0 FACULDADE DE AMERICANA FAM CURSO DE BIOMEDICINA MAYARA DE PAULA ANDRADE A QUESTÃO ÉTICA NO USO TERAPÊUTICO DAS CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS HUMANAS AMERICANA – SP 2015 1 FACULDADE DE AMERICANA FAM CURSO DE BIOMEDICINA MAYARA DE PAULA ANDRADE A QUESTÃO ÉTICA NO USO TERAPÊUTICO DAS CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS HUMANAS Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao curso de Biomedicina da Faculdade de Americana (FAM) como requisito parcial para obtenção do Título de Bacharel em Biomedicina. Orientador: Profª. Drª. Patricia Ucelli Simioni Coorientador: Profª. Drª. Maristella Conte Anazetti AMERICANA – SP 2015 2 RESUMO As células-tronco ou células progenitoras são aquelas capazes de proliferar e se diferenciar, originando os mais variados tipos celulares especializados. As célulastronco embrionárias (CTE) são extraídas ainda nos estágios iniciais do desenvolvimento embrionário, mais especificamente da massa celular interna do blastocisto, apresentando o maior potencial de especialização por possuir particular capacidade de originar todo e qualquer tipo celular especializado (pluripotência), como comprovado em experimentos laboratoriais in vitro ou em animais de experimentação. Por apresentar um maior potencial terapêutico em relação à demais populações, a manipulação das CTE pode contribuir tanto ao desenvolvimento da pesquisa científica quanto para as aplicações terapêuticas, possibilitando testes com agentes inibidores do processo de desenvolvimento embrionário, teste de drogas para a cura de enfermidades e identificação de genes de potencial interesse médico. Entretanto, existe uma grande barreira que impede o desenvolvimento de aplicações terapêuticas das CTE: a imposição da ética. Essa questão é relacionada a definição do início da vida, pois para a extração de CTE é necessária a inviabilização de um embrião . Isso abrange questões éticas, religiosas, culturais e morais, atingindo até aspectos de ordem jurídica. Palavras-chave: célula-tronco embrionária, pesquisas com embriões, ética em pesquisa. 3 ABSTRACT Stem or progenitor cells are those cells able to proliferate and differentiate, resulting in a wide variety of specialized cell types. Embryonic stem cells (CTE) are removed in the early stages of embryonic development, specifically the inner cell mass of the blastocyst, with the greatest potential for specialization. This cell has a particular ability to generate diverse specialized cell types (pluripotent cell), as proven in laboratory experiments in vitro or in animal models. By presenting a greater therapeutic potential compared to the other populations, the manipulation of CTE can contribute to both scientific research for therapeutic question, enabling tests with inhibitors of the process of embryonic development, drug testing for the cure of diseases, and identification of potential genes of medical interest. However, there is a barrier that interferes in the development of therapeutic applications of CTE: the imposition of ethics. This issue is related to early life definition, since to CTE extraction it is necessary the inviability of an embryo. This review covers ethical, religious, cultural and moral issues, reaching aspects of law. Keywords: embryonic stem cell, embryo research, research ethics. 4 LISTA DE FIGURAS Figura 1. Fonte de CTE .……………………………………………………...…………… 7 Figura 2. Célula-Tronco Pluripotente Induzível (CTPI) ..………………...…………..… 9 Figura 3. Cultura de CTEs humanas sobre matriz de fibroblastos (imagem obtida por microscopia ótica) ……….…………………………………………………...…………… 10 Figura 4. Apresentação direta e indireta do antígeno …………………...……………. 13 Figura 5. Clonagem reprodutiva ...…………………………………………...…………. 16 Figura 6. Clonagem terapêutica ...……………………………………………………..... 17 5 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 6 2. OBJETIVO .............................................................................................................. 8 3. JUSTIFICATIVA...................................................................................................... 9 4. PROBLEMA .......................................................................................................... 10 5. METODOLOGIA ................................................................................................... 11 6. DESENVOLVIMENTO .......................................................................................... 12 6.1. Fonte de células-tronco................................................................................... 12 6.2. Eficácia de células-tronco em geral ................................................................ 13 6.3. Pluripotência das CTEs ................................................................................... 13 6.4. Cultivo de CTE ................................................................................................ 15 6.5. Dados não clínicos da eficácia do uso das CTEs ........................................... 16 6.6. Imunologia e rejeição ao transplante de CTE ................................................. 17 6.7. Clonagem terapêutica ..................................................................................... 21 6.8. Imposição ética e fatores negativos para a aplicação terapêutica das CTEs . 