Peculiaridades da cardiopatia hipertensiva

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Peculiaridades
da cardiopatia hipertensiva
na hipertensão arterial de
controlo
A resistência da hipertensão arterial ao tratamento
acompanha-se, usualmente, de maior comprometimento
dos órgãos alvo. Aliás, é até recomendável que nos casos
em que a hipertensão se afigura difícil de controlar e o
diagnóstico de hipertensão resistente se coloca, a ausência
de comprometimento de órgãos alvo nos deva levar a
equacionar outras hipóteses como pseudo-hipertensão
ou hipertensão de consultório ou da bata branca. Estas
lesões dos órgão alvo caracterizam-se pela gravidade e
pela extensão e têm como efeito particularmente nefasto
o contribuir para tornar menos eficazes os fármacos
anti-hipertensores, desencadeando assim um ciclo vicioso, em que hipertensão e co-morbilidades interagem,
potenciando-se. Desta interacção resultam duas consequências importantes. Por um lado, acréscimo do risco
cardiovascular e da mortalidade que se lhe associa, em razão
da persistência de valores elevados da pressão arterial e
do seu papel enquanto factor de risco; por outro, aumento
da morbilidade e da mortalidade global pela presença,
extensão e gravidade do comprometimento dos órgãos
alvo. Esta será, porventura, a principal e provavelmente a
mais significativa peculiaridade do comprometimento dos
órgãos alvo na hipertensão de difícil controlo.
As complicações cardíacas do aumento persistente da
pressão arterial, a chamada doença cardíaca hipertensiva
ou cardiopatia hipertensiva, incluem a doença das coronárias, a hipertrofia ventricular esquerda, a insuficiência
cardíaca, a dilatação auricular e a fibrilhação auricular e
outras arritmias cardíacas e a morte súbita. Nesta revisão
deter-nos-emos em algumas das peculiaridades destas
complicações.
Cassiano Abreu-Lima
Professor catedrático da Faculdade de Medicina
da Universidade do Porto, director do Departamento
de Medicina e do Serviço de Cardiologia e membro da
Comissão Coordenadora do Conselho Científico. Regente
da disciplina de Medicina do 4º ano, coordenador
do módulo de cardiologia desta disciplina e ainda
regente da disciplina de Medicina Clínica do curso
de licenciatura em Medicina Dentária da Faculdade
de Medicina Dentária da UP. Chefe de serviço do
Serviço de Cardiologia do Hospital de S. João onde
trabalha na área do ambulatório. Foi presidente
da Sociedade Portuguesa de Cardiologia, é fellow
da Sociedade Europeia de Cardiologia e pertence
ao corpo editorial internacional do European Heart
Journal. Subscreve mais de uma centena de trabalhos
Journal
científicos e de índole pedagógica que publicou em
livros e revistas médicas incluindo nestas algumas das
mais conceituadas publicações internacionais como
Circulation, New England Journal of Medicine
e European Heart Journal.
Hipertensão, doença vascular
aterosclerótica e doença das coronárias
Resumo do artigo
Revêm-se as complicações cardíacas do aumento persistente da pressão arterial, a chamada doença cardíaca
hipertensiva ou cardiopatia hipertensiva, que incluem
a doença das coronárias, a hipertrofia ventricular esquerda, a insuficiência cardíaca, a dilatação auricular, a
fibrilhação auricular e outras arritmias cardíacas, bem
como a morte súbita.
Analisa-se o seu significado prognóstico e a utilidade dos
diversos meios complementares de diagnóstico na sua
caracterização, à luz das recomendações internacionais.
Discutem-se alguns estudos efectuados nesta área.
A doença das coronárias é uma das expressões
territoriais da doença vascular aterosclerótica a que a
hipertensão está etiologicamente associada: De facto,
a hipertensão enquanto factor de risco cardiovascular
preenche todos os critérios de causalidade enunciados
por Austin Bradford-Hill no seu interessante ensaio
Ambiente e Doença. Associação ou causalidade? Indutora
de lesão endotelial persistente, a hipertensão é um dos
factores de risco, entre outros, que favorecem a disfunção
endotelial que supostamente desencadeia o processo
aterosclerótico.
