As causas históricas do conflito na Síria

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ESCOLA DE COMANDO E ESTADO-MAIOR DO EXÉRCITO
ESCOLA MARECHAL CASTELLO BRANCO
Maj Inf MARCELO NEIVAL HILLESHEIM DE ASSUMPÇÃO
As causas históricas do conflito na Síria.
Rio de Janeiro
2015
Maj Inf MARCELO NEIVAL HILLESHEIM DE ASSUMPÇÃO
As causas históricas do conflito na Síria.
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à
Escola de Comando e Estado-Maior do Exército,
como requisito parcial para a obtenção do titulo
de Especialista em Ciências Militares.
Orientador: Cel Cav Paulo Roberto Gomes da Silva Filho
Rio de Janeiro
2015
Maj Inf MARCELO NEIVAL HILLESHEIM DE ASSUMPÇÃO
As causas históricas do conflito na Síria
Aprovado em __ de março de 2015.
COMISSÃO AVALIADORA
___________________________________________________
Paulo Roberto Gomes da Silva Filho - Cel Cav - Presidente
Escola de Comando e Estado-Maior do Exército
___________________________________________________
Sérgio Henrique Codelo Nascimento – Cel Eng – Membro
Escola de Comando e Estado-Maior do Exército
___________________________________________________
Alessandro Paiva de Pinho TC Cav – Membro
Escola de Comando e Estado-Maior do Exército
RESUMO
O Oriente Médio é uma região que integra a Ásia e vem sendo palco de inúmeras
guerras e disputas ao longo da história. Sua posição estratégica e suas riquezas
naturais têm atraído a atenção das principais nações do mundo desde os primórdios.
Desta forma, todos os conflitos que transcorrem na região, sejam eles internos ou
não, tomam uma proporção muito grande, pois influenciam no frágil equilíbrio de
poder local e nos interesses das nações protagonistas da política mundial. Neste
contexto, a guerra civil em curso na Síria tem trazido grandes preocupações para
analistas e autoridades em todo o mundo. Os desdobramentos e as consequências
do conflito ainda são difíceis de mensurar, mas todas as possibilidades têm sido
estudadas com grande apreensão pelos specialistas. Neste trabalho, serão
buscadas as causas históricas que podem ter contribuído para a ocorrência do
conflito.
Palavra chave: Oriente Médio.
ABSTRACT
The Middle East is a region that includes Asia and has been the scene of numerous
wars and disputes throughout history. Its strategic position and its natural riches have
attracted the attention of the leading nations of the world since the antique.
In this way, all conflicts that happen in this region, whether internal or not, take a very
large proportion, as they influence the fragile balance of power and the interests of
nations protagonists of world politics. In this context, the ongoing civil war in Syria
has brought great concern to analysts and authorities around the world. The
ramifications and consequences of the conflict are still difficult to measure, but all
possibilities have been studied with great concern by the experts. In this work, the
historical reasons that may have contributed to the occurrence of the conflict will be
studied.
key word: Middle East.
LISTA DE FIGURAS
Figura Nr 01 – Mapa do Oriente Médio......................................................................13
Figura Nr 02 – Mapa do Império Otomano.................................................................15
Figura Nr 03 – Situação Política do Oriente
Médio....................................................17Figura Nr 04 – Partilha da Palestina Proposta pela ONU em 1947...........................20
Figura Nr 05 – George W Bush com Ariel Sharon e Mahmoud Abbas......................21
Figura Nr 06 – Mapa da Síria.....................................................................................33
Figura Nr 07 – Manifestante na Primavera Árabe......................................................35
Figura Nr 08 – Manifestação contra Bashar al Assad................................................37
Figura Nr 09 – Ditadores e a Primavera Árabe..........................................................38
Figura Nr 10 – Mapa do mandato francês na Síria....................................................40
Figura Nr 11 – Comboio de veículos do ISIS.............................................................43
Figura Nr 12 – Execução em massa pelo ISIS...........................................................43
Figura Nr 13 – Mapa das áreas de disputa na Síria...................................................45
Figura Nr 14 – Manifestante exibe cartaz contra Bashar..........................................46
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
CSNU - Conselho de Segurança das Nações Unidas
EB - Exército Brasileiro
EUA - Estados Unidos da América
FSA - Exército Sírio Livre
ISIS - Estado Islâmico do Iraque e do Levante
NCC - Comitê de Coordenação Nacional
ONU - Organização das Nações Unidas
OTAN - Organização do Tratado do Atlântico Norte
SNC - Conselho Nacional da Síria
URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
SUMÁRIO
1
INTRODUÇÃO ---------------------------------------------------------------------------
08
1.1
PROBLEMA -------------------------------------------------------------------------------
09
1.2
OBJETIVOS -------------------------------------------------------------------------------
09
1.3
HIPÓTESE ---------------------------------------------------------------------------------
09
1.4
VARIÁVEIS ---------------------------------------------------------------------------------
09
1.5
DELIMITAÇÃO DO ESTUDO ----------------------------------------------------------
09
1.6
RELEVÂNCIA DO ESTUDO -----------------------------------------------------------
10
2
METODOLOGIA --------------------------------------------------------------------------
11
A INSTABILIDADE NO ORIENTE MÉDIO ------------------------------------------
13
4
ISLAMISMO, A RELIGIÃO COMO FATOR DE INSTABILIDADE-------------
25
5
FORMAÇÃO POLÍTICA DA NAÇÃO SÍRIA ----------------------------------------
30
6
A PRIMAVERA ÁRABE ------------------------------------------------------------------
34
7
OS INTERESSES ENTRANGEIROS NO CONFLITO SÍRIO-------------------
39
8
O CONFLITO NA SÍRIA_______________________________________
44
9
CONCLUSÃO_______________________________________________
47
REFERÊNCIAS --------------------------------------------------------------------------
50
3
8
1 INTRODUÇÃO
O mundo testemunhou nos últimos anos um fenômeno chamado de "Primavera
Árabe" que assolou alguns países do norte da África e do Oriente Médio. Nestas nações, a sociedade passou a exteriorizar de forma contundente sua indignação com
regimes na maioria das vezes ditatoriais e anacrônicos. Por meio de protestos e movimentos de massa os regimes de países como Egito e Tunísia, por exemplo, foram
duramente afetados, o que exigiu mudanças nas políticas nacionais e derrubou governos instituídos.
Dentro deste contexto, em 2011, teve início uma crise na Síria que culminou
com uma guerra civil que perdura até os dias atuais, onde grupos de insurgentes
tentam derrubar o governo ditatorial de Bashar al Assad, à frente do país desde
2000.
Tal conflito vem chamando a atenção do mundo devido a diversos aspectos,
tais como:
- À violência que as tropas legais têm utilizado contra manifestantes na maioria
das vezes desarmados, o que já deixou grande número de mortos e feridos e trouxe
grandes repercussões na opinião pública internacional.
- Aos interesses estratégicos de nações importantes no cenário mundial como
os Estados Unidos da América (EUA), a Rússia, Israel, China, dentre outras, nos
desdobramentos do conflito.
- Ao uso de armas de destruição em massa, como agentes químicos, o que deixou grande número de vítimas entre civis não-combatentes.
- Às tragédias humanitárias ocorridas, em particular aos milhões de refugiados
sírios que têm se deslocado para países vizinhos como Jordânia, Líbano, Turquia e
Irã.
- Aos desentendimentos dos membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas com relação às medidas a serem adotadas pelo organismo
contra o governo de Bashar al Assad.
Desta forma, o estudo criterioso do conflito na Síria ganha grande relevância
pela sua importância na atualidade, pelos ensinamentos que podem ser colhidos do
que já ocorreu até o momento e pelas conseqüências que ainda podem advir desta
crise.
9
1.1 O PROBLEMA
Diante do acima exposto, a problemática da pesquisa em tela ganha relevância:
Quais foram as causas históricas que levaram ao conflito na Síria, iniciado em 2011?
1.2 OBJETIVOS
1.2.1 Objetivo Geral
Analisar as causas históricas que levaram ao conflito na Síria.
1.2.2 Objetivos Específicos
- Apresentar o Oriente Médio.
- Apresentar a religião predominante no país: o Islamismo.
- Analisar a formação política do estado Sírio.
- Analisar a "Primavera Árabe".
- Apresentar os interesses estrangeiros na Síria.
- Apresentar sinteticamente o conflito propriamente dito.
1.3 HIPÓTESE
A instabilidade regional, o regime autoritário do governo sírio, aspectos psicossociais internos do país e os interesses de atores externos resultaram no conflito
que assola o país desde 2011.
1.4 VARIÁVEIS
Considerando o tema "O conflito na Síria", as circunstâncias passíveis de medição e que poderão influenciar a pesquisa serão as seguintes:
- Variável dependente – o conflito na Síria.
- Variáveis independentes – as causas históricas do conflito na Síria.
1.5 DELIMITAÇÃO DO ESTUDO
Esta pesquisa destina-se, num primeiro momento, a apresentar a região do Oriente Médio abordando os aspectos que tornam a área instável sob o ponto de vista
político e militar. Será estudada a religião predominante no país, o Islamismo, e as
suas influências na sociedade síria.
10
Em seguida, será estudada a formação da nação e do Estado Sírio, abordando
os aspectos internos do país que favoreceram a ruptura política e social que resultou
na guerra civil alvo do presente estudo.
Será feita uma abordagem sobre a "Primavera Árabe", como uma das principais causas do conflito em pauta.
Além disso, será feito também um apanhado acerca dos interesses de alguns
países na estabilidade ou na instabilidade da Síria e nos desdobramentos do conflito
no país.
Serão apresentadas as disputas entre algumas nações para influenciar os rumos políticos da Síria, bem como a instabilidade gerada na região.
Por fim, será abordado o conflito propriamente dito, bem como seus desdobra mentos para a Síria e para o mundo.
1.6 RELEVÂNCIA DO ESTUDO
A pesquisa se justifica, tendo em vista que o conflito na Síria, iniciado em 2011,
é um dos mais recentes no Oriente Médio e ainda está em curso. A possibilidade
dele se enquadrar dentro do contexto dos conflitos de 4ª Geração já o torna merecedor de ser amplamente estudado. Tal categoria de conflito deve constituir objeto de
análise para que se busquem ensinamentos acerca destas ameaças que podem vir
a ser o desafio de quaisquer exércitos no mundo em um futuro próximo.
