Peculiaridades da cardiopatia hipertensiva na hipertensão arterial de controlo A resistência da hipertensão arterial ao tratamento acompanha-se, usualmente, de maior comprometimento dos órgãos alvo. Aliás, é até recomendável que nos casos em que a hipertensão se afigura difícil de controlar e o diagnóstico de hipertensão resistente se coloca, a ausência de comprometimento de órgãos alvo nos deva levar a equacionar outras hipóteses como pseudo-hipertensão ou hipertensão de consultório ou da bata branca. Estas lesões dos órgão alvo caracterizam-se pela gravidade e pela extensão e têm como efeito particularmente nefasto o contribuir para tornar menos eficazes os fármacos anti-hipertensores, desencadeando assim um ciclo vicioso, em que hipertensão e co-morbilidades interagem, potenciando-se. Desta interacção resultam duas consequências importantes. Por um lado, acréscimo do risco cardiovascular e da mortalidade que se lhe associa, em razão da persistência de valores elevados da pressão arterial e do seu papel enquanto factor de risco; por outro, aumento da morbilidade e da mortalidade global pela presença, extensão e gravidade do comprometimento dos órgãos alvo. Esta será, porventura, a principal e provavelmente a mais significativa peculiaridade do comprometimento dos órgãos alvo na hipertensão de difícil controlo. As complicações cardíacas do aumento persistente da pressão arterial, a chamada doença cardíaca hipertensiva ou cardiopatia hipertensiva, incluem a doença das coronárias, a hipertrofia ventricular esquerda, a insuficiência cardíaca, a dilatação auricular e a fibrilhação auricular e outras arritmias cardíacas e a morte súbita. Nesta revisão deter-nos-emos em algumas das peculiaridades destas complicações. Cassiano Abreu-Lima Professor catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, director do Departamento de Medicina e do Serviço de Cardiologia e membro da Comissão Coordenadora do Conselho Científico. Regente da disciplina de Medicina do 4º ano, coordenador do módulo de cardiologia desta disciplina e ainda regente da disciplina de Medicina Clínica do curso de licenciatura em Medicina Dentária da Faculdade de Medicina Dentária da UP. Chefe de serviço do Serviço de Cardiologia do Hospital de S. João onde trabalha na área do ambulatório. Foi presidente da Sociedade Portuguesa de Cardiologia, é fellow da Sociedade Europeia de Cardiologia e pertence ao corpo editorial internacional do European Heart Journal. Subscreve mais de uma centena de trabalhos Journal científicos e de índole pedagógica que publicou em livros e revistas médicas incluindo nestas algumas das mais conceituadas publicações internacionais como Circulation, New England Journal of Medicine e European Heart Journal. Hipertensão, doença vascular aterosclerótica e doença das coronárias Resumo do artigo Revêm-se as complicações cardíacas do aumento persistente da pressão arterial, a chamada doença cardíaca hipertensiva ou cardiopatia hipertensiva, que incluem a doença das coronárias, a hipertrofia ventricular esquerda, a insuficiência cardíaca, a dilatação auricular, a fibrilhação auricular e outras arritmias cardíacas, bem como a morte súbita. Analisa-se o seu significado prognóstico e a utilidade dos diversos meios complementares de diagnóstico na sua caracterização, à luz das recomendações internacionais. Discutem-se alguns estudos efectuados nesta área. A doença das coronárias é uma das expressões territoriais da doença vascular aterosclerótica a que a hipertensão está etiologicamente associada: De facto, a hipertensão enquanto factor de risco cardiovascular preenche todos os critérios de causalidade enunciados por Austin Bradford-Hill no seu interessante ensaio Ambiente e Doença. Associação ou causalidade? Indutora de lesão endotelial persistente, a hipertensão é um dos factores de risco, entre outros, que favorecem a disfunção endotelial que supostamente desencadeia o processo aterosclerótico. 