: WORMS, Frédéric, La Philosophie en France au XXe Siècle, p. 203ss. 292 113 escolha feita e fundamente meu ser a partir de uma dada opção de ser. A contingência radical é a ausência de fundamento. O nada constitutivo do para-si não pode fundamentar qualquer continuidade no ser. Para continuar sendo o que escolhi ser, é preciso renovar a cada momento o projeto de ser.293 Com essa discussão, queremos ressaltar que a concepção de literatura que Sartre defende, e que é expressa principalmente no romance, é permeada por uma concepção fundamental e que se delineará com clareza um pouco mais tardiamente em sua filosofia. Trata-se da idéia segundo a qual a liberdade humana só pode ser pensada em situação.294 Se não há liberdade exterior à história, o caráter contingente da existência que Roquentin sente através da Náusea não pode negar esse pressuposto fundamental. Ademais, é justamente através do sentimento da Náusea que a liberdade humana em situação se manifesta. Daí que reiteramos o anteriormente afirmado: criar ficções nada tem a ver com alienar-se Ou seja, aceitar a imanência não implica necessariamente negar a transcendência, tal como Sartre a entende. A literatura – obra imanente – se constitui como um apelo à transcendência do leitor. O que significa que o escritor parece exigir do leitor, através do recurso ao imaginário, que este assuma sua própria liberdade historicamente situada. Daí que a T. M. de Souza assinale, aludindo à relação do filósofo com seu exercício literário: Sartre mostra que não se alienou por meio de seus romances e peças: ele não estabeleceu um mundo irreal e necessário frente à contingência real e nem mesmo alcançou a sua essencialidade e necessidade através do imaginário. É por isso que podemos dizer que, se a frase pensada por Roquentin – a de que só os salafrários pensem que ganham – nos permite mostrar que o imaginário não é sinônimo de alienação e realização inautêntica do Em-si-Para-si (já que autenticamente essa síntese não se realiza) somente para os salafrários, na medida em que apenas eles pensam ganhar, a frase escrita por Sartre em As palavras – a de que após escrever seus livros a ilusão, a salvação e a imortalidade se deterioram – nos permite mostrar que o imaginário pode ser também a inserção mais profunda no mundo, a constatação de que mesmo a negação do real não ocasiona necessariamente o esquecimento deste.295 Destarte, as palavras de Sartre em Que é a Literatura? ganham força. Se pelo lado do escritor, a obra, ainda que não o seja, pode se apresentar como uma possibilidade de alienação – como o faz Roquentin enquanto escritor, numa atitude que podemos entender como má-fé –, pelo lado do leitor, ela representa um apelo para que ele assuma sua liberdade. E esse apelo parece 293 LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Op. Cit., p. 144. Embora o conceito de projeto presente no comentário seja caro à Sartre, não nos interessa desenvolve-lo aqui. 294 Mesmo que essa concepção só se evidencie posteriormente em romances com Sursis, por exemplo, acreditamos na continuidade do pensamento de Sartre, e por isso, mesmo aqui é preciso ressaltar que a dimensão histórica está presente. 295 SOUZA, Thana Mara de, Op. Cit., p. 101-2 Grifo nosso. 114 desnudar a própria liberdade humana como um caráter fundamental da existência. Assim, segundo Sartre [...] o autor escreve para se dirigir à liberdade dos leitores, e a solicita para fazer existir a sua obra. Mas não se limita a isso e exige também que eles retribuam essa confiança neles depositada, que reconheçam a liberdade criadora do autor e a solicitem, por sua vez, através de um apelo simétrico e inverso. Aqui aparece então o outro paradoxo dialético da leitura: quanto mais experimentamos a nossa liberdade, mais reconhecemos a do outro; quando mais ele exige de nós, mais exigimos dele. 296 Contraditando ainda a tese da alienação, poderíamos retomar aquilo que foi dito anteriormente sobre a atitude do personagem Roquentin. Sem dúvida, é possível entendermos que a literatura, para o personagem, constitua uma forma de negar a realidade, de fixá-la, ordenála. No entanto, isso de modo algum se aplica a Sartre. Em outras palavras, dizer que Roquentin age de má-fé não significa que o autor do livro faça o mesmo; inversamente, a intenção do filósofo consiste em desnudar a possibilidade da literatura representar um apelo à liberdade, mesmo que negativamente. Talvez por isso mesmo – porque estamos no âmbito de um universo ficcional – a representação da dimensão contingencial da existência através do romance ganhe tanta força, ou seja, sua força vem do caráter negativo da representação ficcional. É justamente neste ponto que encontramos o gancho necessário para retomarmos o problema do irreal, do imaginário, o que nos permitirá adentrar a relação entre o irreal da literatura e o real contingente. Dizer que o escritor solicita a liberdade do leitor através do imaginário significa dizer que o imaginário tem como suporte e fundamento a liberdade, pois, para que a consciência imaginante exista, é necessário que por sua própria natureza ela escape ao mundo. Como diz Sartre, [...] colocar o mundo enquanto mundo ou “nadificá-lo” é uma só coisa. [...] [assim] para poder imaginar, basta que a consciência possa ultrapassar o real constituindo-o como mundo, já que a nadificação do real está sempre implicada por seu constituir-se em mundo [...] Pois uma imagem não é o mundo negado, pura e simplesmente, ela é sempre o mundo negado de um certo ponto de vista, exatamente aquele que permite colocar a ausência ou a inexistência de um determinado objeto que será presentificado “enquanto imagem”. 297 Dos dizeres do filósofo o que mais nos interessa destacar é que a liberdade do escritor se apresenta como um pressuposto necessário para a elaboração da ficção, pois só posso criar a obra ficcional se for livre para negativizar o mundo. Isso significa que fazer literatura equivale a 296 297 SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 43. Idem, O Imaginário, p. 240. 115 mergulhar na situação histórica e, por conseqüência, assumir-se como responsável. Significa que o escritor deve aceitar o necessário desdobramento ético que caracteriza a literatura, tal como concebida sob a perspectiva dessa filosofia. Novamente aqui aflora a referência ao papel desvelador da literatura. O recorte realizado pelo escritor é resultado do mergulho em seu contexto histórico. Movimento necessário, visto que a ficção é sempre negação do mundo. No entanto, trata-se de uma negação “de um certo ponto de vista”, opera uma reinserção na própria realidade. Quando o escritor nega seu contexto – e é isto o que ele faz ao recorrer ao imaginário –, ele dá à conhecer o real encoberto pelo véu da realidade. Numa palavra, a literatura se apresenta como uma porta de acesso legítimo ao contexto histórico. Cabe insistir: se a situação histórica é condição de possibilidade para a criação ficcional, para o recurso ao imaginário, então cabe ao escritor mergulhar primeiramente em seu contexto, para, aí sim, desvelar a realidade por detrás do irreal da literatura. Portanto a criação ficcional que se queira apartada da realidade se mostra necessariamente inautêntica. Daí que a imagem se configure como a constituição de um mundo, para a totalidade do real. Ora, constituir um mundo é negá-lo “de um certo ponto de vista”, é negá-lo objetivamente para reconstituí-lo imaginariamente, o que, tal como viemos insistindo, opera uma reinserção no seio da própria realidade de forma menos ingênua. Por isso, diz Sartre, “[...] a condição essencial para que a consciência imagine é que ela esteja „em situação no mundo‟ [...] É a situação-no-mundo, que serve de motivação para a constituição de um objeto irreal qualquer, e a natureza desse objeto irreal é circunscrita por essa motivação”.298 Assim, se o escritor, através de um ato livre, nadifica o mundo, ele o faz sempre em situação, pois a situação é a motivação do aparecimento de tal imaginário. Daí a conclusão do filósofo: “O irreal é produzido fora do mundo por uma consciência que permanece no mundo, e é porque é transcendentalmente livre que o homem imagina”.299 Podemos pois considerar que, pelo lado do escritor, o irreal solicita sua liberdade porque sua condição é a de homem situado, ao passo que, pelo lado do leitor, essa mesma irrealidade requer também a liberdade. Isso porque o irreal pressupõe “uma consciência liberada das determinações da percepção real”, uma vez que, para Sartre, o ato de perceber não se confunde com o ato de imaginar. Daí os comentários de Leopoldo e Silva: A propriedade da imagem é precisamente a irrealidade. E a consciência da imagem é consciência de irrealidade, de objeto ausente ou inexistente. É uma 298 299 Ibidem, p. 241. Ibidem, p. 243. 116 consciência liberada das determinações da percepção real. E liberou-se, isto é, negou as determinações do real, porque é livre para fazê-lo.300 Como bem destaca o comentador, a experiência da ausência proporcionada pela irrealidade da imagem é sempre mais intensa do que a experiência da presença. Neste ponto, o estudioso alude às famosas análises de Sartre a respeito da ausência. A ausência, para o filósofo, se configura como o momento em que a consciência transcende o mundo no qual os seres são dados em presença e atinge o mundo “vazio” de um determinado ponto de vista. É nesse mundo que o irreal surge, de modo que a “irrealidade me solicita, sinto com intensidade que ele [aquilo que é imaginado] não está, e essa intensidade supera a das outras presenças”.301 É, pois, por oposição, por analogia, que a consciência imaginante descola-se do mundo para criar o objeto imaginado. Logo, entendemos com mais clareza porque é imperativo ao filósofo existencialista lançar mão da criação ficcional: é no âmbito da literatura que o recorte feito pelo autor intensifica a situação histórica de determinado homem; esse recorte exige que o leitor mergulhe na situação descrita e, a o mesmo tempo, volte-se negativamente para a situação em que ele próprio se encontra. Assim, podemos dizer que é por negação que a criação ficcional se constitui, uma vez que o irreal da literatura – isto é, fruto da liberdade humana – confronta-se com o real da contingência – ou seja, a situação histórica como fundamento dessa liberdade. A literatura, através de seu caráter negativo (ausência), é capaz de proporcionar uma experiência mais intensa do que o real com seu caráter positivo (presença). Nesse sentido, o romance revela-se capaz de desvelar a completa gratuidade submersa na aparente ordem do mundo, do mundo teleologicamente ordenado que, nele, nos é apresentado. Com tantas vezes salientado, essa revelação enviesada escapa ao personagem Roquentin, mas não obstaculiza o papel desvelador de A Náusea enquanto criação romanesca. Mais claramente, quando ele projeta no Sr. de Rollebon302 a tão almejada ordem da existência,303 300 LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Op. Cit., p. 100. Ibidem, p. 100. 302 Cabe reproduzir a passagem em que essa concepção aparece no romance: “O Sr. de Rollebon era o meu sócio: tinha a precisão de mim para ser, e eu tinha a precisão dele para não sentir meu ser. Eu fornecia a matéria bruta, essa matéria de que tinha para dar e vender, e da qual ignorava o que havia de fazer: a existência, a minha existência. Quanto a ele, a sua contribuição consistia em representar. Punha-se em frente de mim e tinha-se apoderado da minha vida para me representar a dele. E eu já não dava porque existia, já não existia em mim, mas nele; era para ele que comia, pare ele que respirava; o sentido dos meus movimentos era-me exterior, estava ali, precisamente em frente a mim – nele; deixara de ver a minha própria mão traçar letras no papel, e até a frase que escrevera – mas, por detrás, para além do papel, via o marquês que reclamava esse gesto, e cuja existência o mesmo gesto prolongava, consolidava. Eu era apenas um meio de o fazer viver, a minha razão de ser era ele: o marquês libertar-se de mim. Que hei-de fazer agora?” (SARTRE, Jean-Paul, A Náusea, p. 169-70). Evidentemente, trata-se aqui de projetar toda a falta de sentido da existência que decorre de seu caráter contingente na figura do marquês de Rollebon. 301 117 fazendo com que a inspeção do seu passado proporcione certa ordem (razão) aos acontecimentos futuros, como se os dados coletados pudessem justificar as conseqüências que deles decorrem, na realidade, o personagem busca abolir a contingência do mundo e a transcendência de sua consciência. 304 No entanto, a despeito dos propósitos do personagem, o romance A náusea convoca o leitor a mergulhar nessa singularidade ficcional e a ver-se refletido nessa situação. Ou seja, é a situação particular do personagem que, por apresentar uma certa ordem intrínseca à narrativa, lança o leitor em sua própria condição, qual seja, aquela da total gratuidade da existência. Em outras palavras, é justamente a inversão do fluxo temporal, presente na narrativa das escolhas do personagem que, por oposição, desvela – ao leitor – o fato de que a existência não obedece a nenhuma ordem intrínseca. É curioso esse movimento em que a ordem narrativa paradoxalmente desvela a contingência ao leitor. Na verdade, ela inverte o fluxo temporal, pois, nela, tudo acontece para que o fim desejado pelo autor se realize. Desse modo o leitor já antevê a ordem estabelecida, o que faz com que cada acontecimento ganhe um sentido, uma justificativa. Essa fixidez necessariamente contradita a condição em que o leitor se encontra inserto, de modo que se desvele a ele, nessa contraposição, o caráter gratuito da própria existência. Numa palavra, a gratuidade se desvela justamente porque o leitor contrapõe à ordem implicada na narrativa sua própria condição contingente. No entanto, no caso de A Náusea, encontramo-nos no registro da metalinguagem, uma vez que é o próprio personagem do romance que visa a construção de uma ordem narrativa de caráter ficcional, vislumbrando, nessa tentativa, uma o alternativa ao sentimento da Náusea, ou seja, uma das maneiras de negar a sua própria liberdade. Numa palavra, a narrativa surge ao personagem como um recurso à má-fé, de tal forma que talvez não configure um abuso afirmarmos que Roquentin representa para Sartre um anti-herói, posto que esse personagem atualiza uma imagem invertida da própria filosofia existencialista do filósofo. 305 Sob esse prisma, Sartre visa lançar-nos na situação histórica através da imagem invertida de um personagem que expressa singularmente sua própria filosofia, buscando não assunção da contingência e da história, mas a sua negação. Evidentemente, o esforço sartriano na construção deste romance nada tem a ver com o intuito de ilustrar suas teses filosóficas através da literatura, tal como tentamos evidenciar no 303 Parece-nos que essa mesma interpretação se aplica à concepção da arte enquanto uma possibilidade de salvação defendida pelo personagem ao final do romance. 304 SARTRE, Jean-Paul, A Náusea, p. 167. Sobre o desvanecimento do projeto de historiador, na figura do Sr. Rollebon, como possibilidade de salvação. 305 No que tange a interpretação do personagem principal de seu romance de estréia como um anti-herói, perecenos que essa leitura pode ser estendida aos seus romances subseqüentes. 