24 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 28 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 29 6 1. INTRODUÇÃO As células-tronco ou células progenitoras são aquelas capazes de proliferar e se diferenciar, originando os mais variados tipos celulares especializados. Essas células são classificadas de acordo com sua origem, como: adultas, embrionárias e fetais. As células-tronco adultas podem ser encontradas em tecidos como a medula óssea, músculo cardíaco, ossos e cérebro, enquanto as progenitoras fetais são provenientes de tipos celulares primitivos do feto. Já as células-tronco embrionárias (CTE) são extraídas ainda nos estágios iniciais do desenvolvimento embrionário (HUSSEIN, 2007; SHAND et al., 2012). Dos tipos celulares apresentados, as CTE apresentam o maior potencial de especialização, pois elas possuem particular capacidade de originar todo e qualquer tipo celular especializado (pluripotência), enquanto os outros tipos só podem se diferenciar, basicamente, nos tipos celulares correspondentes as suas origens. Por essa razão, as CTE apresentam um potencial terapêutico único em relação às outras. A característica única das CTE de serem pluripotentes torna-as promissoras para o uso em terapias celulares, na recuperação de pacientes com quadros clínicos de doenças degenerativas, podendo auxiliar na cura de tais patologias (HUSSEIN, 2007; PEREIRA, 2005; SENEGAGLIA, 2007). Apesar de esta informação ser relevante para o avanço científico e biotecnológico, há fatores que tornam as pesquisas com CTE inviáveis na atualidade. Entre esses estão envolvidas questões filosóficas, sociais, religiosas e principalmente éticas. A principal indagação surge ao discutir qual é de fato o início da vida. O conceito de vida humana é o principal entrave para o desenvolvimento de estudos e pesquisas a partir de CTE, pois a ética visa a preservação e direito à vida, e uma vez que a obtenção de CTE é inviável à mesma, tais princípios éticos são infringidos (ODA, GESUALDO, CASTILHO, 2011). Estudos apontam que países em desenvolvimento são mais conservadores quanto a esse assunto em comparação aos desenvolvidos. Nesse contexto, no Brasil ainda se discute bastante esse assunto. Por outro lado, em alguns países, a pesquisa, a cultura e o congelamento de CTE a partir de embriões humanos para fins terapêuticos são permitidos por lei. O Irã e o Reino Unido, por exemplo, apoiam a prática da clonagem terapêutica como opção de obtenção destas células (DINIZ, AVELINO, 2009; SANIEI, 2013; LUCCHETTI et al., 2014). 7 Entretanto e apesar dessas questões e entraves, a ciência vem avançando em relação as pesquisas biomoleculares e comprovando a eficiência das células-tronco em reconstituir tecidos e órgãos, como demonstra a pesquisa de Senegaglia (2007), onde ao estimular células progenitoras endoteliais sanguíneas de cordão umbilical humano verificou-se a formação de capilares. Partindo deste conflito entre ética e avanço científico, o presente trabalho visa discutir as diretrizes brasileiras sobre o uso terapêutico de CTE e apontar possíveis comprovações de eficiência em relação a este potencial. 8 2. OBJETIVO Visando o uso terapêutico da CTE, o presente trabalho teve como objetivo pesquisar trabalhos realizados com tais células que comprovem sua capacidade de proliferação e especialização, buscando avaliar a possibilidade de aplicação dessas células para fins terapêuticos em humanos. Foi objeto de pesquisa a avaliação da discussão dos valores éticos relacionados ao uso terapêutico da CTE, relacionando os prós e contras dessas aplicações. 9 3. JUSTIFICATIVA O aprofundamento em estudos com CTE humana poderá beneficiar uma parcela significativa da população e também contribuir para os avanços científicos na área de pesquisa e na clínica. Esses avanços poderão auxiliar ou mesmo possibilitar a cura da maioria das patologias conhecidas pelo homem. Entretanto, a questão ética ainda é um grande entrave para o uso das CTEs. Considerando o direito à vida, defendido pela ética e biossegurança, a pesquisa com CTE é definida como invasiva e inviável, julgada como antiética, por interromper o desenvolvimento embrionário. Baseado no acima exposto, esse trabalho teve por objetivo apresentar uma ampla discussão sobre essa questão ética e o uso e a pesquisa de CTE no momento atual. 10 4. PROBLEMA Existe comprovação científica da eficácia das CTEs para o tratamento de patologias? Existem dados clínicos que corroboram a utilização de CTE em humanos para fins terapêuticos? As questões éticas podem ser um entrave para esse potencial terapêutico das CTEs? 11 5. METODOLOGIA O desenvolvimento deste trabalho baseou-se em uma pesquisa bibliográfica, a partir da busca, leitura e interpretação de artigos, teses, dissertações e livros ao redor do assunto. A pesquisa pela literatura que fundamentou esse Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) deu-se através de sites na internet que dispunham de artigos, livros, dissertações etc. Foram consultados sites de pesquisa acadêmica para a busca de bibliografia relacionada ao tema escolhido e a triagem da mesma foi feita buscando a maior atualização possível, obtendo resultados posicionados entre 2000-2015. 12 6. DESENVOLVIMENTO As CTEs, extraídas do blastocisto, são de grande interesse para as pesquisas devido a capacidade de diferenciação e desenvolvimento celular. Sendo assim, há grande discussão sobre a possível utilização destas células para formar tecidos e órgãos novos, para fins terapêuticos. A discussão sobre o uso de CTE ultrapassa anos e envolve sempre vários grupos de pessoas (PEREIRA, 2005). 