12 Revista Factores de Risco, Nº11 OUT-DEZ 2008 Pág. 12-19 “… nos casos em que a hipertensão se afigura difícil de controlar e o diagnóstico de hipertensão resistente se coloca, a ausência de comprometimento de órgãos alvo nos deva levar a equacionar outras hipóteses …” mais extensas e mais graves nestes mesmos vasos. A associação entre hipertensão e disfunção endotelial e aterosclerose foi também investigada de forma não invasiva em indivíduos jovens por Eco-Doppler. Estes estudos demonstraram que o nível de pressão arterial se correlaciona directamente com a espessura da íntima e da média carotídea na infância e indirectamente, em adultos jovens, com a complacência das artérias de maior calibre; além disso, mesmo adolescentes saudáveis com múltiplos factores de risco, incluindo pressões diastólicas elevadas, têm aumento da espessura da íntima e da média das carótidas e aqueles cujos níveis de pressão arterial se situam na banda de valores mais altos da distribuição apresentam diminuição da vasodilatação mediada pelo fluxo na artéria braquial, a indicar disfunção do endotélio. São estudos que não só põem em evidência a precocidade do comprometimento cardiovascular aterosclerótico ligado à hipertensão, como sublinham a importância da respectiva prevenção, através duma educação para a saúde também precoce e de medidas terapêuticas visando a modificação de estilos de vida pouco saudáveis, quer nas crianças hipertensas e pré-hipertensas, quer nas normotensas quando em risco. A importância da hipertensão enquanto factor de risco de doença aterosclerótica varia com o território vascular em causa e a idade e o género do indivíduo. Considerando os dados de Framingham, obtidos nos membros desta coorte dos 35 aos 64 anos, seguidos durante trinta e seis anos, a hipertensão arterial aumenta o risco de acidente vascular cerebral quase seis vezes no homem e quatro vezes na mulher; o risco de doença arterial periférica obstrutiva, é ampliado perto de quatro vezes na mulher e duas vezes no homem; quanto à doença das coronárias, a presença de hipertensão duplica, grosso modo, o risco da sua ocorrência quer na mulher quer no homem e é, também, importante factor causal de insuficiência cardíaca em ambos (risco relativo 3,0 e 4,0 respectivamente). Estes números são um pouco menores no idoso (65 anos ou mais), suscitando alguma interrogação quanto à relevância dos factores de risco aterosclerótico nesta faixa etária. Todavia, como sublinha Kannel, esses menores riscos relativos são contra­balançados por incidências absolutas de doença apreciavelmente mais elevadas e grande excesso de risco (ou risco atribuível à hipertensão) na idade avançada. Este facto, não é despiciendo quando temos em mente uma das formas de hipertensão de difícil controlo, bem comum na clínica, aliás: a do idoso. Embora as manifestações clínicas de doença vascular aterosclerótica não sejam comuns nos mais novos, é facto bem conhecido que as chamadas estrias lipídicas, manifestação precoce de aterosclerose, aparecem na aorta desde a primeira década de vida e podem começar a formar-se na árvore arterial durante a adolescência. Por outro lado, estudos necrópsicos efectuados em crianças e adultos jovens dos 2 aos 39 anos que morreram de várias causas, principalmente de lesões traumáticas, demonstraram que a idade e alguns factores de risco, incluindo as pressões arteriais sistólica e diastólica, estão fortemente associadas à extensão das lesões ateroscleróticas presentes na aorta e nas artérias coronárias. E mesmo em presença de um perfil lipídico favorável, a hipertensão e a obesidade, entre outros factores de risco, em indivíduos de ambos os sexos dos 15 aos 34 anos, associam-se a lesões ateroscleróticas Hipertensão e hipertrofia ventricular esquerda Significado prognóstico da hipertrofia ventricular esquerda A hipertrofia ventricular esquerda está estreitamente ligada à aterosclerose, à hipertensão e à obesidade. Enquanto factor de risco independente ela condiciona aumento de incidência de eventos cardiovasculares, incluindo mortalidade e morbilidade por doença das coro­nárias, insuficiência cardíaca, fibrilação auricular e morte súbita. Na hipertensão, a presença de hipertrofia ventricular esquerda, independentemente do