12
Revista Factores de Risco, Nº11 OUT-DEZ 2008 Pág. 12-19
“… nos casos em que a hipertensão se afigura difícil de controlar e o
diagnóstico de hipertensão resistente se coloca, a ausência
de comprometimento de órgãos alvo nos deva levar a equacionar
outras hipóteses …”
mais extensas e mais graves nestes mesmos vasos. A
associação entre hipertensão e disfunção endotelial e
aterosclerose foi também investigada de forma não
invasiva em indivíduos jovens por Eco-Doppler. Estes
estudos demonstraram que o nível de pressão arterial se
correlaciona directamente com a espessura da íntima e da
média carotídea na infância e indirectamente, em adultos
jovens, com a complacência das artérias de maior calibre;
além disso, mesmo adolescentes saudáveis com múltiplos
factores de risco, incluindo pressões diastólicas elevadas,
têm aumento da espessura da íntima e da média das
carótidas e aqueles cujos níveis de pressão arterial se
situam na banda de valores mais altos da distribuição
apresentam diminuição da vasodilatação mediada pelo
fluxo na artéria braquial, a indicar disfunção do endotélio.
São estudos que não só põem em evidência a precocidade
do comprometimento cardiovascular aterosclerótico ligado
à hipertensão, como sublinham a importância da respectiva
prevenção, através duma educação para a saúde também
precoce e de medidas terapêuticas visando a modificação
de estilos de vida pouco saudáveis, quer nas crianças
hipertensas e pré-hipertensas, quer nas normotensas
quando em risco.
A importância da hipertensão enquanto factor de risco
de doença aterosclerótica varia com o território vascular em
causa e a idade e o género do indivíduo. Considerando os
dados de Framingham, obtidos nos membros desta coorte
dos 35 aos 64 anos, seguidos durante trinta e seis anos, a
hipertensão arterial aumenta o risco de acidente vascular
cerebral quase seis vezes no homem e quatro vezes na
mulher; o risco de doença arterial periférica obstrutiva, é
ampliado perto de quatro vezes na mulher e duas vezes
no homem; quanto à doença das coronárias, a presença de
hipertensão duplica, grosso modo, o risco da sua ocorrência
quer na mulher quer no homem e é, também, importante
factor causal de insuficiência cardíaca em ambos (risco
relativo 3,0 e 4,0 respectivamente). Estes números são um
pouco menores no idoso (65 anos ou mais), suscitando
alguma interrogação quanto à relevância dos factores
de risco aterosclerótico nesta faixa etária. Todavia, como
sublinha Kannel, esses menores riscos relativos são
contra­balançados por incidências absolutas de doença
apreciavelmente mais elevadas e grande excesso de risco
(ou risco atribuível à hipertensão) na idade avançada. Este
facto, não é despiciendo quando temos em mente uma
das formas de hipertensão de difícil controlo, bem comum
na clínica, aliás: a do idoso.
Embora as manifestações clínicas de doença vascular
aterosclerótica não sejam comuns nos mais novos, é
facto bem conhecido que as chamadas estrias lipídicas,
manifestação precoce de aterosclerose, aparecem na
aorta desde a primeira década de vida e podem começar a
formar-se na árvore arterial durante a adolescência. Por outro
lado, estudos necrópsicos efectuados em crianças e adultos
jovens dos 2 aos 39 anos que morreram de várias causas,
principalmente de lesões traumáticas, demonstraram que
a idade e alguns factores de risco, incluindo as pressões
arteriais sistólica e diastólica, estão fortemente associadas
à extensão das lesões ateroscleróticas presentes na aorta
e nas artérias coronárias. E mesmo em presença de um
perfil lipídico favorável, a hipertensão e a obesidade, entre
outros factores de risco, em indivíduos de ambos os sexos
dos 15 aos 34 anos, associam-se a lesões ateroscleróticas
Hipertensão e hipertrofia ventricular
esquerda
Significado prognóstico da hipertrofia ventricular
esquerda
A hipertrofia ventricular esquerda está estreitamente
ligada à aterosclerose, à hipertensão e à obesidade.