118 decorrer de nosso estudo. Trata-se, antes, de ultrapassá-las, requerendo do leitor sua própria liberdade singularmente situada. Ou seja, é necessário que o leitor, no ato imaginativo, empregue sua própria liberdade e constitua a obra que, sem isso, não se realiza. É a liberdade do leitor – que, lembremos, “tem a consciência de desvendar criando, e de criar pelo desvendamento” –, implicada na leitura da obra, que é requerida pela literatura. Se o leitor aceita o pacto do autor para criarem a obra, então é necessário que este empregue toda sua liberdade na constituição da obra mesma, já não é possível negar seu caráter transcendente. Assim, a obra só se realiza de fato através da ação livre do leitor que a partir da obra reavalia sua vida e sua condição. É nesse sentido que voltamos à passagem anteriormente citada: “o escritor apela à liberdade do leitor para que esta colabore na produção da sua obra”.306 Ou seja, é preciso que o leitor assuma-se livre na leitura, e com isso, se recoloque em relação à sua própria situação. Assumindo-se, consequentemente, enquanto liberdade frente ao mundo. Mas, cumpre indagar: como ocorreria no interior de um romance esse mergulho na situação histórica requerido pela criação ficcional? Como anteriormente exposto, entendemos que, para Sartre, esse mergulho é operado através da intensidade que o caráter negativo (ausência) da imagem é capaz de proporcionar, visto que a experiência do real através da negação do próprio real é sempre mais intensa que o caráter positivo do concreto (presença). Isto porque a irrealidade da imagem pressupõe a liberdade da consciência, pois só posso imaginar se for livre para negar a realidade que me circunda. Assim, o regresso ao real é intensificado porque requisita minha liberdade e a realidade se dá a ver em seu sentido profundo, qual seja, enquanto pura gratuidade. Esvanece-se, deste modo, a lógica capaz de justificar os acontecimentos a priori. Notemos que isso ocorre justamente porque percebo, através da inversão do fluxo temporal da lógica que perpassa a narrativa, o caráter ilógico que sustenta o próprio real Converte-se, então, a literatura numa vivência do singular que nos lança ao absoluto. Procuremos perceber como esse processo ocorre com a leitura de A Náusea. Roquentin nos convoca a vivenciar sua relação singular com seu projeto de historiador; posteriormente, o personagem se percebe como incapaz de dar continuidade a esse projeto, visto que ele já não consegue justificar os acontecimentos de sua vida. Nesse movimento, a despeito de sua pretensão de atingir uma realidade não contingente, ele finda por convocar o leitor a colocar de lado toda a sua realidade presente (nadificá-la) e mergulhar no imaginário para, posteriormente, retomar o real de forma mais autêntica. Isto porque, tal como foi dito antes, tudo se passa para que algo aconteça a tal personagem, isto é, a presença do autor faz com que o sentido da narrativa já esteja dado, os 306 SARTRE, Jean-Paul, Que é a Literatura?, p. 39. 119 acontecimentos são criados/inventados para aquele personagem. Contrapondo-se ao mundo em que o personagem está inserido – ou ao mundo que Roquentin busca criar – o leitor compreende que supor a realidade como subsumida a qualquer ordem dada é de fato absurdo. Por essa razão, o romance “diz e não diz” as mesmas coisas que a filosofia, porque dizer através do recurso ao imaginário permite ultrapassar o dado concreto da condição existencial para retomá-la num sentido mais profundo, que é o registro da liberdade enquanto fundamento último da existência, ou seja, a sua radical gratuidade. Não seria vão retomar algo daquilo que desenvolvemos em outro momento: trata-se de “recuperar o poder de verdade da literatura”,307 visto que os romances, “mesmo propondo „mundos impossíveis‟ fazem um „bom uso‟ da contradição, velando-a e desvelando-a ao mesmo tempo”308. Aqui a referência é ao caráter dialético que caracteriza o romance para Sartre. Lembremos que a dialética, nesse caso, consiste na relação entre a criação imaginária e o real porque num só instante a consciência imaginante nega o real, mas justamente para reafirmá-lo, porque é apenas enquanto inserção profunda no mundo que é possível a imaginação. É exatamente neste sentido que entendemos o romance A Náusea, como inserção profunda na realidade através da imagem, como experiência concreta expressa através da literatura. Insistamos: “não se trata de confundir filosofia e literatura, mas de abrir caminho para uma filosofia que seja capaz de exprimir a experiência mais concreta e de valorizar a literatura que nos permita ver melhor a nós mesmos e o mundo presente”.309 Nesse sentido, isto é, no que tange à intensidade implicada na ausência, são célebres também as palavras de Blanchot em O Paradoxo de Aytré. Em dado momento, o autor diz que “uma história é a palavra articulada de uma ausência de palavra”. 310 Afinal, não é disso que trata Sartre, ao menos no que concerne à imagem? Blanchot: “na linguagem autêntica a palavra não é a expressão de uma coisa, e sim a ausência dessa coisa. „Digo uma flor?‟, e esta não é mais que „a ausência de todos os buquês‟”.311Assim a concepção do autor, ao citar Mallarmé, parece-nos, que vai exatamente no mesmo sentido do que afirma Sartre ao considerar que “essa intensidade [da ausência] supera a das outras presenças”. Isto porque dizer “esta flor” implica em afirmar a ausência de todas as outras flores. Lendo as palavras do Blanchot sob um viés sartriano, compreendemos que é através do jogo entre a ausência e presença, ou seja, num contraponto de oposições que a literatura desvela o caráter contingente da existência. A ausência 307 PRADO JR, Bento, Sartre e o Destino Histórico do Ensaio, In: Situações I, p. 9. Ibidem. 309 PRADO JR, Bento, Op. Cit., p. 9. 310 Ibidem, p. 65. 311 Ibidem, p. 67. 308 120 configura, desse modo, a intensificação da presença concreta, reinserindo, assim, o leitor no seio do real. A imagem nega o real para reafirmá-lo, o irreal instaura o real profundo da realidade concreta. Assim, se retomarmos o problema na perspectiva da situação histórica, é exatamente nesse sentido que nossa interpretação coaduna-se com aquela defendida por Júlio Cortázar presente na apresentação deste capítulo, segundo a qual a “literatura existencial” representa o “imanente humano” porque expressa o existencial em suas próprias situações, porque representa “a situação em si, a experiência da vida e seu sentido no grau mais imediato”. Portanto, cabe repetir, a “experiência do personagem de La Nausée só se pode apreender mediante uma situação como a sua, e uma situação como a sua só pode comunicar ao leitor mediante um romance”.312 No romance, uma passagem vem ao encontro dessas reflexões. Trata-se do momento em que Roquentin se dá conta do sentido da Náusea, quando o personagem se lança no âmbito reflexivo e percebe que a experiência desnuda o caráter gratuito da existência, que “o essencial é a contingência”. Ainda que longo, cumpre transcrevermos o texto na íntegra: Esse momento foi extraordinário. Eu estava ali, imóvel e gelado, mergulhado num êxtase horrível. Mas, no próprio seio deste êxtase, qualquer coisa de novo acabava de aparecer; eu compreendia a Náusea, possuía-a. A bem dizer, não formulava intimamente minhas descobertas. Mas creio que me seria fácil, agora, traduzi-las em palavras. O essencial é a contingência. Quero dizer que, por definição, a existência não é a necessidade. Existir é estar presente, simplesmente; os existentes aparecem, deixam que os encontremos, mas nunca se podem deduzir. Há pessoas, creio eu, que percebem isto. Somente tentam dominar essa contingência inventando um ser necessário e causa de si próprio. Ora, nenhum ser é uma ilusão de ótica, uma aparência que se possa dissipar; é o absoluto, por conseguinte a gratuidade perfeita. Tudo é gratuito, este jardim, esta cidade e eu mesmo. É o sentimento disso, quando acontece que ele entra em nós, que nos dá volta ao estômago, e então começa à andar a roda como da outra vez no Rendez-vous dos Ferroviários: aí está a Náusea; aí está o que os safados – os do Outeiro Verde – tentam esconder a si próprios com a sua idéia dos direitos. Mas a mentira é pobre: ninguém existe por direito; os burgueses de Bouville são inteiramente gratuitos, como os outros homens; não conseguem deixar de se sentir demais. E, no seu íntimo, em segredo, transbordam do que são, existem exageradamente, isto é, duma maneira amorfa e vaga; tristes.313 A relação que se estabelece entre a necessidade e a contingência durante a citação parece evidenciar o processo de má-fé do qual as pessoas habitualmente se utilizam para negar sua transcendência, pois, como diz Roquentin, a existência é, por definição, não necessária. É por 312 313 CORTÁZAR, Julio, Op. Cit., p. 78-9. SARTRE, Jean-Paul, A Náusea, p. 223-4. 121 isso que inventar um ser necessário como sustentáculo e fundamento da existência se mostra como um ato de covardia. Fugir de si próprio significa agir de má-fé. Daí que a passagem em questão se vincule justamente ao ponto mais central deste tópico, qual seja, a explicitação da completa gratuidade da existência, do sentimento violento e radical da Náusea que tudo destrói, que dissipa qualquer possibilidade de se justificar a existência. Por essa razão, ninguém existe justificadamente, como se houvesse algo capaz de garantir o sentido da existência, tudo é gratuito, e, como diz o personagem, só os “safados” poderiam negar sua condição contingente, pois buscam fugir à sua liberdade. Como destacou Leopoldo e Silva, é preciso “lavar-se do pecado de existir”, é preciso assumir que se “existe exageradamente”, e que as coisas são, sempre, por “demais”. E que o fundamento da existência é a própria gratuidade da mesma. Deste modo, o que buscamos evidenciar neste tópico foi, principalmente, a revelação ao personagem Roquentin de que, embora ele desejasse existir ao modo de um personagem de romance, qual seja, no registro da necessidade narrativa, a ele resta assumir, por intermédio da Náusea, sua condição contingente. Parece-nos, tal como também afirma Moutinho, que a grande distinção existente entre o ensaio sobre A Transcendência do Ego e o romance A Náusea reside justamente na dimensão da contingência.314 Mas se ficou claro que o romance abarca a dimensão da condição contingente do homem, resta explicitar como a consciência enquanto fluxo contínuo, presente no ensaio, aparece no romance. Eis o problema sobre o qual nos lançamos a seguir, de modo que finalizaremos nosso percurso explorando o elo entre o romance A Náusea e a realidade da consciência, tal como concebida pela fenomenologia crítica de Sartre. 3. A consciência enquanto fluxo contínuo e a pura espontaneidade do presente: a Náusea enquanto manifestação profunda da existência Em certo momento do tópico anterior, abordamos a questão da “perda do passado”. Convém retomarmos este problema, mas agora com o intuito de evidenciar o caráter fluido da consciência, o qual aflora no romance através da manifestação violenta e radical da Náusea. Tal como buscamos apresentar no primeiro capítulo, quando analisamos o ensaio sobre a transcendência do Ego, a consciência se caracteriza como pura relação com o mundo, como um processo incessante de realização e que, no entanto, nunca se realiza completamente. Vimos que influenciado pela fenomenologia, Sartre assenta essa concepção na noção de intencionalidade, 314 MOUTINHO, Luiz Damon Santos, Op. Cit., p. 75. 122 que, sob a sua leitura, havia sido negligenciada por Husserl. Nesse sentido, a consciência é pura relação com o mundo, o que significa que ela é puro Nada, puro movimento. Em diversos momentos Roquentin descreve suas vivências de um “modo fenomenológico”, cabe destacar aquele em que, no nosso entender, isso mais se evidencia: Deitei um olhar ansioso à minha roda: presente, nada mais que o presente. Móveis leves e sólidos, encrostados no seu presente, uma mesa, uma cama, um guardafato – e eu próprio. Revelava-se a verdadeira natureza do presente: era o que existe, e tudo o que não era presente não existia. O passado não existia. De modo nenhum, nem as coisas, nem sequer no meu pensamento. Decerto, havia muito tempo que eu tinha compreendido que o meu me tinha escapado. Mas julgava, até então, que se tinha simplesmente retirado do meu alcance.315 Nessa passagem são diversos os aspectos da filosofia existencialista de Sartre que adquirem expressão literária. O primeiro deles salta aos olhos e diz respeito justamente ao movimento que caracteriza a consciência. Este reconhecimento feito pelo personagem, segundo o qual tudo é presente, além de explicitar a “perda do passado”, anteriormente aludida, relacionase diretamente com as vantagens da tradução de Márcia de Sá Cavalcanti para Ser e Tempo de Heidegger. Ao transpor o conceito heideggeriano de dasein para o termo presença em português, o que a tradutora conseguiu foi, precisamente, destacar que a consciência é pura relação, ou seja, que ela é Nada, que ela é vazia. É justamente nesse sentido que a tradução de Márcia de Sá Cavalcante ecoa o sentido que a consciência adquire na filosofia sartriana. Noutros termos, a opção da tradutora por presença tem a vantagem de explicitar o caráter processual da consciência; isso significa que o existente – no caso de Sartre o homem, o Para-Si –, é no mundo, ele se configura como pura presença.316 Daí que seja lícito compreender que o ser-aí heideggeriano, o existente, é pura presença, é um ser-no-mundo. Sob essa perspectiva, existir é “estar presente”, é presença. “O existente é pura presença”, comenta Moutinho.317 Ou ainda, numa formulação literária: “Viver é ir entre o que vive”.318 Destaca-se, dessa maneira, a influência fenomenológica. Ainda com essa passagem, abre-se a possibilidade de compreendermos melhor porque Sartre radicaliza o conceito de intencionalidade, pois, um dos principais fundamentos da fenomenologia – ao menos na apropriação que Sartre faz dela – é que 315 SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 165-6. Grifo nosso. Estamos cientes das críticas a essa opção e da preferência pelo termo ser-aí pela maioria dos tradutores, no entanto não é nosso objetivo aprofundarmo-nos nesta discussão. 317 MOUTINHO, Luiz Damon Santos, Op. Cit., p. 57. 318 MELO NETO, João Cabral, Poesia completa, p. 316. 316 123 “as coisas são inteiramente o que parecem – e por trás delas... não há nada”,319 e que a consciência é somente em relação ao mundo. Podemos então afirmar com toda segurança que aquilo que melhor caracteriza a consciência no registro sartriano é a intencionalidade. Acerca desses aspectos, ou seja, sobre a consciência intencional e a “verdadeira natureza do presente”, Roquentin assim se manifesta: Nunca tive tão nitidamente como o hoje o sentimento de ser o meu corpo, sem dimensões secretas, de me reduzir aos pensamentos leves que sobem dele como bolhas. Construo as minhas recordações como o meu presente. Sou repelido para o presente, abandonado lá. Tento em vão ir ter com o passado: não posso fugir da minha prisão. 320 Evidentemente, a primeira questão que poderíamos formular ao ler essa constatação do personagem diz respeito ao corpo. Sobre esse ponto, contudo, nos deteremos adiante. Ressaltemos, primeiramente, o aspecto fugidio da consciência contemplado pela citação, que se traduz naquilo que aquilo que lança Roquentin sempre no presente, que o aprisiona nele e que é o lugar do qual tudo deriva. Com essa formulação o personagem nos remete à compreensão sartriana de consciência intencional. Retomemos a passagem de A Transcendência do Ego, na qual Sartre aborda o tema: Com efeito, a existência da consciência é um absoluto porque a consciência está consciente dela mesma. Isto quer dizer que o tipo de existência da consciência é o de ser consciência de si. E ela toma consciência de si enquanto ela é consciência de um objeto transcendente. Tudo é portanto claro e lúcido na consciência: o objeto está face a ela com a sua opacidade característica, mas ela, ela é pura e simplesmente consciência de ser consciência desse objeto, é a lei da sua existência. 321 Estas linhas explicitam que o modo de ser da consciência é ser consciência de si enquanto é consciência de um objeto transcendente,322 o que significa que o modo de ser do homem é ser enquanto presença; existir é estar presente. É por isso que o personagem afirma que constrói suas recordações com o seu presente; o passado só surge se revisitado pela consciência, de modo que há a impossibilidade de “reviver” o passado, pois a consciência é sempre em fluxo contínuo. Isto dá ao presente uma conotação que se aproxima da imagem de uma prisão, uma vez que não 319 SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 166. Aludimos aqui ao que foi dito no primeiro capítulo, item 2, acerca da relação entre o fenômeno do ser e o ser do fenômeno. 