método pelo qual foi diagnosticada, tem sobre o risco que ela própria, hipertensão, condiciona um valor multiplicativo, expandindo-o substancialmente. No caso da hipertrofia 13 Peculiaridades da cardiopatia hipertensiva na hipertensão arterial de difícil controlo. com a hipertensão arterial, é igualmente observável para a hipertrofia ventricular esquerda enquanto factor de risco a ocorrência, nesta faixa etária, de incidências absolutas e de excesso de risco das entidades referida, notoriamente mais elevados do que no estrato etário mais baixo, a contrabalançar, no que diz respeito ao respectivo impacte populacional, os menores riscos relativos associados a este factor. diagnosticada pelo ECG esse efeito é mais marcado, já que ele, pela baixa sensibilidade que o caracteriza, tende, enquanto teste de diagnóstico, a ser sobretudo positivo nas formas mais avançadas de hipertrofia. A hipertrofia ventricular esquerda terá com a hiper­ tensão uma relação bidireccional, pois se não há dúvida que esta última, pelo recrutamento das propriedades tróficas dos mecanismos adaptativos neuro-humorais, promove a hipertrofia ventricular, há quem proponha que a massa ventricular esquerda medida por ecocardiografia se relaciona directamente com o risco de indivíduos normotensos virem a desenvolver hipertensão arterial. Diagnóstico da hipertrofia ventricular esquerda e respectivas implicações prognósticas A hipertrofia ventricular esquerda, i.e., o aumento da respectiva massa, avalia-se pela pesagem do ventrículo em exames post-mortem e, na clínica, sobretudo pelo ECG e por ecocardiografia. A radiologia também proporciona informação quanto ao tamanho do coração e o próprio exame físico, quando realizado com atenção e cuidado, não deixa de fornecer indicações úteis para o diagnóstico: a pulsatilidade exagerada do impulso apexiano, o aumento da área deste, sobretudo quando associada a duração acrescida são sinais clínicos tradicionais de aumento do ventrículo esquerdo, com relevo para o último no paciente hipertenso (choque da ponta sustentado ou sustido). “As complicações cardíacas do aumento persistente da pressão arterial … incluem a doença das coronárias, a hipertrofia ventricular esquerda, a insuficiência cardíaca, a dilatação auricular e a fibrilhação auricular e outras arritmias cardíacas e a morte súbita.” Radiografia do tórax Embora certas medidas obtidas na radiografia simples do tórax, como o índice cardiotorácico e as estimativas de volume do coração, tenham valor prognóstico quanto ao risco de morte cardíaca, a sua correlação com a hipertrofia ventricular esquerda avaliada por outros meios é pobre. Provavelmente por essa razão, as guidelines ou normativas internacionais não incluem aquele exame, acessível e barato, entre os meios laboratoriais de avaliação do hipertenso. Recentemente, Rainer e col. reanalisaram o valor da radiografia do tórax no contexto da avaliação do hipertenso. Para isso, compararam o índice cardiotorácico e a largura do botão aórtico, duas medidas de fácil obtenção, com outros marcadores de comprometimento de órgão alvo (massa ventricular estimada a partir do ecocardiograma 2-D, voltagem do ECG medida pelo índice de Sokolow-Lyon, função renal avaliada pelo inverso dos níveis de creatinina sérica e alterações do fundo ocular), em 72 indivíduos hipertensos tomando como controlo um número idêntico de normotensos equiparáveis quanto ao género e idade. No seu estudo, os autores verificaram que a largura do botão aórtico se correlacionava com a idade, com as pressões arteriais sistólica e diastólica Os dados do Heart Study de Framingham já aqui referidos, mostram que a hipertrofia ventricular esquerda diagnosticada pelo ECG tem um impacte independente enorme na morbilidade, quer nos homens, quer nas mulheres entre os 35 e os 64 anos de idade seguidos ao longo de trinta e seis anos. Assim, a incidência da doença aterosclerótica das coronárias (risco relativo ajustado à idade) aumenta, na presença de hipertrofia ventricular esquerda e só por efeito desta, 3,0 e 4,6 vezes nos homens e nas mulheres, respectivamente; o