FerreiraBreve e cols. Comunicação Recorrências de comunicação intera rial Arq Bras Cardiol volume 73, (nº 2), 1999 Recorrência de Comunicação Interatrial em Três Gerações Celso Ferreira, Leila M. S. Farah, Rui M. Póvoa, Bráulio Luna Fº, Andréa Costa, Celso Ferreira Fº São Paulo, SP A partir de um portador de comunicação interatrial (CIA), do tipo defeito da fossa oval, foi identificada genealogia com quatro elementos afetados, pertencentes a três gerações sucessivas. As anomalias foram comprovadas, visualmente, em todos os portadores, e eram análogas anatomicamente. Não ocorreram outras malformações em qualquer dos portadores da cardiopatia. A genealogia foi identificada em 1972, ocasião em que recorreu em duas gerações, e se concluiu por mecanismo de transmissão autossômico recessivo. O quinto elemento, identificado 21 anos após, portador de anomalia idêntica aos demais, era filho de casal não consangüíneo, sendo a progenitora membro da genealogia anteriormente estudada. Levando em conta a ausência do fenótipo nos pais e a raridade do gene da CIA na população geral, foi admitida ocorrência plausível do fenômeno da dissomia uniparental para este núcleo familial, e o mesmo mecanismo autossômico recessivo de transmissão por este afetado. O presente trabalho tem o objetivo de divulgar a recorrência familial da CIA, pelo mecanismo genético de transmissão, tornando evidente a necessidade do estudo genético-clínico dos demais membros do núcleo familial, para detectar novos portadores, freqüentemente assintomáticos e, assim, proporcionar tratamento precoce e adequado aos eventuais afetados. A incidência das cardiopatias congênitas varia com a metodologia utilizada em diferentes averiguações e foram realizadas por diferentes autores. No período de 1946 a 1953, no Presbyterian Medical Center de Nova Iorque, foram observadas 6.053 crianças incluindo-se também natimortos e conceptos com peso >500g. Verificou-se nesse estudo, a presença de 50 cardiopatias congênitas, isto é, 8,3 por mil, variando essa incidência de 7,7% para os nascidos mortos e falecidos no 1º mês, a 6 por mil para os que viveram mais de um mês 1. Entre nós, Saldanha e cols. 2 encontraram a inci- Universidade Federal do Estado de São Paulo – EPM Correspondência: Celso Ferreira – Rua Leandro Dupret, 317 – 04025-011 – São Paulo, SP Recebido para publicação em 29/10/98 Aceito em 7/4/99 dência de 3,4% de malformações, de modo geral, em nascidos vivos no Hospital das Clinicas da Faculdade de Medicina da USP. Particularmente para as anomalias cardíacas, a incidência foi de 2,37 por mil. Para Insley 3, a proporção relatada foi de 6 para mil nascidos vivos. Campbell 4 acredita que 10% correspondem a CIA, o que resultaria na incidência de 0,6 por mil desta afecção ao nascer. A distribuição das cardiopatias congênitas varia nos diferentes grupos etários, assim a prevalência torna-se diversa da incidência ao nascer. Campbell 4, comentando este aspecto, comparou seus dados aos de MacMahon e cols. 5 e de Carlgren 6 sobre a incidência preferencial em relação ao sexo, com a prevalência obtida por Keith e cols. 7. Para a CIA, cuja incidência é de 1:1 ao nascer, chega a 2:1 na idade adulta, o que nada mais é que sua prevalência. As anomalias congênitas, inclusive as cardiopatias congênitas, podem ser decorrentes de alteraç es endógenas, ou seja, genéticas, tanto em anomalias microscópicas ou cromossômicas, quanto submicroscópicas ou gênicas. Por outro lado, alterações exógenas representadas por teratógenos externos, como irradiações ou mesmo ação de infecções viróticas no período da embriogênese, podem ocasionar anomalias idênticas (fenocópias e genocópias). Os trabalhos que demonstram a recorrência familial de CIA são relativamente pouco numerosos. Courter e cols. 8, pioneiros em mencionar a repetição de CIA sem associação de outra anomalia