320 Ibidem, p. 64. 321 Idem, A Transcendência do Ego, p. 48. 322 Evidentemente estamos cientes que Sartre pressupõe aqui os dois âmbitos da consciência – reflexiva e préreflexiva –; no entanto, não nos parece necessário retomar essa problemática, visto que já a exploramos anteriormente em diversos momentos de nosso estudo. O propósito neste momento é apenas ressaltar a consciência enquanto fluxo. 124 podemos escapar dessa pura relação que define a consciência. À guisa de exemplo, se me recordo das “aventuras” que passei no verão passado, por exemplo, isso se dá apenas para me provar que esse passado não existe, ele é, o que existe é a consciência intencional que se volta para uma recordação, e por isso mesmo atualiza-a, ou seja, “a re-significa”, o que é o mesmo que dizer que sob este registro tudo é movimento. Tudo é presença. Posto isso, ficam mais claras as afirmações do personagem: Por cada cem histórias mortas, sempre me ficam, porém, uma ou duas histórias vivas. Essas evoco-as com precaução, de vez em quando, poucas vezes, com medo de as gastar. Peso uma, revejo o cenário, as personagens, as atitudes. Subitamente paro: senti um desgaste, vi uma palavra vir ao de cima da trama das sensações. Prevejo que esta palavra vai tomar o lugar, dentro em pouco, de várias imagens que amo. Imediatamente me detenho; penso depressa noutra coisa: não quero fatigar as minhas recordações. Em vão; da próxima vez que as evocar, parte delas terá coalhado.323 Com esse discurso, fica explícito que o passado – no caso, “as histórias” – é sempre presentificado por uma consciência que o atualiza. Por essa razão, essas recordações irão inevitavelmente “coalhar”. Como interpretar esse “coalhar” das recordações? Trata-se aqui da reapropriação que a consciência intencional faz da memória, o passado ressurge sempre como algo atualizado pela consciência intencional. Ou seja, a intensidade vivenciada no ato em que a história ocorria não pode ser resgatada, ela é sempre atualizada, ela surge enquanto uma outra coisa que não aquela vivida. Já é outra história. Essa compreensão reforça que o modo de ser da consciência é ser “aquilo que [ela] não é, e não [ser] aquilo que [ela] é”324, ou seja, a consciência é fluxo, inacabamento, é pura espontaneidade. Em suas análises, Moutinho se refere a essa “perda do passado”. Trata-se, afirma ele, de um passado que é sempre narrado a posteriori, o que faz com que a narrativa seja permeada por um certo finalismo que acaba por converter a vida em aventura. “O herói não escolhe, ele cumpre um destino”.325 Voltando ao âmbito da criação ficcional, isso significa que o fim destinado aos personagens já está presente desde o inicio da narrativa, e, por isso mesmo, o passado existe apenas para justificar o presente, mas, como vimos, a necessidade intrínseca à narrativa literária, por oposição, acaba por ressaltar a gratuidade que fundamenta a própria existência. A narrativa literária acaba também por inverter o fluxo temporal da consciência. A “perda do passado” representa a não-temporalidade, pois o encadeamento dos fatos presentes na narrativa converte, como lembra o comentador, os “acontecimentos” em “tempo”, ou seja, o 323 Idem, Op. Cit., p. 63. Idem, O Ser e o Nada, p. 38. 325 MOUTINHO, Luiz Damon Santos, Op. Cit., p. 51. 324 125 rigor da narrativa parece justificar todos os fatos. Em outras palavras, a ato de narrar finda por atribuir um sentido aos fatos que, em si mesmo, não existe. É como se a narração propiciasse a ordenação sucessiva dos fatos em instantes, cujos sentidos estivessem previamente estabelecidos Movimento que se contrapõe radicalmente ao fluxo temporal que caracteriza a consciência e que se revela incompatível com determinações quaisquer. Da contraposição entre a ordem contemplada pela narrativa e o fluxo contínuo que define a consciência decorre que o presente passe a ser entendido como pura relação, como pura espontaneidade, pois é exatamente isso que caracteriza a consciência lançada no mundo. Entender o presente como pura espontaneidade implica a perda do passado, pois já não é possível a Roquentin sustentar a segurança proporcionada pela narrativa de aventuras; o passado aparece como algo forjado. É exatamente nesse sentido que cabe retomarmos a passagem referida no tópico anterior: “o sentimento de aventura. [...] vem quando quer; e abandona-me tão depressa! E fico tão seco quando se vai embora. Far-me-á ele estas visitas irônicas para me mostrar que falhei na vida?” Ou seja, se me remeto ao passado ele já não é mais capaz de me proporcionar a segurança almejada, isso é, o passado só é capaz de “mostrar que falhei na vida”. Nesse sentido, Roquentin afirma que “o passado não existe” e que, por isso mesmo, a “verdadeira natureza do presente: era o que existe, e tudo o que não era presente não existia”. Daí voltamos ao “puro processo contínuo” que melhor caracteriza a consciência: existir é estar sempre em pura relação com o mundo. Talvez por isso, o protagonista fale em “Estar a existir”, e talvez por isso também, Leopoldo e Silva sustente que o sentimento da Náusea é “o próprio modo de sentir-se existindo”. Notemos que o gerúndio aqui não é casual. Daí também a referência à expressão de Hilda Hilst, citada anteriormente no primeiro capítulo do nosso estudo: “Estar-sendo-ter-sido”. Essa expressão tem a grande vantagem de, a uma só vez, expressar o caráter processual da consciência a que nos referimos e ainda não negligenciar o aspecto imanente que a consciência inserida no mundo exige. Ou seja, o homem é no mundo, ele é um ser-no-mundo, e que também aludimos anteriormente. No romance, o personagem assim se expressa: Estou a existir. É suave, tão suave, tão lento! E leve: como algo que se mantivesse no ar em suspensão. Sinto mexer: impressões levíssimas por todo o corpo, que fundem e se desvanecem. Suavemente, suavemente. Há na minha boca uma água espumosa. Engulo-a: resvala pela garganta, numa carícia – e já outra me cresce na boca; tenho na boca perpetuamente uma poçazinha de água esbranquiçada – discreta – a roçarme a língua. E essa poça também sou eu. E a língua também. E a garganta sou eu. 326 326 SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 170. 126 Essa passagem é significativa. Nela, Roquentin, além de retomar a concepção da consciência enquanto fluxo – “Estou a existir” –, nos impõe uma outra questão. Com a afirmação “E a garganta sou eu”, é o problema do corpo que se descortina. O que seria o corpo sob a perspectiva sartriana? Antes de nos determos, ainda que brevemente, nessa problemática, faz-se necessário uma nota prévia. Se, como afirmamos anteriormente, a tradução de dasein por presença tem a grande vantagem de frisar o caráter processual da consciência, por outro lado o termo ser-aí – adotado por Ernildo Stein e Benedito Nunes, por exemplo –, tem a privilégio de ressaltar que o existente é sempre no mundo, é um ser-no-mundo – como prefere Heidegger – ou então, que o existente é sempre em situação – como prefere Sartre. Daí a compreensão de que o mundo, no registro sartriano, se configure sempre como o mundo de um dado ponto de vista, como uma perspectiva. Desse modo, o corpo manifesta a contingência; ele é pressuposto sine qua non que o homem realize sua condição no mundo, sua facticidade. Ora, se o ser-aí, ou, para retomarmos a terminologia existencialista, o Para-Si, é sempre um existente no mundo, em situação,327 então o corpo se impõe como condição de possibilidade da consciência no mundo. Diz Sartre: “O ParaSi deve ser todo inteiro corpo e todo inteiro consciência”.328 Temos, finalmente, a formulação do filósofo que define o corpo tal como nos interessa destacar, diz ele: “poder-se-ia definir o corpo como a forma contingente que a necessidade da minha contingência assume”.329 Nesse sentido, só resta ao homem existir seu corpo. No entanto, sob esse registro, configura-se um paradoxo: a impossibilidade para o existente de conhecer seu próprio corpo. Os dizeres do autor explicitam essa complexa relação entre contingência e corpo: “O corpo-Para-si jamais é um dado que eu possa conhecer: está aí, em qualquer parte, como aquilo que é transcendido; só existe na medida em que dele escapo nadificando-me; é aquilo que nadifico”.330 Ou ainda: [...] o Em-si, nadificado e aniquilado no acontecimento absoluto que é a aparição do fundamento ou do surgimento do Para-si, permanece no âmago do Para-si como sua 327 Retomaremos a noção de situação mais adiante, mas talvez não seja ocioso adiantar algo justamente pela força expressiva que as palavras de Sartre adquirem neste contexto. Diz ele, referindo-se à noção de situação: “É esta vereda poeirenta e ascendente, esta sede ardente que sinto, essa recusa das pessoas de me dar algo para beber porque não tenho dinheiro ou não sou de seu país ou sua raça; é minha derrelição no meio dessas populações hostis, com esta fadiga de meu corpo que irá me impedir talvez de alcançar a meta a que me propus [...]” (O Ser e o Nada, p. 673). 328 SARTRE, Jean-Paul, O Ser e o Nada, p. 388. 329 Ibidem, p. 392. 330 Ibidem. 127 contingência original. Assim, o Para-si é sustentado por perpétua contingência que ele recupera por conta própria e assimila sem poder suprimi-la jamais. Em parte alguma o Para-si a encontra em si mesmo, em parte alguma pode captá-la e conhecê-la, sequer pelo cogito reflexivo, porque a transcende sempre rumo às suas próprias possibilidades e só encontra em si mesmo o nada que tem-de-ser. E, contudo, essa contingência não cessa de impregná-lo, fazendo com que eu me apreenda ao mesmo tempo como totalmente responsável pelo meu ser e como totalmente injustificável. 331 Essa passagem revela a relação que existe entre a concepção do corpo como a manifestação da condição contingente do homem e o caráter dinâmico que a consciência assume para Sartre. É necessário ao homem que ele se assuma como responsável pelo seu ser e pela sua condição contingente e injustificável. Aqui, novamente, o pressuposto é que a consciência, ou melhor, o próprio existente, se configura como pura presença. Assim, “estou em presença de coisas que não passam de promessas, para-além de uma inefável presença que não posso possuir e é o puro „ser-aí‟ das coisas, ou seja, aquilo que é meu, minha facticidade, meu corpo”.332 Reitera-se a sentença: ao Para-Si resta existir seu corpo, sua facticidade de forma transcendente, assumindo sua liberdade sem com isso negar sua condição contingente. Pois uma situação de forma alguma “é um puro dado contingente: muito pelo contrário, [ela] só se revela na medida em que o Para-si a transcende rumo a si”.333 Aos comentários de Moutinho vêm ao encontro dessa problemática. Se retomarmos o vocabulário de A Transcendência do Ego, a consciência irrefletida não é consciência do corpo, pura e simplesmente, porque “a consciência existe seu corpo”, o que é o mesmo que dizer que “a consciência existe seu corpo como consciência, por isso, de vez que não há consciência do corpo, este deve pertencer às estruturas da consciência não-tética (de) si. Mas, nesse caso, estruturas que não podem ser postas teticamente, pela reflexão”.334 Novamente, a passagem do âmbito pré-reflexivo ao âmbito reflexivo, mediado pela relação entre a consciência tética (de) si e a consciência não-tética do objeto intencionado, no caso o próprio corpo, mostra-se fundamental. No entanto, o corpo é algo que não é passível de ser colocado como objeto pela reflexão, não pode ser posto teticamente. Por isso, a consciência existe seu corpo, porque o corpo é condição de possibilidade da consciência, porque existir seu corpo é o mesmo que “existir sua contingência”. Entendemos finalmente o sentido íntimo daquilo que diz Roquentin: “Sinto mexer: impressões levíssimas por todo o corpo, que fundem e se desvanecem” e porque isto é o mesmo que “estar a existir”. O caráter contingente da existência só poderia desvelar-se 331 Ibidem, p. 391. Ibidem, p. 407. 333 Ibidem, p. 392. 334 MOUTINHO, Luiz Damon Santos, Op. Cit., p. 71. 332 128 através de um sentimento, no caso a Náusea, porque “existir é existir meu corpo”. Assim: “A Náusea é a experiência permanente, contínua, que me revela meu corpo; na verdade, a Náusea se revela a si mesma e apenas lateralmente o meu corpo, já que esse é inapreensível contingência”.335 Ou seja, a Náusea, ao desvelar-se, impõe ao personagem a força do presente, obriga-o a assumir sua condição transcendente, isto é, sua consciência em fluxo. É justamente este o sentido da imposição do presente sobre as outras dimensões da temporalidade; em outras palavras, o existente tocado pela experiência da Náusea já não é capaz de escapar, ao menos autenticamente, de sua condição contingente. Nesse sentido, é preciso existir meu corpo; existir meu corpo significa ser “repelido para o presente”, para a existência em fluxo. É por isso também que em dado momento o personagem afirma numa passagem já mencionada por nós, mas que vale retomar, ainda que o ponto agora ressaltado refira-se à a reflexão acerca do corpo propriamente dito: “Nunca tive tão nitidamente como hoje o sentimento de ser o meu corpo [...] Construo as minhas recordações com o meu presente. Sou repelido para o presente, abandonado lá. Tento em vão ir ter com o passado: não posso fugir da minha prisão”.336 Ou seja, o passado só surge enquanto presentificação de uma vivência que já não existe, mas apenas é; quando me volto para ela, é para atualizá-la. Como antes assinalado, o presente se configura como uma prisão. Estou preso em meu presente em fluxo, estou condenado à liberdade. Não posso fugir de minha condição, que é “existir meu corpo”. Com isso, entrelaçam-se os temas até aqui abordados. Como buscamos defender, a Náusea é a manifestação violenta e radical da condição contingente do homem, mas essa manifestação é mediada, contra Descartes, pelos sentidos; trata-se de algo que se dá no âmbito da experiência, e isso só adquire significação porque o corpo é a condição de possibilidade da existência, porque existir é estar presente. Como dissemos existir é existir meu corpo. Daí que a Náusea revele meu corpo, ou melhor, revele a “inapreensível contingência” da condição humana, pois meu próprio corpo é contingência. São pertinentes as palavras de Sartre: Esta perpétua captação por meu Para-si de um gosto insosso e sem distância, que me acompanha até em meus esforços para livrar-me dele e que é meu gosto, é o que descrevemos em outro lugar com o nome de Náusea. Uma Náusea discreta e insuperável revela perpetuamente meu corpo a minha consciência. 337 335 Ibidem, p. 72. SARTRE, Jean-Paul, A Náusea, p. 64. 337 SARTRE, Jean-Paul, O Ser e o Nada, p. 426. 336 129 Portanto, se chegamos à compreensão de que a consciência existe seu corpo, e que é através da mediação da experiência violenta e radical da Náusea que esse corpo desvela a contingência – ou melhor, que ele é a própria manifestação da inapreensível condição contingente da existência –, torna-se imperativo retomar o problema da constituição do Ego. Voltemos, pois ao romance com o objetivo de esclarecer como o problema da dissolução do Ego se impõe neste recurso ao imaginário que é A náusea. 4. A dissolução do Ego Comecemos nossa incursão deste tópico por uma passagem do romance em questão, o qual, no nosso entender, expressa com absoluta clareza a dissolução do Ego problematizada no ensaio sobre a transcendência do Ego. Evidentemente, não se trata de dizer a mesma coisa de um modo literário, mas antes, trata-se de requerer do leitor que se volte para a experiência imaginária, e, por conseqüência, empregue sua liberdade nesse processo. Vejamos, então, como isso aparece expresso por Roquentin. Para tanto optamos por método contrapor a expressão literária às análises presentes no primeiro capítulo deste estudo. Diz o personagem: Quando agora digo “eu”, parece-me essa palavra oca. Já não chego lá muito bem a sentir-me, a tal ponto me esqueceram. Tudo quanto resta de real em mim é existência que se sente existir. Bocejo devagar, demoradamente. Ninguém. Antoine Roquentin não existe para ninguém. É engraçado. E que vem a ser isso, essa coisa chamada Antoine Roquentin? É algo abstracto. Uma pálida recordaçãozinha de mim vacila na minha consciência. Antoine Roquentin... E, de súbito, o Eu enfraquece, enfraquece-se e, zás!, apaga-se. Lúcida, imóvel, deserta, a consciência encontra-se entre as paredes; perpetua-se. Já ninguém a habita. Há bocadinho ainda alguém dizia eu, dizia a minha consciência. Quem? [...] Restam paredes anônimas, uma consciência anônima. Eis o que é: paredes e, entre paredes, uma transparenciazinha viva e impessoal. 