acidente vascular encefálico 5,1 e 3,1 vezes; a doença arterial periférica 2,7 e 5,3 vezes e a insuficiência cardíaca 15,0 e 13,0. Também neste caso, a força da associação entre a hipertrofia ventricular esquerda e a incidência dos eventos mencionados, medida pelo risco relativo, diminui com a idade, sendo geralmente menos impressiva nos indivíduos entre os 65 e os 94 anos. Mas à semelhança do que acontece 14 Revista Factores de Risco, Nº11 OUT-DEZ 2008 Pág. 12-19 e com todos os marcadores de lesão de órgão alvo, excepto a voltagem do ECG; o índice cardiotorácico, por seu lado, também se correlacionava com a idade e outros marcadores de comprometimento de órgãos alvo (massa ventricular, alterações do fundo ocular, voltagem do QRS e dimensões da aorta), mas não com os níveis de pressão arterial. Contudo, as correlações lineares obtidas por estes autores, embora estatisticamente significativas, não são suficientemente expressivas para aplicação clínica, até pelo amplo intervalo de confiança de quaisquer estimativas nelas baseadas. “As normativas (guidelines) da Sociedade Europeia de Hipertensão e da Sociedade Europeia de Cardiologia sublinham a maior sensibilidade do ecocardiograma, relativamente ao electrocardiograma para diagnosticar hipertrofia ventricular esquerda e estimar o risco cardiovascular na hipertensão” Electrocardiograma A identificação de hipertrofia ventricular esquerda pelo ECG é afectada por um desempenho pouco satisfatório quando confrontado com a necropsia e a ecocardiografia. Esse facto explicará a pletora de critérios de diagnóstico de aumento do ventrículo esquerdo que a investigação nesta área produziu ao longo de vários anos. Note-se que a massa ventricular é apenas um dos factores que determina a expressão electrocardiográfica da hipertrofia ventricular esquerda. Outros factores que poderão nela intervir uns são de natureza hemodinâmica como a pressão e o volume cavitário, outros de natureza fisiológica como o esforço (stress) parietal e a velocidade de condução intraventricular do estímulo excitomotor. A este propósito, será interessante referir que é possível reproduzir os padrões electrocardiográficos da hipertrofia ventricular esquerda por estimulações prematuras da aurícula direita em estudos electrofisiológicos clínicos no homem. Sendo pouco satisfatória a correlação do ECG com a anatomia no tocante a este diagnóstico, já a informação prognóstica que ele contém é bastante apreciável, como os estudos epidemiológicos revelam. A título de curiosidade, listam-se na Quadro I os critérios usados no estudo de Framingham para o diagnóstico de hipertrofia ventricular esquerda em que se apoiaram os estudos epidemiológicos deste factor de risco atrás mencionados. No diagnóstico de hipertrofia ventricular esquerda, a principal limitação do ECG é a baixa sensibilidade. De facto para níveis de especificidade da ordem dos 90 a 100%, as sensibilidades de vários critérios de voltagem comummente usados e de um respeitado sistema de critérios, o sistema de pontuação de Romhilt-Estes, variam entre 1,3% e 60%. Mesmo empregando métodos sofisticados de classificação diagnóstica multigrupal, como são a análise discriminante linear e a regressão logística múltipla, a sensibilidade do ECG no tocante ao diagnóstico de hipertrofia ventricular esquerda fica aquém do desejável. A acuidade do dia­­ gnóstico de hipertrofia ventricular esquerda na hiper­ tensão arterial foi recentemente investigada por revisão sistemática da literatura. Tendo analisado diversos estudos em que os diagnósticos de hipertrofia ventricular esquerda obtidos por seis índices electrocardiográficos bem conhecidos foram comparados com o ecocardiograma (índice de Sokolow-Lyon, índice de voltagem de Cornell, índice de voltagem x duração de Cornell, índice de Gubner e sistema de pontos de Romhilt-Estes, empregando dois critérios diferentes), os autores concluíram que o ECG não deve ser usado com o propósito de excluir hipertrofia ventricular esquerda nos indivíduos com hipertensão. Esta conclusão não deve ser mal entendida. De facto, ela não significa que o ECG seja destituído de interesse para a avaliação do doente hipertenso. Ele é, bem pelo contrário, uma ferramenta indispensável dessa avaliação, a que não Quadro I Critérios para o diagnóstico de hipertrofia ventricular esquerda utilizados no Heart Study de Framingham13 1. R1 + S2 > 2,5 mV ou 2. SV1-2 + RV5-6 >3,5 mV ou 3. SV1-3 > 2,5 mV + RV4-6 > 2,5 mV e 4. Infradesnivelamento de ST > 0,1 mV + inversão de T em V2-6 NB: a combinação dos critérios 3 e 4 identifica o chamado padrão de sobrecarga sistólica de hipertrofia ventricular esquerda, a que se associa prognóstico mais ominoso. 