cardíaca congênita, admitiram em sua publicação a síndrome de Lutembacher. Embora esta primazia não possa ser confirmada por trabalhos anteriores, o fato identifica a época como o início desses relatos. Gänsslen e cols. 9 estudaram 68 heredogramas de várias cardiopatias congênitas e descreveram a existência de evidências de herança recessiva em algumas delas, particularmente, naquelas com persistência do canal arterial e com CIA. Courter e cols. 8 apresentaram duas irmãs, cujo diagnóstico clínico foi CIA, sem associação com outras anomalias cardíacas congênitas. Concomitantemente, diagnosticaram estenose mitral reumática em ambas, razão pela qual foram enquadradas na síndrome de Lutembacher. Carleton e cols. 10, baseados na apresentação de uma única família, concluíram por mecanismo de transmissão recessivo; Howitt 11, também baseado na apresentação de uma única genealogia, concluiu por herança dominante; Nora e cols. 12 concluíram por mecanismo multifatorial; Zetterqvist e cols. 13 admitiram 211 Ferreira e cols. Recorrências de comunicação interatrial herança dominante, apresentando três genealogias e Volti e cols. 14 concluíram por herança dominante. Em tese de doutorado, Ferreira 15 realizou estudo genéticoclínico da CIA do tipo fossa oval isolada em oito genealogias e concluiu por mecanismo de herança do tipo autossômico recessivo, em função da casuística e metodologia utilizadas. O presente trabalho relata a ocorrência de um quinto portador de idêntica anomalia, detectada em 3ª geração consecutiva na mesma genealogia. Em 1972, ocasião em que se desenvolvia na UNIFESP estudo genético-clínico da CIA do tipo defeito da fossa oval isolada, dentre as oito genealogias estudadas, foi destacada a do presente relato. O propósito (III - 9) (fig. 1), portador de CIA de importante repercussão hemodinâmica, foi internado na enfermaria de cardiologia para se submeter a correção cirúrgica, efetivamente ocorrida dias após, comprovando-se visualmente a presença e características da anomalia. A partir desse paciente, foram examinados 24 elementos desse heredograma. Eram submetidos a exames clínicos e de rotina, onde se incluíam entre outros, eletrocardiograma (ECG) e radiografia de tórax. Quando havia suspeita de anomalia cardíaca, o exame era complementado por estudo hemodinâmico. Com esta metodologia, foram detectados mais três portadores de CIA que, por critérios similares, foram submetidos à cirurgia para a correção, evidenciando-se idêntica malformação. Em 1993, foi encaminhado à UNIFESP, outro portador de cardiopatia congênita que, estudado clinica e complementarmente por radiologia, eletrocardiografia e ecocardiografia, demonstrou a recorrência de CIA, evidenciando-se no tratamento cirúrgico tratar-se do mesmo tipo anatômico das demais anomalias da genealogia. A partir desse paciente, foram estudados pela mesma metodologia os pais e irmãos, tendo sido excluídas novas recorrências. Para tratamento mais eficaz de qualquer afecção em medicina é primordial a abordagem da etiologia, freqüentemente, de difícil elucidação para os portadores de anomalias congênitas. Em conseqüência, conforme Gordon 16, que comparou as taxas de mortalidade na infância decorrentes de óbitos por doenças diarréicas, e anomalias congênitas, Fig. 1 – Heredograma demonstando a recorrência de CIA do tipo fossa oval em 5 elementos de três gerações. 