Ademais, o Brasil tem buscado maior projeção no cenário mundial e participação nos foros multilaterais que debatem as principais questões da agenda internacional. Sob este prisma, o entendimento da crise na Síria é de suma importância pelo
fato dela estar diretamente relacionada a interesses geopolíticos das principais nações do globo, além de envolver também interesses políticos, étnicos, religiosos e
sociais na região em que se passa e suas adjacências.
Destarte, por se tratar de um conflito recente e ainda em curso, não existem
muitas obras disponíveis para a pesquisa. Desta forma, um trabalho que se proponha a buscar informações de origens diversas, artigos publicados, análises de especialistas etc, sintetizando e integrando este conhecimento, poderá se tornar uma fonte relevante de ensinamentos.
11
2. METODOLOGIA
A presente pesquisa se classifica como qualitativa, pois contempla a subjetividade, a descoberta, a valorização da visão de mundo dos sujeitos. Ela realizará a
análise das variáveis de uma forma mais profunda, com a finalidade de entender os
fenômenos, privilegiando principalmente a história e as análises bibliográficas (VERGARA, 2009).
Segundo GIL (2002):
A análise qualitativa depende de muitos fatores, tais como a natureza
dos dados coletados, a extensão da amostra, os instrumentos de pesquisa e
os pressupostos teóricos que nortearam a investigação. Pode-se, no entanto, definir esse processo como uma seqüência de atividades, que envolve a
redução dos dados, a categorização desses dados, sua interpretação e a redação do relatório (GIL, 2002, p. 113).
Quanto aos seus objetivos gerais, o presente estudo visa a buscar a relação
direta entre as variáveis independentes (causas do conflito na Síria) e a variável dependente (o conflito propriamente dito) analisando de que forma se deu a influência
de umas em relação à outra. Desta forma esta pesquisa caracteriza-se como sendo
do tipo explicativa, que segundo GIL (2002, p. 42):
tem como preocupação central identificar os fatores que determinam
ou que contribuem para a ocorrência dos fenômenos. Esse é o tipo de pesquisa que mais aprofunda o conhecimento da realidade, porque explica a razão, o porquê das coisas. Por isso mesmo, é o tipo mais complexo e delica do, já que o risco de cometer erros aumenta consideravelmente (Gil, 2002,
p. 42 ).
O procedimento técnico que será adotado para fundamentar este trabalho
será um estudo bibliográfico que terá por método a coleta de dados, por meio da leitura exploratória e seletiva do material de pesquisa selecionado. A posteriori, será
feita uma revisão integradora, contribuindo para o processo de síntese e análise do
resultado de vários estudos, de forma a consubstanciar um corpo de literatura atualizado e compreensível. As etapas que serão seguidas durante a pesquisa bibliográfica serão as seguintes: escolha do tema, levantamento bibliográfico preliminar, formulação do problema, elaboração do plano provisório de assunto, busca das fontes,
leitura do material, fichamento, organização lógica do assunto, redação do texto
(GIL, 2002).
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A coleta de dados será realizada em livros que explorem o assunto, em artigos
científicos, em sites da internet e em artigos de periódicos. Tais dados e informações
terão seu conteúdo analisado para que se verifiquem aspectos como sua relevância
e sua fidedignidade para a pesquisa em tela.
Cabe ressaltar que uma limitação que se torna relevante neste trabalho é a
provável dificuldade de se obter grande quantidade de bibliografias sobre o tema,
tendo em vista que tal conflito é muito atual e ainda está em curso.
Ao final da pesquisa, serão apresentadas conclusões a respeito das causas
que levaram ao conflito na Síria.
13
3. A INSTABILIDADE NO ORIENTE MÉDIO
Oriente Médio é um termo que se refere à porção oeste do continente asiático, delimitada pelos mares Negro e Cáspio, a norte; pelos mares Mediterrâneo e
Vermelho a oeste; e pelo oceano Índico ao sul. Possui cerca de 6,8 milhões de quilô metros quadrados e aproximadamente 260 milhões de habitantes. É composto por
15 países: Afeganistão, Arábia Saudita, Bahrain, Catar, Emirados Árabes Unidos, Iêmen, Irã, Iraque, Israel, Jordânia, Kuwait, Líbano, Omã, Síria e. Turquia. (FRANCISCO, 2007).
A região é berço das três grandes religiões monoteístas da humanidade: o
Cristianismo, o Islamismo e o Judaísmo. Cerca de 92% da população (238 milhões
de pessoas) é islâmica e divide-se, principalmente, entre Sunitas, Xiitas, Drusos e
Alauítas. Existem, ainda, cerca de 13 milhões de cristãos e 6 milhões de judeus
(FRANCISCO, 2007).
Figura 01 – Mapa do Oriente Médio
Fonte: www.brasilescola.com
O Oriente Médio possui uma posição geográfica estratégica, pois se situa no
ponto de interseção de três continentes: africano, asiático e europeu. A região é rota
de comércio intercontinental há vários milênios, além de ter sido dominada por gran-
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des civilizações ao longo da história como os persas, os babilônicos, romanos, macedônicos e os otomanos.
Além disso, possui passagens marítimas de alto valor político, econômico e
militar, tais como:
- O canal de Suez, que foi construído pelos ingleses nas terras do Egito e que
liga o mar Mediterrâneo ao mar Vermelho.
- O estreito de Ormuz, que liga o golfo Pérsico ao oceano Índico, constituindo
rota de navios petroleiros que se dirigem a todos os mercados do mundo.
- O estreito de Bósforo, que liga o mar Mediterrâneo ao mar Negro, ligando a
Europa a vários países asiáticos.
- O estreito de Tiran, que liga o golfo de Aqaba ao mar Vermelho, sendo a única saída de Israel para esse mar.
- O estreito de Bal-el-Mandeb, que separa o Oriente Médio da instável região
chamada "Chifre da África", onde se localizam a Somália, a Eritréia e a Etiópia, na
entrada do mar Vermelho (FILHO, 2013).
O Turco-Otomano foi o último dos grandes impérios que dominou a região e
durou cerca de seis séculos. Em 1453, eles conquistaram Constantinopla, então capital do império romano, num evento que marcou o final da Idade Média. Os otomanos expandiram o império pela Europa, chegando à Albânia, à Bulgária, à Grécia, à
região que futuramente comporia a Iuguslávia, à Hungria, ao sul da Rússia e à Romênia.
Segundo Kamel (2007):
As cidades e regiões que compõem os países que hoje chamamos de
Oriente Médio faziam parte do Império Otomano. As cidades eram províncias autônomas desse império, mas com governantes indicados pelo sultão
turco, e sua geografia guardava pouca semelhança com o mapa político atual: a noção de país, tal como entendemos hoje, não existia ali.
O fato de tal império ter sido tão vasto e ter possuído uma grande religião predominante, o Islamismo - que servia como ponto de convergência para a maioria dos
povos na região -, não significava que a dominação turca fosse bem aceita e que
não existisse instabilidade e atritos internos. Ainda segundo Kamel (2007):
A dominação turca nunca foi aceita pacificamente pelos povos da região, e um certo nacionalismo árabe desde logo se formou, acirrando-se até
atingir seu ápice no fim do século XIX. Durante a Primeira Guerra Mundial,
15
os turcos se aliaram aos alemães, e, claro, os líderes árabes, em troca de
promessas de autonomia, acabaram por apoiar os britânicos, depois de um
início vacilante. Foi o que ficou conhecido como a “Revolta Árabe”, em que
teve papel fundamental T. E. Lawrence, oficial inglês e escritor.
Figura 02: Mapa do Império Otomano
Fonte: www.islamproject.org
O final da Primeira Guerra Mundial, com a derrota dos alemães e de seus aliados, causou o esfacelamento do império Otomano. No entanto, a autonomia desejada pelos árabes não foi viabilizada. Os árabes eram considerados pelas potências
européias como povos atrasados e com um baixo nível civilizatório.
Desta forma, o artigo 22 do Pacto da Liga das Nações de 1919 criou o sistema de mandatos, conforme o texto abaixo:
Art.22. Os princípios seguintes aplicam-se às colônias e territórios
que, em conseqüência da guerra, cessaram de estar sob a soberania dos
Estados que precedentemente os governavam e são habitados por povos
ainda incapazes de se dirigirem por si próprios nas condições particularmente difíceis do mundo moderno. O bem-estar e o desenvolvimento desses povos formam uma missão sagrada de civilização, e convém incorporar no
presente Pacto garantias para o cumprimento dessa missão.
O melhor método de realizar praticamente esse princípio é confiar a
tutela desses povos às nações desenvolvidas que, em razão de seus recursos, de sua experiência ou de sua posição geográfica, estão em situação de
bem assumir essa responsabilidade e que consistam em aceitá-la: elas
exerceriam a tutela na qualidade de mandatários e em nome da Sociedade.
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O caráter do mandato deve ser diferente conforme o grau de desenvolvimento do povo, a situação geográfica do território, suas condições econômicas e todas as outras circunstâncias análogas.
Certas comunidades que outrora pertenciam ao Império Otomano,
atingiram tal grau de desenvolvimento que sua existência como nações independentes pode ser reconhecida provisoriamente, com a condição que os
conselhos e o auxílio de um mandatário guiem sua administração até o momento em que forem capazes de se conduzirem sozinhas. Os desejos dessas comunidades devem ser tomados em primeiro lugar em consideração
para escolha do mandatário.
O grau de desenvolvimento em que se encontram outros povos, especialmente os da África Central, exige que o mandatário assuma o governo
do território em condições que, com a proibição de abusos, tais como o tráfico de escravos, o comércio de armas e álcool, garantam a liberdade de
consciência e de religião, sem outras restrições, além das que pode impôr a
manutenção da ordem pública e dos bons costumes, e a interdição de estabelecer fortificações, bases militares ou navais e de dar aos indígenas instrução militar, a não ser para a polícia ou a defesa do território, e assegurem
aos outros membros da Sociedade condições do igualdade para trocas e
comércio.