15 Peculiaridades da cardiopatia hipertensiva na hipertensão arterial de difícil controlo. “A dilatação auricular esquerda secundária ao aumento da pressão auricular suscitada pela disfunção diastólica ventricular facilita a ocorrência de fibrilhação auricular, uma forma de disfunção diastólica adicional…” são, evidentemente, alheias a facilidade com que se obtém, o baixo preço e a rapidez com que pode ser analisado e interpretado. É indiscutível o impacte prognóstico da hipertrofia ventricular esquerda diagnosticada pelo ECG que os dados de Framingham tão convincentemente mostram e que atrás evocámos e que diversos estudos posteriores mais tarde comprovaram. Para sublinhar o interesse desses achados não será despropositado recordar o significado particularmente ominoso do padrão de sobrecarga sistólica de Cabrera no doente hipertenso e que os clínicos bem conhecem. De facto, este padrão mais do que duplica o risco da hipertensão sozinha e comporta um risco de morbilidade e mortalidade cardio­ vascular superior à da cardiomegalia radiológica. Uma nota final sobre o interesse do ECG no acompa­ nhamento do doente hipertenso. Com excepção dos vasodilatadores directos, como o minoxidil e a hidralazina, a maioria dos anti-hipertensores pode pro­mover a regressão da hipertrofia ventricular esquerda e verifica-se que, a longo prazo, a incidência de eventos cardiovasculares fatais nos hipertensos cuja hipertrofia regrediu é significativamente menor do que naqueles em quem tal não aconteceu. Ora o ECG pode testemunhar essa involução, permitindo assim ao clínico monitorizá-la de maneira expedita, económica e pouco laboriosa, daí retirando informação útil e, even­ tualmente, tranquilizadora quanto ao prognóstico. Ecocardiograma O advento da ecocardiografia permitiu uma nova abordagem do diagnóstico clínico da hipertrofia ventricular esquerda. Em 1977, Devereux e Reichek desenvolveram e validaram uma metodologia para determinação da massa do ventrículo esquerdo no ecocardiograma modo-M num estudo que incidiu sobre 34 indivíduos. Os autores calculavam a massa ventricular esquerda aplicando uma função geométrica cúbica à espessura da parede posterior e do septo interventricular e ao diâmetro da cavidade. Não obstante as boas correlações encontradas por estes autores tomando como padrão os achados post-mortem, a estimativa do volume do ventrículo esquerdo a partir de 16 uma única dimensão constitui uma assinalável limitação metodológica. Esta limitação foi em parte superada pelo aparecimento da tecnologia bidimensional que permitiu a utilização de modelos geométricos menos criticáveis para calcular volumes do ventrículo esquerdo e a ecocar­ diografia é reconhecida hoje como um standard de satisfatória acuidade para quantificar a massa ventricular esquerda e definir a presença ou ausência de hipertrofia ventricular, v.g. na hipertensão, de forma não invasiva com base em critérios estatísticos da distribuição dos respectivos valores, em grupos de indivíduos estratificados segundo a idade e o género. As normativas (guidelines) da Sociedade Europeia de Hipertensão e da Sociedade Europeia de Cardiologia sublinham a maior sensibilidade do ecocardiograma, relativamente ao electrocardiograma para diagnosticar hipertrofia ventricular esquerda e es­ timar o risco cardiovascular na hipertensão e recordam a vantagem adicional do primeiro para fornecer informação pormenorizada quanto a diversos outros parâmetros anatómicos e numerosas características funcionais de grande