REVISTA DEBATES EM Ano 3 • n°4 • Jul/Ago 2013 ISSN 2236-918X Publicação destinada exclusivamente aos médicos www.abp.org.br ARTIGOS Transtorno de Pânico: Aspectos Psicopatológicos e Fenomenológicos Tratamento Combinado: Psicofarmacologia e Psicoterapia Afinal, o lítio é um teratógeno relevante? Delírio parasitário em idoso com doença encéfalo-vascular e múltiplas comorbidades Considerações Sobre Risco-Benefício do Tratamento do Transtorno Bipolar Jul/Ago 2013 - revista debates em psiquiatria 1 ////////////// EDITORIAL OPINIÃO A RDP deste mês abre com um artigo de Alexandre Valença sobre o Pânico, um transtorno de ansiedade caracterizado por ataques de pânico, ansiedade antecipatória e esquiva fóbica. O autor apresenta um artigo de revisão onde descreve a psicopatologia e fenomenologia desse relevante transtorno, atualizando o estado da arte com referência a estudos laboratoriais desse tipo de ansiedade. Uma leitura proveitosa para o psiquiatra clínico, residentes e estudantes. Luiz Mabilde apresenta um artigo em que discute o tratamento combinado de psicoterapia e terapêutica medicamentosa. O assunto é controvertido na psiquiatria, e o autor apresenta uma conclusão favorável baseando-se numa revisão da evolução de aspectos psicodinâmicos e psicofarmacológicos envolvidos nesse tratamento combinado. Ele então introduz um modelo terapêutico integrativo, cujo sucesso está na dependência da capacidade do psiquiatra. O artigo abre uma discussão interessante, especialmente para os que se dedicam à psiquiatria psicodinâmica. ANTÔNIO GERALDO DA SILVA EDITOR Em uma oportuna revisão, Amaury Cantilino e colaboradores chamam atenção para o efeito teratógeno do lítio, implicado no risco de malformações cardíacas. Em seu artigo os autores revisam os dados da literatura e assinalam possíveis vieses que podem colocar em dúvida as estimativas aceitas na atualidade. O potencial teratogênico do lítio não deve ser desprezado, enfatizam os autores, pois apresentam uma série de medidas que o psiquiatra deve tomar ao prescrever o lítio na gravidez. Na sessão Relato de Casos, Raimundo Mourão, Rogério Beato e Alexandre Ferreira descrevem a clínica de um delírio parasitário em idoso com doença encéfalo-vascular e múltiplas comorbidades, uma excelente oportunidade para o leitor revisitar a Síndrome de Ekbom e atualizar seus conhecimentos. Também em uma Comunicação Breve, Jorge Salton nos proporciona uma excelente leitura sobre o diagnóstico abusivo do TAB e as consequências indesejáveis desse overdiagnosis, notadamente o uso abusivo da lamotrigina. Em um breve comentário, ele nos mostra os perigos da lamotrigina e esclarece se este fármaco tem algum valor no tratamento do TAB. Os editores JOÃO ROMILDO BUENO EDITOR Jul/Ago 2013 - revista debates em psiquiatria 3 //////////// EXPEDIENTE EDITORES Antônio Geraldo da Silva João Romildo Bueno DIRETORIA EXECUTIVA Presidente: Antônio Geraldo da Silva - DF Vice-Presidente: Itiro Shirakawa - SP 1º Secretário: Luiz Illafont Coronel - RS 2º Secretário: Mauricio Leão - MG 1º Tesoureiro: João Romildo Bueno - RJ 2º Tesoureiro: Alfredo Minervino - PB SECRETÁRIOS REGIONAIS Norte: Paulo Leão - PA Nordeste: José Hamilton Maciel Silva Filho - SE Centro-Oeste: Salomão Rodrigues Filho - GO Sudeste: Marcos Alexandre Gebara Muraro - RJ Sul: Cláudio Meneghello Martins - RS CONSELHO FISCAL Titulares: Emmanuel Fortes - AL Francisco Assumpção Júnior - SP Helio Lauar de Barros - MG Suplentes: Geder Ghros - SC Fausto Amarante - ES Sérgio Tamai - SP ABP - Rio de Janeiro Secretaria Geral e Tesouraria Av. Rio Branco, 257 – 13º andar salas 1310/15 –Centro CEP: 20040-009 – Rio de Janeiro - RJ Telefax: (21) 2199.7500 Rio de Janeiro - RJ E-mail: [email protected] Publicidade: [email protected] 4 revista debates em psiquiatria - Jul/Ago 2013 EDITORES ASSOCIADOS Itiro Shirakawa Alfredo Minervino Luiz Carlos Illafont Coronel Maurício Leão Fernando Portela Camara CONSELHO EDITORIAL Almir Ribeiro Tavares Júnior - MG Ana Gabriela Hounie - SP Analice de Paula Gigliotti - RJ Carlos Alberto Sampaio Martins de Barros - RS Carmita Helena Najjar Abdo - SP Cássio Machado de Campos Bottino - SP César de Moraes - SP Elias Abdalla Filho - DF Érico de Castro e Costa - MG Eugenio Horácio Grevet - RS Fausto Amarante - ES Fernando Portela Câmara - RJ Flávio Roithmann - RS Francisco Baptista Assumpção Junior - SP Helena Maria Calil - SP Humberto Corrêa da Silva Filho - MG Irismar Reis de Oliveira - BA Jair Segal - RS João Luciano de Quevedo - SC José Alexandre de Souza Crippa - SP José Cássio do Nascimento Pitta - SP José Geraldo Vernet Taborda - RS Josimar Mata de Farias França - AL Marco Antonio Marcolin - SP Marco Aurélio Romano Silva - MG Marcos Alexandre Gebara Muraro - RJ Maria Alice de Vilhena Toledo - DF Maria Dilma Alves Teodoro - DF Maria Tavares Cavalcanti - RJ Mário Francisco Pereira Juruena - SP Paulo Belmonte de Abreu - RS Paulo Cesar Geraldes - RJ Sergio Tamai - SP Valentim Gentil Filho - SP Valéria Barreto Novais e Souza - CE William Azevedo Dunningham - BA CONSELHO EDITORIAL INTERNACIONAL Antonio Pacheco Palha (Portugal), Marcos Teixeira (Portugal), José Manuel Jara (Portugal), Pedro Varandas (Portugal), Pio de Abreu (Portugal), Maria Luiza Figueira (Portugal), Julio Bobes Garcia (Espanha), Jerónimo Sáiz Ruiz (Espanha), Celso Arango López (Espanha), Manuel Martins (Espanha), Giorgio Racagni (Italia), Dinesh Bhugra (Londres), Edgard Belfort (Venezuela) Jornalista Responsável: Lucia Fernandes Projeto Gráfico, Editoração Eletrônica e Ilustração: Lavinia Góes Produção Editorial: Luan Comunicação Impressão: Gráfica Editora Pallotti //////////////////// JUL/AGO ÍNDICE 2013 6/artigo Transtorno de Pânico: Aspectos Psicopatológicos e Fenomenológicos por ALEXANDRE MARTINS VALENÇA 14/artigo Tratamento Combinado: Psicofarmacologia e Psicoterapia por LUIZ CARLOS MABILDE 24/artigo Afinal, o lítio é um teratógeno relevante? por AMAURY CANTILINO, JOEL RENNÓ JR, HEWDY LOBO RIBEIRO, JULIANA PIRES CAVALSAN, RENAN ROCHA, RENATA DEMARQUE, JERÔNIMO DE ALMEIDA MENDES RIBEIRO, GISLENE VALADARES, ANTONIO GERALDO DA SILVA 32/relato Delírio parasitário em idoso com doença encéfalo-vascular e múltiplas comorbidades POR RAIMUNDO JORGE MOURÃO, ROGÉRIO BEATO, ALEXANDRE DE AGUIAR FERREIRA 36/comunicação breve * As opiniões dos autores são de exclusiva responsabilidade dos mesmos Considerações Sobre Risco-Benefício do Tratamento do Transtorno Bipolar por JORGE ALBERTO SALTON Jul/Ago 2013 - revista debates em psiquiatria 5 ARTIGO DE REVISÃO por ALEXANDRE MARTINS VALENÇA 1 TRANSTORNO DE PÂNICO: ASPECTOS PSICOPATOLÓGICOS E FENOMENOLÓGICOS PANIC DISORDER: PSYCHOPATHOLOGICAL AND PHENOMENOLOGICAL FEATURES Resumo O transtorno de pânico é um transtorno de ansiedade caracterizado pela presença de três síndromes clínicas: o ataque de pânico, a ansiedade antecipatória e a esquiva fóbica. Nesse artigo de revisão o autor descreve a psicopatologia e fenomenologia desse importante transtorno de ansiedade. São também mencionados estudos laboratoriais de ataques de pânico. Palavras-chave: ansiedade; pânico; transtorno; psicopatologia; fenomenologia. Abstract Panic disorder is an anxiety disorder characterized by the presence of three clinical syndromes: the panic attack, the anticipatory anxiety and or phobic avoidance. In this review article the author describes the psychopathology and phenomenology of this important anxiety disorder. Laboratory studies of panic attacks are also mentioned Keywords: anxiety; panic; disorder; psychopathology; phenomenology 6 revista debates em psiquiatria - Jul/Ago 2013 Introdução C om a abolição do termo “neurose” e consequente reclassificação dos transtornos de ansiedade, os ataques recorrentes de ansiedade (ataques de pânico), associados ou não a agorafobia, passaram a ter uma nova classificação nosológica: DSM-III1, DSM-III-R2, DSM-IV3, DSM-IV-TR4 e CID-105. O diagnóstico do Transtorno de Pânico (TP) é baseado na existência de três síndromes clínicas importantes: o ataque de pânico, a ansiedade antecipatória e a esquiva ou evitação fóbica. De acordo com Faravelli e Paionni6, o TP parece ter uma prevalência ao longo da vida de aproximadamente 1,5 a 2% da população, estando associada a maior morbidez psiquiátrica (depressão, alcoolismo, risco de suicídio). Uma das mais notáveis características da descrição de um paciente com Transtorno do Pânico é a natureza física dos sintomas. Ao contrário do Transtorno de Ansiedade Generalizada, onde a preocupação e tensão são predominantes, pacientes com Transtorno do Pânico invariavelmente começam descrevendo a doença com referência ao pulmão, coração, trato gastrointestinal e “nervos”. O número de queixas físicas puras no Transtorno do Pânico o distingue das queixas mais “emocionais” dos pacientes com transtorno de ansiedade generalizada7. Os ataques de pânico estão entre os diagnósticos mais frequentes que levam os pacientes a procurar atendimento em serviços clínicos de emergência. Desta forma, o diagnóstico e manejo do ataque de pânico interessam a psiquiatras e clínicos gerais. De acordo com Ballenger8, 90% dos pacientes com TP acreditam que têm um problema físico e não um problema psiquiátrico ou psicológico. É muito comum o paciente com TP fazer uma verdadeira “peregrinação”, consultando-se com diversos especialistas e fazendo diversos exames, muitas vezes desnecessários. Dentro deste aspecto, o paciente pode procurar diversos médicos, de acordo com ALEXANDRE MARTINS VALENÇA 1 1 Doutor em Psiquiatria pelo IPUB/UFRJ. Professor Adjunto do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental da Universidade Federal Fluminense- Niterói-RJ. Professor do Programa de Pós-Graduação em Psiquiatria e Saúde Mental do IPUB-UFRJ. Médico da Divisão de Saúde do Trabalhador (DVST-UFRJ) e do Programa de Ensino e Pesquisa em Psiquiatria Forense do IPUB-UFRJ. Pós-Doutorado em Fisiologia da Respiração- Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho- UFRJ. Pesquisador do Laboratório de Pânico & Respiração do IPUB/UFRJ. Editor Associado da revista Jornal Brasileiro de Psiquiatria. Psiquiatra Forense pela Associação Brasileira de Psiquiatria. as queixas somáticas predominantes: gastroenterologista (diarreia, náusea, cólon irritável), pneumologista (hiperventilação, dificuldade de respirar, sensação de sufocação ou asfixia), cardiologista (dor no peito, taquicardia) otorrinolaringologista (dificuldade de engolir, tonteira, desequilíbrio), ginecologista (ondas de calor), neurologista (cefaleia, parestesias, “derrame”). Certamente o diagnóstico e tratamento precoces do TP são essenciais para reduzir as consequências físicas e sociais do transtorno. Ainda em relação a este aspecto, um estudo retrospectivo de Katon9 encontrou que de 55 indivíduos com TP encaminhados a consulta com psiquiatra por clínicos gerais, 89% se apresentaram inicialmente com uma ou mais queixas somáticas, havendo manutenção do diagnóstico incorreto por meses ou anos. Neste estudo as apresentações clínicas mais comuns foram sintomas cardíacos (dor no peito, taquicardia, batimentos cardíacos irregulares), sintomas gastrointestinais (pirose, dor abdominal, diarreia) e sintomas neurológicos (cefaleia, tontura, vertigem, parestesias). Cerca de 81% dos pacientes tinham queixa atual de dor. De acordo com este autor, os intensos sintomas fisiológicos do TP e a estigmatização dos transtornos mentais contribuem para que muitos indivíduos “selecionem” seu foco de atenção em um ou mais sintomas físicos, como dor no peito, tontura e taquicardia, e os apresentem ao clínico geral, minimizando ou negando outros sintomas de ansiedade. Por outro lado, a ansiedade grave pode causar alterações psicofisiológicas, tais como diarreia, náusea, dor epigástrica ou exacerbação de uma doença pré-existente como asma brônquica. Psicopatologia e Fenomenologia O Transtorno do Pânico (TP) caracteriza-se por ataques de ansiedade frequentes e recorrentes. O DSM-IV-TR4 define o ataque de pânico como um período de intenso medo ou desconforto, no qual quatro ou mais dos seguintes sintomas se desenvolvem abruptamente e atingem um pico em torno de dez minutos: 1) Falta de ar (dispneia) ou sensação de asfixia 2) Vertigem, sentimentos de