Enfim, há territórios como o sudoeste africano e certas ilhas do Pacífico austral, que, em razão da fraca densidade de sua população, de sua superfície restrita, de seu afastamento dos centros de civilização, de sua contiguidade geográfica com o território do mandatário ou de outras circunstâncias, não poderiam ser melhor administrados do que pelas próprias leis do
mandatário, como parte integrante de seu território, sob reserva das garantias previstas acima no interesse da população indígena.
Em todos os casos, o mandatário deverá enviar anualmente ao Conselho um relatório acerca dos territórios de que foi encarregado.
Se o grau de autoridade, fiscalização ou administração a ser exercido
pelo mandatário não faz objeto de uma convenção anterior entre os membros da Sociedade, será estatuído expressamente nesses três aspectos
pelo Conselho.
Uma comissão permanente será encarregada de receber e examinar
os relatórios anuais dos mandatários e de dar ao Conselho sua opinião sobre todas as questões relativas à execução dos mandatos.
Assim, por meio da Liga das Nações, o Oriente Médio foi dividido entre a
França e a Inglaterra que receberam a incumbência de “supervisionar“ a região até
17
que os governantes árabes pudessem assumir o controle efetivo de suas nações.
No entanto, aí residia outro problema: que nações? (KAMEL, 2007).
Figura 03 – Situação Política do Oriente Médio
Fonte: História do Oriente Médio (Wikipedia)
Desde o início do mandato, França e Inglaterra estabeleceram esferas de influência, traçaram fronteiras e criaram dinastias. Diversos novos reinos e protetorados emergiram na região. Muitas das novas entidades políticas surgidas na região
encontraram problemas quanto à aceitação por parte dos habitantes locais e por
parte também de nações vizinhas. Povos nômades que viviam sob regimes tribais
foram surpreendidos com fronteiras cortando suas tradicionais rotas de tráfego e comércio (SCHUBERT e KRAUS, 1998).
Diante disso, ocorreram diversas disputas armadas nos anos que sucederam
ao início dos mandatos. Elas íam desde divergências acerca da posse de áreas de
pastagens ou de áreas com as escassas fontes de água até disputas na demarcação de fronteiras, como foi o caso da ocorrida entre o Iraque e o Kwait e entre o Iraque e a Jordânia, por exemplo (SCHUBERT e KRAUS, 1998).
A divisão física do território foi sucedida pela divisão do poder político de tais
áreas, o que foi instrumentalizado de forma estratégica pelos europeus. Os ingleses
beneficiaram antigos aliados, como Hussein Ibn Ali (patriarca do clã Hashemita), monarca árabe, empossando seus filhos nos tronos das novas unidades políticas. Des-
18
ta forma, seu filho Faisal Hussein, recebeu o trono do Iraque. Seu outro filho, Abdullah Hussein, recebeu o trono da Transjordânia (atual Jordânia), após esta ser separada da Palestina (SCHUBERT e KRAUS, 1998).
Ainda com relação ao Iraque, Kamel (2007) cita que:
Na Mesopotâmia a Grã-Bretanha juntou os curdos ao norte (em torno da cidade de Mosul), os Sunitas ao centro (em torno de Bagdá) e os Xiitas ao sul
(em torno da cidade de Basra), puseram tudo no mesmo saco, batizaram de
Iraque e nomeou Faisal como novo rei.
Desta forma, a criação de monarquias constitucionais altamente dependentes
e ligadas às metrópoles, fiscalizados de perto por conselheiros europeus, foi a linha
de ação mais bem aceita pelos analistas e políticos do “velho continente”, com a finalidade de manter a dominação e o poder de influência na região.
Na “gestação” das novas nações nem todos os povos foram contemplados.
Os curdos, grupo étnico que ocupa parte do atual território da Síria, Iraque, Turquia e
Irã, cuja população foi estimada, em meados do século XX, em cerca de 25 milhões
de indivíduos ficaram sem território. (CALVOCORESSI, 2011).
Após a Primeira Guerra Mundial, o Tratado de Sèvres (1920) deu aos curdos
a esperança de criação de um Curdistão independente. No entanto, a medida não foi
efetivada e as disposições do tratado foram tornadas sem efeito pelo Tratado de
Lausanne (1923), o que gerou revolta e indignação na população curda (CALVOCORESSI, 2011).
No transcurso do século XX, as reivindicações passaram a ganhar um caráter
mais nacionalista e radical da parte dos curdos o que gerou conflitos e rebeliões dos
mesmos contra as nações que os abrigavam. Na década de 1980, o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) radicalizou ainda mais suas ações deflagrando
ações de guerrilha e atentados terroristas.
Tais ações resultaram, na mesma medida, em duras retaliações por parte de
países como o Irã, a Turquia e o Iraque. Foram registrados episódios de genocídios
e uso indiscriminado de agentes químicos contra a população civil não-combatente,
como o ocorrido em 1988, quando Saddam Husseim ordenou um ataque com tais
armamentos que gerou a morte de alguns milhares de curdos (CALVOCORESSI,
2011).
19
A estabilidade política na região foi considerada vital pelos europeus, devido
ao valor estratégico do Oriente Médio e às suas grandes reservas de petróleo, mineral que ganhava importância crescente no início do século XX. Para isso, os países
da Europa envidaram esforços no sentido de manter o equilíbrio geopolítico local, a
fim de salvaguardar seus interesses.
A propósito do petróleo, a distribuição das reservas existentes e conhecidas à
época influenciou sobremaneira a divisão das fronteiras das novas nações. Por
exemplo, no caso do Iraque, da Transjordânia e da Palestina, seus territórios formavam juntos um corredor estratégico e seguro no ciclo produtivo do minério para os
ingleses. O petróleo extraído na região poderia escoar pelo Golfo Pérsico ou pelo
Mediterrâneo e os oleodutos, as ferrovias e as rotas aéreas poderiam circular por
todo o norte da Arábia sem maiores problemas (SCHUBERT e KRAUS, 1998).
As décadas que se seguiram foram coroadas por cada vez mais descobertas
de petróleo na região, como no Kwait, na Arábia Saudita e no Bahrein. À medida das
novas descobertas, os interesses de mais atores de peso no cenário internacional,
como os Estados Unidos da América (EUA), foram ampliados. A maior oferta de petróleo não trouxe paz e estabilidade ao Oriente Médio, pois, a dependência das potências regionais com relação ao precioso mineral foi aumentando cada vez mais e
gerando mais e mais disputas.
A criação do estado de Israel, em 1948, gerou diversos conflitos entre judeus
e palestinos e trouxe ainda mais instabilidade para a região do Oriente Médio (LEITE, 2012).
Desde os primórdios, os judeus constituíram um grupo étnico com fortes laços
de identidade cultural e seguidor da religião monoteísta mais antiga do mundo, o judaísmo. Eles não possuíam um território para a constituição de uma nação e, ao lon go de sua história, passaram por vários episódios de perseguição religiosa que resultaram em sua dispersão (diáspora) para diversas partes do mundo.
Em 1897, Theodor Herzl organizou em Basiléia, na Suíça, o primeiro congresso pela formação de um estado judaico, o que deu início ao movimento chamado sionismo (de Sion, colina da antiga Jerusalém). Desde então, começou a intensificação de um movimento internacional que reivindicava a criação de um estado judaico.
Os judeus da Europa central e oriental, onde o antissemitismo (preconceito contra
judeus) era muito intenso, começaram a migrar para a Palestina, onde a população
20
era de maioria árabe. O primeiro Kibutz (espécie de colônia agrícola) foi criado na
região em 1909 (ALMANAQUE ABRIL, 2011).
Com o fim da primeira guerra mundial e a fragmentação do Império TurcoOtomano, a Inglaterra estabeleceu um mandato na região e começou a tentativa de
administrar os anseios dos judeus e dos árabes na Palestina. Em 1917, o chanceler
britânico Arthur Balfour declarou o apoio à criação de uma nação judaica, o que in tensificou a migração de judeus para a região e recrudesceu a animosidade entre
estes e os árabes (ALMANAQUE ABRIL, 2011).
A perseguição sofrida pelos judeus durante a Segunda Guerra Mundial e o
consequente holocausto, que resultou na morte de cerca de seis milhões de judeus,
aumentaram ainda mais a migração deles para a Palestina e a sensibilização da opinião pública mundial acerca da causa sionista.
Desta forma, a ONU, sem consultar os árabes-palestinos, aprovou por meio
da resolução 181 de 1947, a divisão da Palestina, de acordo com o mapa abaixo:
Figura 04 – Partilha da Palestina proposta pela
ONU - 1947
Fonte: http://www.vinicblog.blogspot.com
Em 1948, o estado de Israel foi criado, tendo como primeiro ministro David
Ben Gurion. A resolução não foi aceita pelos árabes, o que deu início a um conflito
que durou dois anos e opôs judeus contra egípcios, sírios, jordanianos e libaneses.
Após a derrota árabe, um armistício foi assinado e atribuiu a Israel um território maior do que o previsto pela ONU, em 1947(ALMANAQUE ABRIL, 2011).
21
Desde então, diversos conflitos de baixa intensidade e mais três guerras (do
Sinai, em 1956; dos Seis Dias, em 1967; e do Yom Kipur, em 1973) opuseram árabes e judeus, trazendo mais instabilidade para o Oriente Médio e influenciando o
equilíbrio de poder nos países da região e, por conseqüência, no mundo.
Ao final da 2ª Guerra Mundial, França e Inglaterra deixaram de ser as potências com maior influência na região, abrindo espaço para os EUA e a URSS. Os principais fatores que concorreram para isto foram: o processo de descolonização na
Ásia; a expansão comunista pelo mundo, desencadeada pelos russos; a consequente reação estadunidense, por meio da Doutrina Truman (1947); o aumento do interesse mundial por petróleo; a questão palestina; o recrudescimento do terrorismo no
mundo com o epicentro no Oriente Médio etc (ARRUDA e PILETTI, 2004).
Grande parte dos conflitos já nominados que ocorreram na região, bem como
muitos fatos relevantes para a política local, refletiram a disputa por poder e influência destas últimas potências. Na figura abaixo, observa-se George W Bush intermediando um acordo de paz entre Ariel Sharon, Primeiro Ministro de Israel, e Mahmud
Abbas, líder da autoridade palestina, em 04 de junho de 2003.