338 Eis a consciência: “uma transparenciazinha viva e impessoal”! Ou, como aparece em Uma Idéia Fundamental da Fenomenologia de Husserl: a Intencionalidade. Talvez seja apenas a imagem rápida e obscura da explosão possa descrever a consciência intencional. E o “talvez” não está aí por acaso; parece-nos bastante sugestivo que Sartre ateste as dificuldades de expressar o movimento que caracteriza a consciência. Parece-nos, ainda, que essa dificuldade deriva justamente da insuficiência da linguagem teórica em expressar “filosoficamente” a consciência. Daí que Leopoldo e Silva, tal como foi dito no capítulo anterior, considere que através da criação 338 Idem, A Náusea, p. 287-8. 130 ficcional Sartre “diz e não diz as mesmas coisas”. Ou seja, literatura e filosofia apresentam uma dupla insuficiência, e, por isso mesmo, uma relação de complementaridade. Por conseqüência, se a consciência é essa “existência que se sente existir”, então só me resta uma “pálida recordaçãozinha” do Ego na consciência e, pouco a pouco, ela se desvanece, já não há nada que possa habitá-la. Não há nada na consciência. Diz Sartre no ensaio A Transcendência do Ego: “Nós queremos mostrar aqui que o Ego não está na consciência nem formal nem materialmente: ele está fora, no mundo; é um ser do mundo, tal como o Ego de outrem”.339 A consciência é puro vazio. No dizer de Roquentin: “Já ninguém a habita. Há bocadinho ainda alguém dizia eu, dizia a minha consciência. Quem?” Evidentemente essa passagem remete ao referido ensaio filosófico: o Ego não é um habitante da consciência; a consciência é pura espontaneidade impessoal; se não há um Eu na consciência, então o Ego só é posto abstratamente, no âmbito da consciência de segundo grau, da consciência reflexiva. O que novamente não implica afirmar que Sartre busque ilustrar suas teses filosóficas por intermédio da literatura, pois, como dissemos, a criação ficcional vai mais além porque configura um apelo concreto à liberdade do leitor através do recurso ao imaginário. Cabe então retomarmos algo do que já foi trabalhado no primeiro capítulo com o intuito de lançar luz sobre a experiência do personagem, sempre lembrando que não aceitamos a interpretação que defende a literatura como uma forma de ilustrar teses filosóficas, pois o que é dito aqui é expresso sempre como um recurso ao imaginário, o que nos remete a todas as implicações que buscamos destacar em nosso percurso. Assim, detenhamo-nos outra vez nesta passagem de A Transcendência do Ego: Ele [o Eu] não aparece nunca senão por ocasião de um ato reflexivo. Nesse caso, a estrutura complexa da consciência é a seguinte: há um ato irrefletido de reflexão sem Eu [Je] que se dirige para uma consciência refletida [réfléchie]. Esta torna-se o objeto da consciência refletinte [réfléchissante], sem deixar, todavia, de afirmar o seu objeto próprio (uma cadeira, uma verdade matemática, etc.). Ao mesmo tempo, um objeto novo aparece, o qual é ocasião de uma afirmação da consciência reflexiva e não está, por conseguinte, nem no mesmo plano da consciência irrefletida (porque este é um absoluto que não precisa da consciência reflexiva para existir) nem no mesmo plano do objeto da consciência irrefletida (cadeira, etc.). Este objeto transcendente do ato 340 reflexivo é o Eu [Je]. Vemos que Sartre busca ressaltar que o Ego é algo que só é posto num âmbito reflexivo quando a consciência se volta para uma consciência refletida, isto é, no passado. A perda do 339 340 Idem, A Transcendência do Ego, p. 43. Ibidem, p. 55. (Grifo nosso). 131 passado, proporcionada pela experiência da Náusea, reflete esse processo vivido pelo personagem, ou seja, o passado só é capaz de proporcionar a segurança que Roquentin deseja se ele agir de má-fé. Por conseqüência, é só através de um recurso ilusório que a consciência é capaz de inverter o processo natural, ou seja, negar o primado da consciência espontânea e impessoal e colocar o Ego como fonte e motivo dos atos intencionais. 341 Diz o autor: “a consciência projeta sua própria espontaneidade sobre o objeto Ego para lhe conferir o poder criador que lhe é absolutamente necessário”.342 Por essa razão, o filósofo afirma que não há nada na consciência, não há motivo a priori que possa justificar a ação humana. Parece-nos claro o paralelo entre a passagem referida do romance e as análises filosóficas de Sartre. Mas a passagem literária acima citada diz mais do que isso. Como sustenta o filósofo em outro momento,“é na estrada, na cidade, no meio da multidão, coisa entre coisas, homem entre homens”343 que devemos buscar um “nós mesmos”. É exatamente por esse viés que entendemos aquilo que o personagem diz: “Lúcida, imóvel, deserta, a consciência encontra-se entre as paredes”, ou seja, lançada no mundo. Assim, o romance expressa singularmente, ou seja, concretamente, através da imagem, o apelo do escritor à liberdade do leitor para que juntos construam a obra e assumam sua situação histórica. Logo, parece-nos pertinente retomar as palavras de Sartre no romance, por sua capacidade de “dizer e não dizer” as mesmas coisas presentes neste registro teórico. Vejamos: A consciência existe como uma árvore, como um pedacinho de erva. Tem sono, aborrece-se. Pequenas existências fugitivas povoam-na como aves nos ramos. Povoamna e desaparecem. Consciência esquecida, abandonada entre as paredes, sob o céu cinzento. Eis o sentido da sua existência: é que essa consciência é consciência de ser demais. Dilui-se, dispersa-se, procura perder-se na parede escura, ao largo daquele candeeiro, ou além, nos fumos da tarde. Mas nunca esquece-se de si mesma; é consciência de ser consciência a esquecer-se de si. O seu destino é esse. [...] Não está entre as paredes, não está em parte nenhuma. Desaparecer; substitui-a um corpo arqueado com uma cabeça ensangüentada, que se afasta a passos lentos, parece deter-se a cada passo e não para nunca. Há consciência desse corpo que caminha lentamente por uma rua escura.344 O que significa dizer que “a consciência existe como uma árvore”? E quais são as implicações dessa concepção? Tal como foi dito acima, dizer que a consciência existe “entre as paredes” é o mesmo que afirmar que ela só é em relação ao mundo, e que fora dessa relação ela não é nada, ou melhor, “seu destino é esse”, a consciência “é consciência de ser consciência a 341 Veremos com mais cuidado o problema da “motivação” dos atos intencionais no próximo tópico. Ibidem, p. 70. 343 Idem, Uma Idéia Fundamental da Fenomenologia de Husserl: a Intencionalidade, p. 57. 344 Idem, A Náusea, p. 288. 342 132 esquecer-se de si”. Novamente, temos aqui os dois âmbitos da consciência, como exposto pelo autor em A Transcendência do Ego. Ou seja, o modo de ser da consciência é ser consciência tética do objeto transcendente intencionado e consciência não-tética (de) si. Em outras palavras, toda consciência é consciência de alguma coisa e simultaneamente é consciência de ser consciência dessa coisa. A consciência é esse puro nada que se “perde” no mundo. Ela é processo, fluxo contínuo. Entendemos, assim, porque a consciência se dilui, dispersa-se, perde-se no mundo, pois sem o mundo ela não existe, ela é no mundo. O existente é um ser-no-mundo, sempre em situação. Mas se compreendemos o que isso significa ainda nos resta perscrutar quais são as implicações desta concepção. A primeira é que o Ego só poderia ser posto enquanto um objeto para a consciência, pois, se a consciência é essa pura relação que descrevemos, então não resta espaço para que se forme um “Eu” por detrás da consciência, na consciência. É curioso notar que, na passagem anteriormente referida, o personagem comece por falar em um “eu”, com letra minúscula e entre aspas, isto é, em sentido fraco, e termine por falar de um EU, com letra maiúscula em sentido forte, mas um “Eu” que se enfraquece, e “se enfraquece a ponto de, zás!, apagar-se”. Daí a pergunta do personagem: “que vem a ser isso, essa coisa chamada Antoine Roquentin?” O que significa agora dizer “EU”? Assim, “o que atemoriza Roquentin é que o Ego se perca num mundo que se vai tornando massa informe”.345 Para além das teses contidas em A Transcendência do Ego, a Náusea contempla diretamente a dimensão contingente da existência. Eis porque o personagem vivencia a experiência do “demais”, o “demais das coisas e da consciência”. Daí as coisas existirem “exageradamente”, em demasia. Analisemos com um pouco mais de acuidade essa “experiência do demais”. Comecemos por citar a célebre passagem que melhor representa essa experiência do personagem, quando Roquentin deseja que todos os objetos a sua volta “existissem com menos intensidade”, pois essa intensidade o atemoriza: Éramos um montão de existentes incomodados, embaraçados com nós mesmos; não tínhamos a menor razão para estar ali, nem uns nem outros; cada existente, confuso, vagamente inquieto, se sentia de mais em relação aos outros. De mais: era a única relação que eu podia estabelecer entre aquelas árvores, aquelas grades, aquelas pedras. Em vão procurava contar os castanheiros, situá-los em relação à Véleda, comparar-lhes a altura com a dos plátanos: cada um deles fugia às relações em que eu procurava encerrá-los, se isolava, transbordava. Essas medidas (que eu teimava em manter para adiar o desabamento do mundo humano, das medidas, das qualidades, das direções), 345 LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Op. Cit., p. 89. 133 bem lhes sentia o arbitrário; tinham deixado de morder as coisas. De mais, o castanheiro, ali, na minha frente, um nadinha à esquerda, De mais a Véleda... 346 Essa intensidade com que a realidade se apresenta a Roquentin nada mais é do que a manifestação explícita da condição contingente do homem, da total gratuidade da existência. O mundo ordenado das categorias abstratas se mostra insuficiente. Tudo é demais; o Ego ameaça diluir-se com o desabamento do mundo. Daí o grito desesperado de Roquentin: “Quem?” Quem sou eu? O que significa dizer Antoine Roquentin agora? Comenta Leopoldo e Silva: “o Ego participa do desabamento do mundo: uma vez a exterioridade desarticulada, uma vez anulado o quê das coisas, também já não é possível responder a pergunta pela pseudo-interioridade: quem?”347 Desse modo, tal como afirmado anteriormente, a idéia de interioridade não se fundamenta, pois o Ego se mostra como um objeto do mundo, um objeto transcendental como qualquer outro, meu próprio Ego deixa de ser uma propriedade exclusiva minha. Assim, o Ego é um objeto contingente entre outros objetos contingentes. Nesse sentido, o ser-aí deve ser entendido como pura facticidade. Compreendemos, pois, porque Sartre se refere aos “riscos” que o Eu corre diante do mundo: Esta consciência absoluta, quando é purificada do Eu, nada mais tem que seja característico de um sujeito, nem é também uma coleção de representações: ela é muito simplesmente uma condição primeira e uma fonte absoluta de existência. E a relação de interdependência que ela estabelece entre o Eu [Moi] e o Mundo basta para que o Eu [Moi] apareça como “em perigo” diante do Mundo, para que o Eu [Moi] (indiretamente 348 e por intermédio dos estados) retire do Mundo todo o seu conteúdo. Convém uma referência ao momento em que, em A Transcendência do Ego, o filósofo discute o artifício que faz com que o Eu apareça como o fundamento último da consciência, enquanto um alicerce estável e seguro capaz de justificar as ações do homem. Com essa estratégia, opera-se uma inversão fundamental, de modo que aquilo que é constituinte apareça como constituído, ou seja, o âmbito pré-reflexivo que, como vimos, é condição de possibilidade do âmbito reflexivo, aparece como decorrente do âmbito reflexivo. Em outras palavras, o Ego, em vez de aparecer como um objeto para a consciência, surge como aquilo que justifica os próprios atos intencionais. Na realidade, o que ocorre é que “o Eu [Moi] não tem nenhum domínio sobre esta espontaneidade [consciência], pois a vontade é um objeto que se constitui 346 SARTRE, Jean-Paul, Op. Cit., p. 218-9. LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Op. Cit., p. 90. 348 SARTRE, Jean-Paul, A Transcendência do Ego, p. 83. 347 134 para e por esta espontaneidade”.349 Daí a involuntariedade da experiência da Náusea a que nos referíamos antes. Não é possível ao homem induzir a experiência instauradora da Náusea. Evoquemos novamente o dizer do personagem: “Se pudesse fazer com que não pensasse! [...] Não quero pensar... Penso que não quero pensar. [...] o ódio à existência, a repulsa pela existência, são outras tantas maneiras de a cumprir [...]” Ou seja, aqui não há nada de seguro e voluntário, a experiência instauradora fundamental se impõe impreterivelmente. Essa questão aparece de forma bastante clara nesta passagem já referida no primeiro capítulo: “A consciência reflexiva inverte a produção real, numa espécie de projeção de sua própria espontaneidade no objeto Ego, para fugir de si mesma”.350 É por isso que entender o Ego enquanto uma instância criadora equivale a entendê-lo enquanto uma pseudoespontaneidade, pois a espontaneidade requerida pertence à consciência, em sua característica fundamental que é ser fluxo temporal. “A verdadeira espontaneidade [consciência] deve ser perfeitamente clara: ela é o que produz e não pode ser nenhuma outra coisa.351 De fato, todos os artifícios buscados por Roquentin – narrar a si mesmo no intuito de verter a vida em aventura; a busca de justificativa existencial no trabalho de inspeção historiográfica; a compreensão da perspectiva salvacionista da arte, atribuindo assim à arte a função de oferecer refúgio; – nada mais são do que formas diversas de agir de má-fé, de se acovardar diante do absurdo que caracteriza a realidade. Temos, assim, uma cisão entre o Ego e o mundo, ou seja, se a consciência é no mundo, e se o Ego é mais um objeto transcendente para a consciência, então o Ego não pode ser identificado à consciência, que é o que o protagonista busca fazer através desses subterfúgios, isto é, ele pretende constituir-se enquanto uma coisa acabada. Desse modo o mundo não pode ser reduzido ao Ego. Cabe lembrar então: “o Ego é um objeto que não aparece senão à reflexão e que, por esse fato, está radicalmente cortado do mundo. Ele não vive no mesmo plano”.352 Explicita-se, pois, como buscamos defender aqui, que é a consciência e, desse modo, o próprio existente – ou seja, a consciência existindo seu corpo (novamente o gerúndio não é casual) –, que está lançada no mundo. O homem é um ser-nomundo. E o Ego só surge enquanto um objeto para a consciência e que, por isso mesmo, está apartado do mundo; ele só surge enquanto objeto da consciência reflexiva. 349 Ibidem, p. 79. Ibidem, p. 41. 351 Ibidem, p. 69. 352 Ibidem, p. 71. 350 135 Chegamos, finalmente, ao último ponto de nossa reflexão: se o Ego surge para “encobrir à consciência sua própria espontaneidade”,353 se essa inversão resulta em fuga e má-fé, não há como nos furtarmos às necessárias implicações éticas que daí decorrem. Cabe interrogar, então, qual o sentido da narrabilidade a que aludimos ao fim do primeiro capítulo, pois, é preciso exigir do escritor “uma forma mais autêntica de narrar, em que a expressão da subjetividade esteja mais diretamente atravessada pelas exigências éticas da representação humana”.354 Antes, porém, convém indagar porque a filosofia existencialista como um todo parece exigir um desdobramento ético. 