Enquanto factor de risco independente ela condiciona
aumento de incidência de eventos cardiovasculares,
incluindo mortalidade e morbilidade por doença das
coro­nárias, insuficiência cardíaca, fibrilação auricular e
morte súbita. Na hipertensão, a presença de hipertrofia
ventricular esquerda, independentemente do método
pelo qual foi diagnosticada, tem sobre o risco que ela
própria, hipertensão, condiciona um valor multiplicativo,
expandindo-o substancialmente. No caso da hipertrofia
13
Peculiaridades da cardiopatia hipertensiva na hipertensão arterial de difícil controlo.
com a hipertensão arterial, é igualmente observável para
a hipertrofia ventricular esquerda enquanto factor de risco
a ocorrência, nesta faixa etária, de incidências absolutas e
de excesso de risco das entidades referida, notoriamente
mais elevados do que no estrato etário mais baixo, a
contrabalançar, no que diz respeito ao respectivo impacte
populacional, os menores riscos relativos associados a este
factor.
diagnosticada pelo ECG esse efeito é mais marcado, já
que ele, pela baixa sensibilidade que o caracteriza, tende,
enquanto teste de diagnóstico, a ser sobretudo positivo
nas formas mais avançadas de hipertrofia.
A hipertrofia ventricular esquerda terá com a hiper­
tensão uma relação bidireccional, pois se não há dúvida
que esta última, pelo recrutamento das propriedades
tróficas dos mecanismos adaptativos neuro-humorais,
promove a hipertrofia ventricular, há quem proponha que
a massa ventricular esquerda medida por ecocardiografia
se relaciona directamente com o risco de indivíduos
normotensos virem a desenvolver hipertensão arterial.
Diagnóstico da hipertrofia ventricular
esquerda e respectivas implicações
prognósticas
A hipertrofia ventricular esquerda, i.e., o aumento da
respectiva massa, avalia-se pela pesagem do ventrículo
em exames post-mortem e, na clínica, sobretudo pelo ECG
e por ecocardiografia. A radiologia também proporciona
informação quanto ao tamanho do coração e o próprio
exame físico, quando realizado com atenção e cuidado,
não deixa de fornecer indicações úteis para o diagnóstico:
a pulsatilidade exagerada do impulso apexiano, o aumento
da área deste, sobretudo quando associada a duração
acrescida são sinais clínicos tradicionais de aumento do
ventrículo esquerdo, com relevo para o último no paciente
hipertenso (choque da ponta sustentado ou sustido).
“As complicações cardíacas do
aumento persistente
da pressão arterial … incluem
a doença das coronárias, a
hipertrofia ventricular esquerda,
a insuficiência cardíaca,
a dilatação auricular e a
fibrilhação auricular e outras
arritmias cardíacas e a morte
súbita.”
Radiografia do tórax
Embora certas medidas obtidas na radiografia simples
do tórax, como o índice cardiotorácico e as estimativas de
volume do coração, tenham valor prognóstico quanto ao
risco de morte cardíaca, a sua correlação com a hipertrofia
ventricular esquerda avaliada por outros meios é pobre.
Provavelmente por essa razão, as guidelines ou normativas
internacionais não incluem aquele exame, acessível
e barato, entre os meios laboratoriais de avaliação do
hipertenso. Recentemente, Rainer e col. reanalisaram o
valor da radiografia do tórax no contexto da avaliação do
hipertenso. Para isso, compararam o índice cardiotorácico
e a largura do botão aórtico, duas medidas de fácil
obtenção, com outros marcadores de comprometimento
de órgão alvo (massa ventricular estimada a partir do
ecocardiograma 2-D, voltagem do ECG medida pelo índice
de Sokolow-Lyon, função renal avaliada pelo inverso dos
níveis de creatinina sérica e alterações do fundo ocular),
em 72 indivíduos hipertensos tomando como controlo um
número idêntico de normotensos equiparáveis quanto ao
género e idade. No seu estudo, os autores verificaram
que a largura do botão aórtico se correlacionava com a
idade, com as pressões arteriais sistólica e diastólica
Os dados do Heart Study de Framingham já aqui
referidos, mostram que a hipertrofia ventricular esquerda
diagnosticada pelo ECG tem um impacte independente
enorme na morbilidade, quer nos homens, quer nas
mulheres entre os 35 e os 64 anos de idade seguidos ao
longo de trinta e seis anos. Assim, a incidência da doença
aterosclerótica das coronárias (risco relativo ajustado à
idade) aumenta, na presença de hipertrofia ventricular
esquerda e só por efeito desta, 3,0 e 4,6 vezes nos
homens e nas mulheres, respectivamente; o acidente
vascular encefálico 5,1 e 3,1 vezes; a doença arterial
periférica 2,7 e 5,3 vezes e a insuficiência cardíaca 15,0
e 13,0. Também neste caso, a força da associação entre a
hipertrofia ventricular esquerda e a incidência dos eventos
mencionados, medida pelo risco relativo, diminui com a
idade, sendo geralmente menos impressiva nos indivíduos
entre os 65 e os 94 anos. Mas à semelhança do que acontece
14
Revista Factores de Risco, Nº11 OUT-DEZ 2008 Pág. 12-19
e com todos os marcadores de lesão de órgão alvo,
excepto a voltagem do ECG; o índice cardiotorácico, por
seu lado, também se correlacionava com a idade e outros
marcadores de comprometimento de órgãos alvo (massa
ventricular, alterações do fundo ocular, voltagem do QRS e
dimensões da aorta), mas não com os níveis de pressão
arterial. Contudo, as correlações lineares obtidas por estes
autores, embora estatisticamente significativas, não são
suficientemente expressivas para aplicação clínica, até
pelo amplo intervalo de confiança de quaisquer estimativas
nelas baseadas.