Figura 05 – George W Bush com Ariel Sharon (esquerda) e Mahmud Abbas (direita)
Fonte: http://www.latimes.com
Alguns destes conflitos, ocorridos durante a Guerra Fria, elevaram ainda mais
o nível de tensão entre os EUA e a URSS, refletindo diretamente no equilíbrio de poder no mundo. A Guerra do Yom Kippur (1973) foi um claro exemplo disto. Tal conflito
opôs, pela quarta vez, árabes e judeus em uma contenda de grandes proporções,
22
envolvendo indiretamente seus patrocinadores russos e norte-americanos e tendo
como uma das conseqüências no mundo a disparada do preço do barril de petróleo.
No que tange aos interesses das potências citadas na região, Herzog (1977)
assinala que:
...perante o mundo árabe e o bloco oriental, a administração Nixon solicitou
ao Congresso a aprovação para a venda a Israel de aproximadamente meio
bilhão de dólares em equipamentos de sofisticação tão avançada, até então
nunca fornecido pelos EUA a países estrangeiros. Esse fato não passou
despercebido aos árabes – como certamente não à União Soviética – e aduziu um outro elemento de confiança ao pensamento israelense.
Dentro deste contexto, Herzog (2007) também cita:
Obviamente os árabes tinham planejado com antecipação seu reabastecimento pela URSS, pois apenas poucos dias antes de começada a guerra,
uma grande ponte aérea soviética já estava em operação, com gigantescos
transportes Antonov 22 aterrando a curtos intervalos em Damasco e no Cairo. Voavam da União Soviética, com escala em Budapeste, e daí para o Cairo e Damasco, através da Iugoslávia. Navios passavam pelo Bósforo em
rota para Latakia e Alexandria.
O término da Guerra Fria, com a queda do muro de Berlim, em 1989, e a fragmentação da URSS, em 1991, inaugurou um período de maior presença física dos
norte-americanos no Oriente Médio. Ainda em 1991, os EUA lideraram uma coalizão
de países para recuperar o território do Kuwait invadido pelas tropas de Sadam Hussein, em uma ação contundente que obteve a vitória em pouco tempo, mas manteve
instituído o regime do ditador (ARRUDA e PILETTI, 2004).
Doze anos mais tarde, no ano de 2003, os EUA empreenderam outra ação
militar contra o Iraque, sem o consentimento das Nações Unidas e como uma das
reações aos atentados terroristas do World Trade Center (2001), ocupando o país e
desestruturando o regime de Saddan, além de levá-lo a julgamento (ARRUDA e PILETTI, 2004).
Outro aspecto que sempre contribuiu para a instabilidade regional é a questão
do controle dos recursos hídricos no Oriente Médio. Isto porque o clima local é árido
e possui escassez de tais recursos. Desta forma, o domínio sobre as fontes de água
estão diretamente ligadas à sobrevivência dos povos da região, desde os primórdios.
23
Grande parte da península arábica é formada por estepes ou desertos, com
oásis isolados, que sempre foram utilizados pelos povos da região. Alguns deles
eram nômades, criadores de camelos e cabras, e suas rotas de migração passavam
por estes oásis. Eram conhecidos como beduínos (HOURANI, 1994)
Outros povos eram sedentários e desenvolviam modestas atividades agrícolas na área dos oásis ou, ainda, eram pequenos artesãos e comerciantes que se estabeleciam em pequenos vilarejos e cidades nas proximidades destes locais (HOURANI, 1994)
O equilíbrio entre os povos sedentários e os nômades era frágil e, frequentemente resultava em conflitos. Embora em menor número, normalmente os nômades
conseguiam subjugar os povos sedentários e estabelecer o seu poder que se estruturava em torno de tribos que exerciam sua influência a partir do controle deste ou
daquele oásis (HOURANI, 1994).
Na atualidade, os países que fazem parte do Oriente Médio continuam pobres
em recursos hídricos. Algumas nações como a Arábia Saudita fazem dessalinização
da água do mar, mesmo assim são grandes compradores de água mineral.
A escassez de água tem gerado conflitos entre países para definir quem exerce o controle das pouquíssimas bacias hidrográficas e águas subterrâneas na região. Um exemplo destas disputas é a que ocorre entre Israel, Líbano, Síria e Jordânia
que, por serem países fronteiriços, disputam o domínio da bacia do rio Jordão
(OLIC, 2010).
Na guerra de 1967, Israel invadiu a região das colinas de Golã, onde está a
nascente do rio Jordão e mantém esta ocupação até a atualidade.
As altas taxas de natalidade no Oriente Médio, nos últimos anos, têm elevado
o consumo de água e reduzido a quantidade da mesma disponível nos mananciais e
fontes, o que tem contribuído ainda mais para agravar a tensão entre os países da
região (HOURANI, 1994).
A bacia dos rios Tigre e Eufrates constitui outro foco de tensões. Suas nascentes se localizam em território turco e o escoamento de suas águas vai em dire ção ao Golfo Pérsico; abastecendo a Síria e o Iraque. Diante disso, ambos os países
temem o controle dos turcos sobre tais nascentes; que podem vir a represar suas
águas para a irrigação de lavouras ou construção de usinas hidrelétricas (OLIC,
2010).
24
Finalmente, verifica-se que o Oriente Médio sempre foi palco de conflitos internos e, nas últimas décadas, alvo de disputas entre as principais potências mundi ais. Disputas estas cujas consequências ultrapassam as fronteiras geográficas regionais, o que divide a opinião pública mundial e colocam os estados da comunidade
internacional em posições opostas (RAMOS, 2013).
De acordo com RAMOS (2013):
O Médio Oriente é, de fato, uma região de suma importância nas relações
internacionais devido aos seus recursos energéticos, fundamentais para o
desenvolvimento dos países ocidentais; e adquiriu, especialmente a partir
do ano de 2001, um papel de relevo na segurança internacional – combate
aos grupos terroristas jihadistas islâmicos. Todo este protagonismo torna
evidente, a razão pela qual, é fulcral manter um Médio Oriente politicamente
estável.
Desta forma, conclui-se que a instabilidade do Oriente Médio afeta o equilíbrio
de poder no mundo e mais ainda dos países que o compõem, o que torna o seu estudo o primeiro grande passo para entender qualquer conflito na região, como o que
trata o presente trabalho de pesquisa.
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4. ISLAMISMO, A RELIGIÃO COMO FATOR DE INSTABILIDADE NO ORIENTE
MÉDIO.
O Islamismo é uma religião monoteísta surgida no Oriente Médio no século
VII depois de Cristo que se disseminou rapidamente após a morte de seu profeta e
fundador Maomé, em 632 d.C. (CALVOCORESSI, 2011).
Maomé nasceu por volta do ano 570, na cidade de Meca, na época, importan te centro comercial, pelo fato de estar situada na rota de comércio que ligava a África à Ásia e o Golfo Pérsico à Europa. Teve uma infância pobre e desde cedo revelou
uma justeza de caráter que lhe conferiu grande respeito e admiração na comunidade
em que vivia (KAMEL, 2007).
Por volta dos quarenta anos de idade, Maomé passou a retirar-se por longos
períodos para meditação na caverna de Hira, nos arredores de Meca. Em um de
seus retiros teve uma visão que teria sido do arcanjo Gabriel, o qual fez a primeira
de uma série de revelações que, inicialmente, foram compartilhadas apenas em um
círculo restrito de amigos e familiares.
Após alguns anos, Maomé teria recebido o sinal de Deus de que deveria dar
início à sua pregação pública. Tal proselitismo não foi bem aceito inicialmente pelos
habitantes de Meca que, na época, constituía em um importante centro de peregrinação de religiões politeístas, que não viam com bons olhos a expansão de uma
nova religião monoteísta (KAMEL, 2007).
Maomé, a despeito das dificuldades iniciais, da perseguição que sofreu e das
lutas que participou, conseguiu em alguns anos aumentar vertiginosamente o número de seguidores do Islamismo. Durante 23 anos, o anjo Gabriel teria revelado os
versículos que viriam a compor o Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos.
Com cerca de 60 anos de idade, Maomé adoeceu e em pouco tempo veio a
falecer. Das divergências acerca da sucessão do profeta, surgiam as duas correntes
principais do Islã, os Sunitas e os Xiitas.
Os fiéis que passaram a seguir Abu Bacre, amigo e sogro do profeta, deram
origem aos Sunitas. Os que seguiram Ali, primo e genro do profeta, deram origem
aos Xiitas (KAMEL, 2007).
26
Segundo Kamel (2013):
No espaço de 28 anos após a morte do profeta, a divisão entre Sunitas e Xiitas estava consolidada. E o Islã, irremediavelmente dividido. Conta
uma tradição, aceita pelos dois lados, que um dia Maomé teria profetizado:
“Vai acontecer ao meu povo o mesmo que aconteceu ao povo de Israel, que
foi dividido em 72 seitas. Meu povo será dividido em 73. Cada uma delas irá
para o inferno, exceto uma: a religião que é professada por mim e por meus
companheiros.”
A disputa pelo título de califa (sucessor do profeta) foi vencida pelos Sunitas,
conferindo aos Xiitas um caráter de dissidência. Como o califa era, além de um líder
religioso, um líder político no império islâmico, isto favoreceu que o sunismo se tornasse a corrente majoritária dentro do Islã. Essa situação foi reforçada pelo império
Otomano e, anos mais tarde, pelas potências européias que ajudaram a consolidar o
poder Sunita no mundo islâmico (BARATA , 2007).
Por outro lado, o xiismo era seguido pelas pessoas que se sentiam oprimidas
dentro do império, o que favoreceu a vocação messiânica dos Xiitas.
De acordo com BARATA (2007):
Os Sunitas constituem a grande maioria da população muçulmana no
mundo, contabilizando os Xiitas apenas 10% do total. Os Xiitas são majoritários no Irã (90% do total da população), no Iraque (65%), no Azerbeijão
(75%) e no Bahrein (75%); são a comunidade mais numerosa no Líbano
(45%) onde se prevê que venham a ser a maioria dentro de 20 anos; e são
comunidades importantes e cada vez mais politizadas no Paquistão (20%),
no Afganistão (19%), no Kuwait (30%), no Qatar (16%), na Arábia Saudita
(10%) e nos EAU (6%). Têm ainda uma presença residual na Índia, no Tajiquistão, na África austral e na Síria.