5. Algo sobre necessário desdobramento ético Nesse ponto, portanto, torna-se imprescindível remetermo-nos a esse necessário desdobramento ético derivado da concepção sartriana do imaginário e, por conseqüência, da literatura na filosofia existencialista de Sartre. De acordo com o que foi abordado anteriormente, se uma nova forma de fazer filosofia redefine a relação dessa filosofia com a literatura, é preciso observar que algo na condição humana, tal como Sartre a compreende, fornece elementos para que essa relação seja mais claramente elucidada. Sendo assim, cabe retomarmos a discussão acerca da relação que se estabelece entre a criação ficcional e a reflexão filosófica em Sartre, só que agora ressaltando as implicações éticas que dela decorrem. Essa discussão está diretamente relacionada à noção de situação,355 bastante explorada por Sartre em textos diversos e à qual já aludimos em momentos diversos. Para o filósofo, a liberdade humana é radical e o contexto histórico representa o “horizonte limite” ao exercício da liberdade; ao mesmo tempo, a história é a condição para o empreendimento do ato livre. Dessa maneira, fica patente que a obra ficcional exerce um papel fundamental dentro da obra do filósofo, pois, a partir da perspectiva existencial-fenomenológica de Sartre, todo homem existe particularmente dentro de uma situação concreta, isto é, na história. Deste modo, a literatura 353 Ibidem, p. 80 Ibidem, p. 45. 355 Referimo-nos diversas vezes a noção de situação defendida por Sartre. Parece-nos interessante elucidar melhor o que essa noção significa. Sartre assim descreve a noção em O Ser e o Nada: “Minha posição no meio do mundo, definida pela relação de utensilidade ou de adversidade entre as realidades que me circundam e minha própria facticidade, ou seja, a descoberta dos perigos que corro no mundo, dos obstáculos que neles posso encontrar, das ajudas que podem me ser oferecidas, à luz de uma nadificação radical de mim mesmo e de uma negação radical e interna do Em-si, operadas do ponto de vista de um fim livremente posicionado – eis o que denominamos a situação” (p. 672). 354 136 aparece como o lugar privilegiado para a representação da existência particular dos homens lançados na história, em dada situação concreta, ou seja, dentro de um contexto histórico determinado. Ora, se, como dissemos anteriormente, existe uma relação de interdependência entre “experiência ficcional” e “reflexão filosófica”, na qual, os textos ficcionais representam a situação particular de determinado homem, em determinado contexto histórico, e, por conseqüência, cada escolha particular traz um caráter universal e absoluto, podemos concluir que toda escolha particular tem um viés ético. Toda escolha implica um valor, ou seja, escolher é atribuir valor ao escolhido, de modo que toda escolha particular tem um caráter de universalização: “[...] é essa universalidade concreta implicada na conduta singular que manifesta o teor ético absoluto da ação individual”.356 Inversamente, a “reflexão filosófica”, partindo do método fenomenológico, trabalha no âmbito do universal, mas tomando como ponto de partida o particular. Podemos, dessa maneira, afirmar com muita segurança que o pensamento sartriano assume sempre conotações éticas. É por isso que as palavras de Saint-Sernin remetem diretamente ao desdobramento ético que esta filosofia adquire. De acordo com o comentador, o nosso filósofo considera que , na literatura, “a partir do singular, pode-se remeter ao universal; [e que] ao se estudar um homem, se fala, na verdade, de todos os homens”.357 Nessa mesma direção, G. Borheim assinala: “toda a análise existencial do mestre francês conduz necessária e obrigatoriamente a uma ética”.358 É o próprio filósofo que evidencia esse desdobramento ético de sua filosofia quando, ao final de O Ser e o Nada, promete a redação de outro volume tratando especificamente do problema moral.359 Assim, ele mesmo vislumbra implicações éticas em sua ontologiafenomenológica. No entanto, sabemos que esse volume nunca foi escrito. Em outra ocasião, em uma entrevista intitulada Sartre par lui-même, já nos últimos anos de sua atividade intelectual, o filósofo também admite a necessidade de se redigir um tratado sobre esse tema; no entanto, este projeto permanece irrealizado. Assim, gostaríamos de enfatizar que a reflexão ética, ainda que 356 LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Ética e Literatura em Sartre: Ensaios Introdutórios, p. 32. SAINT-SERNIN, Bertrand, Philosophie et fiction, p. 175. “[...] à partir du singulier, on peut remonter à l’universel; en étudiant un homme, on parle em vérité de tous lês hommes”. 358 BORHEIM, Gerd, Sartre: Metafísica e existencialismo, p. 123. É o que também afirma a maioria dos comentadores da obra do filósofo, como, por exemplo, Franklin Leopoldo e Silva em O Imperativo Ético em Sartre. “*...+ nós podemos afirmar com muita tranqüilidade que talvez não haja em toda a obra de Sartre uma só frase onde não haja uma ressonância ética e, portanto, o existencialismo sartriano é, sem dúvida nenhuma, uma filosofia moral, e Sartre é um filósofo moralista na mais pura tradição francesa”. 359 SARTRE, Jean-Paul, O Ser e o Nada, p. 765. “Todas essas questões, que nos remete à reflexão pura e não cúmplice, só podem encontrar sua resposta no terreno da moral. A elas dedicaremos uma próxima obra”. 357 137 latente nos primeiros textos, configura um desdobramento necessário de toda a filosofia sartriana. Ela se explicitará fundamentalmente em sua concepção do intelectual engajado, que será desenvolvida em diversos momentos de sua obra. Dos vários textos em que o autor se debruça sobre essa questão, destaca-se em importância, para nós, o ensaio Que é a literatura? de 1947, no qual será desenvolvida sua concepção de literatura engajada e do irrecusável engajamento do escritor. Não é, no entanto, nosso objetivo aqui explorar as razões pelo qual um volume que tivesse a ética como tema fundamental nunca foi escrito; queremos apenas ressaltar a presença constante desse caráter ético no conjunto desse pensamento. Sob essa perspectiva, assinala Saint-Sernin: Nesta perspectiva, o que é essencial, é a situação: ela interpela, obriga, esclarece, impõe uma decisão. Carregar os personagens de uma natureza só turva o desenho, estende a mola trágica, o que implicaria em um declínio do teatro. O choque entre as liberdades, não seria mais que a combinação, em si previsível, de forças. Portanto, teatro de situações e filosofia da liberdade tem o mesmo tema: <<O homem livre nos limites de sua própria situação, o homem que escolhe, quer queira ou não, para todos os outros quando escolhe para si mesmo – aqui está o tema de nossas peças>>. 360 A referência à Sartre feita por Saint-Sernin vem ao encontro daquilo que buscamos evidenciar, ou seja, a literatura como o desvelamento do necessário comprometimento ético do escritor com sua situação concreta. Ou seja, é justamente o caráter ético que a escolha particular implica que se constitui como o tema da literatura361 de Sartre – pois “o homem que escolhe para si mesmo escolhe para todos os outros”. É o homem concreto, em situação, que desvela aos outros homens seu caráter contingente e, por conseqüência, sua liberdade. Ao desvelar sua liberdade, ele evidencia aos outros que toda escolha particular carrega em si um caráter universal, e que, portanto, escolher-se é escolher por toda humanidade. O que, nas palavras do autor, significa que “o homem escolhe-se ao escolher todos os homens”.362 Ressalta-se aqui, ainda uma vez, o imbricamento entre as questões éticas e toda a obra do filósofo. Nesse sentido, Sartre assevera em O Existencialismo é um Humanismo: 360 SAINT-SERNIN, Bertrand, Op. Cit., p. 176-177. “Dans cette perspective, ce qui est essentiel, c'est la situation: elle interpelle, oblige, éclaire, impose de décider. Lester les personnages d'une nature ne ferait que brouiller le dessin, détendrait le ressort tragique, entrâinerait un déclin du théâtre. Au choc entre des libertés, on n'aurait plus que la combinaison, en soi prévisible, de forces. Dès lors, théâtre de situations e philosophie de la liberté ont le même thème: <<L'homme libre dans les limites de sa propre situation, l'homme qui choisit, qu'il le veuille ou non, pour tous les autres quand il choisit pour lui-même - voilà le sujet de nos pièces>>”. 361 Como insistimos anteriormente, tomamos como um pressuposto que tudo que foi dito acerca do teatro aplicase igualmente à prosa. 362 SARTRE, Jean-Paul, O Existencialismo é um Humanismo, p. 7. 138 [...] o homem ligado por um compromisso e que se dá conta de que não é apenas aquele que escolhe ser, mas que é também legislador pronto a escolher, ao mesmo tempo que a si próprio, a humanidade inteira, não poderia escapar ao sentimento da sua total e profunda responsabilidade. 363 Logo, o homem que se descobre livre, simultaneamente, percebe que à sua liberdade é intrínseca a responsabilidade. É por isso que Sartre – que gostava de polemizar com suas famosas frases, por vezes, propositalmente contraditórias – dizia que “o homem está condenado a ser livre”.364 Para melhor compreendermos o significado dessa máxima aparentemente tão simples, cabe aprofundarmos um pouco essa discussão. Para tanto, é pertinente nos remetermos a um esclarecedor artigo de Leopoldo e Silva, Liberdade e Valor. Efetivamente, só existe liberdade e, por conseqüência, responsabilidade, se existe a ação humana. Aquelas se revelam, pois, como pressupostos éticos dessa última. Mas o que é a ação humana? É justamente esse um dos pontos abordados pelo autor no referido artigo. De acordo com sua análise, a liberdade, em Sartre, é constitutiva da condição humana, ou seja, é justamente através da elucidação da noção de ação humana que vemos surgir o sentido do binômio liberdade/responsabilidade enquanto fundamento dessa condição. Porque livre, o homem não tem como escapar à responsabilidade por suas escolhas; evidencia-se desse modo o caráter ético do existencialismo sartriano. Vem a propósito a famosa passagem de Sartre em O Ser e o Nada: Com efeito, somente pelo fato de ter consciência dos motivos que solicitam minha ação, tais motivos já constituem objetos transcendentes para minha consciência, já estão lá fora; em vão buscaria recobrá-los: deles escapo por minha própria existência. Estou condenado a existir para sempre para-além de minha essência, para-além dos móbeis e motivos do meu ato: estou condenado a ser livre. Significa que não poderia encontrar outros limites à minha liberdade além da própria liberdade, ou, se preferirmos, que não somos livres para deixar de ser livres. 365 Nessas linhas, a máxima apresentada em O Existencialismo é um Humanismo, segundo a qual “o homem está condenado a ser livre”,366 aparece como um desdobramento inexorável do caráter espontâneo da consciência intencional. Assim, quando Sartre diz que o homem está “condenado a existir para sempre para-além de [sua] essência”, podemos entender essas palavras como mais uma tradução para a máxima fundamental do existencialismo: “a existência precede a essência”. Mas, se a consciência é puro-ato, pura espontaneidade, ou melhor, se a consciência é sempre intencional, resta-nos ainda a pergunta: qual é o motivo da ação humana? 363 Ibidem, p.7. Ibidem, p. 9. 365 Idem, O Ser e o Nada, p. 543-544. 366 Idem, O Existencialismo é um Humanismo, p. 9. 364 139 Dizer que a consciência é sempre intencional implica dizer que toda ação humana tem um motivo. No entanto, isso não recai necessariamente numa relação causal, pois, como veremos, “o motivo faz parte do ato”. O que significa que “o ato não é produzido a partir de uma causa; [mas antes que] ele é imediatamente vinculado à finalidade intencional pela qual é produzido”.367 O motivo de uma ação só existe no próprio ato, ou seja, “quando algo é vivido como motivação da ação”, o que significa que o motivo é algo intrínseco à ação humana, ao ato intencional. Por conseqüência, qualquer relação causal que possa justificar a ação a priori está descartada por princípio, pois pressupõe sempre uma causa exterior. Colocado nestes termos o problema remete ao âmbito da temporalidade. Quando se pensa em causalidade é preciso pensar em uma linearidade temporal; há sempre algo antes que determinará o que virá depois. Entretanto, o caráter fluido da consciência que faz com que ela só exista enquanto pura relação com o mundo interdita a possibilidade de qualquer anterioridade temporal em relação à ação humana. É por isso que “a transcendência do para-si para fora de si encontra o motivo do ato na realização do [próprio] ato”.368 Essa articulação aparece de forma mais explicita se analisada sob o registro da temporalidade, assim, como sintetiza Leopoldo e Silva: O ato é a ser realizado no futuro e enquanto tal é um fim; é ao mesmo tempo o motivo pelo qual pretendo realizá-lo e assim a finalidade torna-se motivo que me impulsiona a partir do meu passado; e o presente é o momento de surgimento do ato. 369 Em outras palavras, é simultaneamente que a consciência constitui o motivo e efetua a ação. Nesse sentido, dentre as articulações da temporalidade, o futuro adquire maior relevância, pois é sempre enquanto projeto de si que o homem se constitui. É por isso também que o futuro pode ser motivo sem, com isso, ser causa do ato, justamente porque é no próprio ato que o valor e o significado da ação são postos pela consciência: “O projeto tem sempre de forma imanente o valor a ele atribuído, pela simples razão de que me projeto no que desejo ser, no que julgo que devo ser”.370 Em suma, é porque o Para-Si é transcendência de si, é porque ele é puro movimento para fora de si, que ele pode transcender a factualidade e relacionar-se mais com valor e significação do que com fatos. Ocorre então uma espécie de inversão fundamental, visto que não apenas a 367 LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Ética e Literatura em Sartre: Ensaios Introdutórios, p. 136. Ibidem, p. 137. 369 Ibidem. 370 Ibidem, p. 138. 368 140 escolha não é determinada pelo motivo, como também, e simultaneamente, o Para-Si projeta um modo de ser e atribui valor à escolha que fundamenta esse projeto. Assim: [...] isso que projeto ser é válido para todos os homens, minha escolha institui um valor cujo sentido e radicalidade derivam do que ele é, ipso facto, universal. Essa dimensão ético-existencial do valor instituído repercute na escolha concreta feita a partir dele.371 Mas o caráter ético-existencial assim descrito traz implícito aquilo que Sartre chamou de “projeto fundamental” do Para-Si, ou seja, o Para-Si – que tem como principal característica o não-Ser – busca constituir-se enquanto um Em-Si, enquanto Ser absoluto, e mais do que isso, o Para-Si traz como projeto fundamental o desejo de tornar-se “Em-si-Para-si”, ou seja, tornar-se Ser, sem com isso perder o caráter dinâmico que o define. Por isso mesmo, esse projeto se mostra, por princípio, fadado ao fracasso, visto que é impossível que, sendo “Nada de Ser”, o Para-Si se constitua enquanto Ser plenamente constituído. É justamente essa falta constitutiva de Ser, característica basilar do Para-Si, o fundamento do caráter ético-existencial que buscamos explicitar. É por isso também que: [...] cada projeto individual de se fazer ser é algo que implica a tentativa de ser, absolutamente; tentativa constitutivamente vã. Por isso, a experiência da liberdade absoluta é a experiência da fragilidade absoluta. Para um ser absolutamente frágil, cujo ser não passa do desejo de ser, o absoluto não é repouso e estabilidade, mas antes alucinação e vertigem. Ter-de escolher absolutamente a partir da mais absoluta fragilidade é o que faz da liberdade a origem da angústia.372 Quando Sartre trata da relação entre liberdade e responsabilidade, fica claro que é sob a égide da fragilidade absoluta que o homem está condenado a ser livre e, por conseqüência, à responsabilidade. Se o homem é sempre responsável por suas ações, ele não pode ser responsável por sua responsabilidade, ou seja, ele não pode nunca deixar de ser responsável, pois não pode ser seu próprio fundamento, ou, como diz Sartre, “o Para-si [...] é responsável por sua maneira de ser sem ser fundamento de seu ser”.373 Vemos, assim, que mesmo que o homem se queira um Em-si-Para-si, ele não pode ser fundamento de si mesmo porque sua marca ontológica é a espontaneidade da consciência intencional. É sob esse registro que entendemos as palavras do filósofo: 371 Ibidem, p. 139. Ibidem, p. 143. 