instabilidade ou sensação de desmaio 3) Palpitações ou ritmo cardíaco acelerado (taquicardia) 4) Tremor ou abalos 5) Sudorese 6) Sufocamento 7) Náusea ou desconforto abdominal 8) Despersonalização ou desrealização 9) Anestesia ou formigamento (parestesias) 10) Ondas de calor ou frio 11) Dor ou desconforto no peito 12) Medo de morrer 13) Medo de enlouquecer ou cometer ato descontrolado Ao contrário do DSM-III-R2, que valorizava muito a frequência dos ataques, os critérios diagnósticos do DSM-IV3 DSM-IV-TR4 para Transtorno do Pânico com ou sem agorafobia enfatizam mais a preocupação sobre as implicações do ataque de pânico (“... preocupação persistente em ter ataques adicionais, preocupação sobre as consequências do ataque e alteração significativa de comportamento relacionada aos ataques de pânico...”). O ataque de pânico é descrito como um período de intenso medo ou ansiedade, acompanhado de sintomas somáticos e psíquicos. Tem um início súbito e rapidamente atinge uma intensidade máxima em poucos minutos, com duração de 10 a 30 minutos em média. A ansiedade característica de um ataque de pânico é intermitente, de natureza paroxística e tipicamente de grande intensidade. Esta forma de ansiedade assim é diferenciada da encontrada no Transtorno de Ansiedade Generalizada, definida como uma ansiedade crônica, de menor intensidade6. Diversos tipos de ataques de pânico podem ocorrer. O mais comum é o ataque espontâneo de pânico, definido como aquele que não está associado a nenhuma situação desencadeadora conhecida. Outro tipo é o situacional, que ocorre quando o indivíduo se depara ou se expõe a certas situações, como por exemplo, trânsito, multidões, etc10. Também existem os ataques de pânico noturnos, caracterizados por despertar súbito, terror e hipervigilância. Cerca de 40% dos pacientes com Transtorno do Pânico apresentam ataques de pânico durante o sono11. Outro tipo é aquele desencadeado por determinados contextos emocionais, como por exemplo, desentendimentos familiares ou ameaça de separação conjugal. Por último, temos os ataques de pânico com sintomas limitados, quando os pacientes apresentam três ou menos de sintomas somato-psíquicos durante o ataque de ansiedade. Klein e Gorman12 formularam um modelo fenomenológico trifásico para o TP. O ataque de pânico seria a característica mais importante deste transtorno, caracterizado por uma ansiedade súbita, surgimento de sintomas autonômicos de forma crescente e um senso subjetivo de terror, com duração de 10 a 30 minutos e posterior retorno ao funcionamento normal. A segunda característica seria a ansiedade antecipatória. Nesta fase o paciente desenvolve uma preocupação de que um ataque de pânico ocorra novamente, surgindo um estado crônico de ansiedade. A ansiedade antecipatória ocorre no intervalo entre os ataques de pânico, sendo uma Jul/Ago 2013 - revista debates em psiquiatria 7 ARTIGO DE REVISÃO por ALEXANDRE MARTINS VALENÇA 1 ansiedade constante e difusa. Esta forma de ansiedade tem muitas características da ansiedade encontrada no Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG): aumento da atenção sobre sensações somáticas, apreensão e hiperatividade. A ansiedade antecipatória frequentemente leva a um comportamento de evitação (fobia). Alguns pacientes (um terço a dois terços) podem desenvolver uma terceira fase do transtorno: a evitação fóbica. Eles ficam tão amedontrados de sofrerem novo ataque de pânico que evitam estar em locais ou situações de onde seja difícil ou embaraçoso escapar ou obter ajuda, caso sejam acometidos por um ataque de pânico. O termo agorafobia foi descrito pela primeira vez por Westphal (apud Faravelli e Paionni6), em 1871, em sua descrição de três homens que apresentaram intensa ansiedade ao caminhar em espaços abertos ou através de ruas vazias. Frequentemente a agorafobia está associada a sintomas de ansiedade psíquica, como medo de perder o controle, medo de enlouquecer ou de ficar envergonhado, medo de desmaiar ou morrer. Isto vai levar o indivíduo a evitar uma série de situações que podem incluir: estar sozinho em casa ou sair sozinho para a rua, estar em lugares com muitas pessoas, viajar, utilizar transportes públicos (ônibus, metrô), andar de carro, atravessar uma ponte, etc. Em geral o indivíduo agorafóbico enfrenta melhor uma determinada situação quando acompanhado, mesmo se esta companhia for incapaz de ajudá-lo, como uma criança ou um animal de estimação. Quando esta agorafobia é muito grave, vai trazer uma grande limitação ao indivíduo, impedindo-o de viajar, trabalhar ou assumir responsabilidades. A agorafobia grave pode ser totalmente incapacitante, sendo considerada um indicativo de prognóstico desfavorável, a longo prazo13. Em alguns casos o indivíduo não consegue sair de casa ou não consegue ficar em casa sozinho. É comum que aqueles com agorafobia apresentem mais ataques de pânico situacionais do que ataques de pânico espontâneo. O componente de agorafobia está presente em um terço a dois terços dos casos de TP, sendo mais frequente em serviços de referência para tratamento psiquiátrico, especialmente aqueles com programas estruturados para atendimento de transtornos de ansiedade. O curso da agorafobia em relação ao curso do ataque de pânico é variável. Em alguns casos, uma diminuição ou remissão de ataques de pânico é seguida de uma diminuição do comportamento de evitação fóbica. Em outros casos, a agorafobia pode ser crônica, independente da presença de ataques de pânico. Na agorafobia persistente, a terapia cognitivo-comportamental, com técnicas de exposição progressiva a estímulos temidos (fóbicos), vai adquirir grande importância. 8 revista debates em psiquiatria - Jul/Ago 2013 O Transtorno de Pânico na CID-10 e DSM-IV-TR No DSM-IV-TR4, os transtornos ansiosos estão contidos no item transtornos de ansiedade, conforme abaixo. TP sem agorafobia TP com agorafobia Agorafobia sem pânico Fobia específica Fobia social Transtorno obsessivo-compulsivo Transtorno de estresse pós-traumático Transtorno de estresse agudo Transtorno de ansiedade generalizada Transtorno de ansiedade por doenças médicas Transtornos de ansiedade por uso de substâncias Na CID-105, os transtornos de ansiedade estão englobados no capítulo F40 - F48, com subcapítulos: transtornos fóbico-ansiosos, outros transtornos de ansiedade, transtorno obsessivo-compulsivo, reação a estresse grave e transtornos de ajustamento, transtornos dissociativos, transtornos somatoformes e outros transtornos neuróticos. Em 1980, o DSM-III1 considerou três categorias separadas: TP, agorafobia com TP e agorafobia sem TP. Entretanto, vários investigadores14 passaram a considerar que a agorafobia não seria uma entidade separada, mas sim uma complicação secundária ao TP. Eles descreveram que agorafobia antes do início de ataques de pânico era incomum e que TP e agorafobia eram semelhantes em sua apresentação clínica. Estudos genéticos do TP deram suporte ao conceito de agorafobia como uma variante mais grave do TP, e não uma entidade separada15. Assim, consistente com esta visão, o DSM-III-R2, a reclassificou com uma sequela principal do TP, o qual poderia se apresentar com ou sem agorafobia, sendo esta classificação mantida no DSM-IV3 e DSM-IV-TR4. Entretanto, a agorafobia sem ataques de pânico permaneceu em ambos os sistemas classificatórios, por causa de repetidas descrições desta forma de ansiedade, que embora não existente na prática clínica, continuou a ser um diagnóstico comum em estudos comunitários. O DSM-IV-TR4, entretanto, privilegia o ataque de pânico como um componente essencial do TP, sendo a agorafobia uma complicação. Como foi postulado por Klein16, o TP começa com um ataque de pânico inicial, que é seguido pelo medo de ter novos ataques (ansiedade antecipatória) e posteriormente pela evitação de situações consideradas desencadeadoras de ataques de pânico pelo indivíduo. A CID-105, ao contrário, classifica a associação de TP e agorafobia entre os transtornos fóbico-ansiosos, desta forma aceitando a visão de que a agorafobia é o elemento central do TP. Estudos fenomenológicos do Transtorno de Pânico Embora os ataques de pânico tenham uma importância central no TP, o conhecimento deles é limitado e baseado em dados retrospectivos, cuja fidedignidade é incerta. Poucos estudos fenomenológicos sobre TP têm sido realizados, a maioria em ambiente natural, não controlado. Shiori e col.17 entrevistaram 247 pacientes com TP, avaliando os sintomas que aconteceram durante o ataque de pânico mais recente dos pacientes. Os sintomas mais encontrados foram palpitação, dispneia, tonturas e sensação de desmaio. Margraf e col.18, num estudo com 27 pacientes com TP, constataram que os sintomas mais frequentemente descritos foram palpitação, tontura, dispneia, náusea, sudorese e dor ou desconforto no peito. De Beurs e col.19, avaliando 1276 ataques de pânico registrados por 94 pacientes com TP, verificaram que os sintomas mais frequentes foram palpitação (78%), tontura (75%), sudorese (66%), dificuldade de respirar (65%) e tremores (65%). De acordo com o DSM-IV-TR4, no TP há presença de sintomas respiratórios como dispneia, sensação de falta de ar e sufocação. Para Briggs e col.20, os sintomas físicos de ataque de pânico nos pacientes podem ser semelhantes, e uma diferença apropriada, baseada em sintomas, é a presença ou ausência de sintomas respiratórios. Valença e col.21, em estudo fenomenológico de ataques de pânico em laboratório, utilizando o teste de indução de ataques de pânico com CO2 a 35% (agente panicogênico) em uma amostra com 31 pacientes com TP, encontraram que os sintomas respiratórios como dificuldade de respirar e sensação de sufocação/ asfixia, foram os mais frequentes sintomas de ataque de pânico apresentados após a inalação de CO2. Biber e Alkin22, em estudo com metodologia semelhante, utilizaram o teste de indução de ataques de pânico com CO2 a 35% em 51 pacientes com TP. Estes foram divididos em dois subtipos: um “respiratório” (n=28), que apresentava sintomas respiratórios proeminentes, e outro “não respiratório”. Foi verificado que 22(79%) dos 28 pacientes do subtipo “respiratório” e 11(48%) dos 23 pacientes do subtipo “não respiratório” apresentaram ataques de pânico após inalação de CO2 a 35% (diferença estatisticamente significativa). É levantada a hipótese de que indivíduos com subtipo “respiratório” de TP seriam mais sensíveis ao teste de indução de ataques de pânico com CO2. Bandelow e col.23 encontraram que um grupo de pacientes com TP com sintomas cardiorespiratórios (medo de morrer, dor no peito, dispneia, parestesias e sensação de sufocação) tinham menos ataques de pânico situacionais e mais ataques de pânico espontâneos. Biber e Alkin22 apontam para o fato de que, de forma geral, aqueles pacientes com sintomas respiratórios proeminentes têm mais ataques de pânico espontâneos e noturnos; história de experiência traumática passada de sufocação; passado de doenças respiratórias; história de tabagismo pesado; maior duração do TP; e melhor resposta ao tratamento com antidepressivos tricíclicos. De acordo com Freire e Nardi24, estudos indicam que os pacientes com TP que apresentam sintomas respiratórios dominantes são particularmente sensíveis a testes respiratórios, comparados àqueles que não manifestam sintomas respiratórios dominantes, representando um subtipo distinto. O estudo fenomenológico do TP é importante por poder identificar subtipos de TP, com curso, evolução e gravidade diversos, bem como respostas terapêuticas distintas. O maior estudo desse tema certamente poderá contribuir para elucidação de intervenções terapêuticas mais específicas para diferentes apresentações clínicas do TP. Correspondência: R. Conde de Bonfim, 232, sala 511- Tijuca Rio de Janeiro CEP 20520-054 Email: [email protected] Não há conflitos de interesse Não houve fontes de financiamento. Jul/Ago 2013 - revista debates em psiquiatria 9 ARTIGO DE REVISÃO por ALEXANDRE MARTINS VALENÇA 1 Referências • • • • • • • • • • • • • • 10 1.American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistic Manual of Mental disorders.3rd edition. Washington, DC, 1980. 