“As normativas (guidelines)
da Sociedade Europeia
de Hipertensão e da
Sociedade Europeia de
Cardiologia sublinham a
maior sensibilidade do
ecocardiograma, relativamente
ao electrocardiograma para
diagnosticar hipertrofia
ventricular esquerda e estimar
o risco cardiovascular na
hipertensão”
Electrocardiograma
A identificação de hipertrofia ventricular esquerda pelo
ECG é afectada por um desempenho pouco satisfatório
quando confrontado com a necropsia e a ecocardiografia.
Esse facto explicará a pletora de critérios de diagnóstico
de aumento do ventrículo esquerdo que a investigação
nesta área produziu ao longo de vários anos. Note-se
que a massa ventricular é apenas um dos factores que
determina a expressão electrocardiográfica da hipertrofia
ventricular esquerda. Outros factores que poderão nela
intervir uns são de natureza hemodinâmica como a pressão
e o volume cavitário, outros de natureza fisiológica como
o esforço (stress) parietal e a velocidade de condução
intraventricular do estímulo excitomotor. A este propósito,
será interessante referir que é possível reproduzir os
padrões electrocardiográficos da hipertrofia ventricular
esquerda por estimulações prematuras da aurícula direita
em estudos electrofisiológicos clínicos no homem. Sendo
pouco satisfatória a correlação do ECG com a anatomia no
tocante a este diagnóstico, já a informação prognóstica
que ele contém é bastante apreciável, como os estudos
epidemiológicos revelam. A título de curiosidade, listam-se
na Quadro I os critérios usados no estudo de Framingham
para o diagnóstico de hipertrofia ventricular esquerda em
que se apoiaram os estudos epidemiológicos deste factor
de risco atrás mencionados.
No diagnóstico de hipertrofia ventricular esquerda, a
principal limitação do ECG é a baixa sensibilidade. De facto
para níveis de especificidade da ordem dos 90 a 100%, as
sensibilidades de vários critérios de voltagem comummente
usados e de um respeitado sistema de critérios, o sistema
de pontuação de Romhilt-Estes, variam entre 1,3% e 60%.