373 SARTRE, Jean-Paul, O Ser e o Nada, p. 671. 372 141 [...] Sou responsável por tudo, de fato, exceto por minha responsabilidade mesmo, pois não sou fundamento de meu ser. Portanto, tudo se passa como se eu estivesse coagido a ser responsável. Sou abandonado no mundo, não no sentido de que permanecesse desamparado e passivo em um universo hostil, tal como a tábua que flutua sobre a água, mas, ao contrário, no sentido de que me deparo subitamente sozinho e sem ajuda, comprometido em um mundo pelo qual sou inteiramente responsável, sem poder, por mais que tente, livrar-me um instante sequer desta responsabilidade, pois sou responsável até mesmo pelo meu próprio desejo de livrar-me das responsabilidades.374 Daí a situação histórica se constituir como o horizonte de possibilidade ao exercício da minha liberdade: “cada pessoa só realiza uma situação: a sua”.375 Desse modo, ao se escolher, ao se fazer, o homem se faz e faz sua situação; ao fazer sua situação ele se faz, uma ação não existe sem a outra. O homem não existe sem sua situação e sua situação não existe sem o homem. É nesse sentido que Sartre sustenta que “as mais atrozes situações da guerra, as piores torturas” são resultado de uma “decisão humana e que [portanto] tenho que assumir total responsabilidade por ela”.376A situação histórica de determinado homem constitui, portanto, a oportunidade, a ocasião, de “realizar este ser que está em questão em nosso ser”.377 A significativa passagem de um artigo de Leopoldo e Silva vem ao encontro dessas considerações: Mas, como fatalidade e liberdade se identificam, como o destino é sempre a construção prática de uma vida e de uma história, a responsabilidade é assumida como corolário de uma liberdade da qual não se pode fugir. Esta é a razão pela qual é necessário que o escritor “abrace estreitamente sua época; ela é sua única chance; ela é feita para ele e ele é feito para ela”. Este é o significado concreto da situação, como hora e como lugar da liberdade, mas ao mesmo tempo como escolha absoluta, isto é, como invenção de si e de seu tempo.378 No caso do escritor, cujo instrumento de trabalho é a palavra, a literatura torna-se o meio pelo qual ele se engaja na situação histórica em que está inserido. Nesse sentido, as palavras de Sartre em Que é a Literatura? são significativas: Quanto ao escritor, o caso é mais complexo, pois ninguém é obrigado a escolher-se escritor. Assim, na origem está a liberdade: sou escritor em primeiro lugar por meu livre projeto de escrever. Mas de imediato vem o seguinte: eu me torno um homem que os outros homens consideram como escritor, isto é, que deve responder a certa demanda e se vê investido, de bom grado ou à força, de certa função social. Qualquer que seja o papel que ele queira desempenhar, tem de fazê-lo a partir da representação que os outros têm dele. Pode querer modificar o papel atribuído ao 374 Ibidem, p. 680. Ibidem, p. 674. 376 Ibidem, p. 678. 377 Ibidem, p. 681. 378 LEOPOLDO E SILVA, Franklin. Literatura e Experiência em Sartre: o Engajamento. 375 142 homem de letras numa dada sociedade, mas para mudá-lo é preciso primeiro se amoldar nele.379 Poderíamos pensar que realmente aqui a literatura é reduzida a sua função social. No entanto, cabe ressaltar que a compreensão sartriana refere-se também à capacidade que a literatura adquire em sua filosofia – tal como o filósofo não se cansa de repetir – de ultrapassar o real e, nesse movimento, reinserir-se no seio da própria realidade. Assim, se o escritor escolhe livremente seu ofício, esse ofício, no entanto, requer dele uma inserção profunda na situação histórica. É por isso que “para mudar o papel atribuído ao homem de letras”, por exemplo, “é preciso primeiro se moldar nele [no papel atribuído]”, é preciso se assumir na condição de “homem de letras”. Numa palavra, ao escritor compete a assunção simultânea de sua liberdade e de sua na situação histórica. Isto é, a liberdade se dá em situação; é preciso situar-se na história para agir. Nesse sentido, ou seja, acerca do trabalho do escritor e de sua função, cabe completar: Não há mais caracteres: os heróis são liberdades aprisionadas, como todos nós. Quais são as saídas? Cada personagem será tão-somente a escolha de uma saída e não valerá mais que a saída escolhida. É de se desejar que toda a literatura se torne moral e problemática, como esse novo teatro. Moral – não moralizadora: que ela mostre simplesmente que o homem é também valor e que as questões que ele se coloca são sempre morais. Sobretudo que mostre nele o inventor. Em certo sentido, cada situação é uma ratoeira, há muros por todos os lados: na verdade me expressei mal, não há saídas a escolher. Uma saída é algo que se inventa. E cada um, inventando sua própria saída, inventa-se a si mesmo. O homem é para ser inventado a cada dia.380 Desse modo, o que Sartre faz é requerer do escritor que ele desvele ao homem sua própria liberdade, que expresse da única maneira que lhe é possível – ou seja, pelas vias da escrita e da criação – que o homem é aquilo que ele fizer de si, que é imperioso que ele se invente continuamente. Aliás, talvez devêssemos falar em libertação em vez de liberdade, pois compete a cada homem, singularmente, “inventar suas saídas”, libertar-se no sentido de se assumir como ser livre e, portanto, responsável. Evidentemente há aqui uma relação de complementaridade: a liberdade se exerce na história e a história é resultado do encontro das liberdades singulares. Não é possível fugir à responsabilidade implicada nesta formulação. Mesmo quando um homem age de má-fé, ele é responsável por aquilo que não tenta impedir. Então, compreendemos melhor porque Sartre diz que “as mais atrozes situações da guerra, as piores torturas” são frutos da ação humana e compete a cada um assumir sua responsabilidade. Atribuir essa dimensão ética à literatura não significa, de forma alguma, reduzi-la a sua dimensão social. Encontraremos uma 379 380 SARTRE, Jean-Paul, Que é a Literatura?, p. 62. Ibidem, p. 215. 143 oportunidade para compreender melhor essa concepção se nos voltarmos para os comentários de François Noudelmann em L‟Incarnation Imaginaire, quando o autor busca esclarecer o papel do imaginário na produção sartriana: A prática da imagem implica assim uma reflexão sobre a encarnação do sentido. Ela permite compreender como a consciência vê sua intenção derramada [débordée] por sua realização, notadamente no seio da situação histórica. A história é, de fato, constituída por sucessivas encarnações que correspondem às realizações de múltiplas vontades.381 O primeiro ponto que se mostra relevante enfatizar é que a imagem, tal como destaca o comentador, remete necessariamente, e como dissemos anteriormente, mesmo que por negação, ao “seio da situação histórica”. É justamente porque o fundamento da condição existencial é a liberdade humana que, em última instância, a história é construída pelo encontro de múltiplas vontades, pelo encontro do conjunto das ações humanas historicamente situadas. Assim, para compreender a inteligibilidade da história, a abordagem sartriana abarca uma tensão entre uma concepção unilinear e determinada da história, e não mais se apóia sobre o sentido, mas sobre os sentidos da história e, então, as expressões e as interpretações são partes integrantes do seu movimento. No plano da linguagem, a encarnação nas palavras compromete o ser-no-mundo da consciência, e Sartre, estudando a escolha de Flaubert, apreende a dimensão ontológica da imaginação. 382 Não cabe agora nos aprofundarmos na questão desta “encarnação nas palavras”, que, como observa o comentador, decorre de sua compreensão da imaginação, mas objetivamos com essa alusão aos comentários de Noudelmann, salientar que a dimensão histórica relaciona-se diretamente com a concepção de imagem em Sartre e que, por isso mesmo, a literatura adquire um papel fundamental em sua filosofia. À guisa de exemplo, vale lembrar que é na obra e na vida de Flaubert que Sartre busca uma compreensão da situação histórica do escritor. 383 Após essa breve digressão encontramos o gancho necessário para reencontrarmos nosso problema. 381 NOUDELMANN, François, L’Incarnation Imaginaire, p. 249. “La pratique de l’image implique ainsi une réflexion sur l’incarnation du sens. Elle permet de comprendre comment la conscience voit son intention débordée par sa realization, notamment au sein de la situation historique. L’histoire est en effet constituée d’incarnations successive qui correspondent aux réalisations de volontés multiples”. (Nossa tradução). 382 Ibidem, p. 249. “*…+ Ainsi, pour comprendre l’intelligibilité de l’Histoire, la démarche sartrienne ménage une tension entre une conception unilinéaire et déterminée de l’histoire, et une prise em charge non plus du sens mais des sens de l’histoire, donc les expressions et les interprétations sont parties intégrantes de son movement. Au plan du langage, l’incarnation dans les mots engage l’être-dans-le-monde de la conscience, et Sartre, en étudiant les choix de Flaubert, appréhende la dimension ontologique de l’imaginaire”. (Nossa tradução). 383 Esta alusão ao O Idiota da Família visa ressaltar a tese da unidade ao mesmo tempo dinâmica e orgânica na obra de Sartre a que nos referimos anteriormente, pois, se em sua obra dita “madura” o filósofo se ocupará mais com a questão do engajamento, não nos parece certo afirmar que ele abandone o pressuposto da consciência 144 Vale ratificar: é em decorrência da literatura que o escritor é capaz de instaurar realidades. Assim, a ficção, a partir do caráter negativo da imagem, isto é, a partir do seu caráter de irrealidade que desvela a realidade, possibilita ao escritor desvelar ao leitor seu caráter contingente. Ele o faz através da imagem, lançando o aquele que o lê em sua situação histórica. Então, se todo homem é livre e, portanto, responsável, o escritor é responsável de um modo especial, uma vez que ele lida diretamente com um modo privilegiado de desvelar ao homem sua condição. Logo, com já assinalamos, parece-nos, de fato, que a interpretação feita por Leopoldo e Silva acerca da relação entre literatura e filosofia, dentro do pensamento sartriano, mostra-se mais pertinente que a de Paulo Perdigão, e do que outras que se lançam na mesma direção deste último. Tal como ressaltamos no início de nosso percurso, para Perdigão a literatura surge como uma forma de ilustrar o pensamento filosófico de Sartre. Lembremos que, pare este comentador, a produção ficcional de Sartre representa “uma expressão simplificadora da obra teórica”.384 Efetiva-se, assim, uma redução da relevância da criação ficcional no conjunto da obra sartriana. Leopoldo e Silva, em contrapartida, ressalta a idéia de comprometimento entre a criação literária e o contexto histórico, sem com isso submetê-la às reflexões filosóficas. Sob tal perspectiva, o texto ficcional e o texto filosófico estão intrinsecamente relacionados. Essa relação mostra-se, por sua vez, fundamental para entendermos a filosofia de Sartre como um todo, contraditando a possibilidade de uma hierarquia entre esses dois âmbitos de sua produção intelectual. Agora resta-nos adentrar um pouco mais a questão da narrabilidade e seus necessários desdobramentos éticos para além da relação que se estabelece entre o escritor e o leitor, e à qual nos referimos anteriormente. A pergunta que ressoa é a seguinte: em que medida o sujeito pode narrar-se a si mesmo a sua existência se não há nada a priori que o defina? E por conseqüência, o que seria essa “reinvenção da escrita” a que aludimos anteriormente? 6. Do necessário desdobramento ético à questão da narrabilidade intencional. Nesse sentido, acreditamos que a análise da obra e da biografia de Flaubert represente um resgate do pressuposto da vivência [Erlebniss] enquanto fundamento da psicanálise existencial. Tratando-se de uma de suas últimas obras parece-nos que se justifica a referida tese da unidade. Nesse sentido, vale uma menção ao interessante artigo de Simeão Donizeti Sass, Consciência e Conhecimento na Fenomenologia de Sartre, no qual o autor afirma que O Idiota da Família pode ser entendido como uma “demonstração” do método biográfico presente na psicanálise existencial de Sartre. (Consciência e Conhecimento na Fenomenologia de Sartre In: Ensaios sobre Filosofia Francesa Contemporânea, p. 227). 384 PERDIGÃO, Paulo, Existência e Liberdade: Uma Introdução à Filosofia de Sartre, p, 19. 145 Neste momento de nossa reflexão, tomemos como ponto de partida uma das principais teses de A Transcendência do Ego. Sabemos que Sartre chega à conclusão de que é só através de uma inversão fundamental que o Ego surge como fundamento e criação, pois, na realidade, é a própria espontaneidade da consciência de primeiro grau que possibilita que o saber reflexivo crie o Ego. Sendo assim, não se pode falar em espontaneidade do Ego; podemos falar, no máximo de uma pseudo-espontaneidade. O cogito pré-reflexivo, já o sabemos, é condição de possibilidade ao cogito reflexivo, âmbito no qual o surge o Ego. Portanto, o fundamento e a criação competem à pura espontaneidade da consciência de primeiro grau. Diz Sartre: “A verdadeira espontaneidade deve ser perfeitamente clara: ela é o que produz e não pode ser nenhuma outra coisa”.385 E, mais adiante, complementa: [...] o Ego é um objeto apreendido, mas também constituído pelo saber reflexivo. É um foco virtual de unidade e a consciência constitui-o no sentido inverso ao que a produção real segue: o que é primeiro realmente são as consciências, através das quais se constituem os estados, depois, através destes, o Ego. 386 Interessa-nos enfatizar que é justamente através dessa inversão fundamental que o Ego surge como criador e que, na realidade, é a consciência que projeta a sua própria espontaneidade sobre o objeto transcendente que é o Ego. Porque nada pode agir sobre a consciência, isto é, porque nada pode determiná-la, o Ego só pode ser um objeto que surge sempre à consciência de segundo grau, ou seja, no âmbito reflexivo. Esta compreensão, por conseqüência, leva à impossibilidade de se conhecer o Ego no plano da consciência de primeiro grau. Ora, se o Ego só surge para a consciência reflexiva, tentar apreendê-lo no registro das vivências [Erlebniss] é, por princípio, uma empresa fracassada. Desse modo, tentar se beneficiar de um contato íntimo para conhecer o Ego revela-se como algo ocioso, pois o “Ego não é a totalidade real das consciências, [...] mas unidade ideal de todos os estados e acções”.387 O que significa que é no mundo que nos constituímos, e que “o Ego é um objeto que não aparece senão à reflexão e que, por esse facto, está radicalmente cortado do mundo. Ele não vive no mesmo plano”.388 Compreendemos então as palavras de Sartre quando este conclui que o Ego é “por natureza fugidio”. Vejamos: 385 SARTRE, Jean-Paul, A Transcendência do Ego, p. 69. Ibidem. 387 Ibidem, p. 73. 388 Ibidem, p. 71. 