Uma diferença importante entre os dois grupos é com relação ao papel do clérigo (líder religioso) na comunidade. No mundo Sunita, o papel do califa foi abolido
no início do século XX, pois no sunismo não existe intermediação entre o crente e
Deus, o que confere um papel de pouca relevância para os clérigos.
Por outro lado, os Xiitas conferem grande importância ao papel de seus clérigos. Seu líder máximo é chamado de aiatolá e sua sociedade é bastante hierarquizada sob o aspecto religioso.
De acordo com BARATA (2007):
27
Com exceção do Irã, as populações Xiitas têm sido quase sempre dominadas, marginalizadas e oprimidas, seja pelos poderes políticos, seja pelas outras comunidades étnico-religiosas das sociedades onde se encontram, mesmo onde são estatisticamente majoritárias. Esta situação tem sido
justificada em termos religiosos, pelos Sunitas, com a idéia de que os Xiitas
não são verdadeiros muçulmanos – as correntes mais puritanas do sunismo
consideram mesmo que o xiismo é uma heresia. Esta visão solidificou um
preconceito institucionalizado que tem levado à exclusão dos Xiitas do poder político, administrativo e militar e que leva as outras comunidades a
tratá-las com desconsideração social.
É bem comum a associação entre os Xiitas e os iranianos, pelo fato do Irã ser
um país com maioria da população e governo Xiita. No entanto é importante ressaltar que os iranianos são da etnia persa e que também existem muitos Xiitas árabes.
Inclusive, a origem do xiismo se deu no território do atual Iraque.
O que acontece em verdade é que tanto os Xiitas se utilizam da influência iraniana para se projetar num mundo islâmico onde são normalmente subjugados,
quanto os persas iranianos se utilizam do xiismo para se projetar frente ao mundo
muçulmano dominado pelos árabes. E de fato, o Irã se tornou uma referência para
todas as comunidades Xiitas pelo mundo, tendo em vista que em todos os outros locais eles são discriminados, oprimidos e não conseguem acesso aos cargos de
mando político (Por Munõz, 2005, citado por Barata, 2007).
Com o início da teocracia de Teerã, foi iniciada a internacionalização do xiismo, com o apoio político e financeiro a todos os grupos no exterior, em particular nos
países árabes, que representassem a identidade Xiita (BARATA, 2007).
A polarização entre árabes e persas acabou acirrando a polarização entre Sunitas e Xiitas, tendo ganhado grande impulso com a Revolução Fundamentalista Xiita de 1979 e alcançado o seu clímax por ocasião da guerra entre o Irã e o Iraque
(1980 a 1988). Neste conflito, diversas nações do mundo árabe deram apoio a Saddam Hussein para que ele subjugasse o Irã e, consequentemente, as possibilidades
de um aumento da influência Xiita no Oriente Médio.
Na atualidade, com a derrubada de Saddam em 2003 e a crescente busca de
projeção iraniana, os Xiitas estão adotando, em todos os locais onde têm uma população expressiva, atitudes reivindicatórias a fim de angariar maior poder político e
tentar reverter o equilíbrio de poder entre Sunitas e Xiitas.
28
Dentro deste contexto, o poder Sunita em nações como Líbano, Bahrein, Iraque e Arábia Saudita sempre criaram fortes resistências com relação a processos de
abertura política e democráticos, tendo em vista que a possibilidade do exercício do
voto nestes países de maioria Xiita alteraria o equilíbrio de poder com relação aos
Sunitas. (BARATA, 2007).
No caso específico do Iraque, a transição do poder feita pelos EUA após a saída das tropas norte-americanas do país em 2011 ensejou a assunção de um governo xiita, pela primeira vez na história iraquiana, presidido pelo primeiro ministro Nouri
al Maliki. Este fato tem redundado nos últimos anos em uma série de atentados terroristas empreendidos pelos sunitas, inconformados com a perda de poder político
no país. Alguns grupos mais radicais têm até mesmo apoiado as ações do grupo sunita Estado Islâmico no Iraque como forma de enfraquecer o governo xiita.
Diante de tudo isso, vários países árabes enxergam nas aspirações dos Xiitas
uma ameaça ao poder dos Sunitas. Isso, tanto pela possibilidade da mudança do
pêndulo do poder nos países da região, como por acreditarem que a ascensão Xiita,
onde quer que aconteça, fortaleceria a posição do Irã. Por sua vez, os Xiitas também
se sentem constantemente ameaçados, pois visualizam a possibilidade de serem
perseguidos pelos Sunitas que ainda detém o poder na maioria dos países da região.
Assim, verifica-se que as tensões verificadas entre os seguidores do Islamis-
mo e os de outras religiões também se verificam entre os seguidores das vertentes
desta religião.
A disputa por espaço e influência entre Sunitas e Xiitas é uma realidade em
grande parte do mundo islâmico e tem o potencial de afetar a estabilidade dos países que sejam palco destas fricções, principalmente, se os muçulmanos constituírem
parte expressiva da população nestas nações.
No caso específico da Síria, alvo deste estudo, a tensão se dá entre os Sunitas e os Alauítas, que são uma vertente dos Xiitas, e possuem o mesmo padrão de
relacionamento com relação ao sunismo.
Os Alauítas têm mantido estreita relação com o Irã durante as últimas décadas. Da parte dos Alauítas, este apoio tem sido fundamental para a manutenção do
poder em uma nação de maioria Sunita. Da parte dos iranianos, tal apoio tem sido
vital para manter um governo simpático e aliado aos persas, em um mundo muçulmano dominado majoritariamente por árabes e Sunitas.
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O regime sírio também tem apoiado sistematicamente, juntamente com o Irã,
o grupo extremista Xiita Hezbollah que atua a partir do Líbano, contra o inimigo em
comum, Israel.
Diante do acima exposto, verifica-se que o Islamismo é um dos fatores que
tem contribuído para a instabilidade nos países muçulmanos de maneira geral, e na
Síria em particular, pois as suas dissensões têm gerado muitos conflitos violentos ao
longo dos últimos séculos.
No caso da Síria, a ação violenta do governo Alauíta contra a maioria Sunita
revela mais do que a disputa entre poder ou entre facções religiosas antagônicas;
revela a luta de uma minoria contra o aniquilamento que poderia resultar caso os Su nitas conseguissem assumir o poder no país.
30
5. FORMAÇÃO POLÍTICA DA NAÇÃO SÍRIA
A Síria é um país republicano situado no Oriente Médio e é delimitado a oeste, pelo Líbano e pelo mar Mediterrâneo; a norte, pela Turquia; ao sul, pela Jordânia
e por Israel; e a leste pelo Iraque. Possui uma área de 185180 Km2 e suas principais
cidades são Damasco (capital), Aleppo, Hamah e Homs.
Sua população é de 22,5 milhões (2010) de habitantes sendo que 92,8% seguem o islamismo, 5,2% seguem o cristianismo (a Síria é um dos últimos redutos
cristãos no Oriente Médio) e o restante se divide em agnósticos, ateus, dentre outros. Dentre os muçulmanos, cerca de 74% são Sunitas e os outros cerca de 16% se
dividem entre Alauítas (uma ramificação dos Xiitas), Drusos e Xiitas (ATLAS GEOGRÁFICO MUNDIAL, 2005).
A região da Síria é habitada desde a antiguidade e, ao longo dos séculos, foi
dominada por diversos impérios até ser incorporada ao Império Otomano, em 1517.
Durante a Primeira Guerra Mundial (1914 a 1918), o nacionalismo árabe ganhou expressão e gerou revolta contra a dominação Turca. A participação na luta contra os
turcos trouxe grande expectativa acerca da autodeterminação da região. No entanto,
ingleses e franceses assinaram o acordo Sykes-Picot, dividindo grande parte do Oriente Médio, de tal forma que a região da Síria passou a constituir protetorado fran cês (PORTAS ABERTAS, 2012) e (ALMANAQUE ABRIL, 2011).
A independência do país veio em 1946 com Sukri al-Quwatli como presidente.
Os primeiros anos de independência política da Síria foram extremamente conturbados e marcados por golpes de estado, de tal forma, que o estado de Sítio permane ce decretado desde 1962.
De 1946 a 1958 a Síria foi governada por dez presidentes. Gamal Abdel Nasser foi o presidente da República Árabe Unida (RAU), durante a existência desta, de
1958 a 1961, resultado da união entre Egito e Síria. O partido Baath Sírio teve papel
de grande relevância para a transformação política do país sendo que, em 1963,
efetivamente tomou o poder e, em 1964, mudou o nome do Estado para República
31
Popular da Síria, enaltecendo o caráter pan-arabista e socialista da nação (ZAHREDDINE, 2011).
Após sucessivos golpes de estado, ocorridos na década de 1960, o ministro
da Defesa, General Hafez al-Assad, muçulmano Alauíta, assumiu o poder, em 1971,
também por meio de um golpe, e passou a governar ditatorialmente, o que trouxe
certa estabilidade política ao país.
Com relação ao governo de Hafez al Assad, ZAHREDDINE (2011), diz que:
Hafez al Assad era de uma família modesta e fazia parte de uma minoria
religiosa na Síria, os Alauítas. Este caráter minoritário sempre esteve
presente no seu governo, pois constantemente buscava formas de governabilidade que permitisse a ascensão socioeconômica e política de
sua minoria (os Alauítas), bem como dos cristãos e Drusos, em detrimento da maioria Sunita.
No ano de 2000, Hafiz morreu e seu filho, Bashar al Assad, assumiu o país
após a legitimação por meio de um referendo popular, mantendo-se no poder até os
dias atuais (ATLAS GEOGRÁFICO MUNDIAL, 2005).
Bashar al Assad possuía apenas 34 anos de idade na ocasião. Desta forma, a
constituição síria teve de ser alterada para diminuir a idade mínima aceita para a
ocupação de tal cargo. O novo presidente manteve suas alianças locais seguindo o
modelo de seu pai, valendo-se principalmente da força das alianças com as minorias.
Em um primeiro momento, criou-se uma esperança que o novo presidente traria mudanças reais para o regime, tendo em vista sua formação européia (oftalmologista formado na Inglaterra) e sua jovialidade. Algumas evoluções foram percebidas
inicialmente, como maior acesso à informação (por meio da internet) e tentativas de
retirar a Síria de seu forte isolamento político no mundo. Entretanto, as forças políticas que sustentavam o governo não permitiram mudanças mais profundas no regime, mantendo os mesmos mecanismos de ação do período anterior (ZAHREDDINE,
2011).