6.1. Fonte de células-tronco A obtenção de células-tronco embrionárias pressupõe o isolamento de tais células a partir do pré-embrião humano, mais especificamente, da massa celular interna do blastocisto (Figura 1) (ROCHA et al., 2012; MENDES, BITTENCOURT, DUSSE, 2010; HUSSEIN, 2007; SENEGAGLIA, 2007). Figura 1. Fonte de CTE. Fonte: Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias – Rio de Janeiro, 2015. 13 Grande parte dos tecidos maduros possuem pequenas populações de célulastronco que têm capacidade de reparar e continuar o crescimento da sua linhagem celular. Portanto, as fontes de células-tronco adultas podem não se restringir a medula óssea, mas também incluir o cordão umbilical, cérebro, músculo cardíaco, tecido conjuntivo e tecido ósseo. Essas células podem ser mobilizadas também para a circulação periférica, se utilizados os estímulos de fatores que promovem a mobilização destas aos vasos venosos periféricos (SHAND et al., 2012; MENDES, BITTENCOURT, DUSSE, 2010). 6.2. Eficácia de células-tronco em geral A capacidade progenitora das células-tronco em geral é uma das características específicas destas células. Senegaglia (2007) e Hussein (2007) relatam em seus trabalhos experiências que comprovam esta ação em células-tronco mesenquimais adultas. No estudo de Hussein (2007) células-tronco mesenquimais da medula óssea estimuladas por variados fatores foram capazes de proliferar e diferenciar-se a células de Schwann. Tal estudo obteve resultados satisfatórios, com culturas de células de Schwann evidenciadas ao fim da experiência, observando-se, além da diferenciação, a proliferação celular. No estudo de Senegaglia (2007) são extraídas células progenitoras endoteliais de sangue de cordão umbilical humano e estimuladas a diferenciação em células endoteliais. O resultado foi a proliferação de células alongadas e aderentes, enfileiradas e agrupadas em forma de paralelepípedo, semelhantes a um grupo de células endoteliais. 6.3. Pluripotência das CTEs Apesar de muito semelhantes, há uma pequena diferença entre as célulastronco adultas e as embrionárias: a potencialidade de especialização. Pelo fato das células-tronco embrionárias serem extraídas do embrião, o qual possui potencialidade de gerar todos as estruturas do organismo, essas particularmente podem diferenciarse em todo e qualquer tipo celular especializado. Além disso, elas possuem maior potencial de divisão e auto renovação celular em relação àquelas já especializadas. Pesquisas e estudos confirmam esta afirmação demonstrando o poder regenerativo das CTEs, e seu potencial de uso em terapias celulares e pesquisas científicas com 14 grande benefício para os mais variados grupos de pessoas, especificamente em transplantes de órgãos (PEREIRA, 2005; ROCHA et al., 2012; SHAND et al., 2012). A reprogramação genética de células-tronco adultas (CTA) em células-tronco pluripotentes induzíveis (CTPI) é possível e pode ser uma alternativa para o uso de CTE, visto que elas são capazes de diferenciar-se nas três camadas embrionárias (Figura 2). Entretanto, a técnica mostra-se limitada devido as CTAs se apresentarem em um estágio diferenciado, pela dificuldade de isolamento, manutenção em cultura e reduzida quantidade nos tecidos, se comparadas às CTEs. Além disso, as CTPIs são capazes de preservar suas características moleculares, podendo ser menos estáveis e eficientes para a formação de uma linhagem celular específica. Há também a possibilidade de crescimento desregulado e silenciamento de genes importantes para a diferenciação (SHAND et al., 2012). Figura 2. Célula-Tronco Pluripotente Induzível (CTPI). São adicionados 4 genes (Oct-4, Sox-2, Klf-4 e c-Myc) nas células a serem reprogramadas, através de vetores virais, para que estes atuem na reprogramação. Fonte: Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias – Rio de Janeiro, 2015. A manipulação de CTEs humanas pode contribuir muito na pesquisa científica e na terapêutica, pois o conhecimento aprofundado desse tipo celular permite 15 entender e desenvolver em laboratório todo processo de desenvolvimento embrionário humano. Isso possibilita testes com agentes inibidores desse processo, teste de drogas para a cura de enfermidades e identificação de genes de interesse potencial (como na síndrome do X frágil). Da mesma forma, conhecendo-se mais sobre a interação e desenvolvimento das CTEs humanas, a produção de novos tecidos especializados para transplantes pode ser derivada dessas células. Elas tornam-se então esperança de cura para doenças como Parkinson, diabetes e hepatite (NUSSBAUM, MCLNNES, WILLARD, 2008; PEREIRA, 2005; ROCHA et al., 2012). 