interesse, com relevo para a função sistólica e diastólica do ventrículo. A chamada geometria ventricular, categorizada em ordem à massa ventricular (estimada por fórmulas co­ nhecidas e indexada geralmente à superfície corporal, o índice de massa ventricular - IMV) e ao rácio espessura parietal/diâmetro da câmara (espessura relativa da parede - ERP) pode servir para estratificar o risco car­ diovascular no hipertenso de forma mais fina do que a massa ventricular apenas. Num interessante estudo do grupo do Cornell Medical College e parceiros italianos, que incidiu sobre 165 hipertensos (desde ligeiros a graves) não tratados e 125 controlos (indivíduos normais de idade e género comparáveis) os autores avaliaram as prevalências das diferentes categorias morfológicas ou geometria ventricular da hipertrofia ventricular esquerda e as respectivas correlações com vários parâmetros hemodinâmicos sistémicos, a carga e o desempenho sistólico do ventrículo. Foram as seguintes as prevalências dessas categorias encontradas por estes autores nos hipertensos: a) geometria normal (IMV e ERP normais), Revista Factores de Risco, Nº11 OUT-DEZ 2008 Pág. 12-19 de hipertrofia ventricular esquerda no ECG, sublinhamos nós) e que o seu aumento leva a prever uma incidência acrescida de eventos clínicos, incluindo a morte de causa cardiovascular. Estudos posteriores vieram a demonstrar que o tipo ou categoria de geometria ventricular associada a maior risco cardiovascular é a hipertrofia concêntrica e que a persistência desta ou o seu desenvolvimento durante o seguimento pode ter significado prognóstico negativo adicional. Os valores de índice de massa ventricular e de espessura relativa da parede ventricular a empregar na categorização da geometria ventricular actualmente mais usados são, para o primeiro, 125 gr/m2 (homem) e 110 g/m2 (mulher), e 0,42, respectivamente. A indexação mais correcta para a massa ventricular, na criança e no adolescente sobretudo, é alvo de algum debate. Nas crianças e adolescentes, a presença de hipertrofia ventricular esquerda é a manifestação clínica mais proe­ minente de comprometimento dos órgãos alvo causado pela hipertensão. Sendo a sensibilidade do ECG para iden­ tificar o aumento do ventrículo esquerdo nestas idades ainda menor do que no adulto, o ecocardiograma é o método de diagnóstico preferível, assumindo o papel de ferramenta de primeira escolha para avaliar a presença de comprometimento de órgãos alvo nos hipertensos destas classes etárias. A prevalência de aumento da massa ventricular medida pelo ecocardiograma na hipertensão não tratada, foi estimada em clínicas pediátricas, entre 42% e 34%. a mais frequente, 52%; b) hipertrofia excêntrica (IMV aumentado, ERP normal), 27%; hipertrofia concêntrica, (IMV e ERP aumentados), 8% e remodelagem concêntrica (IMV normal e ERP aumentada), 13%. As anomalias da geometria ventricular são explicáveis, na opinião dos autores, pelos achados funcionais com que se correlacionam e de que os autores salientam o importante papel da carga volumétrica cardíaca. Assim, por exemplo, o cotejo com os dados da hemodinâmica leva a inferir que o padrão de remodelagem concêntrica reflecte a compensação da sobrecarga de pressão pela diminuição da carga volumétrica do ventrículo. É de sublinhar que, neste estudo, a hipertrofia concêntrica, geralmente consi­ derada pelo cardiologista clínico, como o paradigma ou norma da hipertrofia ventricular da hipertensão, ocorre apenas numa pequena percentagem de doentes e que a hipertrofia excêntrica, que nos habituámos a interpretar como traduzindo compromisso funcional contráctil não só é a expressão mais comum das três categorias de anomalia morfológica do ventrículo esquerdo na hipertensão, como não se acompanha de disfunção contráctil aparente e não é explicada por maiores valores do índice de massa corporal. Tal como aconteceu com a hipertrofia ventricular esquerda definida por critérios electrocardiográficos, também o significado prognóstico da massa ventricular determinada ecocardiograficamente foi objecto de aná­ lise no Heart Study de