2. American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistic Manual of Mental disorders.3rd edition-revised. Washington, DC, 1987. 3. American Psychiatric Association. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. DSM-IVquarta edição. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. 4. American Psychiatric Association. DSM-IV-TR: manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. 4a Ed. Porto Alegre: Editora Artmed; 2002. 5. Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992. 6. Faravelli C, Paionni A. Panic disorder: clinical course, morbidity and comorbidity. In: Anxiety Disorders: An Introduction to Clinical Management and Research. Eric JL Griez, Carlo Faravelli , David Nutt , Joseph Zohar . New York: John Wiley & Sons, Ltd, pp 53-79, 2001. 7. Gorman JM, Liebowitz MR, Fyer AJ, Stein J. A neuroanatomical hypothesis for panic disorder. Am J Psychiatry 1989; 146 (2): 148-161. 8. Ballenger JC. Panic disorder in the medical setting. J Clin Psychiatry 1997; 58(suppl 2): 13-17. 9. Katon W. Panic disorder and somatization. Am J Medicine 1984; 77: 101-106. 10. American Psychiatric Association. Practice guideline for the treatment of patients with panic disorder. Washington, DC, 1998. 11. Mellman TA, Udhe TW. Electroencephalographic sleep in panic disorder. Arch Gen Psychiatry 1989; 46: 178-184. 12. Klein DF, Gorman JM. A model of panic and agoraphobia development. Acta Psychiatr Scand 1987; 76 (335 suppl): 87-95. 13. Andrews G, Slade T. Agoraphobia without a history of panic disorder may be part of the panic disorder syndrome. J Nerv Ment Dis 2002; 190: 624-630. 14. Klein DF. Anxiety reconceptualised. In: Klein DF, Raskin J. Anxiety: New Research and changing con- revista debates em psiquiatria - Jul/Ago 2013 • • • • • • • • • • cepts. New York: Raven Press, 1981. 15. Noyes R, Crowe RR, Harris EL, et al. Relationship between panic disorder and agoraphobia: a family study. Arch Gen Psychiatry 1986; 43: 227-232. 16. Klein DF, Klein HM. The status of panic disorder. Current Opinion in Psychiatry 1988; 1: 177-183. 17. Shioiri T, Someya T, Murashita J, Takahashi S. The symptom structure of panic disorder: a trial using factor and cluster analysis. Acta Psychiatr Scand 1996; 93: 80-86. 18. Margraf J, Taylor B, Ehlers A, Roth WT, Agras WS. Panic attacks in the natural environment. J Nerv Mental Disease 1987; 175: 558-565. 19. De Beurs E, Garsses B, Buikhuisen M, Lange A, Van Balkom A, Dyck R. Continuous monitoring of panic. Acta Psychiatr Scand 1994; 90: 38-45. 20. Briggs AC, Stretch DD, Brandon S. Subtyping of panic disorder by symptom profile. Brit J Psychiatry 1993; 163:201-209. 21. Valença AM, Nardi AE, Nascimento I, Mezzasalma MA, Lopes FL, Zin WA. Ataques de pânico provocados pelo dióxido de carbono: estudo clínico-fenomenológico. Rev Bras Psiquiatr 2001; 23 (1): 15-20. 22.Biber B, Alkin T. Panic disorder subtypes: differential responses to CO2 challenge. Am J Psychiatry 1999; 15 6(5): 739-744. 23. Bandelow B, Amering M, Benkert O, et al. Cardio-respiratory and other symptom clusters in panic disorder. Anxiety 1996; 2: 99-101. 24. Freire RC, Nardi AE. Panic disorder and the respiratory system: clinical subtype and challenge tests. Rev Bras Psiquiatr. 2012; 34(Supl1):S32-S52. ARTIGO DE REVISÃO por LUIZ CARLOS MABILDE 1 TRATAMENTO COMBINADO: PSICOFARMACOLOGIA E PSICOTERAPIA COMBINED TREATMENT: PSYCHOPHARMACOLOGY AND PSYCHOTHERAPY Resumo De uma posição conflitante em direção a uma posição de maior integração, a psicoterapia combinada com a terapêutica medicamentosa vem obtendo mais psiquiatras praticantes. Eles têm caracterizado sua prática clínica por uma abordagem não dicotômica entre a Psiquiatria Biológica e a Psiquiatria Psicodinâmica. O objetivo deste trabalho é revisar a evolução de aspectos psicodinâmicos e psicofarmacológicos envolvidos no tratamento combinado. Na segunda parte, é apresentar um modelo psiquiátrico terapêutico integrativo. A origem remonta a história de cada uma dessas vertentes, sendo o resultado consequência da capacidade do psiquiatra. Ele deve integrar diagnóstico clínico com diagnóstico estrutural, bem como usar técnicas distintas. Para melhor entender como o modelo funciona, o autor incluiu duas ilustrações clínicas. Palavras chaves: Tratamento Combinado, Psicofarmacologia, Psicoterapia. Summary From a position of conflict to a position of greater integration, psychotherapy combined with medication is attracting more psychiatric practitioners. Their clinical practice has been characterized by a non- dichotomous approach using both psychodynamic and biological psychiatry. The objective of this paper is to review psychodynamic and psychopharmalogical evolution when involved in a combined treatment programme. The second part of this paper presents an integrated therapeutic psychiatric model. The history of both these two approaches goes back to their origins with subsequent consequences in psychiatric capacity and skills. The psychiatric practitioner should integrate a clinical diagnosis with a structural diagnosis as well as using distinct techniques. 14 revista debates em psiquiatria - Jul/Ago 2013 To better understand how this model functions the author has included two clinical illustrations. Keywords: Combined Treatment, Psychopharmacology, Psychotherapy. INTRODUÇÃO O presente trabalho teve origem em uma mesa redonda sobre o tratamento dos transtornos ansiosos, realizada no XVI Congresso Brasileiro de Psiquiatria, em 1997. Naquela ocasião, foram apresentadas duas abordagens distintas do transtorno ansioso, quais sejam a vertente psicodinâmica e a farmacológica. Posteriormente, essa exposição conjunta foi publicada na Revista de Psiquiatria RS. Nas duas oportunidades, os autores¹ salientaram que tais modalidades terapêuticas psiquiátricas eram frequentemente vistas como antagônicas, isto é, uma prevalecendo sobre a outra. Este enfoque dicotômico pode ser explicado de diferentes formas. Por exemplo, quanto aos objetivos manifestos do tratamento, o farmacológico visa a redução dos sintomas e o psicodinâmico a origem dos sintomas; portanto o primeiro busca o alívio sintomático e o segundo o desenvolvimento pessoal do paciente. Por outro lado, o tratamento medicamentoso é pautado pelo diagnóstico clínico. No psicodinâmico, além da constelação clínica, interessa muito o diagnóstico caracteriológico, em termos dinâmicos (como o paciente funciona). Segundo o CID -10² são seis os principais transtornos de ansiedade: fobias específicas, fobia social, transtorno do pânico, ansiedade generalizada, transtorno obsessivo-compulsivo, reação a estresse grave e transtorno misto de ansiedade e depressão. Nas décadas de 60 e 70, a ansiedade era tratada como uma dimensão, ou seja, a ansiedade leve era tratada com tranquilizantes menores ou benzodiazepínicos e a ansiedade grave ou psicótica era tratada com antipsicóticos. A partir dos anos 80, o enfoque passou a ser mais LUIZ CARLOS MABILDE1 Psiquiatra. Professor/Supervisor Convidado dos Cursos de Especialização em Psiquiatria, Psicoterapia e de Supervisão do CELG/UFRGS; Psicanalista Didata e Professor do Instituto de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA). categórico. Conforme a categoria diagnóstica instituía-se o tratamento. A importância das categorias ficou evidente quando estudos demonstraram que o tratamento da ansiedade; no transtorno do pânico, por exemplo, era diferente do tratamento da ansiedade no transtorno obsessivo-compulsivo. As teorias biológicas, relativas aos transtornos de ansiedade, desenvolveram-se a partir de estudos pré-clínicos: 1) Com modelos de animais; 2) Pacientes e determinação de fatores biológicos; 3) Aumento do conhecimento na área das neurociências; 4) Ação dos medicamentos. Tem sequência no trabalho ‘A integração da psicofarmacoterapia e psicoterapia de orientação analítica’, no qual os autores³ destacaram o que se segue abaixo: Freud, inicialmente, um neuropatologista, desenvolveu no final do século XIX – um método de tratamento psíquico, que revolucionou o entendimento da mente humana e que denominou de Psicanálise. Mesmo sem ter uma base neurofisiológica para os transtornos mentais, Freud4 já aludia – na obra ‘Sobre o narcisismo: uma introdução’ – a uma provável integração biopsíquica ao declarar: “Nós devemos recordar que todas nossas ideias provisórias da psicanálise serão, presumivelmente, um dia baseadas em uma subestrutura orgânica!”. Durante a primeira metade do século XX, houve um grande avanço no estudo da teoria psicanalítica, sendo esta terapia a predominante na época. Entretanto, contrariando as próprias ideias de Freud, a pesquisa do somato (cérebro, corpo orgânico) desenvolveu-se dentro da Psiquiatria, dissociada da Psicanálise (mente, psique). Neste período, alguns psiquiatras tentaram integrar as teorias cérebro/mente, em especial Adolf Meyer5, pioneiro do modelo ‘biopsicossocial’, que defendia o estudo do paciente ‘como um todo’. Na década de 50, surgiram os primeiros medicamentos psicotrópicos e, nas décadas seguintes, ao mesmo tempo em que as drogas entravam na prática ambulatorial (até então domínio dos psicanalistas), também aumentava a polarização entre Psiquiatria biológica e Psiquiatria dinâmica. Com o avanço das diretrizes diagnósticas e da metodologia das pesquisas, a medicina cada vez mais passou a ser baseada em evidências, território no qual os estudos com psicofármacos muito se desenvolveram, o que não ocorreu com a Psicanálise e com a Psicoterapia de orientação analítica. De fato, as diversas razões pelas quais se advoga uma linha de tratamento ou outra (posição reducionista) são baseadas primariamente em argumentos teóricos e ideológicos e não em dados empíricos. Durante muitos anos, os psicanalistas entendiam as neuroses como exclusivamente psicológicas, considerando os tratamentos biológicos como inapropriados ou indesejados, pois suprimiriam apenas os sintomas, paliativamente, e, portanto, obs- truiriam a exploração do problema real. Desta forma, a medicação agiria não a serviço da cura, mas a favor da resistência. Especialistas em farmacoterapia, por sua vez, afirmavam que a psicoterapia era desnecessária ou até mesmo danosa, pois mantinha os pacientes preocupados com assuntos carregados de conflitos insalubres. Hoffman6 sustentou a necessidade de um modelo unitário de tratamento, uma vez que os transtornos mentais ocorriam permanentemente sob uma matriz psicológica e biológica. Revisando o uso adjuvante da medicação na psicoterapia, Marmor7 e Karasu8 concluíram que as medicações eram mais úteis no alívio dos sintomas em curto prazo, permitindo que o paciente se tornasse mais acessível à exploração psicoterapêutica. Bellak e cols.9 salientaram que, para algumas formas de psicoterapia e mesmo para algumas formas modificadas de psicanálise, as medicações faziam o papel dos anestésicos na cirurgia: eles representam as condições que permitem a intervenção. Karasu8 concluiu, ainda, que cada modalidade teria diferentes ações e agiria em diferentes tempos durante o tratamento. As drogas teriam sua maior eficácia na formação dos sintomas e nas alterações afetivas, e fariam efeito mais precocemente, enquanto a psicoterapia influenciaria mais diretamente nas relações interpessoais e no ajustamento social, com efeito, mais tardio e mais prolongado. Marcus10, em seu estudo sobre o tratamento combinado em transtornos de personalidade e depressões, argumentou que os antidepressivos melhoram dramaticamente a rapidez e eficácia da psicoterapia, atuando em funções autônomas do ego, como a regulação e a modulação do afeto. Referiu, ainda, que essas melhoras das funções do ego poderiam fazer a diferença entre uma relação terapêutica negativa, que poderia destruir a psicoterapia, além de modificar a transferência de um nível quase psicótico para níveis neuróticos de organização e intensidade. Donavan e Roose11 realizaram interessante estudo sobre integração terapêutica, no qual, de início, enviaram a todos os analistas didatas do Centro de Treinamento e Pesquisa Psicanalítica de Colúmbia, EUA, a seguinte pergunta: “Quantos pacientes tomaram medicação durante o curso de seu tratamento psicanalítico?”