Mesmo empregando métodos sofisticados de classificação
diagnóstica multigrupal, como são a análise discriminante
linear e a regressão logística múltipla, a sensibilidade do
ECG no tocante ao diagnóstico de hipertrofia ventricular
esquerda fica aquém do desejável. A acuidade do dia­­
gnóstico de hipertrofia ventricular esquerda na hiper­
tensão arterial foi recentemente investigada por revisão
sistemática da literatura. Tendo analisado diversos
estudos em que os diagnósticos de hipertrofia ventricular
esquerda obtidos por seis índices electrocardiográficos
bem conhecidos foram comparados com o ecocardiograma
(índice de Sokolow-Lyon, índice de voltagem de Cornell,
índice de voltagem x duração de Cornell, índice de Gubner
e sistema de pontos de Romhilt-Estes, empregando dois
critérios diferentes), os autores concluíram que o ECG não
deve ser usado com o propósito de excluir hipertrofia
ventricular esquerda nos indivíduos com hipertensão. Esta
conclusão não deve ser mal entendida. De facto, ela não
significa que o ECG seja destituído de interesse para a
avaliação do doente hipertenso. Ele é, bem pelo contrário,
uma ferramenta indispensável dessa avaliação, a que não
Quadro I
Critérios para o diagnóstico de hipertrofia ventricular esquerda
utilizados no Heart Study de Framingham13
1. R1 + S2 > 2,5 mV ou
2. SV1-2 + RV5-6 >3,5 mV ou
3. SV1-3 > 2,5 mV + RV4-6 > 2,5 mV e
4. Infradesnivelamento de ST > 0,1 mV + inversão de T em V2-6
NB: a combinação dos critérios 3 e 4 identifica o chamado padrão de sobrecarga sistólica de
hipertrofia ventricular esquerda, a que se associa prognóstico mais ominoso.
15
Peculiaridades da cardiopatia hipertensiva na hipertensão arterial de difícil controlo.
“A dilatação auricular esquerda secundária ao aumento da pressão
auricular suscitada pela disfunção diastólica ventricular facilita
a ocorrência de fibrilhação auricular, uma forma de disfunção
diastólica adicional…”
são, evidentemente, alheias a facilidade com que se obtém,
o baixo preço e a rapidez com que pode ser analisado e
interpretado. É indiscutível o impacte prognóstico da
hipertrofia ventricular esquerda diagnosticada pelo ECG
que os dados de Framingham tão convincentemente
mostram e que atrás evocámos e que diversos estudos
posteriores mais tarde comprovaram. Para sublinhar
o interesse desses achados não será despropositado
recordar o significado particularmente ominoso do padrão
de sobrecarga sistólica de Cabrera no doente hipertenso
e que os clínicos bem conhecem. De facto, este padrão
mais do que duplica o risco da hipertensão sozinha e
comporta um risco de morbilidade e mortalidade cardio­
vascular superior à da cardiomegalia radiológica.
Uma nota final sobre o interesse do ECG no acompa­
nhamento do doente hipertenso. Com excepção dos
vasodilatadores directos, como o minoxidil e a hidralazina, a
maioria dos anti-hipertensores pode pro­mover a regressão
da hipertrofia ventricular esquerda e verifica-se que, a longo
prazo, a incidência de eventos cardiovasculares fatais nos
hipertensos cuja hipertrofia regrediu é significativamente
menor do que naqueles em quem tal não aconteceu. Ora
o ECG pode testemunhar essa involução, permitindo assim
ao clínico monitorizá-la de maneira expedita, económica
e pouco laboriosa, daí retirando informação útil e, even­
tualmente, tranquilizadora quanto ao prognóstico.
Ecocardiograma
O advento da ecocardiografia permitiu uma nova
abordagem do diagnóstico clínico da hipertrofia ventricular
esquerda. Em 1977, Devereux e Reichek desenvolveram
e validaram uma metodologia para determinação da
massa do ventrículo esquerdo no ecocardiograma modo-M
num estudo que incidiu sobre 34 indivíduos. Os autores
calculavam a massa ventricular esquerda aplicando uma
função geométrica cúbica à espessura da parede posterior
e do septo interventricular e ao diâmetro da cavidade.
Não obstante as boas correlações encontradas por estes
autores tomando como padrão os achados post-mortem,
a estimativa do volume do ventrículo esquerdo a partir de
16
uma única dimensão constitui uma assinalável limitação
metodológica. Esta limitação foi em parte superada pelo
aparecimento da tecnologia bidimensional que permitiu
a utilização de modelos geométricos menos criticáveis
para calcular volumes do ventrículo esquerdo e a ecocar­
diografia é reconhecida hoje como um standard de
satisfatória acuidade para quantificar a massa ventricular
esquerda e definir a presença ou ausência de hipertrofia
ventricular, v.g. na hipertensão, de forma não invasiva
com base em critérios estatísticos da distribuição dos
respectivos valores, em grupos de indivíduos estratificados
segundo a idade e o género. As normativas (guidelines)
da Sociedade Europeia de Hipertensão e da Sociedade
Europeia de Cardiologia sublinham a maior sensibilidade
do ecocardiograma, relativamente ao electrocardiograma
para diagnosticar hipertrofia ventricular esquerda e es­
timar o risco cardiovascular na hipertensão e recordam a
vantagem adicional do primeiro para fornecer informação
pormenorizada quanto a diversos outros parâmetros
anatómicos e numerosas características funcionais de
grande interesse, com relevo para a função sistólica e
diastólica do ventrículo.
