Revista Estudos Hegelianos n.10 - Completa

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REH
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos
(Revista Semestral da Sociedade Hegel Brasileira - SHB)
Ano 6
nº 10 , Junho - 2009
ISSN 1980-8372
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
Expediente
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos - ISSN 1980-8372
Sociedade Hegel Brasileira - SHB
Sede: Av. Acad. Hélio Ramos, s/n - 15º andar - Cidade Universitária
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Editor: Manuel Moreira da Silva (UNICENTRO-PR)
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(UNICENTRO-PR), Marly Carvalho Soares (UECE), Paulo Gaspar Meneses (UNICAP), Konrad
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Revisão geral: Manuel Moreira da Silva (UNICENTRO-PR)
Indexação:
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SUMÁRIOS, Funpec-RP, Brasil;
DIALNET, Espanha.
Materiais assinados são de inteira responsabilidade de seus autores, assim como as idéias e
conceitos expressos nos mesmos ou as figuras e imagens aí utilizadas.
Editorial
SUMÁRIO
Hegel e o Hegelianismo ortodoxo (1820-1860) na aurora do século
XXI: A restauração digital das obras e a reabilitação de Hinrichs,
Gabler e Göschel
Manuel Moreira da Silva ................................................................................5
REH. Nota sobre o número 10
Manuel Moreira da Silva ...............................................................................23
REH. Nota adicional
Manuel Moreira da Silva ...............................................................................25
Artigos
Sobre a (in)certeza sensível em Hegel
Ana Paula Repolês torres ..............................................................................27
Sobre a tradução do termo “Knecht”
Matheus pelegrino da silva .........................................................................35
O Desejo e seu Outro
Luiz Henrique Vieira da Silva .....................................................................47
Hegel e a crítica ao estado de natureza
do jusnaturalismo moderno
Cesar Augusto Ramos ...................................................................................61
A Lei de Talião e o princípio de igualdade
entre crime e punição na Filosofia do Direito de Hegel
Melina Duarte .....................................................................................................75
Da “Syn díkei” à lógica da Corporação –
a superação da Tragödie im sittlichen na filosofia de Hegel
Sergio Portella ...................................................................................................87
Estética e Consciência infeliz na filosofia hegeliana
Lincoln Menezes de França .......................................................................109
Hegel e Hamann: alguns diálogos
Ilana Viana do Amaral .................................................................................123
Normas de submissão (Versão resumida).............................................137
Editorial
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos
Ano 6, nº10, Junho-2009: 5-22
Hegel e o Hegelianismo ortodoxo (1820-1860) na aurora do século XXI: A restauração digital das obras e
a reabilitação de Hinrichs, Gabler e Göschel
Manuel Moreira da Silva
DEFIL – UNICENTRO/PR
Trata-se de uma questão no mínimo inusitada para boa parte dos
hegelianos da época atual, a saber: o lugar e a função do Hegelianismo ortodoxo enquanto momento necessário do desenvolvimento interior do Sistema
da Ciência entre 1820 e 1860, bem como seu significado, relevância e atualidade no tempo da chamada Pós-Modernidade. Vale dizer: em um tempo no
qual, por um lado, se afirma não poder mais haver hegelianos e, por outro,
se apropria justamente de instâncias hegelianas para a solução de problemas
que teimam em sobrepujar os diferentes modelos e graus de racionalidade
aceitos ou tolerados enquanto propriamente científicos e, por isso, passíveis
de certa consistência e validade nos limites da Ciência e da Filosofia contemporâneas. Esse o tempo mesmo de uma transição sem precedentes e de
uma revolução jamais esperada: o tempo da virtualização do Atual ou, o que
não é necessariamente o mesmo, o tempo da atualização do Virtual1; portanto, embora isso ainda se apresente como algo controverso, o tempo em
que emerge uma nova esfera do Real, a qual, numa linguagem idealísticoespeculativa, pode ser designada a do Lógico-efetivo. Esfera essa que, como
tal, expressa justamente aquilo que outrora Hegel designara “a unidade do
pensar e do tempo”, permitindo assim, entre outras coisas, a restauração
digital de documentos impressos entre outros, sobretudo de obras científicas
e filosóficas, em domínio público, até então deixadas à crítica removedora do
tempo “sem repouso e sem pausa”, eliminando, por conseguinte, o próprio
tempo ou possibilitando que o Conceito suspenda sua forma-de-tempo2. Eis
aí, pois, ao fim e ao cabo, uma revolução comparável apenas àquela em que
o mundo da oralidade sucumbiu ao da escrituralidade; mas uma revolução
que, à diferença daquela, restaura as obras espirituais elas mesmas, inclusive reabilitando o Espírito que as habita – no caso presente: o Hegelianismo
ortodoxo e seus principais expoentes.