6.4. Cultivo de CTE Na prática de cultivo de CTE, após serem extraídas, essas são cultivadas em laboratório para geração de uma linhagem celular específica. Devido à sua capacidade exclusiva de auto renovação, elas podem ser mantidas de forma indefinida durante a cultura. O isolamento pode ser realizado por meio de microcirurgia, sendo elas posteriormente transferidas para placas de cultura recobertas previamente com células parenquimais da glândula mamária, fibroblastos fetais, células endometriais femininas, células musculares fetais ou epiderme adulta humana, pela necessidade de matriz celular ou extracelular de adesão (Figura 3) (ROCHA et al., 2012; SHAND et al., 2012). A primeira cultura de CTE de que se tem registro data do ano de 1981. Foram cultivadas CTEs obtidas de camundongos, nos Estados Unidos da América, sendo posteriormente realizadas culturas de células de ratos. As CTEs humanas foram primeiramente isoladas e cultivadas em 1998 a partir de embriões (em fase de blastocisto) excedentes de fertilização in vitro, originando células de variados tecidos diferenciados. No Brasil, em outubro de 2008 foi produzida na Universidade de São Paulo a primeira linhagem celular oriunda de CTE humana, obtida com sucesso, porém se apresentando limitada para uso na população brasileira devido a incompatibilidade de antígenos leucocitários humanos (HLA, do inglês Human Leukocyte Antigen) (ARAGÃO, BEZERRA, 2012; BARTH, 2006; DINIZ, AVELINO, 2009; ROCHA et al., 2012). 16 Figura 3. Cultura de CTEs humanas sobre matriz de fibroblastos (imagem obtida por microscopia ótica). Fonte: Harris, 2009. 6.5. Dados não clínicos da eficácia do uso das CTEs Para a comprovação da eficácia das CTEs, foram realizados testes com camundongos irradiados e injetados com CTEs diferenciadas em células sanguíneas. Os resultados mostraram que essas células reconstituíram toda a linhagem celular sanguínea do roedor. Este estudo teve por objetivo o tratamento de leucemia humana, que aplica terapias radioativas, as quais destroem as células medulares juntamente as cancerígenas, necessitando de um novo transplante de medula óssea para o reestabelecimento deste tecido (PEREIRA, 2005). Entretanto, foi comprovado que a capacidade regenerativa e reconstrutora das CTEs não se restringe ao tecido sanguíneo. Essas apresentaram capacidade de se diferenciar em células do tecido nervoso, o que até então parecia impossível, pois as células nervosas são dificilmente regeneráveis. Primeiros ensaios realizados com camundongos com trauma na coluna vertebral que receberam transplante de CTEs diferenciadas recuperaram suas terminações nervosas e lentamente os movimentos das patas. Este resultado tornou-se uma esperança para pessoas que sofreram traumas na coluna vertebral, perdendo movimentos fundamentais dos membros inferiores (PEREIRA, 2005). Outras linhagens celulares obtidas a partir da cultura de CTE in vitro foram as células pulmonares do tipo II, capazes de produzir surfactante, otimizar as trocas gasosas e dispor proteção contra a invasão de patógenos, sendo promissoras para o 17 tratamento da doença pulmonar neonatal. As CTEs puderam também ser diferenciadas em células das ilhotas pancreáticas que secretam insulina e apresentam possibilidade de terapia para pacientes portadores de diabetes mellitus tipo I. A diferenciação em células da pele também foi comprovada in vitro, cujo uso terapêutico seria aplicado como substituto de enxertos autólogos (SHAND et al., 2012). Sabendo-se que as células musculares cardíacas não se proliferam durante a vida adulta, foi realizado um estudo com camundongos onde CTEs foram purificadas e injetadas nos animais adultos, derivando cardiomiócitos que reconstituíram o tecido miocárdico. Em seguida, cientistas reproduziram tal experimento com CTEs humanas, que demonstraram capacidade de contração espontânea in vitro, além de expressar marcadores moleculares idênticos aos cardiomiócitos humanos. Tais resultados indicam as CTEs como promissoras para o tratamento da insuficiência cardíaca congestiva e do infarto do miocárdio, patologias que afetam milhares de pessoas por ano no mundo todo (HOLLAND, LEBACQZ, ZOLOTH, 2006). Utilizando ratos parkinsonianos, uma equipe de pesquisadores injetou-lhes CTEs que resultaram na geração de neurônios dopaminérgicos, apresentando propriedades eletrofisiológicas e bioquímicas semelhantes as células originais do mesencéfalo. Contudo, foi observada melhora nos sintomas relacionados à doença de Parkinson nestes animais (PAULA et al., 2005). Uma equipe de pesquisadores conseguiu comprovar, em 1993, que é possível desenvolver um animal viável a partir de CTE. Cultivando CTEs de camundongos notou-se a manutenção do seu potencial, onde ao ser injetadas em um blastocisto ou agregadas a uma mórula derivaram um camundongo viável (BARTH, 2006). 6.6. Imunologia e rejeição ao transplante de CTE O termo transplante pode ser definido como um “[...] implante de um tecido ou órgão retirados de outra parte do mesmo corpo ou de outro indivíduo” (SILVA, SILVA, VIANA, 2011, p. 821). A este tecido dá-se o nome de enxerto, no qual o indivíduo que o fornece é denominado doador e o indivíduo que o recebe é denominado receptor ou hospedeiro. Quanto ao enxerto, é possível diferenciar quatro tipos distintos (ABBAS, LICHTMAN, PILLAI, 2012; GUYTON, HALL, 2011): Autoenxerto: enxerto transplantado do indivíduo para si mesmo, ou seja, um enxerto autólogo; 18 Isoenxerto: transplante de enxerto entre indivíduos geneticamente idênticos, ou seja, um enxerto singênico; Aloenxerto: transplante de um enxerto entre indivíduos geneticamente diferentes, porém da mesma espécie; Xenoenxerto: transplante de enxerto entre indivíduos de espécie diferente, ou seja, sem semelhança alguma. É de amplo conhecimento que as células do sistema imunológico tendem a combater qualquer antígeno ou substância imprópria ao organismo. Por isso, ao enxertar um tecido geneticamente diferente no receptor, a tendência é que ocorra rejeição a este enxerto. Para os autoenxertos e isoenxertos, o risco de rejeição são mínimos ou quase zero, pois há semelhança antigênica entre doador e receptor. Já nos aloenxertos e