212 Arq Bras Cardiol volume 73, (nº 2), 1999 no período de 1910 a 1965, constatou-se a inversão da importância relativa dessas situações clinicas. Para as cardiopatias, devido a dificuldade da elucidação da etiologia nas anomalias congênitas, associada ao grande avanço nas prevenções primária e secundária das cardiopatias adquiridas, cuja etiologia é freqüentemente bem definida, torna-se cada vez mais aparente sua relativa importância e faz com que o estudo genético-clínico das cardiopatias congênitas torne-se cada vez mais relevante. O maior obstáculo à aceitação da hipótese genética para as cardiopatias congênitas foi levantado por alguns estudos de gêmeos realizados em uma análise passível de crítica 17-25. Em gêmeos monozigóticos, idênticos quanto à sua constituição gênica, seria esperada maior concordância de cardiopatias entre seus pares, do que nos gêmeos dizigóticos, que são apenas irmãos da mesma idade. Esses estudos, entretanto, não mostraram estas diferenças. No entanto, Nora e cols. 26, que reviram a literatura pertinente ao assunto, demonstraram que os resultados em gemelares apóiam a hipótese genética para explicar as cardiopatias congênitas. Assim, conseguiram 88 pares monozigóticos, 104 dizigóticos e 78 cuja zigozidade não havia sido diagnosticada. Nesse material, fizeram uma seleção daqueles em que os diagnósticos de zigozidade e de cardiopatia eram seguros, resultando um número bem menor, ou seja, 36 monozigóticos e 41 dizigóticos, entre os quais incluíram seu próprio material de investigação. Nesses gêmeos, a concordância foi bem maior que a obtida pelos autores anteriormente citados, ou seja, 25% para os monozigóticos e 4,9% para os dizigóticos. Com estes resultados, a influência genética é evidente e a importância do ambiente na determinação das cardiopatias congênitas, tornou-se incontestável. Analisando-se a recorrência verificada na presente genealogia, constata-se que ocorreu apenas na linha horizontal, afetando tanto pacientes do sexo feminino quanto do masculino, além da presença de consangüinidade, o que apoia o mecanismo de transmissão autossômica recessiva. Aliás, no estudo genético clínico realizado com as oito genealogias, a recorrência em irmãos com as referidas anomalias do septo atrial foi de 11,5% com desvio padrão de 6,3%, quando incluídos apenas os pacientes cuja comprovação do defeito foi completa, e 16,7% com desvio padrão de 6,8%, quando incluídos também irmãos falecidos, mas com probabilidades de apresentarem CIA 15. Vale ressaltar que esses resultados não diferem significativamente das proporç es esperadas para a herança recessiva, isto é, de três normais para um afetado. Ademais, deve ser lembrado neste trabalho, que se trata de complementação de estudo anterior, onde se avaliaram mais seis genealogias com a mesma metodologia, concluindo-se, naquela oportunidade, o mencionado mecanismo genético 15. A recorrência de cinco portadores de CIA em uma genealogia chama a atenção, mesmo a observadores menos familiarizados com a genética, em levantar tal mecanismo como fator etiológico. Esta possibilidade torna-se mais evidente, ao se cotejar a incidência desta anomalia na população geral, ou seja, 6:10 000 4 com a expressiva recorrência na genealogia apresentada. Por outro lado, deve-se notar que Ferreira e cols. Recorrências de comunicação intera rial Arq Bras Cardiol volume 73, (nº 2), 1999 a anomalia presente, ou seja, defeito da fossa oval, foi idêntica em todos os afetados, o que mais uma vez reforça a etiologia genética. A importância do estudo genético-clínico para os portadores de cardiopatias congênitas, aqui particularizandose a CIA, é demonstrada pela identificação de novos pacientes evidenciados pela pesquisa sistemática. Assim, o exemplo da paciente III-7 que havia falecido há anos, e as informações de seus parentes próximos, não eram condizentes com o diagnóstico de cardiopatia congênita, mas sim com o de cardiopatia hipertensiva. Nesse caso, o registro hospitalar foi de real valia, pois, além de ser bastante minucioso, apresentava a descrição do exame necroscópico, podendo-se comprovar, não só a existência do defeito cardíaco, como também, suas particularidades anatômicas. Também o paciente IV-8, produto de casamento consangüíneo, desconhecia a existência de qualquer anomalia cardíaca, era assintomático, e