Framingham. Neste estudo, seguiram-se durante quatro anos 3.220 indivíduos com 40 anos ou mais e sem doença cardiovascular aparente, cujas massas ventriculares foram medidas por ecocardiografia modo-M, tendo-se verificado que esta se associou a todos os desfechos considerados, mesmo após ajustamentos à idade, pressão arterial diastólica, pressão de pulso, tratamento da hipertensão, tabagismo (cigarro), diabetes, obesidade, taxa de colesterol total/C-HDL e presença de hipertrofia ventricular esquerda no ECG, a saber: eventos cardiovasculares (208 ocorrências), morte cardiovascu­ lares (37 ocorrências) e morte de todas as causas (124 ocorrências). O risco ajustado de doença cardiovascular da massa ventricular por cada incremento de 50 g por metro de altura foi de 1,49 (intervalo de confiança de 95%, 1,20 1,85) nos homens e de 1,57 (1,20 – 2,04) nas mulheres; o risco de morte cardiovascular, 1,73 (1,19 - 2,52) e 2,12 (1,28 - 3,49) e o risco de morte por todas as causas, 1,49 (1,14 - 1,94) e 2,01 (1,44 - 2,81), nos homens e nas mulheres, respectivamente. Os autores concluem que a estimativa da massa ventricular esquerda pelo ecocardiograma fornece informação prognóstica para além da que os factores de risco tradicionais proporcionam (incluindo a presença Disfunção ventricular, insuficiência cardíaca e outras manifestações de doença cardíaca hipertensiva A disfunção diastólica ventricular é comum na hiper­ tensão. Coexistindo frequentemente com a hipertrofia ventricular esquerda, pode precedê-la, como pode pre­ ce­der o aparecimento da doença das coronárias e de insuficiência cardíaca, quer diastólica, quer sistólica. A disfunção diastólica ao aumentar a pressão telediastólica do ventrículo esquerdo e a pressão auricular esquerda contribui para o incremento da pressão capilar pulmonar e para a congestão pulmonar e pode apresentar-se com maior ou menor número das manifestações clínicas de insuficiência cardíaca. Contudo, pode ser assintomática e a sua identificação ser produto de um exame ecocardiográfico de rotina no doente hipertenso. A Sociedade Europeia de Cardiologia não indica o ecocardiograma como o primeiro exame a solicitar perante a suspeita de insuficiência cardíaca ou de disfunção 17 Peculiaridades da cardiopatia hipertensiva na hipertensão arterial de difícil controlo. ventricular. Esta suspeita no hipertenso, sem cardiomegalia aparente no exame físico ou na radiografia do tórax, ou S3 à auscultação do ápex, – um sinal de disfunção sistólica – deve levar-nos a investigar a presença de disfunção diastólica por Eco-Doppler cardíaco, embora a presença de S4, a elevação dos pepetídeos natriuréticos e os achados de hipertrofia ventricular esquerda ou anomalia auricular esquerda no ECG reforcem a suspeição. O diagnóstico de disfunção diastólica como explicação para as manifestações clínicas pode ser confirmado por exame ecocardiográfico, conjugando a informação do espectro de frequências Doppler do fluxo de enchimento ventricular e do padrão de velocidade do anel mitral obtido por Doppler tecidular, face a função sistólica normal ou quase normal (fracção de ejecção 45-50%) e excluídas que sejam outras causas para os sintomas, v.g. doença pulmonar. Pelo exame ecocardiográfico é então possível definir três padrões de disfunção diastólica, por ordem crescente de gravidade: a) o diagnóstico de insuficiência cardíaca. No contexto da hipertensão arterial – e não só – essa evidência é pro­ porcionada geralmente na clínica pelo ecocardiograma. Eventualmente, a doença hipertensiva já não se manifesta, nesta fase, por valores elevados da pressão arterial o que pode dificultar o diagnóstico etiológico correcto. Enquanto nos países mais desenvolvidos, a doença das coronárias e o enfarte do miocárdio são a etiologia dominante da insuficiência cardíaca, em Portugal, onde a prevalência da hipertensão arterial é muito elevada e a de doença das coronárias mais modesta, aquela será certamente a etiologia principal da síndroma. A dilatação auricular esquerda secundária ao aumento da pressão auricular suscitada pela disfunção diastólica ventricular