A chamada geometria ventricular, categorizada em
ordem à massa ventricular (estimada por fórmulas co­
nhecidas e indexada geralmente à superfície corporal, o
índice de massa ventricular - IMV) e ao rácio espessura
parietal/diâmetro da câmara (espessura relativa da
parede - ERP) pode servir para estratificar o risco car­
diovascular no hipertenso de forma mais fina do que a
massa ventricular apenas. Num interessante estudo do
grupo do Cornell Medical College e parceiros italianos,
que incidiu sobre 165 hipertensos (desde ligeiros a
graves) não tratados e 125 controlos (indivíduos normais
de idade e género comparáveis) os autores avaliaram as
prevalências das diferentes categorias morfológicas ou
geometria ventricular da hipertrofia ventricular esquerda
e as respectivas correlações com vários parâmetros
hemodinâmicos sistémicos, a carga e o desempenho
sistólico do ventrículo. Foram as seguintes as prevalências
dessas categorias encontradas por estes autores nos
hipertensos: a) geometria normal (IMV e ERP normais),
Revista Factores de Risco, Nº11 OUT-DEZ 2008 Pág. 12-19
de hipertrofia ventricular esquerda no ECG, sublinhamos
nós) e que o seu aumento leva a prever uma incidência
acrescida de eventos clínicos, incluindo a morte de causa
cardiovascular. Estudos posteriores vieram a demonstrar
que o tipo ou categoria de geometria ventricular associada
a maior risco cardiovascular é a hipertrofia concêntrica
e que a persistência desta ou o seu desenvolvimento
durante o seguimento pode ter significado prognóstico
negativo adicional.
Os valores de índice de massa ventricular e de
espessura relativa da parede ventricular a empregar na
categorização da geometria ventricular actualmente mais
usados são, para o primeiro, 125 gr/m2 (homem) e 110
g/m2 (mulher), e 0,42, respectivamente. A indexação
mais correcta para a massa ventricular, na criança e no
adolescente sobretudo, é alvo de algum debate.
Nas crianças e adolescentes, a presença de hipertrofia
ventricular esquerda é a manifestação clínica mais proe­
minente de comprometimento dos órgãos alvo causado
pela hipertensão. Sendo a sensibilidade do ECG para iden­
tificar o aumento do ventrículo esquerdo nestas idades
ainda menor do que no adulto, o ecocardiograma é o
método de diagnóstico preferível, assumindo o papel de
ferramenta de primeira escolha para avaliar a presença
de comprometimento de órgãos alvo nos hipertensos
destas classes etárias. A prevalência de aumento da massa
ventricular medida pelo ecocardiograma na hipertensão
não tratada, foi estimada em clínicas pediátricas, entre
42% e 34%.
a mais frequente, 52%; b) hipertrofia excêntrica (IMV
aumentado, ERP normal), 27%; hipertrofia concêntrica,
(IMV e ERP aumentados), 8% e remodelagem concêntrica
(IMV normal e ERP aumentada), 13%. As anomalias
da geometria ventricular são explicáveis, na opinião
dos autores, pelos achados funcionais com que se
correlacionam e de que os autores salientam o importante
papel da carga volumétrica cardíaca. Assim, por exemplo,
o cotejo com os dados da hemodinâmica leva a inferir
que o padrão de remodelagem concêntrica reflecte a
compensação da sobrecarga de pressão pela diminuição
da carga volumétrica do ventrículo. É de sublinhar que,
neste estudo, a hipertrofia concêntrica, geralmente consi­
derada pelo cardiologista clínico, como o paradigma ou
norma da hipertrofia ventricular da hipertensão, ocorre
apenas numa pequena percentagem de doentes e que a
hipertrofia excêntrica, que nos habituámos a interpretar
como traduzindo compromisso funcional contráctil não só
é a expressão mais comum das três categorias de anomalia
morfológica do ventrículo esquerdo na hipertensão, como
não se acompanha de disfunção contráctil aparente e
não é explicada por maiores valores do índice de massa
corporal.