. Demonstrou que 62% deles tinham pacientes em uso de psicotrópicos nos últimos cinco anos, o que correspondia a 20% do total dos pacientes tratados; e, para a grande maioria dos pacientes, os analistas julgaram efetiva a ajuda da medicação, inclusive para o processo analítico. Mais recentemente, Guimón e cols.12 conduziram uma pesquisa avaliando os métodos de tratamento dos psiquiatras suíços e evidenciaram que o uso associado da medicação e psicoterapia era conduzido por 91,9% dos psicanalistas e 95,8% dos psicoterapeutas. Jul/Ago 2013 - revista debates em psiquiatria 15 ARTIGO DE REVISÃO por LUIZ CARLOS MABILDE 1 MODELO PSIQUIÁTRICO TERAPÊUTICO INTEGRATIVO Este modelo é composto por três itens básicos: 1) Questões técnicas iniciais; 2) Formulação de um diagnóstico integrado; 3) Utilização de técnicas distintas; 1) Questões técnicas iniciais. Os tratamentos medicamentosos e psicoterápicos podem ser utilizados sob a forma de tratamento combinado ou em co-terapia. No primeiro, o mesmo Psiquiatra conduz ambas as modalidades, no mesmo paciente. Na co-terapia (split treatment, na literatura internacional), o paciente consulta dois profissionais, um para a psicoterapia e outro para a medicação. Esta é, naturalmente, uma decisão que depende, por um lado, de cada psiquiatra, segun- 16 revista debates em psiquiatria - Jul/Ago 2013 do sua preferência ou domínio dos dois tipos de tratamentos. Por outro lado, depende do paciente, de acordo com sua preferência ou tipo de patologia. Para Busch e Gould13, o triângulo terapêutico (paciente, psicoterapeuta e psicofarmacologista) pode ser altamente recompensador para todas as partes, conquanto possa também promover um campo fértil para o desenvolvimento de transferências negativas e respostas contratransferenciais de ambos profissionais. De fato, segundo Bradley, o encaminhamento pode ser em parte um enactment contratransferencial para lidar com um impasse na psicoterapia. Nesta fase, sentimentos transferenciais negativos em relação ao psicoterapeuta podem resultar em uma dissociação, em que o psicofarmacologista, pela sua posição mais ativa e diretiva, somada ao alívio dos sintomas pelo fármaco, torna-se o objeto bom e idealizado. Portanto, o papel de cada terapeuta deve ser claramente definido desde o início. São também importantes as discussões periódicas, em especial no início do tratamento, para que os profissionais não atuem a favor da dissociação do paciente. Greene14 publicou um caso de análise em que praticara a terapia combinada e concluiu que existem casos em que é crucial que o analista prescreva a medicação, pois nesta modalidade pode ocorrer um ‘re-enactment’ transferencial específico, mais importante do que a medicação per se. Nos casos em que o mesmo terapeuta conduz a psicoterapia e o tratamento farmacológico, a via comum destas forças é a transferência. Assim sendo, tanto a ação farmacológica pode modificar a transferência, assim como a transferência pode modular a experiência subjetiva da ação do medicamento. Outro ângulo técnico importante, durante a terapia combinada, é a diferença da ‘distância ótima’ entre terapeuta e a experiência emocional do paciente. Na prática psicoterápica – como é sabido – o terapeuta mantém uma proximidade maior com a vida emocional do paciente do que ocorre na psicofarmacoterapia. Nesse sentido, na terapia combinada, Hamilton e cols.15 sugeriram que o terapeuta inicie a sessão com uma posição mais distante, com o objetivo de revisar as doses, sintomas, efeitos colaterais, etc. e vá se aproximando no decorrer da sessão. Outro aspecto técnico diz respeito ao fato de que os programas de residência em Psiquiatria raramente ensinam sobre o tratamento combinado. A supervisão dos residentes, em geral, é dividida (dissociada) nas duas partes do tratamento. Como consequência, é comum encontrar residentes preocupados (culpados) por implantarem o tratamento combinado, pois ‘estariam’ se desviando do procedimento ortodoxo. Segundo Lipowski16, os residentes devem ser ensinados sobre avaliação diagnóstica multifatorial, bem como sobre as diversas modalidades terapêuticas. De qualquer forma, é possível que a realidade do ensino reflita não só a prática usual e atual, assim como a realidade no campo das pesquisas. Kandel17 argumentou que, embora a Psicanálise tenha sido científica em seus objetivos, não foram assim seus métodos. Isto é, não foram desenvolvidos instrumentos de pesquisa capazes de testar as hipóteses geradas. Drob18 destaca, a propósito, a teoria da comensurabilidade e a teoria do relativismo (incomensurabilidade). Teóricos da primeira delas defendem que deveria ser provado qual das teorias psiquiátricas seria a mais adequada, tendo por base determinado critério de validade, o que se aproximaria muito da chamada Medicina baseada em evidências. Já os teóricos do relativismo acreditam que, em nenhum momento, qualquer critério de validade deve ser aceito, pois cada teoria depende das hipóteses iniciais sobre a natureza do homem, hipóteses que não estão disponíveis para serem testadas empiricamente. Dessa forma, as hipóteses fundamentais da Psiquiatria seriam incomparáveis e incomensuráveis. Lipowski16 – frente ao problema – defende um reducionismo metodológico como estratégia. Ou seja, o pesquisador elegeria pesquisar as variáveis de apenas uma das classes, biológica ou psicológica, na tentativa de estudar a contribuição de cada classe. Mais recentemente, com o surgimento da Neuropsicanálise, estudos estão sendo conduzidos com o objetivo de integrar psicanálise e neurobiologia. Fonagy e cols.19 estudaram os resultados dos tratamentos psicanalíticos e concluíram que: 1) Não há um estudo que demonstre a eficácia da psicanálise em relação a um placebo ativo ou a um método alternativo de tratamento; 2) Entre as limitações metodológicas, encontraram o viés de seleção da amostra e a falta de diagnósticos padronizados, de grupo-controle, de indicação aleatória (randomização) e de uma avaliação independente de resultados; 3) muitos dos estudos em andamento são metodologicamente mais modernos. 2) Formulação de um Diagnóstico Integrado / Utilização de Técnicas Distintas No modelo integrado – como era de se prever – o estabelecimento do diagnóstico não seguirá uma ordem prévia, do tipo primeiro o clínico, depois o estrutural. Seguirá, sim, a um plano dinâmico de escuta e de observação dos dados clínicos e do funcionamento do paciente, que lembra muito o modelo psicanalítico. Isto é, de início, valem muito os dados transferenciais e das associações livres do paciente, além dos clínicos. De parte do terapeuta, a valorização da atenção flutuante e das reações contratransferenciais. Essa atitude receptiva e neutra do terapeuta permite que o mesmo vá construindo, mentalmente, uma hipótese (s) diagnóstica (s), a qual não imporá precedência de um tipo de diagnóstico sobre o outro. Tampouco implicará a necessidade de a hipótese diagnóstica preceder a investigação, a compreensão e mesmo qualquer ideia terapêutica do caso. Por diagnóstico estrutural pretendo caracterizar, nas palavras de Bergeret20, o “modo de funcionar das infraestruturas latentes, tanto no estado normal quanto nas evoluções mórbidas dessas estruturas de base da personalidade”. Por conseguinte, “sua classificação não repousa sobre supercategorias manifestas e sua metodologia visa ligações, associações e investimentos que regem os processos de escoamento, representação e satisfação pulsional”. O conjunto de quatro elementos organiza essa visão estrutural de cada paciente: 1) Estrutura de base da personalidade; 2) Caracteres; 3) Traços; 4) Sintomas. Dois extratos clínicos, a seguir, procuram ilustrar tal modelo: Jul/Ago 2013 - revista debates em psiquiatria 17 ARTIGO DE REVISÃO por LUIZ CARLOS MABILDE 1 A Senhora A, de 62 anos, profissional liberal de sucesso, divorciada há muitos anos, uma filha solteira, de 33 anos, mesma profissão da mãe, comparece ao consultório, seguindo indicação do Psiquiatra da sua filha. Ao olhá-la, tão logo abri a porta, pude sentir e observar o grande sofrimento que carregava. Suas roupas eram muito escuras, tinha os olhos congestionados, a face encovada e parecia ser bem mais velha do que sua idade real. Entrou, sentou, deu rápidas olhadelas em volta, fixou-se em mim e, esforçando-se para articular o pensamento, disse ser muito bom o fato de que não me conhecia pessoalmente. Isto era um alívio, já que conhecia muita gente, inclusive Psiquiatras. Já se tratara com três. Veio à consulta obrigada por sua filha e seu irmão, pois já desistira de se tratar outra vez. A pressão dos familiares era relativa ao seu estado depressivo cada vez pior. Sofria, igualmente, de ansiedade crônica, intensa, a ponto de tremer de tal forma que era inevitável pensar em quadro neurológico. Tomava uma porção de remédios e não melhorava. Não queria voltar a tratamento, pois não conseguira nada com seus três psiquiatras anteriores, em longos tratamentos. Com um deles, tornou-se amiga. Com outro também teve que romper, devido os repetitivos atrasos dele. E com o terceiro, desentendeu-se por questões financeiras. Indagada sobre perdas em sua vida, irrompeu em pesado choro, ao relatar a morte de seu pai ocorrida há dois anos, e o quanto o amara. Quanto mais elogiava o pai (“bonito, elegante, educado, culto...”) mais literalmente se desmanchava em compulsivo e desesperado choro. Já aqui, eu ‘filtrava’ suas informações, aliás, preciosas para um diagnóstico futuro e integrado. Refiro-me a detalhes relativos aos traços de caráter: 1) Ela era carente, mas parecia também sedutora, a ponto de transformar seu anterior Psiquiatra em amigo (traço histérico); 2) Amara o homem mais formidável do mundo, bonito, dotado! (traço narcisista); 3) Não parecia ser somente exigente, mas padecer de orgulho extremado, revelado ao não ‘perdoar’ seu atrasado Psiquiatra (traço paranóide); 4) Via-se como desprendida, mas interromper com o Psiquiatra por dinheiro fez-me supor traço oral/anal regressivo e impositivo ao self (traço melancólico). A senhora A – imaginei! - sofria de melancolia, causada pelo luto patológico (do pai) e, vi depois, sentimentos de abandono relacionados à filha. Outras perdas poderiam ter ocorrido, assim como era possível doença afetiva familiar e transtorno de personalidade (Narcisista? Paranóide?). Do ponto de vista relacional, parecia carente, exigente e impulsiva. Não houve tempo (e nem achei indicado), nas primeiras sessões, interrompê-la para saber de sua medicação. Mas, frente à intensidade de seus sintomas e a inclusão de ideias supervaloriza- 18 revista debates em psiquiatria - Jul/Ago 2013 das de suicídio (imaginava atirar-se do alto de sua cobertura) em seus relatos, assim procedi. Alterei as doses de Clonazepam e de Topiramato, substitui Escitalopram por Venlafaxina e retirei Metilfenidato. Aumentei, gradativamente, as doses dos medicamentos; diminui, depois, a de um deles (Clonazepam) até encontrar a composição ideal, dada pelo duo eficácia máxima/ efeito colateral mínimo. Procurei, também, estabelecer um ponto de equilíbrio entre a resposta medicamentosa e a resposta psicoterápica, já que a paciente demonstrava responder a ambas. Em razão disso, embora de forma muito lenta, sua sintomatologia decresceu e foi sendo possível estabelecer conexões entre fatos de sua vida e suas reações emocionais. A senhora A completou um ano e três meses de tratamento, em outubro de 2012. No início do tratamento, digamos os três primeiros meses, foi muito importante desenvolver um diagnóstico integrado, pois, graças a ele, pude implantar, gradativamente, o tratamento combinado, que me pareceu ideal e que segue até hoje: três sessões semanais de psicoterapia mais o esquema medicamentoso, descrito acima. Esse diagnóstico integrado foi feito à medida que as entrevistas de avaliação e tratamento foram se sucedendo. Não houve uma ordem preestabelecida. Tanto chamou minha atenção sintomas produtivos agudos (intensa depressão e ansiedade), assim como uma constante autorreferência. Por exemplo, a senhora A falava tanto de si, de seu sofrimento, que não sobrava nada para os seus objetos, embora aludisse sofrer por eles. Tais dados (clínicos, dinâmicos) fizeram com que eu supusesse uma depressão do tipo melancólica, dentro de transtorno de