Segundo RAMOS (2013):
Bashar reconheceu a necessidade de estabelecer o diálogo e o debate
com a sociedade, todavia, isto pouco ou nada significou em termos de
abertura política, pois a repressão manteve-se, aniquilando os movimentos da sociedade civil.
32
No que se refere à prática religiosa, os governos de Hafez al Assad (1970 a
2000) e de Bashar al Assad (2000 até os dias atuais) fizeram da Síria uma nação
com certo grau de liberdade. Isto porque estes governantes, na condição de representantes da minoria Alauíta, procuraram contemporizar os anseios da maioria Sunita da população e dos integrantes de outros credos. Como forma de manter o poder,
mobiliaram a alta cúpula estatal e das forças armadas colocando Alauítas nas posições chave e mantendo um regime ditatorial como forma de manter o país integrado
(LEITE, 2012).
A manutenção de um exército muito fiel ao presidente e a reação imediata e
violenta contra todas as dissidências ao regime surgidas permitiram que a Síria se
mantivesse íntegra nas últimas décadas, a despeito de todas as dificuldades para
administrar os diversos interesses dos grupos que compõem o país.
De acordo com ZAHREDDINE (2011):
A busca por adequar as aspirações de todas estas comunidades é algo
difícil, em função de características próprias da sociedade árabe, muito
ligada aos laços familiares e clânicos, reforçados por princípios de mérito
e honradez. Desta forma, as disputas entre as diversas comunidades
são marcadas por rígidos códigos de comportamento, pautados no respeito às famílias e clãs. Na ausência de instituições nacionais capazes
de mediar as relações de poder entre as comunidades, o papel das instituições primárias, como a religião e a família se mostram primordiais
para a manutenção da ordem no Estado. Mesmo o governo Sírio sendo
laico sua sociedade não é secular, e muito das contradições que podem
ser encontradas entre a relação do governo com sua sociedade é fruto
deste descompasso.
Desde sua autodeterminação, a Síria se envolveu em inúmeros conflitos, em
particular contra Israel. Por ocasião da independência israelense, em 1948, lutou ao
lado do Egito, Jordânia, Iraque, Arábia Saudita e Líbano contra a recém criada nação judaica, instituída pelo Plano da ONU para Partição da Palestina (resolução 181
das Nações Unidas) saindo-se perdedor.
Em 1967, os sírios lutaram novamente ao lado dos egípcios contra os israelenses, na Guerra dos Seis Dias, de onde se saíram perdedores novamente e tiveram a região das colinas de Golã passando a controle de Israel, situação que permanece até a atualidade.
33
Em 1973, a Síria, juntamente com o Egito, atacou Israel dando início à Guerra
do Yom Kippur, assim chamada por ter sido iniciada em um dia sagrado para os judeus, o Dia do Perdão. O conflito iniciou-se com um ataque simultâneo dos dois paí ses contra a nação judaica. Com a intervenção dos Estados Unidos e da União Sovi ética a guerra terminou, com a assinatura de um acordo de paz (GRUPO
ESCOLAR , 2008).
Dentro deste contexto, segundo Klester Cavalcanti (2012):
Há registros de conflitos em terras sírias desde 3000 aC. Durante os últimos
cinco milênios, o comando do país já esteve nas mãos dos sumérios, dos
faraós egípcios, de bizantinos, romanos, otomanos, de Alexandre, o Grande,
dos árabes, dos franceses, entre outros povos. E cada nova conquista era
precedida de batalhas. Além da disputa territorial sempre houve conflitos étnicos e religiosos. Foi à custa de sangue que a Síria se tornou um país de
língua árabe e de maioria muçulmana – cerca de 90% de seus 22 milhões
de habitantes. Nesse contexto, o império ou a etnia que chegava ao poder
beneficiava, política e economicamente, seu povo (CAVALCANTI, 2012).
Desta forma, verifica-se que a Síria é um país politicamente e socialmente
instável desde sua constituição, sendo palco de inúmeras disputas entre grupos antagônicos que têm contribuído para a radicalização e a escalada da violência ao longo da história da nação.
Além disso, no campo das relações exteriores, o país se envolveu em vários
conflitos bélicos ao longo de sua história, reforçando o caráter belicista nacional que
não se melindra em usar a força para garantir seus interesses.
Figura 06 – Mapa da Síria
34
Fonte: www.navalbrasil.com
6. A PRIMAVERA ÁRABE
No início de 2011 o mundo assistiu a uma escalada de revoltas populares em
países do mundo árabe que desestabilizou ainda mais a região e ficou conhecida
como Primavera Árabe. O movimento teve início na Tunísia e rapidamente se alastrou por outras nações da região. A raiz dos protestos foi a estagnação econômica
dos países que possuíam em sua maioria populações jovens e desempregadas, aliados ao alto custo de alimentos e à falta de oportunidades de emprego. Somou-se a
isso a revolta contra regimes ditatoriais no poder há vários anos.
Outro aspecto de grande relevância foi o acesso aos modernos meios de comunicações e às mídias sociais que permitiram a “abertura de janelas” para o mundo exterior, o que suscitou comparações e frustrações no seio daquelas sociedades
acostumadas ao atraso e à opressão. Tais redes também foram importantes para a
coordenação das ações e manifestações contra os governos instituídos (CANEPA,
2012).
As revoluções ocorridas na região depuseram os representantes da “velha ordem”, ditadores que mantinham seus regimes mediante opressão, mas, de certa forma, traziam certa estabilidade à região e possuíam uma política externa com certo
grau de previsibilidade. No caso do Egito, Hosni Mubarak era importante aliado dos
EUA há mais de trinta anos.
35
O fenômeno ocasionou a queda do regime na Tunísia e no Egito. No primeiro,
a queda do ditador Zine al Abidine Ben Ali marcou uma virada na região, pois foi a
primeira deposição de um ditador pelo povo. No Egito, país mais populoso e influente do mundo árabe, o ditador Hosni Mubarak, aliado dos EUA e no poder desde
1981, foi deposto e substituído por uma junta militar que ficou encarregada de fazer
a transição para um governo democrático. No Marrocos, o governo se antecipou à
mobilização das massas e promoveu eleições democráticas (CANEPA, 2012).
Na Líbia, o ditador Muammar Kadafi foi executado após uma insurgência interna que teve apoio dos países membros da OTAN, que realizou intenso bombardeio no país, o que ajudou a enfraquecer o regime.
No Iêmen, nação mais pobre do mundo árabe, o movimento ensejou a disputa
entre clãs rivais que quase levaram o país a uma guerra civil. O ditador Ali Abdullah
Saleh, no poder há mais de trinta anos, resistiu às pressões internas durante alguns
meses e conseguiu escapar de um atentado contra sua vida até que, em novembro
de 2011, entregou o poder a um governo provisório.
No caso específico da Síria, da mesma forma como ocorreu em alguns países
vizinhos, em março de 2011, o país tornou-se palco de grandes manifestações. A repressão violenta empreendida pelo governo desde o início, motivada pela insegurança do regime frente aos demais segmentos da sociedade, foi uma das grandes responsáveis pela rápida escalada da crise que ensejou a guerra civil ora em curso e
que é o objeto do presente estudo.
Segundo RAMOS (2013):
De facto, ano de 2011 ficará marcado como o ano das revoltas árabes, e,
também, como o ano de muitas incertezas quanto ao desenrolar da História. Desde logo, as revoltas foram associadas à vontade das populações de caminhar no sentido da democracia, contudo, muitos locais permanecem demasiado distantes desse objetivo. O extenso período de ditadura criou estruturas e instituições moldadas e vocacionadas para o regime, sendo um verdadeiro desafio a reestruturação de todo este sistema num conjunto de instituições democráticas.
Figura 07 – Manifestante na Primavera Árabe
36
Fonte: www.cybersociedade.com.br
O fenômeno em curso no mundo árabe trouxe à tona uma possibilidade que
preocupa analistas políticos do mundo inteiro, em particular dos países com interesses na região: a ascensão do islamismo político. As ditaduras seculares reprimiram
esses movimentos durante vários anos com apoio de potências ocidentais. Alguns
desses movimentos e partidos foram colocados na ilegalidade e seus líderes presos
ou extraditados. A volta destas pessoas e dos grupos que eles representam pode colocar no poder islamitas radicais propensos a uma forte posição antiocidental (CANEPA, 2012).
Apesar das manifestações da Primavera Árabe terem tido caráter laico, as
agremiações islâmicas ganharam espaço e liberdade de manobra, o que ficou comprovado com as eleições presidenciais que ocorreram no Egito, em 2012, que foi
vencida por Mohammed Morsi, representante da organização islâmica fundamentalista chamada Irmandade Muçulmana que atuava na clandestinidade há vários anos.
Apenas um ano depois de ter sido eleito, Morsi foi deposto e os militares voltaram a
perseguir a Irmandade Muçulmana (CANEPA, 2012).
Ainda em 2012, nas eleições parlamentares do Egito, o Partido Liberdade e
Justiça (PLJ), braço político da Irmandade Muçulmana, conquistou 235 dos 498 assentos existentes. Outros 121 assentos foram conquistados por salafistas (fundamentalistas Sunitas) do partido Nour. Os partidos liberais e seculares elegeram apenas 88 representantes.
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Fernando Eichenberg, em artigo do Jornal O Globo, cita Denis Bauchard, especialista em Oriente Médio do Instituto Francês de Relações Internacionais, que diz
o seguinte:
Se, em seu começo, as revoltas foram acolhidas com certa simpatia e entusiasmo nos países europeus – na idéia de que a democracia se espalharia
pelo mundo árabe -, assinala ele, essa “euforia excessiva” logo cedeu lugar
a um “catastrofismo” ao se verificar que as eleições convocadas favoreciam
os movimentos islamistas, principalmente a Irmandade Muçulmana (Bauchard, 2014)
Os partidos islâmicos aumentaram sua representatividade também na Tunísia
e no Marrocos. Apesar de eles terem adotado discursos mais moderados, em sintonia com as forças laicas que derrubaram os respectivos governos, o receio é grande
dentre os analistas de que no futuro países da região se tornem teocracias.