386 146 [...] o Ego só aparece quando não o olhamos. É preciso que o olhar reflexivo se fixe na <<Erlibniss>>, enquanto ela emana do estado. Então, por detrás do estado, no horizonte, aparece o Ego. Ele não é nunca visto senão pelo canto do olho. Assim que volto meu olhar para ele e que quero atingi-lo sem passar pela <<Erlibniss>> e o estado, ele dissipa-se. É que, com efeito, ao procurar apreender o Ego por ele mesmo e como objeto directo da minha consciência, recaio no plano irreflectido e o Ego desaparece com o acto reflexivo.389 Em outras palavras, o Ego só surge enquanto algo forjado pela consciência de segundo grau, ou seja, a consciência reflexiva. Assim o ato criador, na realidade, é resultado da pura espontaneidade da consciência de primeiro grau, o que é o mesmo que dizer que o que possibilita o surgimento do Ego à consciência de segundo grau é o âmbito pré-reflexivo, assim, no que tange à pura espontaneidade da consciência, seu caráter intencional, o Ego é algo forçosamente falso. E isso se dá porque o registro reflexivo é sempre acompanhado pelo registro pré-reflexivo. Desse modo a consciência de segundo grau realiza uma inversão fundamental pois coloca como criador um âmbito que na realidade é criado. O Ego não justifica a consciência intencional, mas antes é por ela justificado. Em outras palavras, é justamente porque há a pura espontaneidade da consciência intencional, ou melhor, da consciência de primeiro grau, que o Ego pode ser criado. Portanto, tal como afirmado anteriormente, a consciência de primeiro grau é condição de possibilidade para o surgimento do cogito reflexivo. Conclusão: “o Ego não é proprietário da consciência, ele é o objeto”.390 O que significa que “a consciência transcendental é uma espontaneidade impessoal”. Chegamos ao ponto que nos interessa. Para Sartre a função essencial do Ego seria “encobrir à consciência sua própria espontaneidade”. Diz o autor: Talvez, com efeito, que a função essencial do Ego não seja tanto teórica como prática. Nós sublinhamos, com efeito, que ele não encerra a unidade dos fenômenos, que ele se limita a refletir uma unidade ideal, ao passo que a unidade concreta e real está executada desde há muito. Mas talvez que o seu papel essencial seja encobrir à consciência a sua própria espontaneidade.391 Portanto, se o Ego surge como uma forma da consciência que dissimula sua própria espontaneidade, parece-nos lícito interrogar se isso não tem implicações de ordem ética. Ou seja, se o Ego surge como uma maneira de forjar a estabilidade almejada pela consciência – pois, como vimos, é característico desta a pura espontaneidade impessoal, o que significa que não há nada que garanta sua estabilidade – então, forjar um núcleo duro que garanta sua estabilidade não 389 Ibidem, p. 73-4. Ibidem, p. 78. 391 Ibidem, p. 80. 390 147 significaria recair em má-fé? Não significaria negar aquilo que a consciência tem de mais fundamental e com isso buscar se eximir da responsabilidade que essa formulação exige? Neste ponto nossas análises encontram respaldo, mais uma vez, nas reflexões de Franklin Leopoldo e Silva em Ética e Literatura em Sartre: Ensaios introdutórios: [...] a consciência constitui o Ego e nele se projeta como para escapar de si mesma, da própria espontaneidade que, por não se reportar a nenhum solo fundador, é angustiante pelo que apresenta de instável e movediça. Há, portanto, uma questão ética envolvida na representação do Ego; há uma motivação moral para que representemos o Ego como condição de nós mesmos, aquilo a partir do qual somos o que somos. Isso conferiria à existência um fundamento estável ao qual poderíamos remeter a expressão subjetiva: opções e compromissos. É angustiante pensar que o que somos se constitui fora de nós, na contingência das coisas e da história.392 Destarte, torna-se possível afirmar que constituir o Ego enquanto um núcleo duro do sujeito, capaz de garantir estabilidade à consciência é recair na inautenticidade e recorrer à máfé. A problemática que levantamos parece se encontrar com o pressuposto fundamental das reflexões do comentador, isto é, quando se busca, na constituição do Ego, um solo fundador capaz de garantir a estabilidade almejada, recai-se necessariamente num ato de covardia. Encontramo-nos outra vez em face da inversão fundamental que ocorre todas as vezes que a consciência intencional surge como decorrência do Ego, ao invés de instância criadora. Daí decorre que a questão da narrabilidade carrega por si só um teor necessariamente ético.393 Ou seja, ao buscar na narrativa literária – e no caso de Roquentin, na auto-narrativa – um fundamento capaz de justificar a existência o horizonte só pode ser a má-fé daquele que escreve. Fazer literatura buscando unicamente fugir da condição contingente da existência e da angústia que dela decorre é, certamente, uma tentativa de se dissimular a condição humana, isto é, a liberdade enquanto fundamento ontológico da existência. Se o Ego é algo constituído, e portanto, forçosamente falso, então há a negação da espontaneidade da consciência nessa dissimulação implicada na constituição do Eu. Novamente aqui, a referência à dissimulação visa explicitar a inversão fundamental realizada pela consciência de segundo grau ao converter o pólo criador, isto é, o cogito pré-reflexivo, no pólo criado, o cogito reflexivo. Essa inversão fundamental recai necessariamente em má-fé pois faz 392 LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Ética e Literatura em Sartre: Ensaios introdutórios, p 45. Assim é definida essa relação por Franklin Leopoldo e Silva: “A narrabilidade, entendida como modalidade temporal do surgimento do sujeito para si mesmo, aparece assim como um aspecto intrínseco, pelo menos no nível reflexivo, da constituição do Ego”. (LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Ética e Literatura em Sartre: Ensaios Introdutórios, p. 33.) 393 148 insurgir um núcleo duro que, em última instância, justificaria as escolhas. De pronto, estamos no cerne das questões levantadas no decorrer de nosso estudo: a constituição do Ego requer o âmbito reflexivo, e, por isso mesmo, está aquém da espontaneidade que caracteriza a consciência (lembrando que mesmo aqui persiste o nível pré-reflexivo). Se a consciência busca refúgio no Ego como uma forma de negar sua “própria espontaneidade”, é porque, em si mesma, ela é “instável e movediça”. Assim, se transportarmos essas questões para o registro da criação ficcional, temos a questão fundamental: o que significa a tentativa constante de Roquentin de constituir uma narrativa coerente, capaz de proporcionar a estabilidade temporal requerida para afastar a angústia decorrente do sentimento da Náusea? É patente que ao tentar narrar a si mesmo o seu passado como um romance de aventuras, Roquentin percebe o quanto é vão esperar que o passado o livre do sentimento da Náusea, visto que o desvelamento do caráter contingente trás inegavelmente um aspecto ético. Assumir a contingência significa aceitar a gratuidade da existência, e num só tempo, mergulhar no contexto histórico em que se está lançado. Somos livres e portanto responsáveis. Para que isso se torne mais claro, é apropriado aludir novamente à distinção, presente no romance entre vida e aventura, o que nos lança no cerne da questão da narratividade. Mais especificamente, trata-se de pontuar a inversão temporal que a caracteriza. Analisemos as palavras do personagem: Viver é isto. Mas quando se conta a nossa vida tudo muda; somente, é uma mudança que ninguém nota: a prova é que se fala de histórias verdadeiras! Os acontecimentos produzem-se num sentido inverso. Dir-se-ia que começamos pelo princípio. << Era numa linda tarde de Outono, em 1922.>> E na realidade foi pelo fim que começamos. O fim já está nessas poucas palavras, invisível e presente; é ele que lhes dá pompa e o valor dum princípio. <<Andava a passear, tinha saído da vila sem dar por isso, a pensar nas minhas dificuldades de dinheiro.>> Esta frase, tomada simplesmente pelo que é, que dizer que o homenzinho estava absorto, deprimido, a cem léguas duma aventura, precisamente no gênero de humor, em que se deixam passar os acontecimentos sem lhes dar atenção. Mas o fim já está nela a transformar tudo. Para nós, o homenzinho é, desde já, o herói da história. 394 O que vemos aqui, claramente, é uma inversão na ordem natural dos acontecimentos, convertendo a narrativa do “homenzinho que, por si só, estaria a cem metros de uma aventura”, no herói da história. É justamente a presença implícita do autor que garante que cada pequeno acontecimento não seja gratuito, tudo parece obedecer a uma ordem que se explicitará no decorrer da trama. É como se o fim da narrativa justificasse cada mínima ação do personagem, de modo que nada é gratuito, tudo obedece a esse fim. E isso só é possível porque há algo a priori que modifica o sentido daquela narração, ou seja, o que possibilita esse movimento é 394 SARTRE, Jean-Paul, A Náusea, p. 74-5. 149 justamente uma inversão do fluxo temporal dos acontecimentos. Sabemos de antemão que é para aquele “homenzinho” que a história é narrada, e é em função dele que o autor conta aquela história. Por isso, esperamos que daqueles fatos banais resulte algo de extraordinário, como se esse “algo de extraordinário” já estivesse presente desde o começo da narrativa determinando as ações do próprio personagem. Condicionando-a, garantindo sua estabilidade e justificando-a. E o personagem continua: A sua depressão, as suas dificuldades de dinheiro, são muito mais preciosas do que as nossas; doura-as a luz das paixões futuras. E a narração prossegue ao contrário: os instantes cessaram de se empilhar ao acaso uns por cima dos outros, morde-os o fim da história, que os atrai, e cada um deles atrai, por sua vez, o instante que o precede: <<Estava no escuro na rua deserta.>> A frase é atirada com negligência, traz um jeito de supérflua; mas não caímos no logro e pomo-la de reserva: é uma informação, cujo valor aparecerá mais tarde. E temos o sentimento de que o herói viveu todos os pormenores dessa noite como anunciações, como promessas, cego e surdo em relação a tudo quanto não anunciasse a aventura. Esquecemos que o futuro ainda não estava com ele; o homenzinho andava a passear numa noite sem presságios, que lhe oferecia à matroca as suas riquezas monótonas, e que ele não escolhia. 395 Mas Roquentin pensa em sua própria vida: “mas quando se conta a nossa vida tudo muda”396. E é este o cerne da questão da narratividade, o personagem busca constituir sua vida como uma história contada a si mesmo, como a aventura de um herói que, por conseqüência, obedece à referida inversão do fluxo temporal que caracteriza a narrativa literária. Portanto, ficam claras as implicações éticas dessa estratégia de Roquentin. Isto é, ao realizar esse exercício de auto-narração, narrando a si mesmo os episódios de seu passado, constituindo-se como o personagem de um romance de aventura, ele nega a própria liberdade fundadora da sua condição existencial. É exatamente nesse sentido que a constituição do Ego se mostra como uma estratégia de fuga. Daí da conclusão do personagem: “Quis que os momentos da minha vida se seguissem e se ordenassem como os duma vida que se rememora. O mesmo, ou quase, que tentar apanhar o tempo pelo rabo”.397 Vê-se, claramente, as intenções de Roquentin, mesmo que já se anteveja também sua derrocada. Em síntese, perece-nos que aqui tudo se encontra: as teses contidas em A Transcendência do Ego – a impossibilidade de qualquer tentativa de substancialização da consciência –, e a 395 Ibidem, p. 75. Ibidem, p. 74. 397 Ibidem. 396 150 dimensão contingente que, como frisamos, surge com o romance A Náusea, no qual descortinase um universo ficcional, uma criação, na qual Sartre “diz e não diz as mesmas coisas”. Logo, se é apenas através de um artifício dissimulador que a consciência realiza a referida inversão fundamental de atribuir o poder criador àquilo que, na realidade, é criado, postular um núcleo duro com base no qual nossas ações possam se justificar é necessariamente recair em máfé. Por essa razão, assumir a espontaneidade da consciência significa assumir nossa total liberdade e, por conseqüência, nossa total responsabilidade, a qual nos atrela à nossa época, ao nosso contexto histórico. Em decorrência do acima exposto, faz-se necessário encontrar “um modo privilegiado de buscar a verdade da existência” como “uma forma mais autêntica de narrar, em que a expressão da subjetividade esteja mais diretamente atravessada pelas exigências éticas da representação humana”.398 A “reinvenção da escrita” mencionada no início deste estudo significa que é preciso realizar uma literatura que represente a total aceitação da liberdade humana e a responsabilidade nela implicada, desvelando ao homem “o real por detrás de realidade”, o que, no caso de Sartre, significa levá-lo a revolta, à condição do homem “revoltado atrás do espelho”, tal como aparece na expressão do filósofo em relação a John dos Passos.399 Perece-nos então que, agora, as expressões do personagem de A Náusea ganham uma conotação completamente outra. Atentemos para a seguinte passagem: Algo vai se produzir: na sombra da Rua Basse-de-Vieille há qualquer coisa à minha espera; é além, precisamente à esquina desta rua calma, que a minha vida vai começar. Vejo-me a avançar, com o sentimento da fatalidade. [...] e então a aventura começará;400 Estas linhas explicitam com muita clareza que a postura de Roquentin é, na maior parte do tempo, aquela que enfatizamos, ou seja, a postura de quem busca refúgio em vez de assumir a radical liberdade desvelada pela experiência instauradora da Náusea. A autonarrativa permeada pela fatalidade se apresenta como uma alternativa de fuga, como uma forma de escapar ao 398 Ibidem, p. 45. Cf. abordado anteriormente, Capítulo II, Item 3. Para Sartre é imperativo ao escritor lançar um apelo à liberdade do leitor para que, juntos, constituam a obra de arte, que, como vimos, é uma via de acesso legítimo ao real. No entanto, é importante ressaltar que cabe ao autor também oferecer um espelho crítico da condição histórica em que ambos, escritor e leitor, estão inseridos. Tal como abordado anteriormente também, o recurso ao imaginário surge, portanto, como uma imersão profunda no concreto da realidade historicamente situada. (SARTRE, JeanPaul, Sobre John dos Passos e 1919 In: Situações I, p. 37). Na referida passagem, afirmamos que, para Sartre, John Dos Passos representa o romance de “situações extremas” requerido pelo filósofo, pois tem a grande vantagem de desvelar a “revolta atrás do espelho” que é característica fundamental do romance existencial, ou seja, que o romance oferece um espelho crítico capaz de desvelar ao leitor sua própria condição, isto é, sua situação histórica. 400 SARTRE, Jean-Paul, A Náusea, p. 98. 399 151 caráter fluido da consciência; ela caracteriza uma forma de negar a liberdade e, com ela, a responsabilidade. Roquentin busca constituir uma auto-imagem determinada pela seqüência lógico-temporal da narrativa de aventura. “Tudo quanto eu pedia era um pouco de rigor”.401 Como se tudo já estivesse dado de antemão, sua vida corresponderia a um enredo prédeterminado, atitude essa que, obviamente, caracteriza a má-fé. Entendemos agora com clareza as palavras de Leopoldo e Silva, pois a literatura, a narrativa, é algo que se constitui sempre no plano ético-histórico, ou seja, a partir de uma liberdade singular historicamente situada. É justamente porque Roquentin busca negar sua transcendência que ele acaba por se colocar fora da história, fora da temporalidade, para se lançar na linearidade temporal da narrativa: [...] para Sartre a ficção pode articular de forma mais completa – “totalizadora” – aquilo que a experiência ético-histórica fornece em fragmentos e lacunas, que afetam obrigatoriamente os fatos, razão pela qual a facticidade em si mesma não poderia ser, no âmbito da vivência imediata e no plano de sua elucidação analítica, objeto de “exploração totalizadora”.402 As palavras do comentador vêm ratificar a perspectiva aqui sustentada, segundo a qual a tentativa de Roquentin de autonarrar-se como o personagem de um romance de aventura, forjando assim sua própria identidade, na realidade, constitui uma estratégia para negar sua a própria liberdade, e com ela, sua transcendência. Deste modo, a ficção é mais efetiva que a elucidação analítica porque oferece uma visão totalizadora. Ao visar na literatura apenas uma forma de sustentar sua identidade, Roquentin acaba por recair em má-fé pois atribui à literatura uma função que não lhe compete, qual seja, de estabilizar aquilo que é fundamentalmente fugidio, isto é, a contingência. Essa discussão remete novamente à questão acerca da relação entre a criação ficcional e a reflexão filosófica. Nesse sentido, a criação ficcional parece transitar por um registro que não é nem o da “vivência imediata” – no qual a realidade parece obedecer a alguma ordem natural – nem o da “elucidação analítica” – registro insuficiente da filosofia. Inversamente, a proposta sartriana nos desvela uma concepção segundo a qual a literatura se traduz como a única forma de expressão capaz de oferecer uma visão “totalizadora” da realidade. Ou melhor, a criação ficcional surge como o âmbito da expressão do concreto da vivência singular, sem, no entanto, negar a dimensão universal da representação de uma singularidade encarnada. A literatura 401 402 Ibidem, p. 70. LEOPOLDO E SILVA, Franklin, Op. Cit., p. 46. 