personalidade prévio (Narcisista?). Quer dizer, era como se seus objetos (perdidos) pertencessem a ela, daí a sua ambivalência em relação a eles: por ‘abandoná-la’, eles não eram libertados e nem perdoados, sendo atacados nela mesmos. Seu luto, em razão disso, prolongava-se, cronificava-se, tornava-se patológico. Nas sessões, tratou de seu luto patológico e acrescentou outras importantes perdas, mais recentes, tais como grande perda financeira, assaltos, doença da sua mãe e o fato da sua única sua filha deixar de morar com ela, após 35 anos de convivência simbiótica. É claro que essas últimas perdas (em especial, a última) reacentuaram o luto com o pai. Figuras idealizadas, este pai e esta filha funcionavam como verdadeiros ‘self-objetos’ 21, sem os quais não queria mais viver. A Senhora B, de 51 anos, dona de casa, um filho, veio à consulta pressionada por seus persistentes sintomas de ansiedade, tremores e insônia (não referiu depressão). Acreditava ser a causa deles as dificuldades sexuais com seu segundo marido. Em síntese, queixava- -se da disfunção sexual dele, embora cinco anos mais moço do que ela. Geralmente, ele perdia a ereção ao penetrá-la. Não era assim ao se conhecerem, dez anos atrás, quando ela se encontrava recém-divorciada de um homem rico e maníaco-depressivo, mas com quem sempre tivera vida sexual gratificante. Já seu marido atual parecia tímido, depressivo, retraído e mal sucedido financeiramente. Costumava, ao chegar à casa do trabalho, ingerir algumas doses de wiskhy, jantar e dormir, sem maiores interações com a paciente, incluindo qualquer aproximação sexual. O único filho da paciente, de 24 anos, não morava com ela, pois havia preferido residir na casa de seu pai, por ocasião do divórcio (solicitado por ela). Este era igualmente motivo de muita tristeza para ela, apesar dos anos transcorridos. Outra razão de tristeza era a morte de seu pai, ocorrida recentemente. Pai idealizado, como homem e como médico, “que fora sempre bravo e incansável na tarefa de sustentar sete pessoas, educar os filhos e encaminhá-los para a vida”. Relatou, ainda, o péssimo relacionamento com sua mãe, de quem se queixava amargamente por considerá-la inadequada como mãe. Chamou a minha atenção, o fato da paciente não se queixar de depressão, pois era visível tal sintoma. Talvez este fato fosse justificado por certa hipomania. Perguntada sobre sua vida pregressa e família de origem, destacou os seguintes aspectos: 1) Cresceu entre os irmãos homens e era a mais moça deles. Como tal, seguia seus passos e brincadeiras (masculinas). 2) Achava, inclusive, que não se tornou “sapatão” porque teve uma tia que cuidava (‘dos aspectos femininos’) dela, pois sua mãe simplesmente estava sempre envolvida com o marido e seus irmãos. 3) Apesar de seus medos de menina, “seguiu em frente”. Não foi boa estudante e nem teve incentivo para profissão futura. 4) Assim que apareceu o “pretendente rico”, tratou de casar, incentivada pela família. 5) Considerava seu pai uma pessoa muito ansiosa, ora deprimido, ora eufórico. Quanto a sua mãe, via-a como deprimida. 6) Tivera dois tratamentos prévios: O primeiro – levada pela mãe – quando da sua puberdade, por ansiedade e dificuldades escolares. O segundo, por ocasião de seu divórcio. De início, a senhora B me pareceu apresentar quadro neurótico, ansioso-depressivo e com sintomas produtivos dessa linha: ansiedade, insônia, tremores, apreensão, depressão. Deixei para esclarecer melhor, no correr do tratamento, questões tais como doença afetiva familiar, fobia infantil e traços predominantes de caráter. No plano psicodinâmico, era digno de nota, relacionar seu estado atual com o luto pela morte de seu pai. Tal objeto estaria deslocado para o seu marido ‘morto’ (impotente). Porém, a questão da vida sexual insatisfatória da paciente era prioridade, cujo responsável era o marido! Quanto à paciente, ela se achava menos comprometida do que ele. Afinal, ao contrário do mesmo, dizia-se (e se mostrava) disposta ao encontro sexual, trabalhava com afinco e sucesso em seu negócio de vendas de roupas femininas. Tinha boa aparência, era sociável e alegre entre as inúmeras amigas, com as quais convivia diariamente, na caminhada matinal, chá da tarde e alguns jantares de casais, aos fins de semana. Já o marido era visto como fracassado em sua atividade de economista e consultor de empresas. Em realidade, a paciente parecia identificada com seu pai’ vivo’ e (potente), que teve cinco filhos e sucesso profissional como médico. Já o marido abrigava desvantagens: parecia identificado com o pai dele, homem calado, doente e dominado pela mulher. Ocupamo-nos (duas vezes por semana) com o problema que a trouxe ao tratamento. E, de fato, foi ficando claro para mim que seu marido sofria de uma disfunção sexual. Porém, ao mesmo tempo, percebi que a senhora B sofria de antigos (e atualizados) problemas, dos quais não tinha consciência. Costumava usar ansiolíticos, retirados do marido, e tudo indicava ser uma pessoa ansiosa, independente de sua inquietação com o marido. Era bem possível que esta ansiedade, do tipo fóbico, fosse primitiva. O mesmo se poderia pensar sobre o componente depressivo, que parecia surgir sempre que suas defesas obsessivas e maníacas eram rompidas. Embora sua estrutura de base da personalidade fosse neurótica, provavelmente histérica ou histero-fóbica, vinha tendo dificuldades de se manter equilibrada. O marido da senhora B se tratava há anos em psicoterapia, sem resultados. Um dia - inconformada com este fato – a senhora B foi falar com o Psiquiatra do marido. Saiu de lá ainda mais desapontada, pois ele lhe dissera: “Na nossa idade, a vida sexual é assim mesmo!”. Como assim, na ‘nossa’ idade, irritada, reclama para mim, à senhora B. “Ele deve ter dez anos mais do que eu e mais uns quinze do paciente dele!”. Sequer deu uns remédios para ele. “Mas aí entendi tudo: um não contava tudo e o outro achava que estava tudo bem!” Desse material, entendi que a senhora B não resolvera (em seus tratamentos anteriores) boa parte de seus (não tão simples) problemas. E que seu tratamento e psiquiatra atuais - a menos que se tomassem algumas providências – também teriam como resultados, respectivamente, a nulidade e a ineficiência. Corrigi sua medicação ansiolítica (retirei Bromazepam e introduzi Clonazepam e Paroxetina), a fim de combater seus sintomas o mais rapidamente possível, pois a paciente me procurara no fim do ano, aproximava-se o período das minhas férias e já me eram claros que seu equilíbrio era precário, além do fato de se sentir muito aflita com a aproximação de uma reunião familiar, no verão, para tratarem de Jul/Ago 2013 - revista debates em psiquiatria 19 ARTIGO DE REVISÃO por LUIZ CARLOS MABILDE 1 (sérios) problemas. Minha preocupação não se comprovou exagerada. No final de fevereiro, do litoral de Santa Catarina, ligou-me um dos seus irmãos (médico) para me relatar que a paciente tivera uma ‘crise muito forte’. No início de março, acompanhada de uma empregada doméstica, a senhora B compareceu a consulta (antecipada) em um estado deplorável. Tremia, chorava e mostrava pavor incomum. Constatei ter sido ‘crise de pânico’ o que tivera, em meio à semana de reuniões com todos os seus familiares. Reestruturado o setting e reajustada sua medicação (Paroxetina 20mg: 1comp./café da/manhã; 1comp./almoço; Clonazepam1mg: 1comp. 3 X dia), as sessões da senhora B, dos primeiros meses, foram utilizadas para tranquilizá-la quanto a novas ‘crises de pânico’ (de fato, não as teve mais) e para entendê-la como uma verdadeira falência de toda sua estrutura defensiva. Levou alguns meses para dispensar sua acompanhante (terapêutica) e para retornar ao seu estado pré-mórbido. Passado mais de um ano, diminui sua medicação para doses de manutenção. Por mais dois anos, produziu muito, psicoterapicamente falando. Reviu a relação com sua mãe, reaproximando-se e se tornando a principal auxiliar na doença dela. Aceitou a idealização/identificação com o pai como manobra para fugir dos sentimentos de abandono em relação à mãe (revividos no último verão). Descobriu-se também uma pessoa fóbica, que ‘mal abria as pernas’ no ato sexual, o que colaborava para a má qualidade e desentrosamento sexual com o marido. Este, por sua vez, deixou seu Psiquiatra e começou novo tratamento com outro, além de consultar um Urologista, tendo tido pleno êxito em ambos. Seu filho casou, teve um filho e aproximou-se da paciente, não sem lhe trazer graves problemas para trabalhar e manter sua família. Até os dias atuais, a senhora B toma 1 comp. de Paroxetina/dia, às vezes me liga, raramente me consulta. Sua vida - combinados os fatores terapêuticos e fatos de sua vida acima descritos – “tomou outro rumo, recobrei a saúde, a família e o prazer”. ideológica empregada na sua condução. Este período – não tão distante e nem tão curto – somente cedeu quando dados empíricos da terapêutica psiquiátrica demonstraram o contrário do apregoado. Ao invés de antagônicas, técnicas distintas podiam ser complementares e muito úteis no combate às doenças psíquicas. Neste trabalho, a expressão ‘tratamento combinado’ procura consagrar o modelo unitário em detrimento da posição reducionista, bem como o apresenta sob a forma de ‘modelo psiquiátrico terapêutico integrativo’. Baseado num diagnóstico clínico e estrutural, a abordagem do paciente através de técnicas diferentes é exemplificada por dois extratos clínicos. CONCLUSÕES Houve época de grande incompatibilidade entre Psiquiatras biológicos e Psiquiatras psicodinâmicos, na qual a valorização de um implicava na desvalorização do outro. Acreditava-se, inclusive, que a utilização de predicados teóricos ou técnicos de uma corrente sobre outra trazia prejuízos ao tratamento do paciente. Cada lado aferrava-se a influência originária, Neurologia e Psicanálise, tornando qualquer discussão estéril, dada a matiz nitidamente 20 revista debates em psiquiatria - Jul/Ago 2013 Correspondência Luiz Carlos Mabilde Rua Tobias da Silva, 99/303, 90570-020 Porto Alegre – RS E-mail: [email protected] Não há conflitos de interesse. Não há fontes de financiamento. Referências • • • • • • • • • • • • • 1. Mabilde LC, Kapczinski F, Ribeiro R, Tocchetto A. Considerações sobre o tratamento farmacológico e psicodinâmico dos transtornos de ansiedade. Rev. Psiquiatr. RS. 1999; 21: 41-51. 2. Classificação de transtornos mentais e de comportamento da CID-10. Porto Alegre: Artes Médicas; 1993: 132-149. 3. Frey BN, Mabilde LC, Eizirik CL. A Integração da psicofarmacoterapia e psicoterapia de orientação analítica: uma revisão crítica. Rev. Bras. Psiquiatr. 2004; 26: 118-123. 4. Freud S. (1914). Sobre o narcisismo: uma introdução. 