xenoenxertos a rejeição é frequente, resultando na morte celular do tecido no período de semanas após o transplante (GUYTON, HALL, 2011; SOCIEDADE BENEFICENTE ISRAELITA BRASILEIRA, 2014). Um transplante é capaz de estimular tanto a imunidade celular quanto a humoral, por mecanismos específicos e não-específicos. A rejeição pode ser iniciada de duas maneiras: por apresentação direta ou indireta do antígeno às células imunológicas (Figura 4). Na apresentação direta, as moléculas do complexo principal de histocompatibilidade (MHC) presentes nas células apresentadoras de antígeno (APCs) do próprio doador se ligam diretamente aos linfócitos T alorreativos do receptor, desencadeando a resposta imunológica devido ao reconhecimento dos aloantígenos. Já na apresentação indireta, as moléculas do MHC do doador são processadas pelas APCs do receptor, que apresentarão peptídeos derivados deste MHC alogênico associados a moléculas próprias (MHC do receptor), onde o linfócito T alorreativo se liga à APC do receptor através do MHC próprio, desencadeando a resposta imune devido ao reconhecimento de tal fração peptídica alogênica (ABBAS, LICHTMAN, PILLAI, 2012; FARIA, et al., 2008). 19 Figura 4. Apresentação direta e indireta do antígeno. Fonte: Abbas, Lichtman, Pillai, 2012. As células T do receptor, tanto auxiliares quanto citotóxicas, são ativadas pelos aloantígenos. Estas posteriormente proliferam e reagem contra o aloenxerto. As células T citotóxicas CD8+ são as principais envolvidas na morte das células do doador. A apresentação indireta desenvolve uma resposta imunológica menos intensa em relação à apresentação direta, pois a presença de MHC próprio do receptor ativa de forma mais fraca a citotoxicidade do linfócito T. Contudo, o reconhecimento indireto é importante na rejeição crônica, ou seja, a longo prazo, onde linfócitos T CD4 + são ativados e reagem contra o aloenxerto. Mesmo que as APCs do doador não sejam mais capazes ou suficientes para estimular a resposta imune direta, as APCs do receptor continuarão a ativar os linfócitos T alorreativos (de forma indireta), resultando na rejeição crônica (LEVINSON, 2014; MALE, et al., 2014). O complexo antigênico mais importante no desencadeamento de rejeição a enxertos são os antígenos leucocitários humanos ou HLA. Trata-se de um complexo constituído por mais de 200 genes, onde cerca de 20% codificam moléculas de histocompatibilidade presentes na superfície celular. Tais genes estão localizados no braço curto do cromossomo 6 e podem ser divididos em três classes: I, II e III. HLA de classe I apresenta três loci principais: A, B e C; HLA de classe II apresenta os loci: 20 DR, DQ e DP; ambos (HLA de classes I e II) codificam moléculas de histocompatibilidade tecidual. Já o HLA de classe III determina fatores do complemento, fator de necrose tumoral e a enzima 21-hidroxilase (ALVES et al., 2006; MONTE et al., 2004). Estes genes correspondem a uma herança autossômica e codominante, ou seja, o indivíduo irá expressar o produto da codificação dos genes pertencentes aos cromossomos materno e paterno. Os antígenos HLA estão presentes tanto na superfície dos linfócitos quanto nas células teciduais. Devido ao polimorfismo genético deste sistema, a possibilidade de combinações é enorme e, portanto, é quase impossível duas pessoas terem os mesmos antígenos HLA (a não ser em caso de gêmeos idênticos). O reconhecimento antigênico realizado pelo linfócito no tecido enxertado só ocorre se estes antígenos estiverem ligados a moléculas do HLA. A incompatibilidade destes antígenos pode desencadear uma resposta imune significativa, causando a rejeição do enxerto. Entretanto, alguns desses antígenos não são expressivamente antigênicos, permitindo uma combinação menos precisa entre doador e receptor. Contudo, a combinação mais bem-sucedida se dá entre gêmeos idênticos, e na ausência destes, busca-se o parente mais próximo (ALVES et al., 2006; GUYTON, HALL, 2011; MEINERZ et al., 2008). O transplante de CTEs humanas ou de células derivadas delas ainda enfrenta grande dificuldade devido a esta incompatibilidade de HLA. Visto que o polimorfismo é extenso em relação a estes antígenos, torna-se quase impossível encontrar um doador de CTE compatível. Entretanto, já existem técnicas capazes de modificar tais células, tornando-as menos imunogênicas. Como exemplo pode-se citar a geração de uma linhagem de CTEs humanas β2-microglobulina (B2M) nula. A B2M está covalentemente associada às proteínas de HLA-I no retículo endoplasmático da célula, tornando-se assim um elemento essencial para a formação de moléculas funcionais de HLA-I na superfície celular. Afim de gerar uma linhagem de CTEs humanas compatíveis com qualquer genótipo HLA, ou seja, uma linha “doadora universal”, cogitou-se a possibilidade de manipular os alelos genéticos responsáveis por codificar o HLA-I para reduzir a imunogenicidade relacionada a células T CD8 +. Sendo assim, foram excluídos os éxons 2 e 3 de ambos os alelos de B2M, resultando na deficiência completa deste composto, mantendo a integridade cromossômica, pluripotência e capacidade de auto renovação destas células. As CTEs B2M-nula e suas derivadas mostraram superfície deficiente de HLA-I, tornando-se resistentes a 21 morte mediada por T CD8+. Entretanto, mostrou-se necessária a supressão de células natural killer (NK) para evitar o reconhecimento e destruição das células HLA-I deficientes (pois este antígeno é responsável