Tal como aconteceu com a hipertrofia ventricular
esquerda definida por critérios electrocardiográficos,
também o significado prognóstico da massa ventricular
determinada ecocardiograficamente foi objecto de aná­
lise no Heart Study de Framingham. Neste estudo,
seguiram-se durante quatro anos 3.220 indivíduos com 40
anos ou mais e sem doença cardiovascular aparente, cujas
massas ventriculares foram medidas por ecocardiografia
modo-M, tendo-se verificado que esta se associou a todos
os desfechos considerados, mesmo após ajustamentos
à idade, pressão arterial diastólica, pressão de pulso,
tratamento da hipertensão, tabagismo (cigarro), diabetes,
obesidade, taxa de colesterol total/C-HDL e presença de
hipertrofia ventricular esquerda no ECG, a saber: eventos
cardiovasculares (208 ocorrências), morte cardiovascu­
lares (37 ocorrências) e morte de todas as causas (124
ocorrências). O risco ajustado de doença cardiovascular da
massa ventricular por cada incremento de 50 g por metro
de altura foi de 1,49 (intervalo de confiança de 95%, 1,20 1,85) nos homens e de 1,57 (1,20 – 2,04) nas mulheres; o
risco de morte cardiovascular, 1,73 (1,19 - 2,52) e 2,12 (1,28
- 3,49) e o risco de morte por todas as causas, 1,49 (1,14
- 1,94) e 2,01 (1,44 - 2,81), nos homens e nas mulheres,
respectivamente. Os autores concluem que a estimativa da
massa ventricular esquerda pelo ecocardiograma fornece
informação prognóstica para além da que os factores
de risco tradicionais proporcionam (incluindo a presença
Disfunção ventricular, insuficiência
cardíaca e outras manifestações
de doença cardíaca hipertensiva
A disfunção diastólica ventricular é comum na hiper­
tensão. Coexistindo frequentemente com a hipertrofia
ventricular esquerda, pode precedê-la, como pode pre­
ce­der o aparecimento da doença das coronárias e de
insuficiência cardíaca, quer diastólica, quer sistólica. A
disfunção diastólica ao aumentar a pressão telediastólica
do ventrículo esquerdo e a pressão auricular esquerda
contribui para o incremento da pressão capilar pulmonar
e para a congestão pulmonar e pode apresentar-se com
maior ou menor número das manifestações clínicas de
insuficiência cardíaca. Contudo, pode ser assintomática e a
sua identificação ser produto de um exame ecocardiográfico
de rotina no doente hipertenso.
A Sociedade Europeia de Cardiologia não indica o
ecocardiograma como o primeiro exame a solicitar perante
a suspeita de insuficiência cardíaca ou de disfunção
17
Peculiaridades da cardiopatia hipertensiva na hipertensão arterial de difícil controlo.
ventricular. Esta suspeita no hipertenso, sem cardiomegalia
aparente no exame físico ou na radiografia do tórax, ou S3
à auscultação do ápex, – um sinal de disfunção sistólica
– deve levar-nos a investigar a presença de disfunção
diastólica por Eco-Doppler cardíaco, embora a presença de
S4, a elevação dos pepetídeos natriuréticos e os achados
de hipertrofia ventricular esquerda ou anomalia auricular
esquerda no ECG reforcem a suspeição. O diagnóstico de
disfunção diastólica como explicação para as manifestações
clínicas pode ser confirmado por exame ecocardiográfico,
conjugando a informação do espectro de frequências
Doppler do fluxo de enchimento ventricular e do padrão
de velocidade do anel mitral obtido por Doppler tecidular,
face a função sistólica normal ou quase normal (fracção
de ejecção 45-50%) e excluídas que sejam outras causas
para os sintomas, v.g. doença pulmonar. Pelo exame
ecocardiográfico é então possível definir três padrões de
disfunção diastólica, por ordem crescente de gravidade: a)
o diagnóstico de insuficiência cardíaca. No contexto da
hipertensão arterial – e não só – essa evidência é pro­
porcionada geralmente na clínica pelo ecocardiograma.