facilita a ocorrência de fibrilhação auricular, uma forma de disfunção diastólica adicional – neste caso de localização auricular e não ventricular – que tem várias repercussões negativas sobre o volume sistólico “Além da fibrilhação auricular, a hipertensão favorece a ocorrência de outras arritmias auriculares e de arritmias ventriculares e morte súbita cardíaca.” perturbação do relaxamento, b) pseudo-normalização e c) fisiologia restritiva. Note-se que estes padrões não medem a disfunção diastólica em si mesma: são antes marcadores da sua presença. A hipertensão pode associar-se a dilatação cardíaca (hipertrofia excêntrica), como vimos, e evoluir para disfunção sistólica do ventrículo esquerdo, sobretudo nas formas graves de hipertensão ou em associação com doença cardíaca isquémica, v.g. enfarte do miocárdio. A disfunção sistólica do ventrículo esquerdo pode ser sintomática ou assintomática. Embora a dilatação e a disfunção sistólica do ventrículo esquerdo possam ser suspeitadas a partir do exame físico e a primeira seja fácil de documentar na radiografia do tórax, o ecocardiograma é o método de eleição para a diagnosticar e quantificar pela medição da fracção de ejecção, preferencialmente pelo método de Simpson. Segundo as recomendações da Sociedade Europeia de Cardiologia, a presença de sintomas característicos, dispneia e/ou fadiga e de evidência objectiva de disfunção cardíaca em repouso são indispensáveis para estabelecer 18 (stroke volume) e o débito cardíaco: elimina o importante contributo da contracção auricular para a completação do enchimento do ventrículo na fase telediastólica, aumenta a frequência cardíaca e encurta o tempo de diástole, perturba o fluxo coronário favorecendo a isquemia e aumenta ainda mais a pressão a montante e o edema pulmonar, podendo precipitar um quadro grave de insuficiência cardíaca aguda. A dilatação auricular originada por qualquer doença cardíaca e pela hipertensão favorece a fibrose da aurícula, outro substrato da fibrilhação. A fibrilhação auricular está associada, como bem se sabe, a elevado risco de tromboembolismo e a eventos isquémicos encefálicos, viscerais e dos membros. No entanto, estima-se que cerca de 25% dos acidentes vasculares encefálicos isquémicos em doentes com fibrilhação auricular devem-se, provavel­ mente, a doença cerebrovascular, a outras fontes cardíacas de êmbolos ou a patologia ateromatosa da raiz da aorta. Além da fibrilhação auricular, a hipertensão favorece a ocorrência de outras arritmias auriculares e de arritmias ventriculares e morte súbita cardíaca. Na patogenia destas arritmias intervêm a doença das coronárias a que está Revista Factores de Risco, Nº11 OUT-DEZ 2008 Pág. 12-19 ligada etiologicamente e as várias alterações morfológicas e funcionais que induz: dilatação auricular e hipertrofia ventricular esquerda; disfunção sistólica e diastólica do ventrículo e disfunção da circulação microvascular. A arritmia ventricular mais comum é certamente a extrasistólica: embora vulgar no indivíduo normal, ela é mais prevalente no hipertenso, sobretudo com hipertrofia ven­ tricular esquerda. As arritmias ventriculares na hipertensão estão ligadas à hipertrofia ventricular esquerda e parece serem independentes da doença das coronárias coexistente ou da disfunção ventricular. A hipertrofia ventricular es­ querda induzida pela hipertensão arterial é factor de risco para arritmias ventriculares espontâneas e morte súbita cardíaca. Pewsner D, Juni P, Egger M, Battaglia M, Sudstrom J, Bchmann LM. Accuracy of electrocardiography in diagnosis of left ventricular hypertrophyin arterial hypertension: systematic review. Brit. Med. J. 2007; 335: 711. Epub 2007 Aug. 28. The Task Force for the diagnosis and treatment of chronic heart failure of the European Society of Cardiology. Guidelines for the diagnosis and treatment of chronic heart failure: full text (update 2005). http://www.escardio.org/ ACC/AHA/ESC 2006 Guidelines for the management of patients with atrial fibrillation. Full text. http://www.escardio.org/ C. 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