por inibir o ligamento da NK), implicando no aumento substancial do risco de infecções oportunistas e desenvolvimento de tumores no receptor. Contudo, tais riscos são equivalentes aos que os indivíduos transplantados enfrentam ao administrar drogas imunossupressoras de efeito sistêmico. Apesar da suscetibilidade a células NK, as células HLA-I deficientes se apresentaram promissoras em estudos com modelos animais imunocompetentes com depleção de células NK (WANG et al., 2015). Outra técnica alternativa que se mostrou promissora é a clonagem terapêutica ou transferência de núcleo de célula somática, que tem por objetivo eliminar qualquer possibilidade de rejeição imunológica no receptor, pois o DNA da CTE (ou célula derivada) a ser transplantada é o mesmo do hospedeiro (visto que o núcleo é retirado de uma célula somática adulta do próprio indivíduo). Por ser mais extenso e complexo, este tema será discutido no tópico a seguir (DEUSE et al., 2015). 6.7. Clonagem terapêutica Clonagem é a “produção de células ou indivíduos geneticamente idênticos” (SILVA, SILVA, VIANA, 2011, p. 180). Portanto, um clone pode ser definido como um “ser vivo originado de outro, com mesma imagem e código genético” (BARBOSA, PEREIRA, 2000, p. 173). O nascimento de gêmeos idênticos (monozigóticos) é um exemplo de clonagem natural, onde um óvulo fertilizado divide-se, originando clones idênticos. Entretanto, existem dois tipos de clonagem: reprodutiva e terapêutica (FREITAS et al., 2007; ROCHA, 2008). Um exemplo clássico de clonagem reprodutiva foi o caso da ovelha Dolly em 1997, onde o núcleo de uma célula somática da glândula mamária da ovelha que originou Dolly foi transferido para um óvulo enucleado, que se comportou como um óvulo recém-fecundado por um espermatozoide, reprogramando o DNA celular para que todos os genes se tornassem novamente ativos. Tal clonagem é caracterizada como reprodutiva devido ao fato deste óvulo (contendo o núcleo transferido) ter sido implantado no útero de uma outra ovelha, que posteriormente originou Dolly. Na clonagem reprodutiva humana não seria diferente, pois seria transferido o núcleo de uma célula somática de determinado indivíduo para um óvulo enucleado, e este 22 posteriormente implantado em um útero ou “barriga de aluguel”. O resultado é o nascimento de um clone do doador do núcleo, ou seja, um gêmeo idêntico nascido posteriormente (Figura 5) (CATÃO, 2010; ZATZ, 2004). Figura 5. Clonagem reprodutiva. Fonte: Zatz, 2004. Apesar do sucesso, foram necessárias 277 tentativas de clonagem para se obter Dolly, visto que a maioria das outras células não atingiam sequer o estágio de blastocisto. No Brasil, o primeiro clone reprodutivo foi obtido a partir de uma bezerra, que, entretanto, morreu com pouco mais de um mês em 2002. No mesmo ano foi anunciada a clonagem do copycat, um gato de estimação, oriundo de uma tentativa com 87 embriões, no qual apenas um veio a calhar. A partir destes resultados, pôdese concluir que a reprogramação genética para estágios embrionários é extremamente difícil, além do fato destes clones sempre apresentarem defeitos como gigantismo, falha de funcionamento em algum órgão ou problemas imunológicos. Contudo, foram possíveis as seguintes conclusões: a maioria destes clones morrem no começo da gestação; tais clones apresentam anormalidades semelhantes, independente da célula originária ou espécie; tais anormalidades provêm de falha na reprogramação genética; e o sucesso da clonagem reprodutiva é dependente do 23 estágio de diferenciação da célula somática originária. Esta forma de clonagem é atualmente proibida por lei em vários países, inclusive no Brasil, devido à problemas éticos relacionados ao enorme risco biológico associado a clonagem reprodutiva (ZATZ, 2004). A clonagem terapêutica difere-se da reprodutiva pelo fato de que ao invés do óvulo contendo o núcleo transferido ser implantado em um útero, este é cultivado in vitro para obtenção de CTEs que servirão posteriormente para a fabricação de novos tecidos, ou seja, ao invés de originar gêmeos idênticos, o objetivo é obter um tecido clonal da célula doadora. O óvulo então não atinge a fase de embrião, desenvolvendose apenas até o estágio de blástula (Figura 6) (CATÃO, 2010; FREITAS et al., 2007; ZATZ, 2004). Figura 6. Clonagem terapêutica. Fonte: Zatz, 2004. O uso da clonagem terapêutica tem por finalidade evitar a rejeição imunológica no receptor, visto que o material genético contido no tecido implantado é o mesmo (o doador é o próprio receptor). Salvo casos onde a patologia é de ordem genética, a aplicação clínica da clonagem terapêutica apresenta-se promissora para o tratamento 24 de doenças degenerativas como o Alzheimer ou a distrofia muscular progressiva, além de muitas outras como o diabetes, traumas na coluna vertebral, cirrose hepática, esclerose múltipla etc. Porém, a modalidade também é proibida em diversos países, incluindo o Brasil, devido a conflitos éticos e morais. Outro impasse é a rejeição devido à presença de DNA mitocondrial referente ao óvulo primário, porém isso já é alvo de estudos onde a alteração de alelos deste DNA possivelmente possa minimizar ou anular esta expressão antigênica (CATÃO, 2010; DEUSE et al., 2015; GRINFELD, GOMES, 2004; ZATZ, 2004). 