A Primavera Árabe vem ensejando complicado desafio para as nações da região, qual seja, a implementação de regimes democráticos em países que não conhecem outra forma de governo que não o autoritarismo. A instabilidade sempre foi
uma constante no processo de formação e evolução de tais países, de tal forma que
somente ditadores conseguiram promover a estabilização, não sem o emprego de
grande violência e derramamento de sangue (CANEPA, 2012).
Desta forma, verifica-se que o fenômeno em tela teve conseqüências imediatas como o conflito na Síria e, além disso, deverá ser objeto de estudos e acompanhamento nos próximos anos, tendo em vista que seus efeitos ainda trarão reflexos
tanto para os países da região como para a geopolítica mundial.
Figura 08 – Manifestação contra Bashar al Assad
38
Fonte: www.democraciapolitica.blogspot.com
Figura 09 – Ditadores e a Primavera Árabe
Fonte: klebercaverna.blogspot.com
39
7. OS INTERESSES ESTRANGEIROS NO CONFLITO SÍRIO
A Síria, sendo uma nação do Oriente Médio, região que, conforme já foi verificado, possui grande importância estratégica no mundo, é um país que tem sido alvo de
diversos interesses estrangeiros ao longo de sua história.
Abordando tais interesses a partir do início do século XX, pode-se ressaltar inicialmente o domínio da região pela França, após o Tratado de Sykes-Picot, como já foi
elucidado, o que contribuiu para o enraizamento de expressiva comunidade cristã na
região, o que viria a facilitar o domínio francês nas décadas seguintes (ZAHREDDINE, 2011).
A França realizou um censo demográfico na região sob seu domínio que abarcava
a atual Síria, o Líbano e a província turca de Hatay, em 1921, dividindo desta forma
as terras sob seu controle. Desta forma, já estariam plantadas as sementes que contribuiriam, anos mais tarde, para a fragmentação do território em pequenas repúblicas.
Segundo CLEVELAND, 2009:
O Resultado do Censo Francês levou à criação de seis províncias na “Grande Síria”, onde o aspecto confessional seria central para a criação dos futuros “Estados”. Seriam eles: o Estado de Alepo, o Estado de Damasco,
o Estado de JabalDruze, o Estado Alauíta , a Província de Alexandreta
40
(Hatay) e o “Grande Líbano”. Cada um destes Estados estaria sob o controle de uma elite confessional, tutelada pela França. Este elemento confessional/étnico pode ser observado no desenho dos limites territoriais da Síria
sob Mandato francês: duas províncias eram de maioria Sunita (Estado
de Alepo e Estado de Damasco), uma de maioria Drusa (Estado de
JabalDruze), uma de maioria cristã (Grande Líbano
um Estado de
maioria Alauita (Estado Alauita) e uma província autônoma de maioria
Turca (Sanjak – Alexandreta).
A França, partindo da estratégia do “dividir para dominar (ou conquistar)”, ao longo de todo seu mandato, foi ciosa no dever de instrumentalizar o equilíbrio de forças
existente entre os diversos grupos étnico-religiosos, de forma a impedir a formação
deste ou daquele grupo que pudesse formar uma massa crítica com força política
suficiente para requerer mais direitos. Neste contexto, identificando os Sunitas como
maior grupo regional, dividiu a porção do território por eles ocupado em duas províncias distintas, Alepo e Damasco.
Diante desta crescente fragmentação, em 1925, eclodiu uma revolta árabe antiimperialista que durou até 1927 e, apesar de ter sido vencida pelos franceses, refreou
em parte maiores divisões do território, criando as bases para o futuro estado sírio
(ZAHREDDINE, 2011).
O “Grande Líbano” proclamaria sua independência anos mais tarde, em 1943,
sendo oficialmente reconhecido pela ONU, em 1946, como a República do Líbano.
Ainda em 1946, a Síria formalizou sua independência constituída, majoritariamente, por uma população Sunita, além de outros grupos étnico-religiosos. A formação
política do país foi conturbada desde o início, conforme já foi abordado em capítulo
anterior, o que tornou a nação mais vulnerável ainda às interferências estrangeiras
no cenário nacional.
Figura 10 – Mapa do mandato francês na Síria
41
Fonte: Censo Francês 1921-1922, CLEVELAND, 2009.
A Síria, desde que se tornou independente, passou a ser alvo também dos interesses islâmicos estrangeiros de caráter Sunita, que vislumbravam o potencial da
nação em tornar-se mais uma nação árabe dominada por este grupo, devido à grande proporção de Sunitas no país.
Tais ingerências externas causaram conflitos como o ocorrido na cidade de Hama,
em 1982, quando Hafez al Assad determinou o cerco e a destruição da resistência
islâmica, representante da Irmandade Muçulmana, que se encontrava nesta cidade.
O cerco de 27 dias deixou um saldo de 10.000 mortos e desencorajou por um bom
tempo outros movimentos contrários ao regime (ZAHREDDINE, 2011).
No conturbado Oriente Médio, em particular após a 1ª Guerra Mundial, unidades
políticas de maior projeção, como Turquia, Arábia Saudita, Egito e Irã, procuraram
influenciar cada vez mais o cenário regional, em suas disputas por poder, o que inevitavelmente gerou reflexos na Síria.
Um dos reflexos mais emblemáticos se deu pelo fato do território sírio servir como
palco de disputas entre a Arábia Saudita, que procura manter um papel de liderança
entre os Sunitas no Oriente Médio, buscando fortalecê-los, e o Irã que, por seu tur-
42
no, desempenha um papel de liderança entre as comunidades Xiitas, procurando
fortalecê-los também na região e assegurar a continuidade do governo Alauíta na Síria.
Após a 2ª Guerra Mundial, a região passou a receber maior atenção e influência
de dois novos atores no cenário mundial, EUA e URSS. Segundo Zahreddine, 2011:
Com a Segunda Grande Guerra, e principalmente após a crise do Canal de
Suez, em 1956, dois novos atores irão polarizar as disputas na região, os
Estados Unidos da América e a União Soviética. Esta polarização é um reflexo da própria ordem mundial inaugurada em 1947, que também terá seus
efeitos no Oriente Médio.
Com o surgimento do partido Baath, de perfil socialista, e a ascensão ao poder de
Hafez al Assad, a Síria estreitou cada vez mais seus laços com a URSS. Hafez já
havia morado por alguns anos naquele país, como parte de sua formação política,
militar e ideológica, o que favoreceu ainda mais tal aproximação, que se estendeu
ao comércio, alianças políticas e intercâmbios militares (TOMÁS, 2014).
Em troca do apoio russo, a Síria concedeu seu litoral para o estabelecimento de
uma grande frota naval soviética no porto de Tartus, fazendo com que o país se tor nasse mais importante ainda para a URSS (TOMÁS, 2014).
As relações estreitas com a União Soviética e com o Irã, e o apoio às ações do
grupo terrorista Hezbollah, sediado em território libanês, contra Israel, fizeram com
que a Síria atraísse a animosidade crescente dos EUA, que incluíram o país no rol
das nações do “Eixo do Mal”, devido ao apoio às atividades terroristas pelo mundo.
Foi sendo o epicentro de tantas disputas e interesses regionais e extra-regionais
ao longo de sua história, que a Síria entrou no conflito alvo do estudo em tela, inicia do em 2011.
Tais disputas e interesses constituíram as forças que tem ampliado o conflito,
além de torná-lo extremamente complexo para o equilíbrio regional e para a paz
mundial. Elas se organizam da seguinte forma:
•
De um lado: governo de Bashar + Alauítas + outras minorias religiosas
(que se beneficiavam das liberdades religiosas no país) + Russos + Irã + Hezbolah +
Hamas.
•
Do outro lado: Rebeldes sunitas (alguns grupos reunidos em torno do
Conselho Nacional Sírio, CNS) + Arábia Saudita (visa enfraquecer e isolar o Irã) +
Bahrein (visa enfraquecer e isolar o Irã) + Al Qaeda.
43
Recentemente, o Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS) passou a tomar
parte no conflito, tornando-o ainda mais complexo.
O ISIS é um grupo armado surgido após a queda do regime iraquiano de Saddam
Hussein, composto por insurgentes sunitas, oriundos de vários outros movimentos jihadistas, inclusive a Al Qaeda, que visa instaurar um califado islâmico – Estado governado por um Califa, baseado na lei islâmica (Sharia) --, valendo-se do caos instalado no Iraque (TOMÁS, 2014).
Este movimento passou a controlar um território na fronteira entre Iraque e Síria e,
inicialmente, manifestou fidelidade à Al-Qaeda, que os aceitou, mas que, em um segundo momento, os renegou, devido aos métodos violentos aplicados contra a própria população islâmica
O ISIS se colocou ao lado dos rebeldes, em um primeiro momento, e foram aos
poucos conquistando mais espaço e poder até virarem-se contra eles e começarem
a executar grandes contingentes populacionais e, inclusive, os próprios rebeldes a
quem inicialmente apoiavam. Segundo Tomás, 2014:
de repente o ISIS era a força mais poderosa a combater na Síria,
controlando as cidades de Ar-Raqqa, Idlib e Aleppo. Tal como no
Iraque, instituíram Estados fundamentalistas islâmicos, protegendo as populações que lá moravam, mas também cometendo atrocidades contra os rebeldes, que começaram a ter de lutar em
duas frentes, contra o ISIS e contra Bashar al-Assad. Apesar de,
em fevereiro de 2014, a Al-Qaeda ter-lhes retirado o apoio, o seu
poder foi crescendo, bem como o número de jihadistas que se lhe
juntavam, vindos de todas as partes do mundo, em especial da
Europa, por ser mais fácil passar pelas fronteiras.
Finalmente, fica claro que a história da Síria está diretamente relacionada aos in teresses estrangeiros divergentes em seu território que se mostraram presentes,
principalmente, após a independência do país. Tais interesses têm sido tão relevantes que podem ser considerados, em alguns casos, como uma das principais causas
de dissensões internas e conflitos, como o que ocorre na atualidade.