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Este artigo revisa os dados destes estudos e assinala possíveis vieses que podem colocar em dúvida as estimativas aceitas na atualidade. Concluiu-se que, considerando as sérias limitações dos estudos retrospectivos, caso-controle e prospectivos sobre este tema, o potencial teratogênico do lítio não deve ser desprezado e, portanto, é uma medicação que deve ser prescrita com muito critério durante a gravidez. Quando houver a exposição, é aconselhável realizar uma ecocardiografia fetal e neonatal para excluir a possibilidade de anomalias cardíacas. Antipsicóticos e lamotrigina podem ser possíveis alternativas para o tratamento do transtorno bipolar durante a gravidez. Palavras-chave: lítio, gravidez, teratogenicidade Abstract A major concern brought on by bipolar patients of reproductive age is the possibility of the fetus exhibits a congenital malformation secondary to medications. Lithium has been touted in the 1980s as a powerful teratogen. A review of subsequent studies conducted in the 1990s estimated that the risk of cardiac malformations should be between 0.9% to 12.0%. This article reviews the data from these studies and highlights possible biases that may cast doubt on the accepted estimates today. It was concluded that considering the serious limitations of the retrospective, case control and prospective studies about this topic, lithium should not be considered an insignificant teratogen, and hence should be given very carefully in pregnancy. When there is exposure, it is advisable to perform a fetal and neonatal echocardiography to exclude the possibility of cardiac anomalies. Antipsychotics and lamotrigine seem to be possible alternatives for the treatment of bipolar disorder during pregnancy. Keywords: lithium, pregnancy, teratogenesis 24 revista debates em psiquiatria - Jul/Ago 2013 INTRODUÇÃO N ão é infrequente o psiquiatra ser questionado na sua clínica a respeito dos riscos reprodutivos de pacientes com transtornos psíquicos diversos. Perguntas acerca da hereditariedade da doença, dos riscos obstétricos relacionados à mesma e ao tratamento durante a gravidez, e dos potenciais efeitos tóxico para prole a curto e a longo prazo da exposição a medicações durante a gravidez, colocam o médico numa desafiadora tarefa de ponderações e julgamentos difíceis. Uma preocupação importante trazida pelas pacientes em idade reprodutiva é a possibilidade do concepto apresentar alguma malformação congênita. Sabe-se que, na atualidade, cerca de 0,52% da população feminina em idade fértil encontra-se em uso de medicações estabilizadoras do humor ou antipsicóticas para o tratamento do transtorno bipolar1. Os dados relacionados a este transtorno e ao seu tratamento parecem tornar esta situação clínica particularmente complexa. Parece haver uma associação entre algumas malformações congênitas menores e o transtorno bipolar, como palato elevado, língua sulcada e aumento da diferença entre o primeiro e o segundo dedo2. Algumas das medicações mais utilizadas na terapêutica apresentam considerável potencial teratogênico já com especificidades de órgãos descritas na literatura, como o valproato (espinha bífida, malformações cardíacas e de grandes vasos, dígitos, ossos cranianos e cérebro), a carbamazepina (anomalias do trato urinário) e topiramato (hipospadia e malformações cerebrais)3. Ainda que já se tenha passado mais de meio século de aplicação clínica no transtorno bipolar, o lítio continua sendo considerado uma medicação de primeira linha para o tratamento de mania aguda e de manutenção4. Este status foi alcançado em decorrência de sua definida eficácia. Um estudo de Viguera et al. exemplifica este aspecto: dentre as bipolares eutímicas que optam por descontinuar o lítio quando se descobrem grávidas, 52% apresentam AMAURY CANTILINO1, JOEL RENNÓ JR2, HEWDY LOBO RIBEIRO3, JULIANA PIRES CAVALSAN4, RENAN ROCHA5 1 Diretor do Programa de Saúde Mental da Mulher da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor Adjunto do Departamento de Neuropsiquiatria da UFPE. 2 Médico Psiquiatra. Diretor do Programa de Saúde Mental da Mulher (ProMulher) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo. Doutor em Psiquiatria pela FMUSP. Membro fundador da International Association for Women’s Mental Health. Médico do Corpo Clínico do Hospital Israelita Albert Einstein – SP. 3Psiquiatra Forense, Psicogeriatra e Psicoterapeuta pela Associação Brasileira de Psiquiatria. Psiquiatra do ProMulher do Instituto de Psiquiatria da USP. 4Psiquiatra do Programa de Saúde Mental da Mulher (ProMulher) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo. 5 Médico Psiquiatra. Coordenador do Serviço de Saúde Mental da Mulher das Clínicas Integradas da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC). recorrência de episódios em até 40 semanas, percentual consideravelmente maior do que o esperado, caso permanecessem com a medicação (21%)5. Os mais de 50 anos de estudos, no entanto, não foram suficientes para definir claramente o potencial teratogênico do lítio. As informações disponíveis podem levar a interpretações e percepções de risco diversas. Esta revisão objetiva expor os dados a respeito do assunto e fundamentar uma posição interpretativa a respeito dos mesmos. O QUE DIZEM OS ESTUDOS? Os primeiros relatos a respeito da exposição ao lítio nos anos de 1960 apontavam para uma taxa elevada de malformações cardíacas, sobretudo a anomalia de Ebstein. A Anomalia de Ebstein (AE) é um defeito congênito da valva tricúspide e do ventrículo direito em que os anexos dos folhetos da válvula septal e posterior apresentam deslocamento apical. Esta anomalia rara representa menos que 1,5% de todas as cardiopatias congênitas. As estratégias de manejo para a AE correlacionam-se com a idade do paciente e a gravidade da doença cardíaca e/ou anomalias cardíacas associadas. Reparo da valva tricúspide ou substituição da válvula são os procedimentos cirúrgicos adotados geralmente 6. Estes relatos iniciais levaram à fundação do Lithium Baby Register em 19687. Mulheres que utilizaram lítio na gravidez e os médicos que as acompanhavam eram estimulados a relatar voluntariamente os resultados da exposição. Os primeiros resultados já provocaram alerta para prescritores quanto ao risco elevado de malformações cardíacas com sugestão de uma política restritiva sobre o uso do lítio em mulheres em idade fértil e grávidas8. Os dados coletados ao longo dos anos 1970 contavam com 225 casos, dentre estes, 25 recém-nascidos apresentaram malformações, sendo 6 delas a AE e 12 defeitos cardíacos diversos. Além destes 225 casos, foram relatadas 10 mortes pós-natais (na primeira semana) e 7 natimortos. Estas taxas de complicações estavam consideravelmente acima das esperadas, o que levou a recomendação da utilização de lítio na gravidez apenas quando fosse absolutamente necessário9. Obviamente, deve-se considerar o fato de que houve um provável viés de seleção na forma de coletar os dados e que uma parcela significativa de casos de mulheres tratadas com lítio grávidas de crianças sem malformações não foram reportados. No entanto, chama a atenção o fato de que na maioria dos casos relatados as anomalias eram do sistema cardiovascular. Num estudo de Kallen, citado numa revisão de Yacobi & Ornoy, foram pesquisadas todas as crianças com defeitos cardíacos nascidas de 716 mulheres hospitalizadas para tratamento de transtorno bipolar e estes casos foram comparados a dois controles combinados para cada criança malformada. Quatorze defeitos cardíacos foram identificados, duas vezes mais do que a taxa esperada. Uma criança teve uma anomalia cromossômica e, portanto, foi excluída. Entre as 13 restantes, sete tinham defeito do septo ventricular e duas tiveram um sopro sistólico - todas consideradas anomalias relativamente leves. Não houve diferença significativa na taxa de exposição ao lítio entre os lactentes malformados (3/13) e controles (4/20). Assim, o lítio não pôde ser associado com o aumento da taxa de anomalias cardíacas. Uma possível explicação para a falta desta associação foi o fato de que a maioria das mulheres interrompeu o lítio uma vez que a gravidez foi diagnosticada10. Um outro estudo caso-controle, do mesmo autor, também tentou relativizar este risco. Vinte e cinco casos de AE e 44 casos de atresia tricúspide foram coletados. Além destes, 15 casos de AE que foram relatados na França também foram acrescentados. Nenhuma dessas crianças com AE ou com atresia tricúspide haviam sido expostas in útero ao lítio10. Estes, dentre outros estudos com desenhos semelhantes, levaram o eminente pesquisador Lee Cohen e colaboradores a publicar um influente artigo no prestigioso periódico JAMA (The Journal of the American Medical Association). Neste artigo, os autores afirmam que a informação inicial sobre o risco teratogênico do tratamento com lítio foi derivada de relatos retrospectivos tendenciosos, e que dados epidemiológicos mais recentes indicavam que o risco teratogênico da exposição de lítio no primeiro trimestre era menor do que o sugerido anteriormente. Assim, aconselhava que o manejo clínico de mulheres com transtorno bipolar que têm potencial para engravidar deveria ser modificado com esta nova estimativa de risco (em 1994, época da publicação deste artigo, o lítio era intensamente evitado na gravidez). A estimativa de Cohen et al para AE quanto à exposição ao lítio era de 0,1% a 0,05% (o risco basal é de 1:20000 nascidos vivos). O risco de outros defeitos cardiovasculares se situaria entre 0,9%, em estudos prospectivos a 12% em estudos retrospectivos11. O fato é que após este artigo, observa-se uma atitude bem mais benevolente entre os pesquisadores quanto ao potencial risco do lítio nos artigos de revisão sobre o assunto12. Na verdade, a fim de verificar ou refutar a verdadeira correlação entre litioterapia na gravidez e teratogenicidade, estudos prospectivos muito maiores deveriam ser realizados10 . Ademais, 12% de taxa de malformação cardíaca não parece desprezível. Jul/Ago 2013 - revista debates em psiquiatria 25 ARTIGO DE REVISÃO por AMAURY CANTILINO1, JOEL RENNÓ JR2, HEWDY LOBO RIBEIRO3, JULIANA PIRES CAVALSAN4, RENAN ROCHA5, RENATA DEMARQUE6, JERÔNIMO DE ALMEIDA MENDES RIBEIRO7, GISLENE VALADARES8, ANTÔNIO GERALDO DA SILVA9 ALGUMAS OBSERVAÇÕES Uma situação importante pode ter levado a um outro viés nas novas estimativas de risco realizadas por Cohen e colaboradores. Uma vez que nos anos 1980 havia uma percepção de risco exacerbada em relação a sua teratogênese, mulheres expostas ao lítio mais frequentemente podem ter tido ciência de eventuais malformações. Os desfechos dessas gravidezes podem eventualmente ter mudado em decorrência disso. Vejamos os dados abaixo. Num estudo prospectivo, 72 mulheres tratadas com lítio na gravidez foram incluídas. Destas, 6 tiveram interrupção da gravidez, 4 resultaram em abortos espontâneos no primeiro trimestre e 12 foram perdidas no seguimento. Apenas 50 restaram com bebês nascidos vivos, duas delas relataram malformações: uma menin- 26 revista debates em psiquiatria - Jul/Ago 2013 gomielocele lombar e, outra, hérnia inguinal unilateral. A taxa de anomalias não foi diferente do que normalmente é observado em controles. Não houve casos de anomalias cardíacas. É importante frisar que entraram nas estatísticas os nascidos-vivos. Não se sabe o que levou a abortamento (voluntários ou espontâneos) em 14% das gravidezes e o que aconteceu com 17% das mulheres incluídas no estudo13. Em outro estudo prospectivo, controlado, Jacob-Filho et al. estudaram o resultado da gravidez de 138 mulheres expostas ao lítio (que deram origem a 105 nascidos vivos) e 148 controles. Eles observaram um caso de anomalia de Ebstein, mas não conseguiram mostrar qualquer diferença em relação a anomalias congênitas maiores nos nascidos vivos entre os controles e grupo exposto ao lítio (2% x 3%)14. No entanto, uma observação atenta revela que o grupo exposto ao lítio teve 19% de abortamentos (espontâneos RENATA DEMARQUE6, JERÔNIMO DE A. M. RIBEIRO7, GISLENE VALADARES8, ANTÔNIO GERALDO DA SILVA9 6 Psiquiatra do Programa de Saúde Mental da Mulher (ProMulher) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo. 7Médico Psiquiatra. Especialista em Psiquiatria pela Associação Brasileira de Psiquiatria. Pesquisador do Grupo de Psiquiatria – Transtornos Relacionados ao Puerpério, pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). Professor Associado do Centro de Estudos José de Barros Falcão (CEJBF). 8 Médica Psiquiatra pela Associação Brasileira de Psiquiatria. Mestre em Farmacologia e Bioquímica Molecular. Membro fundador do Serviço de Saúde Mental da Mulher do HC-UFMG, do Ambulatório de Acolhimento e Tratamento de Famílias Incestuosas (AMEFI, HC-UFMG), da Seção de Saúde Mental da Mulher da WPA e da International Association of Women’s Mental Health. 