Eventualmente, a doença hipertensiva já não se manifesta,
nesta fase, por valores elevados da pressão arterial o que
pode dificultar o diagnóstico etiológico correcto. Enquanto
nos países mais desenvolvidos, a doença das coronárias
e o enfarte do miocárdio são a etiologia dominante da
insuficiência cardíaca, em Portugal, onde a prevalência
da hipertensão arterial é muito elevada e a de doença
das coronárias mais modesta, aquela será certamente a
etiologia principal da síndroma.
A dilatação auricular esquerda secundária ao aumento
da pressão auricular suscitada pela disfunção diastólica
ventricular facilita a ocorrência de fibrilhação auricular,
uma forma de disfunção diastólica adicional – neste
caso de localização auricular e não ventricular – que tem
várias repercussões negativas sobre o volume sistólico
“Além da fibrilhação auricular, a hipertensão favorece a ocorrência
de outras arritmias auriculares e de arritmias ventriculares
e morte súbita cardíaca.”
perturbação do relaxamento, b) pseudo-normalização e c)
fisiologia restritiva. Note-se que estes padrões não medem
a disfunção diastólica em si mesma: são antes marcadores
da sua presença.
A hipertensão pode associar-se a dilatação cardíaca
(hipertrofia excêntrica), como vimos, e evoluir para
disfunção sistólica do ventrículo esquerdo, sobretudo
nas formas graves de hipertensão ou em associação com
doença cardíaca isquémica, v.g. enfarte do miocárdio.
A disfunção sistólica do ventrículo esquerdo pode ser
sintomática ou assintomática. Embora a dilatação e a
disfunção sistólica do ventrículo esquerdo possam ser
suspeitadas a partir do exame físico e a primeira seja fácil
de documentar na radiografia do tórax, o ecocardiograma
é o método de eleição para a diagnosticar e quantificar
pela medição da fracção de ejecção, preferencialmente
pelo método de Simpson.
Segundo as recomendações da Sociedade Europeia
de Cardiologia, a presença de sintomas característicos,
dispneia e/ou fadiga e de evidência objectiva de disfunção
cardíaca em repouso são indispensáveis para estabelecer
18
(stroke volume) e o débito cardíaco: elimina o importante
contributo da contracção auricular para a completação do
enchimento do ventrículo na fase telediastólica, aumenta a
frequência cardíaca e encurta o tempo de diástole, perturba
o fluxo coronário favorecendo a isquemia e aumenta ainda
mais a pressão a montante e o edema pulmonar, podendo
precipitar um quadro grave de insuficiência cardíaca
aguda. A dilatação auricular originada por qualquer doença
cardíaca e pela hipertensão favorece a fibrose da aurícula,
outro substrato da fibrilhação. A fibrilhação auricular
está associada, como bem se sabe, a elevado risco de
tromboembolismo e a eventos isquémicos encefálicos,
viscerais e dos membros. No entanto, estima-se que cerca
de 25% dos acidentes vasculares encefálicos isquémicos
em doentes com fibrilhação auricular devem-se, provavel­
mente, a doença cerebrovascular, a outras fontes cardíacas
de êmbolos ou a patologia ateromatosa da raiz da aorta.
Além da fibrilhação auricular, a hipertensão favorece
a ocorrência de outras arritmias auriculares e de arritmias
ventriculares e morte súbita cardíaca. Na patogenia destas
arritmias intervêm a doença das coronárias a que está
Revista Factores de Risco, Nº11 OUT-DEZ 2008 Pág. 12-19
ligada etiologicamente e as várias alterações morfológicas
e funcionais que induz: dilatação auricular e hipertrofia
ventricular esquerda; disfunção sistólica e diastólica do
ventrículo e disfunção da circulação microvascular. A
arritmia ventricular mais comum é certamente a extrasistólica: embora vulgar no indivíduo normal, ela é mais
prevalente no hipertenso, sobretudo com hipertrofia ven­
tricular esquerda. As arritmias ventriculares na hipertensão
estão ligadas à hipertrofia ventricular esquerda e parece
serem independentes da doença das coronárias coexistente
ou da disfunção ventricular. A hipertrofia ventricular es­
querda induzida pela hipertensão arterial é factor de risco
para arritmias ventriculares espontâneas e morte súbita
cardíaca.
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Texto
completo
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