6.8. Imposição ética e fatores negativos para a aplicação terapêutica das CTEs Mesmo apresentando muitos pontos positivos em prol do uso terapêutico da CTE humana, existe uma grande barreira que impede que o mesmo seja realizado, a imposição da ética (GHIZELINI, MONFROI, PAULETTI, 2007). A ética pode ser definida como: “é.ti.ca sf. 1. Estudo dos juízos da apreciação referentes à conduta humana, do ponto de vista do bem e do mal. 2. Conjunto de normas e princípios que norteiam a boa conduta do ser humano” (FERREIRA, 2000, p. 300). A questão ética e legal se relaciona a definição do início da vida. Questiona-se se o aglomerado de células – blastocisto – pode ser considerado uma vida ou apenas um conjunto celular. A ciência explica que a célula é a estrutura fundamental do ser vivo, e independente por possuir suprimento as necessidades vitais. Porém, as leis asseguram o direito à vida ao indivíduo humano, gerando a seguinte questão: CTEs humanas são pessoas? Para a ciência a concepção de pessoa humana se dá a partir da formação do sistema nervoso, que não ocorre nas primeiras fases do desenvolvimento embrionário, e sim a partir da terceira semana de gestação. O Código Civil Brasileiro assegura em seu artigo 4º que a personalidade civil do homem começa no nascimento com vida, contudo seu artigo 2º diz que a lei também assegura o direito do nascituro. Sendo assim, como o embrião é considerado nascituro somente quando em desenvolvimento no útero materno, ao desenvolvimento in vitro não cabem tais direitos (BARBOSA et al., 2013; GHIZELINI, MONFROI, PAULETTI, 2007; GOMES, 2007; MARCO, 2009; ODA, GESUALDO, CASTILHO, 2011). A definição de vida e o início dela não são os mesmos para todas as pessoas. Valores como costumes, crenças e educação que vão definir o pensamento sobre a concepção de vida para cada indivíduo. Em torno do que se diz como impedimento a 25 vida em relação ao embrião, precisa-se esclarecer que independente dele ser considerado pessoa humana ou não, a extração de CTE é diferente de um aborto de um feto desenvolvido, por exemplo (PEREIRA, 2005). Complementando a ideia de defesa das pesquisas com CTEs humanas, a autora diz: [...] aquele embrião excedente trará muito mais benefícios à vida de pessoas já vivas na forma de CTs embrionárias do que no fundo de uma lata de lixo, onde é descartado nas clínicas de reprodução assistida, ou esquecido em um congelador, caso o casal não queira ter mais filhos (PEREIRA, 2005, p. 78). As evoluções científicas são enfraquecidas pela violação de valores éticos, pois, para a extração de CTE é necessária a destruição de um embrião, o que para algumas pessoas equivale a impedir a vida. É justo dizer que não é ético destruir uma vida para salvar outra, contudo é injusto deixar morrer um indivíduo afetado por uma doença degenerativa letal, afim de preservar um embrião cujo provável destino é o descarte. Para alguns, tal debate pode ferir questões éticas, religiosas, culturais e morais, atingindo até aspectos de ordem jurídica (FREITAS et al., 2007; SHAND et al., 2012; GHIZELINI, MONFROI, PAULETTI, 2007; GRINFELD, GOMES, 2004). A função da ética neste conceito não é bloquear a ciência e seus avanços, mas sim avalia-la na prática, impondo-lhe limites. No Brasil, a atual Lei da Biossegurança de nº 11.105/2005 permite o uso de embriões congelados após três anos para fins de pesquisa, desde que haja o consentimento dos genitores. Em contrapartida, há outros conceitos éticos definidos em lei, como os princípios de direito à vida, sendo então a primeira julgada como errônea. Além disso, estudos já apontam que a técnica de criopreservação dos embriões excedentes de fertilização in vitro degrada-os, com o passar dos anos em que permanecem congelados, tornando-os gradualmente inviáveis. A discussão gerada ao questionar o início da vida é o primeiro fator a implicar o uso terapêutico da CTE humana (BARBOSA et al., 2013; CATÃO, 2010; GHIZELINI, MONFROI, PAULETTI, 2007; GOMES, 2007; ODA, GESUALDO, CASTILHO, 2011). Quanto a clonagem terapêutica, o fato de criar um possível embrião unicamente para a extração das CTEs histocompatíveis ao receptor é visto por determinado público como uma instrumentalização do ser humano, no qual sua legalização resultaria na chamada “perda de sensibilidade moral”. Acontece que com o advento de Dolly, a mídia manteve o foco somente nos aspectos de temor moral do procedimento de clonagem, exaltando o terror relacionado ao limite dos avanços da 26 ciência. Nesta onda de medo, a população passou a temer o termo clonagem, e por consequência esses mitos e medos condizentes a clonagem reprodutiva foram atribuídos também à terapêutica (CATÃO, 2010; GRINFELD, GOMES, 2004). Entretanto, considerando que moralidade provém do balanço entre vantagens e desvantagens de determinada ação, pode-se dizer que a pesquisa e utilização das CTEs é moralmente aceita, contanto que seu benefício se sobressaia para aqueles que as utilizarem (GOMES, 2007). A mesma Lei de Biossegurança (nº 11.105/2005), em seu artigo 6º, veta a prática de clonagem humana de forma geral. Porém é questionada a consistência em se proibir a clonagem terapêutica na mesma lei que autoriza o uso de embriões excedentários para extração de CTEs para fins de pesquisa. O Supremo Tribunal Federal já subentende que o aproveitamento dessas sobras embrionárias não viola o direito à vida, tampouco o da dignidade humana, visto que o embrião não corresponde à pessoa física e a Constituição não define claramente onde se dá o início da vida. Isso não significa que seja correto que um ser humano em potencial seja