9 Psiquiatra. Especialista em Psiquiatria e Psiquiatria Forense pela ABP-AMB-CFM. Doutoramento em Bioética pela Universidade do Porto – CFM. Psiquiatra da Secretaria de Saúde do Distrito Federal – SES-DF. Diretor Científico do PROPSIQ. Presidente da ABP-2010/2013. ou “terapêuticos”) versus 14% no grupo controle. Um estudo prospectivo israelense que incluiu 105 mulheres grávidas expostas ao lítio (86% foram expostas no primeiro trimestre), teve 79 nascidos vivos. Houve uma taxa de 8,7% de interrupções (comparada com 2,9% nos controles) e 14,3% de abortos espontâneos (comparada com 5,9% nos controles)15. Estes dados sugerem que o impacto real do lítio pode ter sido sub-representado, uma vez que muitas mulheres que engravidam durante o tratamento com lítio preferiram abortar os fetos malformados. Vale ressaltar que as estimativas de risco teratogênico eram feitas a partir dos nascidos vivos. Este aspecto já foi apontado por outros pesquisadores16. POSICIONAMENTO É uma lástima que nós, após mais de meio século de pesquisas, ainda não tenhamos uma resposta simples para dar às nossas indagadoras pacientes. Revendo os dados acumulados até hoje a respeito da exposição ao lítio e malformações cardiovasculares, incluindo anomalia de Ebstein, é de se concluir que o risco é menor do que pensado nos anos 1980. No entanto, estudos prospectivos maiores, assim como os realizados com antidepressivos e anticonvulsivantes, serão necessários para que se tenha maior convicção de que a chance é pequena. Metodologias que avaliem as razões dos abortamentos “espontâneos” e “terapêuticos” também devem ser estimuladas. É possível que muitos dos abortamentos “terapêuticos” tenham ocorrido por causa de malformações relacionadas ao lítio. Como os estudos só investigam os nascidos vivos, um dado fundamental sobre o potencial teratogênico está perdido nas pesquisas realizadas até a atualidade. Até que apareçam dados mais robustos apontando o inverso, o lítio deveria ser considerado um teratógeno relevante. Somando-se a isso à possibilidade de toxicidade neonatal (em muito relacionada ao nível sérico), as gravidezes de mulheres tratadas com lítio devem ser consideradas de risco. É aconselhável que se realize uma ultrassonografia fetal por volta da 20a semana de gestação para detecção precoce de eventuais anomalias cardíacas além de ecocardiografia e eletrocardiograma no recém-nascido logo após o parto. O monitoramento frequente da litemia e os cuidados com o status hidroeletrolítico serão fundamentais para que os efeitos tóxicos no concepto sejam minimizados. Diante de casos de transtorno bipolar com episódios brandos ou moderados e em número pequeno no passado, sugere-se ponderar pela suspensão do lítio e eventual retomada após a orga- nogênese. A manutenção do lítio no primeiro trimestre poderia ser considerada em casos graves e com repercussões funcionais importantes, após discussão exaustiva dos potenciais riscos e benefícios do uso da medicação juntamente com a paciente e seus familiares. Há indícios de que a suplementação precoce de folato pode diminuir a chance de anomalias cardíacas relacionadas ao lítio17. Uma pesquisa recomenda que um regime máximo de dosagem do lítio na gravidez com base em um modelo farmacocinético de base fisiológica. O modelo simula a concentração de lítio em órgãos e tecidos de uma mulher grávida e do seu feto. Em primeiro lugar, modelaram-se perfis de concentração de lítio dependentes do tempo resultantes da terapia com lítio conhecida por ter causado defeitos congênitos. Em seguida, foram identificadas concentrações máximas e médias de lítio fetais durante o tratamento. Em seguida, foi desenvolvido um regime de terapia de lítio para maximizar a concentração de lítio no cérebro da matriz, mantendo ao mesmo tempo a concentração fetal baixa o suficiente para reduzir o risco de defeitos congênitos. O regime de dosagem máxima sugerido pelo modelo de lítio foi de 1200 mg por dia, divididos em três tomadas18. Esta sugestão, no entanto, carece de comprovação clínica. Alternativas terapêuticas mais seguras também podem ser consideradas (p.ex., antipsicóticos, lamotrigina). Um estudo liderado por um pesquisador chamado Epstein, aponta que o uso de antipsicóticos atípicos para o tratamento do transtorno bipolar tem aumentado ao longo dos últimos anos, enquanto o inverso vem sendo observado em relação ao lítio 19. Correspondência Amaury Cantilino Av. Domingos Ferreira, 2160. Sala 108. CEP: 51111-020 Boa Viagem. Recife - PE E-mail: [email protected] Fonte de financiamento e conflito de interesse inexistente Jul/Ago 2013 - revista debates em psiquiatria 27 ARTIGO DE REVISÃO por AMAURY CANTILINO1, JOEL RENNÓ JR2, HEWDY LOBO RIBEIRO3, JULIANA PIRES CAVALSAN4, RENAN ROCHA5, RENATA DEMARQUE6, JERÔNIMO DE ALMEIDA MENDES RIBEIRO7, GISLENE VALADARES8, ANTÔNIO GERALDO DA SILVA9 Referências • • • • • • • • • • • 28 1. Barbui C, Conti V, Purgato M, Cipriani A, Fortino I, Rivolta AL, Lora A. Use of antipsychotic drugs and mood stabilizers in women of childbearing age with schizophrenia and bipolar disorder: epidemiological survey. Epidemiol Psychiatr Sci. 2013; 1:1-7. 2. Akabaliev V, Sivkov S, Mantarkov M, Ahmed-Popova F. Minor physical anomalies in patients with bipolar I disorder and normal controls. J Affect Disord. 2011 ;135:193-200. 3. Vajda FJ, O’Brien TJ, Graham J, Lander CM, Eadie MJ. Associations between particular types of fetal malformation and antiepileptic drug exposure in utero. 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Desde então, tem sido descrita em diversos indivíduos com condições médicas gerais2 e se caracteriza por delírio em que o indivíduo acredita ter sua pele invadida por pequenos animais (insetos, larvas, vermes)3. Os pacientes relatam estar infestados por seres “novos para a ciência”, e que não são identificados por evidências médica ou microbiológica4. Mais do que um acometimento isolado, esse delírio de parasitose tem sido considerado uma síndrome neuropsiquiátrica5 e pode estar associado a transtornos psiquiátricos, a doenças sistêmicas, intoxicações exógenas ou a alterações cerebrais diversas6, 7, 8. A apresentação psicopatológica de características delirante-alucinatória é instigante e geradora de discussão em torno das classificações atuais9. Neste relato de caso, observa-se a exigência de propedêutica clínica e neurológica para o estabelecimento de diagnósticos diferenciais10, levando à constatação de que, para o sucesso no manejo clínico, é necessário conhecimento de psicopatologia e da interface entre psiquiatria e outras especialidades médicas. Caso Clínico C.J., 74 anos, casado, cinco filhos. Admitido no início de 2012 no ambulatório de psiquiatria do Hospital de Ensino Instituto Raul Soares (HEIRS/FHEMIG). Relata ter o corpo parasitado, desde 1999, por “bichos parasitas”, que seriam “vermes” de tamanho macroscópico, que se alimentam dos órgãos do paciente: pele, coração. Alojados próximo ao ânus, circulariam pela corrente sanguínea até 32 revista debates em psiquiatria - Jul/Ago 2013 atingirem toda a pele do paciente – local em que se alimentaria e provocaria dores terríveis. Meses anteriores, teria tido uma alucinação auditiva, com conteúdos ameaçadores, provinda de seu ânus, de que os “vermes” surgiriam para lhe fazer mal. Em seguida, ovos teriam começado a aparecer em suas fezes e somente depois a infestação se estabeleceria em todo o corpo. Desde o início da “infestação” ele já teria procurado alívio para seu sofrimento em diversas especialidades médicas. C.J. atribui a existência dos “bichos” a uma “obra do Satanás” para atormentá-lo e destruí-lo. Refere ter o “dom da visão”, e descreve encontros detalhados com Deus e que esse lhe apontaria quais caminhos a seguir na vida e como deveria agir. Conta o que o Pastor de sua Igreja “está a serviço do Satanás”, e que o persegue e envia mensagens para provocá-lo. A esposa há vários anos o maltrataria, tentaria envenená-lo, e por fim, as filhas seriam aliadas à mãe e ao Pastor. Os familiares concordam que desde 1999 havia queixas em relação ao “bicho parasita”, mas eram raras e não apresentavam grandes repercussões no dia a dia. Entretanto, partir de 2002, após um acidente vascular encefálico (AVE), o paciente teria tido importante mudança do comportamento: acentuação das queixas em relação ao delírio de infestação, exacerbação do envolvimento religioso – nesse momento, pela primeira vez a família observa delírio paranoico, e relatos de vivências alucinatórias. Somente em 2005 a família lhe teria convencido a iniciar um tratamento psiquiátrico. À época, apresentava sintomatologia menos exacerbada e teria tido redução parcial dos sintomas, mas em seguida abandonou o tratamento. Desde então C.J. apresentou piora sintomática progressiva, e com as relações familiares cada vez mais desgastadas. No período em que antecedeu ao início do tratamento em nosso serviço, ele estaria agitado, agressivo, persecutório com os vizinhos, ameaçando os pastores da Igreja e dizendo que iria abandonar a família por sofrer maus tratos. Não apresentava indícios de uma síndrome demencial. O paciente nasceu de parto normal sem intercorrências, com desenvolvimento neuropsicomotor adequado. Nunca frequentou RAIMUNDO JORGE MOURÃO1, ROGÉRIO BEATO2 Residente de Psiquiatria do Hospital de Ensino Instituto Raul Soares, HEIRS – FHEMIG. Coordenação do Centro de Estudos Galba Velloso – CEGV. Primeiro lugar nas Sessões de Casos Clínicos do XXX CBP. 2 Preceptor do Hospital de Ensino Instituto Raul Soares, HEIRS – FHEMIG. Professor adjunto de Neurologia do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina – UFMG 1 a escola, por motivo de difícil acesso e pouco estímulo da família. Os filhos contam que o pai sempre foi uma pessoa de difícil convivência, rigoroso na educação deles, exigente, agressivo verbalmente e com violências físicas. Teria como característica a de ser uma pessoa desconfiada, dizia sempre estar sendo explorado, enganado, duvidava da lealdade dos amigos – mesmo antes do surgimento do delírio parasitário. Tinha o hábito de se mudar de cidade e de estados em média a cada dois anos, sempre estabelecendo poucos vínculos sociais, e frequentemente entrando em atritos com vizinhos, empregadores, por motivos diversos e sempre pouco fundamentados segundo a família. Sabidamente, portador desde 2000, de hipertensão arterial sistêmica (HAS) e diabetes mellitus tipo II (DMII). Em 2002, apresentou AVE com prejuízo na articulação da fala e diminuição de força no membro inferior direito. Em 2005 sofreu um infarto agudo do miocárdio (IAM), evoluindo para insuficiência cardíaca leve. Apresenta cegueira parcial, secundária a glaucoma não tratado. Nega uso de tabaco, álcool e qualquer outra substância ilícita. Assim como nega transtornos mentais em outros indivíduos da família. A família relata que C.J. manteve preservada sua autonomia para realizar atividades instrumentais de vida diária. Também não acreditam que tenha havido qualquer déficit mnêmico. Ao exame do estado mental, o paciente apresenta-se vestido de maneira alinhada com semblante tranquilo. Destaca-se o relato de alterações sensoperceptivas, caracterizadas por alucinações táteis, cenestésicas. A temática do discurso gira em torno da vivência do delírio parasitário, demonstrando intenso desconforto, dor, medo. Fica também evidente o delírio paranoico que envolve a família e a igreja, além do delírio místico - religioso associado às alucinações auditivas e visuais. Ao exame físico apresenta disartria e paresia em MID (M4), mas sem outras anormalidades. A avaliação neuropsicológica foi limitada em virtude do comprometimento visual do paciente. Com os resultados, associado à história clínica, pode-se excluir o diagnóstico de demência. Todavia, o diagnóstico de comprometimento cognitivo leve permaneceu inconclusivo. Foram realizados os seguintes exames laboratoriais: hemograma, ionograma, colesterol total e frações, triglicérides, funções tireoidiana, hepática, renal, vitamina B12, VDRL, anti-HIV, hepatites, FAN, parasitológico de fezes, urina rotina – esses apresentaram padrão de normalidade. A glicemia de jejum foi de 170mg/dl. Realizou-se imagem de ressonância magnética (IRM) de encéfalo que, associado à clínica, sugere doença encéfalo-vascular. FIGURA 1 - IRM de corte axial em T2W: alterações de sinal em tálamo e núcleo lentiforme FIGURA 2 - IRM de corte axial em T2W Flair: lesões periventriculares de substância branca FIGURA 3 - IRM de corte sagital em T2 (TSE): lesão pontina Jul/Ago 2013 - revista debates em psiquiatria 33 RELATO DE CASO por RAIMUNDO JORGE MOURÃO , ROGÉRIO 1 BEATO , ALEXANDRE DE AGUIAR FERREIRA3 2 Iniciou-se a terapêutica antipsicótica com haloperidol 2,5mg/ dia considerando: 1) as múltiplas comorbidades clínicas, 2) a baixa condição sócio econômica da família para obter um antipsicótico atípico e urgência de iniciar o tratamento farmacológico, 3) o fato do paciente já ter usado essa medicação. Solicitou-se interconsultas médicas com clínica