Figura 11 – Comboio de veículos do ISIS
44
Fonte: www.theguardian.com
Figura 12 – Execução em massa pelo ISIS
Fonte: www.irishtimes.com
8. O CONFLITO NA SÍRIA
As manifestações na síria começaram em março de 2011 e, desde o início, foram reprimidas com violência pelas tropas leais ao ditador Bashar al Assad. O ditador fez algumas concessões que tiveram o tom de reformas políticas mas que, entretanto, não aplacaram os clamores populares. O conflito tomou proporções cada
vez maiores e acabou se transformando em uma guerra civil onde a maioria Sunita
vêm tentando derrubar o governo e a alta cúpula do exército que são dominados
pela minoria Alauíta.
45
Alguns fatores tornam o conflito na Síria extremamente complexo e com potencial de alastramento das hostilidades pela região. Como pôde ser observado anteriormente, o país foi um dos protagonistas dos principais conflitos ocorridos no Oriente Médio nas últimas décadas. Os sírios são aliados do Irã, que é dominado pelos
Xiitas; apóiam o Hezbollah, grupo libanês com um braço terrorista contumaz em
ações contra Israel; apóiam também o Hamas, organização palestina de origem Sunita que domina a faixa de Gaza e também realiza ações terroristas e ataques convencionais contra Israel. A Síria é inimiga declarada de Israel e também conduz forte
oposição aos interesses da política externa estadunidense na região (CANEPA,
2012).
Aliado a isto, a heterogeneidade da população síria também constitui aspecto
que torna a situação mais crítica. Ao longo da historia do país, os Sunitas nunca esti veram tão perto conseguir derrubar o governo Alauíta. Eles contam com o apoio de
muçulmanos Sunitas de outras nações árabes como a Arábia Saudita e o Bahrein,
por exemplo, que visualizam a oportunidade de estender a hegemonia Sunita a mais
um país da região além de enfraquecer o rival Irã, principal aliado da Síria no Oriente
Médio (CAVALCANTI, 2012).
Um aspecto que pôde ser verificado é que os primeiros protestos ocorreram
principalmente nas regiões marginalizadas pelo governo central. Inicialmente, a corrupção e a necessidade de reformas foram as principais exigências populares. Em
um segundo momento, o fim do regime e as liberdades civis foram incluídos no conjunto de reivindicações.
O conflito gerou uma fragmentação notória no país, como pode ser observado
no quadro abaixo.
Figura 13 – Mapa das áreas de disputa na Síria
46
Fonte: ACAPS – Syria Needs Analysis - 2013
Segundo Zahreddine, 2011:
As regiões historicamente divididas para os Sunitas, nos antigos “Estados”
de Alepo e Damasco representam os principais redutos da oposição (excetuando a capital Damasco e as disputadas cidades de Homs e Hama), sendo que as regiões com a maior presença das forças armadas sírias são
aquelas ligadas às minorias, como o antigo “Estado Alauita”(em Tartus e Latakia), no JabalDruze (em Swaida e adjacências), em Damasco e em posições importantes com presença de minorias cristãs.
No cenário internacional, as divergências causadas pela crise têm sido tão
grandes que chegaram a provocar a primeira e mais grave crise diplomática entre
EUA e Rússia, desde o fim da Guerra Fria. Isso ocorreu, principalmente, após o ataque realizado utilizando-se agentes químicos contra populações civis em território sírio. A autoria de tais ataques até hoje não foi comprovada, pois ambos os lados no
conflito negam a responsabilidade sobre o episódio, além de acusarem-se mutuamente.
47
Figura 14 – Manifestante exibe cartaz contra Bashar al Assad
Fonte: www.brasilescola.com
A capilaridade do conflito no território sírio, os ideais nacionalistas e religiosos
dos rebeldes e os grandes contingentes populacionais de refugiados e deslocados
apontam para uma reconfiguração do país que dificilmente voltará a ocupar o espaço geográfico de outrora.
De acordo com as Nações Unidas, o conflito já deixou mais de 190000 mortos. O número de refugiados sírios que deixaram seu país chegou a três milhões, de
acordo com dados divulgados pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os
Refugiados (Acnur), o que torna os sírios, na atualidade, a maior população de refugiados do mundo sob os cuidados da Acnur. O número de deslocados internos ultrapassa quatro milhões (NAÇÕES UNIDAS, 2014).
Assim sendo, o conflito transcorre na atualidade sem expectativas de solução
no curto prazo, tendo em vista que as mediações ocorridas não viabilizaram o refreamento das hostilidades. As possibilidades de propagação do conflito continuam
grandes e têm preocupado as autoridades de todo mundo.
A entrada recente de mais um ator na crise, o ISIS, torna a situação mais in certa ainda, fazendo analistas reformularem as estratégias para lidar com o conflito.
Para alguns, a derrubada do regime de Bashar al Assad deixa de ser a linha de ação
prioritária, pois o vácuo de autoridade traria uma grande oportunidade para tal grupo
ampliar o seu poder. Desta forma, uma das soluções mais relevantes para a crise
passou a ser o fortalecimento do regime, na esperança de que o mesmo possa esta bilizar o país.
48
9. CONCLUSÃO
Por fim, chega-se ao final deste trabalho com a convicção de que o problema
que motivou esta pesquisa foi respondido na plenitude, qual seja: Quais foram as
causas históricas que levaram ao conflito na Síria, iniciado em 2011?
A apresentação da história do Oriente Médio foi capaz de traçar os contornos
da moldura geopolítica que enquadra a Síria, ressaltando os diversos aspectos da
conturbada formação e evolução daquele pedaço da Ásia, donde se conclui que a
instabilidade política pode ser considerada um traço que identifica muitas das unidades políticas ali situadas.
A religião Islâmica foi analisada, o que permitiu perceber que suas nuances e
interpretações têm constituído fator de instabilidade em muitos países onde o número de adeptos deste credo é expressivo.
Outro aspecto relevante para o trabalho foi a análise da formação política do
estado Sírio, o que criou condições de se verificar que a estabilidade política síria
sempre foi mantida às custas da manutenção de um regime de opressão que procurou sistematicamente se antecipar às manifestações reivindicatórias e de dissidentes
ao longo da história do país.
A análise da "Primavera Árabe" foi fundamental para entender o fenômeno que
abriu o precedente que permitiu a eclosão das manifestações na Síria que levaram
ao presente conflito, pois, ficou claro que as forças mobilizadas por todo mundo árabe, a partir de insatisfações acumuladas ao longo de décadas, atingiram um ponto
de inflexão, levando multidões de descontentes a contestar velhos regimes políticos,
ainda que isto lhes custasse muitas vezes a própria vida.
Um ponto central deste estudo foi a apresentação dos interesses estrangeiros
na Síria, onde se verificou que existem muitos outros aspectos envolvidos no conflito
em pauta, do que somente aqueles inerentes aos problemas internos sírios. Mais do
que terem contribuído para o início das hostilidades e o posterior agravamento da
crise, estes interesses tem tornado a busca negociada da paz entre as partes contendoras um objetivo quase inalcançável.
Após o estudo de todas as causas históricas do conflito na Síria, o mesmo foi
apresentado de forma sintética, o que permitiu uma visão de até que ponto já chegou a tragédia humanitária naquele país e o seu alto grau de complexidade.
Três anos já se passaram desde o início da crise na Síria. As hostilidades que
se iniciaram com uma luta contra o despotismo e pela liberdade, se tornaram um
49
conflito de interesses, onde vários atores procuram se valer da situação para defenderem suas posições e utilizarem as diferenças étnicas e religiosas como pretexto
para disputas de maior alcance.
As causas que levaram ao conflito já foram amplamente analisadas por especialistas no mundo, como comprova a documentação que subsidiou a presente pesquisa. O desafio agora para as autoridades mundiais e seus analistas é responder
aos seguintes questionamentos: quais são as prováveis consequências da deposição ou não do presidente Bashar al Assad? Como seria a relação de um novo gover no Sunita frente às minorias Alauítas, Cristãs, Drusas e Curdas? Este governo Sunita assumiria uma postura mais secular ou teria um viés mais radical? Com o fim do
conflito, como ficaria a balança de poder entre sauditas e iranianos? A Rússia continuaria exercendo forte influência sobre a Síria ou sobre a nova unidade política que
nascesse de uma possível fragmentação do território? Quanto o ISIS poderia se beneficiar desta possível fragmentação? Diante da ameaça do ISIS, é mais vantajoso
fortalecer o regime de Bashar para que a estabilidade política seja atingida e tal movimento seja enfraquecido? Quais seriam as consequências caso o ISIS consiga estender seus domínios e se apropriar de grande parte do sofisticado armamento russo que está nas mãos do exército sírio? Os jihadistas desmobilizados após o possível fim do conflito na Síria, bem armados que estão, tomariam parte em outra causa
ao redor do mundo? Ou engrossariam as fileiras de grupos terroristas como aconteceu com os mujahedin ao final da ocupação russa no Afeganistão? Parte da tragédia
humanitária ocorrida poderia ser revertida com o retorno dos refugiados e deslocados para os seus lares?
Diante da multidimensionalidade do problema sírio, não parece haver nenhuma
solução simples. Quaisquer medidas que sejam implementadas para se por fim às
hostilidades precisam, inicialmente, serem elaboradas em conjunto por todos os atores com interesses nos desdobramentos da crise, o que pressupõe a busca de um
consenso, alternativa esta que a realidade já demonstrou ser inviável no curto prazo.
Ao passo que este consenso não é atingido, os interessados nos resultados do
conflito continuam alimentando as partes contendoras com meios materiais e humanos, fazendo com que não haja uma preponderância de forças por parte de nenhum
dos oponentes, o que poderia por termo à crise.
Neste cenário de incertezas, a história já demonstra o que pode advir de um
Estado esfacelado. O ISIS foi fruto da incapacidade do governo iraquiano em manter
50
a estabilidade e exercer a autoridade em seu país, após a saída dos norte-americanos, dando mostras do que poderia ocorrer na Síria, o que deixa autoridades de todo
o mundo extremamente apreensivas.
Enquanto isso, os números de vítimas do conflito continuam aumentando e
atingindo de forma indiscriminada, mulheres, crianças e idosos, em uma das maiores catástrofes humanitárias da história recente da humanidade.
Finalmente, conclui-se que a solução para o conflito, se é que possa ser formulada a curto ou médio prazo, não poderá declinar de analisar amplamente todos os
fatores históricos que fazem dos países do Oriente Médio, em geral, e da Síria, em
particular, possivelmente a região mais instável do mundo.
51
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