instrumentalizado. Entretanto, é preciso observar que a clonagem terapêutica não possui finalidade banal, e sim benéfica, para aplicação no tratamento de patologias degenerativas. Visto isso, a proibição jurídica da clonagem mereceria ponderação diante o direito à saúde e à liberdade de expressão científica, já previstos pela Constituição Federal. Enquanto isso, no contexto global, países como Estados Unidos e Reino Unido já permitem a prática da clonagem terapêutica (CATÃO, 2010; GOMES, 2007). Outro fator é a decisão da igreja em banalizar o uso dessas células por lesar o novo indivíduo humano com direito à vida, mesmo nascituro. Para os religiosos, em específico os católicos, o início da vida humana se dá a partir da fecundação do óvulo pelo espermatozoide, caracterizando, portanto, a extração de CTE um crime contra a vida. Em suma, essa banalização se deve a sacralidade atribuída à vida por parte da religião como um todo (ACERO, 2010; GHIZELINI, MONFROI, PAULETTI, 2007; GOMES, 2007; LUNA, 2010; ODA, GESUALDO, CASTILHO, 2011). Este entrave relacionado a inviabilização do embrião pode estar próximo do fim, pois cientistas de Estocolmo já conseguiram comprovar in vitro que é possível extrair CTE do blastocisto sem destruí-lo. Utilizando uma matriz de cultura composta basicamente por laminina-521 e E-caderina (proteínas triméricas que participam da aderência das células aos seus substratos fisiológicos), foi possível, a partir de uma 27 única CTE, garantir a renovação celular e expansão clonal, mantendo as características normais da célula em questão. Tal CTE foi obtida a partir de uma biópsia de um embrião de 8 células proveniente de fertilização in vitro. Não houve necessidade de inviabilização do embrião, pois foi comprovado que este sobrevive normalmente com as 7 células restantes, podendo inclusive ser implantado em um útero. Tal procedimento foi baseado nas técnicas de pré-implantação já existentes em clínicas de reprodução assistida, e promete servir de grande benefício para o futuro da medicina regenerativa (RODIN et al., 2014). Outro fator que é discutido atualmente para a legalização do uso terapêutico de CTEs humanas é o medo de gerar um “comércio de embriões”, porém esse não se torna motivo concreto para o bloqueio desta causa, pois não existe atualmente comércio de sangue, por exemplo, que é fruto de doações para transfusão (FREITAS et al., 2007; GRINFELD, GOMES, 2004; PEREIRA, 2005). Existem, portanto, vários fatores que influenciam o debate sobre o uso terapêutico das CTEs, como a política, religião, ética, cultura, entre outros. A formação crítica de cada indivíduo é o que define sua opinião quanto ao assunto (LUCCHETTI et al., 2014; NISBET, MARKOWITZ, 2014). 28 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS As células-tronco embrionárias ou CTEs são extraídas da massa celular interna do blastocisto, fase de desenvolvimento embrionário correspondente a 7-14 dias. Elas apresentam capacidade de auto renovação, além de pluripotência, sendo capazes de originar qualquer tipo celular. No laboratório, são cultivadas in vitro sobre uma matriz celular ou extracelular de adesão, podendo permanecer indiferenciadas ou dar início a linhagens celulares diversas. Sua eficácia em construir tecidos in vitro e in vivo (utilizando modelos animais) já foi comprovada várias vezes em laboratório, com a obtenção de tipos celulares diversos, em ensaios baseados em patologias degenerativas. Embora ainda não se tenham registrados dados de ensaios em humanos comprovando a eficácia destas células, porém já é uma realidade que CTEs humanas são totalmente eficientes in vitro. Uma das preocupações que impede o uso clínico destas células é o grande risco de rejeição imunológica quanto ao enxerto de CTE alogênica. Contudo uma opção de solução encontrada pelos cientistas foi o uso das células-tronco pluripotentes induzíveis (CTPIs). Entretanto, o uso destas ainda é preocupante por tratar-se de células geneticamente modificadas, havendo risco potencial de geração de tumores ou de outras alterações. Outra solução seria a prática da clonagem terapêutica, mas esta é vetada por lei devido ao medo de se abrir portas para a clonagem reprodutiva. O grande entrave que bloqueia o uso terapêutico das CTEs humanas no Brasil e em diversos países ainda é a questão ética e legal, no que tange à violação do direito à vida. Existem os que defendem e os que condenam o uso destas células para fins científicos ou terapêuticos. Devido à necessidade de inviabilização do embrião para extração das CTEs, o ato é julgado como “homicídio” por uma parcela da população leiga e acadêmica. Nesse contexto, a definição de início da vida ainda não está esclarecida, havendo múltiplas opiniões ao redor do assunto. Outros contextos também estão envolvidos neste debate, como a moralidade, religião, cultura, entre outros. O uso terapêutico das CTEs é bastante promissor para a medicina regenerativa, porém determinados impasses acabam por frear os avanços científicos nesta área. 29 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABBAS, Abul K; LICHTMAN, Andrew H; PILLAI, Shiv. Imunologia celular e molecular. 7 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. ACERO, L. Ciência, políticas públicas e inclusão social: debates sobre células-tronco no Brasil e no Reino Unido. Revista de Ciências Sociais. v. 53, n. 4, p. 855-887, 2010. ALVES, C. et al. 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