médica, oftalmologia, neurologia, cardiologia. Após a terceira semana de tratamento, o paciente relatou melhora das alucinações cenestésicas, e familiares relatam menor com­ba­tividade de C. J. contra a esposa e Igreja. Na sexta semana de tratamento, apresenta evolução caracterizada por atenuação do delírio parasitário e melhora no convívio familiar. Nesse momento já se estabelecia boa aliança terapêutica, e pode-se organizar o tratamento clínico com retomada dos cuidados das comorbidades. Contudo, semanas após uma boa resposta ao tratamento psiquiátrico, o paciente apresentou complicações do diabetes, com evolução para acidente vascular encefálico e morte, a despeito de grande esforço clínico. Discussão A partir dos elementos psicopatológicos, ampla propedêutica clínica e neurológica, observa-se um paciente com marcantes características constitutivas de personalidade paranoide e que, posteriormente, iniciou com manifestação de delírio de parasitose e vivência delirante-alucinatória. Exatamente nessa época, algumas comorbidades clínicas foram identificadas, e três anos mais tarde, apresentou AVE. A partir desse período, houve importante agravamento do quadro psiquiátrico, sendo possível o diagnóstico de psicose não orgânica não especificada. Sabe-se que devido à natureza multietiológica do delírio de infestação é necessária terapêutica customizada para cada forma11 e que todos os casos primários e secundários necessitam de tratamento com antipsicótico, exceto quando o tratamento da causa leva a imediata cessação dos sintomas do delírio de parasitose12. Também parece não haver superioridade clínica entre os antipsicóticos12. Formulou-se a hipótese de Síndrome de Ekbom em paciente com doença encéfalo-vascular e múltiplas comorbidades. É importante considerar o delírio de parasitose como oportunidade diagnóstica para comorbidades clínicas e psiquiátricas. FIGURA 4 – Evolução clínica 34 revista debates em psiquiatria - Jul/Ago 2013 ALEXANDRE DE AGUIAR FERREIRA3 Preceptor e coordenador da residência de Psiquiatria do Hospital de Ensino Instituto Raul Soares, HEIRS – FHEMIG. Professor do Departamento de Saúde Mental da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais – FCMMG. 3 Referências • • • • • • • • • • • • 1. Berrios, German E. Alucinações táteis: aspectos conceituais e históricos. Rev Latinoam Psicopatol Fundam. 2011; 14: 542-62 2. Ramirez-Bermudez J, Espinola-Nadurille M, Loza-Taylor N. Delusional parasitosis in neurological patients. Gen Hosp Psychiatry. 2010; 32:294-9. 3. Bourgeois M, Nguyen-lan A. Ekbom’s syndrome and delusion of skin infestation. Review of the literature. Ann Med Psychol. 1986; 144: 321-40 4. Freudenmann RW, Lepping P. Delusional Infestation. Clinical microbiology reviews. 2009; 22: 690–732. 5. Nicolato R, Correa H, Romano-Silva MA, et al: Delusional parasitosis or Ekbom syndrome: a case series. Gen Hosp Psychiatry. 2006; 28:85–87 6. Slaughter JR, Zanol K, Rezwani H, Flax J. Psychogenic parasitosis. A case series and literature review. Psychosomatics.1998; 39:491–500. 7. Amancio EJ, Peluso CM, Santos AC, et al. Ekbom’s syndrome and spasmodic torticollis: case report. Arq Neuro Psiquiat 2002; 60:155–8. 8. Lepping P, Fredenmann RW. Delusional parasitosis: a new pathway for diagnosis and treatment. J Compilation Clin Exp Dermatol. 2007; 33:113–7. 9. Bastos Filho OC. Problema diagnóstico dos delírios de parasitose cutânea. An Fac Med Univ Recife 1962; 22: 149-176. 10. Geoffroy PA et al. Corrélats anatomofonctionnels du syndrome d’Ekbom. La Presse Médicale. 2012; 42: 237-239. 11. Freudenmann RW. Delusions of parasitosis: an up-todate review. Fortschr Neurol Psychiat 2002; 70: 531–41. 12. Huber M, Lepping P, Pycha R, et al. Delusional infestation: treatment outcome with antipsychotics in 17 consecutive patients (using standardized reporting criteria). Gen Hosp Psychiatry. 2011;33:604-11 Correspondência: Avenida do Contorno, 3017 30110-080 - Bairro Santa Efigênia. Belo Horizonte, MG [email protected] Conflito de Interesse e Fonte de Financiamento Inexistente Jul/Ago 2013 - revista debates em psiquiatria 35 COMUNICAÇÃO BREVE por JORGE ALBERTO SALTON 1 CONSIDERAÇÕES SOBRE RISCO-BENEFÍCIO DO TRATAMENTO DO TRANSTORNO BIPOLAR RISK-BENEFIT CONSIDERATIONS IN THE TREATMENT OF BIPOLAR DISORDER H á hoje diagnóstico abusivo do Transtorno Afetivo Bi­ po­lar (TAB) como bem demonstra Mitchel em artigo recente (1). Tal modismo pode estar acarretando prescrição abusiva de certos medicamentos, entre eles a lamotrigina. Recentes artigos de revisão sobre a lamotrigina aponta para a sua baixa eficácia no TAB. Casos são publicados nos quais o uso desse anticonvulsivante acarretou síndromes graves que podem levar ao óbito: Steven-Johnson, Lyell, insuficiência hepática aguda. EFICÁCIA A lamotrigina surgiu para a psiquiatria após artigo de Calabrese JR et all (2). A substância fora comparada com placebo e não com substância já reconhecida como eficaz no quadro. Na Escala de Hamilton (medida primária de eficácia) o efeito da lamotrigina no TAB fora equivalente ao do placebo. Os autores, entretanto, encontraram vantagem na Escala de Montogomery-Asberg (medida secundária de eficácia). Contra suas próprias evidências, os autores a recomendaram afirmando que a lamotrigina em monoterapia é um tratamento eficaz e bem tolerado para a depressão bipolar. Ao contrário desse artigo, revisão publicada em 2011 conclui que: “Não há evidências para recomendar a sua utilização em estados maníacos ou mistos, em bipolar I ciclagem-rápida ou na depressão unipolar” (3). Revisão ainda mais recente, publicada em 2013, também não encontra a eficácia sugerida inicialmente e propõe que as Dire­ trizes rebaixem sua colocação: “Os resultados de nosso estudo apontam para a mudança de posição da lamotrigina em diretrizes internacionais de terapia” (4). 36 revista debates em psiquiatria - Jul/Ago 2013 EFEITOS COLATERAIS GRAVES É do conhecimento de todos que a lamotrigina pode desencadear rash cutâneo que pode evoluir para a Síndrome Steven-Johnson e para a necrólise epidérmica ou síndrome de Lyell. Entretanto, diziase que o efeito colateral apareceria no início do uso e depois não mais. E que se deveria introduzi-la aumentando 25 mg a cada 14 dias e assim esse feito perigoso raramente ocorreria. (A propósito, quantos colegas introduzem assim tão lentamente a lamotrigina? E o paciente pode esperar tanto tempo para chegar aos 200 mg e assim ter o suposto efeito terapêutico desejado?) Entretanto, já há relato de rash cutâneo tardio severo com a paciente fazendo uso da substância há oito meses (5). Um outro efeito colateral pode provocar a morte com uso da lamotrigina: insuficiência hepática aguda. Há um caso relatado por Nogara et all: uma mulher de 32 anos com o diagnóstico de TAB fazia uso de carbolitium e lhe foi acrescentado lamotrigina. Após 35 dias de uso com lamotrigina (estava com 50 mg) baixou na emergência com vômitos, alteração do nível de consciência, evoluindo para disfunção hepática aguda e óbito (6). MODISMOS E SEUS MALES Podemos usar um medicamento com efeitos colaterais peri­ go­ sos se realmente o paciente apresenta uma doença grave e incapacitante e se os demais tratamentos menos perigosos não surtirem efeito. Situações-limite em que não temos melhor escolha. E, nos tempos de hoje, os riscos devem ser colocados ao paciente e aos seus familiares. Por que vamos colocar em risco de morte o nosso paciente se há outra opção? Como ficará nosso futuro profissional (e pessoal!) caso o nosso paciente venha a falecer por uma medicação que não era indicada pelo diagnóstico não ser o correto ou por sua nula ou JORGE ALBERTO SALTON1 Psiquiatra, Mestre UFRGS, Titular FAMED UPF. Associado: ABP, APPG, APRS. 1 baixa eficácia ou por haver uma medicação menos perigosa para tratar sua doença? Em 1987 Akiskal e Mallya (7) inciaram a divulgação do conceito de Espectro Bipolar. Após anos de divulgação, na minha opinião apressada e acrítica, a bipolaridade virou moda. Colegas de grande respeito como Mitchel e Romildo Bueno vem analisando criticamente esse conceito (8) (9). O mal do diagnóstico indevidamente expandido da doença bipolar é muito grande. Até hoje só está de fato comprovada a utilidade de alguns poucos medicamentos nos quadros bipolares das classificações oficiais. Muitas pessoas podem estar usando medicamentos desnecessariamente, talvez pelo resto de suas vidas. Outro problema é a banalização do diagnóstico psiquiátrico com sua desqualificação e consequente descrença na profissão. Quando muitas pessoas distantes do núcleo da doença são colocadas nela, a pesquisa fica dificultada. Essa expansão diagnóstica veio acompanhada de uma série de lançamentos da indústria farmacêutica. A população foi atraída para esse campo: a doença passou a ser romantizada e banalizada. Nos Estados Unidos, por exemplo, atores e outras figuras públicas passaram ser apresentados como bipolares e enaltecidos em suas habilidades e capacidades criativas; na verdade, a doença real caminha no sentido oposto. O termo bipolar perdeu o significado médico. (Quando Interna­ cional e Vitória empataram no início do Campeonato Brasileiro deste ano, a imprensa esportiva considerou que o time gaúcho havia jogado mal no primeiro tempo e bem no segundo e noticiou: “O time do Inter é bipolar”). Essa expansão atingiu também a população infantil. Na última década, acredita-se que o diagnóstico de bipolaridade na infância aumentou em cerca de quarenta vezes. Creio que precisamos repensar. Aproveitar a discussão diag­ nóstica suscitada pela publicação da DSM-V e... repensar. Referências • • • • • • • • • 1. Mitchel PB. Bipolar Disorder: The Shift to Overdiagnosis. Can J Psychiatrty 2012;57:659–665. 2. Calabrese JR, Bowden CL, Sachs GS, Ascher JÁ, Monaghan E, Rudd GD. A double-blind placebocontrolled study of lamotrigine monotherapy in outpatients with bipolar I depression. Lamictal 602 Study Group. J Clin Psychiatry. 1999;60:79-88. 3. Amann B, Born C, Crespo JM, Pomarol-Clotet E, McKenna P. Lamotrigine: when and where does it act in affective disorders? A systematic review. Psychopharmacol 2011; 25:1289-94. 4. Anja Trankner, Christian Sander and Peter Schonknecht A critical review of the recent literature and selected therapy guidelines since 2006 on the use of lamotrigine in bipolar disorder. Neuropsychiatr Dis Treat 2013; 9:101-111. 5. Ribeiro R, Rosa A e Maia T. Rash Cutâneo Tardio na terapêutica com Lamotrigina – A Propósito de um Caso Clínico Revista do Serviço de Psiquiatria do Hospital Fernando Fonseca. 2005; 1:12-16. 6. Nogara M et all. Insuficiência hepática aguda potencialmente induzida por lamotrigina: relato de caso. SBMD 2009; http://www.sbmd.org.br/ Artigos_GED_2009/Edicao_1/relato_2_insuficiencia_ hepatica_aguda.pdf (acessado em 31/05/2013) 7. Akiskal HS, Mallya G. Criteria for the “soft” bipolar spectrum: treatment implications. Psychopharmacol Bull. 1987;23:68-73. 8. Bueno R, J O “espectro” Bipolar. Psychitry on Line. 2009; 14 http://www.polbr.med.br/arquivo_09.php (acessado em 31/05/2013). 9. Bueno R, J Considerações a respeito da fragilidade das hipóteses em psiquiatria e em psicofarmacoterapia. Revista Debates em Psiquiatria, 2012; Set/Out:16-22. Correspondência Av Brasil Leste, 758 Passo Fundo RS CEP 99010-001 www.salton.med.br / [email protected] Fonte de financiamento e Conflito de Interesse inexistente Jul/Ago 2013 - revista debates em psiquiatria 37 Essa é a finalidade do pagamento da sua anuidade. Fortificar e solidificar a ABP! Só assim poderemos cumprir com as nossas ações fundamentais! Faça parte da ABP, fique em dia com a sua associação de classe, e mantenha ativa uma das mais respei tadas associações de especialidade do Brasil! Além disso, quantos mais associados quites a ABP tiver em seu quadro social mais benefícios poderão ser oferecidos! Anuidade Este ano nossos associados receberam duas grandes notícias, a anuidade 2013 não teve aumento em relação a anuidade de 2012, e o os inscrição no CBP 2013, para não associados da ABP também teve acréscimo. 2013 O aumento no número de associados quites com a ABP está fazendo com que consigamos isto e muito mais! www.abp.org.br Jul/Ago 2013 - revista debates em psiquiatria 41