152 oferece o espelho crítico da situação histórica do próprio leitor, filtrada pelo recorte do autor. Daí que a obra literária incite aquele que lê a se engajar na situação histórica que o circunscreve. Sob o prisma do apelo do escritor àquele que lê, a literatura emerge como uma porta de acesso à realidade “profunda” da existência. Esta formulação contempla a dimensão histórica das ações humanas, da existência humana. Destarte, entendemos porque Sartre, tal como desenvolvemos anteriormente, não aceita que a dimensão da reflexão filosófica dê conta da realidade humana. Os instrumentos da “razão analítica” tratam do homem abstratamente, apenas em sentido lógico, o que foge às especificidades das relações humanas. Aqui podemos aludir à distinção que aparece no registro existencialista quando falamos do HOMEM (no singular), isto é, da humanidade, e dos HOMENS (no plural), contemplando a dimensão particular que essa filosofia resgata.403 Esta distinção vem explicitar a diferença entre a abordagem abstrata do humanismo clássico e a abordagem concreta contemplada pelo existencialismo sartriano. Nessa senda, justifica-se a alusão às palavras de Hannah Arendt em sua resposta à crítica realizada por Gershom Scholem, quando da publicação de seu livro Eichmann em Jerusalém – um Relato Sobre a Banalidade do Mal, ao acusá-la de não amar o povo judeu: Eu nunca “amei”, em toda minha vida, qualquer povo ou coletividade – nem os alemães, nem os franceses, nem o povo americano, nem a classe operária ou algo desse gênero. De fato, amo “apenas” os meus amigos e o único tipo de amor que eu conheço e em que acredito é o amor a pessoas. Em segundo lugar, este “amor aos judeus” me parecia algo muito suspeito, uma vez que eu mesma sou judia. 404 A despeito da aparente desconexão com a reflexão aqui desenvolvida, essa citação vem a propósito em virtude da força expressiva que apresenta ao aludir a essa abstração do humano, característica do registro teórico, e, por conseqüência, daquilo que Sartre chamou de “literatura de sobrevôo”, ou seja, aquela produção ficcional que se ocupa dos grandes temas de forma abstrata, retirada da história ou, na expressão do autor, “extrínseca ao conjunto da sociedade”.405 Parece-nos agora bastante evidente que as implicações éticas da concepção de literatura para Sartre são inegáveis. No romance, a tentativa de fuga através da autonarrativa, 403 É digno de nota a irônica e alegórica referência ao humanismo abstrato presente no romance A Náusea. Sartre faz com que o personagem do Autodidata, que representaria esse amor abstrato do humanista clássico, seja o mesmo que é pego molestando os “rapazinhos” na biblioteca ao final do romance. Ou seja, amar abstratamente não garante, e nem justifica, o sentido da ação particular. Portanto, há uma implicação ética nesse distanciamento requerido pelo registro abstrato do humanismo clássico. 404 ARENDT, Hannah, apud Adriano Correa, Hannah Arendt, p.12. 405 SARTRE, Jean-Paul, Que é a Literatura?, p. 169. 153 evidentemente, fracassa. Só resta ao personagem assumir sua condição contingente ou negá-la, o que significaria sustentar sua má-fé e conseqüentemente também a Náusea doce que lhe sobe à boca. É por isso que Roquentin dirá: “Alguma coisa começa a acabar: a aventura não admite prolongamentos artificiais”.406 É preciso, portanto, assumir, como o faz o personagem: “não tive aventuras. Sucederam-me histórias, acontecimentos, incidentes, tudo o que se quiser. Mas aventuras, não”.407 De fato, o que existe é esse fluxo temporal contínuo de vivências que caracteriza a própria consciência, o que existe é a consciência enquanto pura transcendência, enquanto pura liberdade. É preciso assumir essa condição de modo livre e responsável, o que, em outras palavras, significa que não devemos abandonar também o plano da contingência. É exatamente nesse sentido que se desvela a Roquentin a derrocada de seu projeto. Uma vez vivenciada, a Náusea não permite subterfúgios que permitiriam escapar à condição contingente da existência e ao sentimento da angústia que dela decorre. É preciso assumir sua responsabilidade pelas escolhas que o constituem, mesmo que, em última instância, nunca o personagem se constitua de fato. Roquentin vê, portanto, esvanecer-se seu projeto de criar uma espécie de “autonarrativa” que o exima de sua liberdade. Em síntese, se o Ego só aparece como um núcleo duro do sujeito para que ele possa negar seu caráter transcendente fundamental, uma vez que representar-se enquanto substância revela-se necessariamente falso, a experiência violenta e radical da Náusea impõe que o homem se posicione eticamente ou que se refugie no reduto da má-fé, horizonte para o qual acena a substancialização do ego. Mas, se ao contrário, reivindica-se o caráter transcendente da consciência, cumpre assumir a condição livre do homem. Essa experiência é sempre algo que ocorre do âmbito particular; é sempre um indivíduo que a vive em sua unicidade. No entanto, ela ganha simultaneamente um caráter universal, uma vez que a liberdade daquele que age e escolhe implica a liberdade dos outros. Desse modo, cabe ao escritor e à literatura, com sua capacidade de requerer a liberdade do leitor e de instaurar realidades impensadas, desnudar o real naquilo que ele tem de mais profundo, em seu substrato, qual seja, a condição contingente do homem. Essa concepção e ganha intensidade nos escritos de maturidade de Sartre. Torna-se, então, pertinente aludirmos à questão posta pelo filósofo o faz em Que é a Literatura?: “Por que escrever?”: 406 407 Ibidem, p. 71. Ibidem, p. 70. 154 Cada um tem suas razões: para este, a arte é uma fuga: para aquele, uma maneira de conquistar. Mas pode-se fugir para um claustro, para a loucura, para a morte: pode-se conquistar pelas armas. Por que justamente escrever, empreender por escrito suas evasões e suas conquistas?408 A bela e provocativa formulação de Sartre insere-nos no cerne do problema, qual seja, por que escrever em vez de agir concretamente? Porque escrever é agir. Porque o “homem é o meio pelo qual as coisas se manifestam”409 e a literatura é a expressão daquilo que doa sentido à realidade. Somos seres “desvendantes”. Assim “o escritor decide apelar para a liberdade dos outros homens para que, através das implicações recíprocas das suas exigências, eles reapropriem a totalidade do ser para o homem e fechem a humanidade sobre o universo”.410 O que significa que é o homem que desvenda o sentido da realidade, ou melhor, é o encontro dos homens que a desvela. O mundo em si mesmo é pura contingência. “A árvore e o céu, a natureza, só se harmonizam por acaso;”411 Estamos em pleno registro do romance, pois é através da criação ficcional que o sentido se desvela; o escritor apela ao leitor para que juntos desvelem a realidade. Surge, então, o necessário correlato do escritor: o leitor. Quando alguém escreve, o faz para alguém. A realidade em si mesma é contingente. Por isso a beleza artificial, isto é, criada através da arte, solicita a liberdade do leitor. Este necessita compreender o fio condutor que o autor estabeleceu atribuindo unidade à obra. Um romance exige que o leitor compreenda a ordem interna que o escritor erigiu. É por isso que “no romance [...] os heróis se acham nessa torre, nesta prisão, se passeiam por esse jardim,”412 por que assim o autor quis. Há um ser onipresente que antecipa e doa sentido a tudo. A tão desejada ordem narrativa requerida por Roquentin no romance encontra sua razão de ser, mas, como dissemos, a vida não é um romance de aventuras. O romance obedece a uma cadeia causal que o justifica. Por conseqüência, é “da expressão de uma finalidade mais profunda, pois o parque só ganhou existência para se harmonizar com determinado estado de ânimo”,413 que o real se dá a conhecer, tal como no caso do nosso romance. Em A Náusea, é num parque que o personagem tem a experiência da condição contingente da existência. Conclui Sartre: “Aqui a causalidade é que é a aparência e poderíamos designá-la por causalidade sem causa, e a finalidade é que é a realidade 408 Ibidem, p. 33. Ibidem. 410 Ibidem, p. 47. 411 Ibidem, p. 45. 412 Ibidem. 413 Ibidem. 409 155 profunda”.414 Se acrescentarmos que o escritor lança um apelo à liberdade do leitor, então a dimensão ética evidencia-se: “Através da causalidade fenomênica, o nosso olhar atinge a finalidade, como a estrutura profunda do objeto e, para além da finalidade, atinge a liberdade humana como sua fonte e fundamento original”.415 Evoquemos uma última vez as palavras do autor: Assim a leitura é um pacto de generosidade entre o autor e o leitor; cada um confia no outro, conta com o outro, exige do outro tanto quanto exige de si mesmo. Essa confiança já é, em si mesma, generosidade: ninguém pode obrigar o autor a crer que o leitor fará uso da sua liberdade; ninguém pode obrigar o leitor a crer que o autor fez uso da sua. É uma decisão livre que cada um deles toma independentemente. [...] Assim a minha liberdade, ao se manifestar, desvenda a liberdade do outro. 416 Por fim, tal como afirmara Saint-Sernin, na literatura, “a partir do singular, pode-se remeter ao universal; ao se estudar um homem, se fala, na verdade, de todos os homens”. Sob a perspectiva do pensamento do nosso filósofo, muito mais do que uma forma de clarificar conceitos filosóficos, a literatura surge como o caminho que desvela o real ao homem, “ela deve conferir à descrição o estatuto epistemológico de um concreto universal”.417 Portanto é necessário que o escritor assuma sua condição e seu contexto histórico, oferecendo ao homem contemporâneo uma literatura que reflita sua situação histórica. Como buscamos expressar aqui, o personagem de A Náusea, na medida em que se pretende escritor, fica aquém desta exigência que é também uma prerrogativa. Sua intenção, ao sugerir a criação do irreal como uma forma de ultrapassar a condição contingente do homem, finda antes por nega-lá do que por assumi-la autenticamente. Poderíamos, pois, sustentar que o personagem sartriano esquiva-se do apelo ético realizado por uma literatura que se volta para o homem. Fiquemos, por fim, com o eco das palavras de Roquentin: Nada mudou e, entretanto, tudo existe de outra maneira. Não posso descrever; é como a Náusea, e afinal é exactamente o contrário: enfim, sucede-me uma aventura, e, quando me interrogo, vejo que me sucede que sou eu que estou aqui: sou eu que fendo a noite: sou feliz como um herói de romance. 418 414 Ibidem. Ibidem, p. 46. 416 Ibidem. 417 SAINT-SERNIN, Bertrand, Philosophie et fiction, p. 175. “[...] à partir du singulier, on peut remonter à l’universel; en étudiant um homme, on parle em vérité de tous les hommes” [...] “Elle doit conférer à la description le statut épistémologique d’un concret universel” (nossa tradução). 418 SARTRE, Jean-Paul, A Náusea, p. 98. 415 156 CONSIDERAÇÕES FINAIS A motivação primeira e afetiva que originou esse estudo delineou-se numa inquietude. Ou seja, o desejo de indagar e compreender porque Sartre, no desenvolvimento de sua produção intelectual, recorreu simultaneamente ao registro filosófico e ao registro literário. Neste sentido, a origem desta pesquisa está certamente relacionada à fortíssima impressão que o registro da criação ficcional sempre foi capaz de suscitar na alma daqueles que sobre ela se debruçam. O que, por si só, conduz a uma certa perplexidade. Ou seja, por que a obra literária é capaz de proporcionar impressões tão intensas e reveladoras? E porque tal intensidade mostra-se vetada à filosofia, a qual desde seus primórdios coloca-se no encalço da verdade? E mais do que isso, por que, ao entrar em contato com a obra literária, o concreto se dá a ver? Essas interrogações encontraram uma situação exemplar com a leitura de A Náusea, uma vez que tudo o que era dito através do romance, de forma alguma alcançava a mesma intensidade quando problematizado no âmbito da reflexão filosófica ou, mais especificamente, no ensaio A Transcendência do Ego. Eis as questões que nos impulsionaram ao desenvolvimento dessa pesquisa. Uma vez iniciada a nossa busca, foi a reflexão acerca do método sartriano que norteou e fundamentou esse ensaio interpretativo. Sabemos que Sartre recorreu tanto à filosofia como à literatura com a intenção de expressar seu pensamento. Nosso percurso permitiu compreender que essa relação se caracteriza por uma simultânea dupla insuficiência e complementaridade. Ficou patente que, para uma filosofia que se pretenda dinâmica, que busca seu fundamento no existente particular imerso em sua situação histórica, o registro da reflexão filosófica se mostra insuficiente. É preciso recorrer então a algo capaz de expressar o particular, sem com isso negligenciar a dimensão universal necessária ao rigor filosófico. A literatura entra, então, em cena. Mas ela traz também a mácula da insuficiência, uma vez que o registro literário não dá conta da dimensão abstrata – isto é, do particular universalizado – requerida pela filosofia. Mostramos, assim, que é justamente na peculiaridade de cada registro que literatura e filosofia são necessárias à Sartre. A complementaridade entre esses registros nos conduziu a uma reflexão de natureza ética, uma vez que o escritor fala sempre a um leitor. Afinal, desde que aflore a questão acerca do modo pelo qual se age em relação a outrem a questão ética está posta. Em face disso, problematizamos a inautenticidade de toda e qualquer tentativa de instrumentalizar a 157 criação literária e romanesca, com o intuito de operar uma evasão da condição contingente da existência. O percurso dessa reflexão exigiu um retorno à concepção de Ego, presente no primeiro capítulo, evidenciando, assim, o modo pelo qual um apelo ético inscreve-se na narrativa literária, quando permanecemos sob o registro dessa filosofia. Em suma, esse percurso pelos textos sartrianos evidenciou que o que caracteriza a relação entre filosofia e literatura em Sartre é a dupla insuficiência dos registros e também, talvez principalmente, a sua dupla complementaridade. Por outro lado, como não se cansam de repetir seus comentadores, toda a obra de Sartre remete a uma moral. Afirmação que não exclui a sua dimensão ficcional. No âmbito da ficção, a exigência ética se traduz no apelo à liberdade, ao diálogo entre a imaginação do escritor e aquela do leitor, o qual, pelas vias da negatividade, amplia a compreensão de inserção objetiva do homem no mundo. Nesse movimento, as imagens revelam toda a sua relevância. É através do apelo à imagem que o irreal traz à tona o real por detrás do irreal. Destarte, o real se dá a conhecer por meio da invenção – no limite, da mentira – que constitui a obra literária. Fiquemos, a título de conclusão, com as provocativas palavras do autor: Durante muito tempo tomei minha pena por uma espada: agora, conheço nossa impotência. Não importa: faço e farei livros; são necessários; sempre servem, apesar de tudo. A cultura não salva nada nem ninguém, ela não justifica. Mas é um produto do homem: ele se projeta, se reconhece nela; só este espelho crítico lhe oferece a própria imagem.419 419 SARTRE, Jean-Paul, As Palavras, p. 182. 158 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. 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