o diagnóstico resultou unicamente da investigação sistemática referida neste artigo. A utilização de informações obtidas em registros hospitalares e mesmo de certidões de óbitos podem, por vezes, merecer criticas, já que nem sempre chegam a um grau de precisão desejado. As distorções acarretadas pelo diagnóstico não permitem ser aceitas sem rigorosa análise, conduzindo a estimativas, via de regra, menores que as reais. Na presente genealogia, teve-se a oportunidade de constatar um exemplo enquadrado em uma dessas situações. O paciente III-13 era assintomático, com vida ativa e desconhecia qualquer anormalidade cardíaca. O levantamento dos dados de seu registro hospitalar, feito por ocasião de internação para pequena cirurgia, fazia referência a resultado normal do exame do coração. Contudo, ao ser examinado, por ocasião da avaliação para este estudo, com a atenção voltada para a detecção de anomalias cardíacas, foi feito o diagnóstico clinico de CIA, comprovado a seguir visualmente pelar cirurgia. Finalmente, deve-se referir a recorrência do paciente V3, encaminhado com o diagnóstico de CIA, comprovado pela correção cirúrgica. A identificação do quinto afetado, produto do casamento de jovens não consangüíneos, permitiu por sua vez, a avaliação dos pais e irmã, tanto clinicamente, quanto por exames complementares, incluindo o ECG, radiografia de tórax e ecocardiograma, concluindo-se por indivíduos saudáveis. A nova recorrência chamou a atenção no sentido de reconsiderar o mecanismo de transmissão autossômico recessivo, anteriormente admitido, já que os progenitores não eram consangüíneos. Para tal mecanismo, sem que os pais exibissem o fenotipo da CIA, conforme os conhecimentos clássicos de transmissão recessiva, seria necessário que ambos fossem portadores do gene em heterozigoze, fato que para o heredograma apresentado, seria plausível para a progenitora, porém de muito baixa probabilidade para o pai do afetado, tendo em conta a freqüência do gene na população geral. A explicação coerente para o fato baseia-se na hipótese da ocorrência do fenômeno da dissomia uniparental. Este mecanismo, aplicado a este heredograma, admitiria que apenas a progenitora do paciente V-3, embora fenotipicamente normal, apresentasse o gene para CIA em heterozigoze. A dissomia uniparental é um fenômeno que tem sido aventado para explicar a ocorrência de doenças autossômicas recessivas em portadores em que apenas um dos progenitores é heterozigoto para o gene em questão 27. Este mecanismo pode resultar da correção de uma trissomia em período inicial do desenvolvimento embrionário, quando aí estariam representados dois cromossomos maternos, carregando o gene da anomalia, e um cromossomo paterno, onde estaria localizado o gene normal e que seria eliminado. Outra possibilidade seria o restabelecimento muito cedo na gravidez, do estado dissômico a partir de uma monossomia do cromossomo materno, onde estaria localizado o gene da anomalia, pela duplicação do cromossomo único, configurando uma isodissomia deste cromossomo. Independente das teorias que possam justificar a recorrência da anomalia, é importante frisar que, decorrendo o tempo e a 4ª geração entrando na idade reprodutiva e levando-se em conta, também, a penetrância e expressividade observadas no presente heredograma, tornar-se-ia mandatória a retomada da avaliação genético-clínica para identificar novos afetados. É conveniente enfatizar a necessidade de pesquisa em novos portadores com objetivos não só da prevenção secundária mais precoce, como eventualmente a prevenção primária pelo aconselhamento genético nesta e em todas as situações onde ocorra a CIA aparentemente esporádica. Referências 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. Richards MR, Merrit KK, Samuels MH, Langmann AG. 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