1. No que respeita à relação entre o Virtual e o Atual, veja-se, P. LÉVY, O que é o virtual? Trad.
Paulo Neves. São Paulo: 34, 1996, p. 15-25. No concernente à relação entre o Real e o Virtual,
ver, J-L, WEISBERG, Real e Virtual. In: A. PARENTE (Org.). Imagem máquina. – 3. Ed. – São
Paulo: 34, 1999, p. 117-126. Para mais detalhes, veja-se mais abaixo.
2. Veja-se, G. W. F. HEGEL, Phänomenologie des Geistes (1807). Neu hrsg. von Hans-Friedrich
Wessels u. Heirinch Clairmont. Mit e. Einleitung von Wolfgang Bonsiepen. Hamburg: Meiner,
1988, p. 524-525, p. 527. Versão brasileira: Fenomenologia do Espírito, Trad. Paulo Meneses.
Petrópolis: Vozes, – 2. Ed. –, 2003, § 801, § 803. Texto citado de ora avante pela sigla PhG,
seguida dos números dos parágrafos, tal como na versão brasileira, mas com a paginação do
original utilizado, no caso: PhG, § 801, § 803; p. 524-525, p. 527.
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REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
I. Considerações preliminares
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
Editorial
Em um sentido meramente formal, vale dizer imediato, o Virtual constitui-se como determinação de uma nova dimensão do Real e não apenas
enquanto um novo modo de perceber este último. Desse modo, o termo
‘Virtual’, aqui, apresenta-se, pois, como determinidade do próprio atuar de
tudo que é em ato; “ser em ato” este, por seu turno, que se diz mediante
o termo ‘Atual’ – o mesmo valendo, por conseguinte, para os derivados de
ambos. Em suas origens, de um lado, o conceito do Virtual está ligado à
inerência do predicado no caso das verdades de fato em Leibniz, devendo
ser entendido, segundo Deleuze, “não como o contrário de atual, mas como
significando ‘envolvido’, implicado’, ‘impresso’, o que de modo algum exclui a atualidade”3, estando, portanto, envolvido, implicado, impresso no
próprio Atual. De outro lado, em sentido mais estrito, a constituição do Virtual enquanto esfera específica do Real parece ter como ponto de partida a
determinação kantiana do conceito infinito ou limitativo e do juízo infinito
como tais4, os quais, em sua retomada e desenvolvimento por Hegel, na
perspectiva do Idealismo especulativo, não se mostram senão – dentre outras determinações – como o Conceito livre ele mesmo em sua Singularidade
e “a reflexão da Singularidade dentro de si mesma”5. Entretanto, partindo
igualmente de Kant, mas também de Jacobi, foi Friedrich Ludwig Bouterwek
(1766-1828) quem primeiro concebeu a Idéia de uma Virtualidade absoluta,
a qual, por um lado, conforme citada por Hegel, compreende “a unidade
eterna, absoluta e pura” do sujeito e do objeto “não precisamente por meio
de conceitos e silogismos, senão imediatamente por meio da força, a qual
constitui por si mesma nosso ser-aí e nossa natureza racional”; do que resulta, para Bouterwek, ainda citado por Hegel, o fato de que o conhecimento
do todo, inclusive de Deus, “escapa às possibilidades de qualquer mortal”6.
Por outro lado, segundo Bouterwek, no dizer de Michelet, “a Virtualidade
absoluta, na qual tudo finalmente se reúne, não é objeto (Objekt) do Saber
e nem assunto da Fé; ela é enquanto atua (wirkt): ela é e atua (wirkt): na
Ciência e na Fé”, as quais “são modos opostos do reconhecimento da Virtualidade absoluta”7. Contudo, ainda para Bouterwek, e conforme Michelet, a
Virtualidade como tal apresenta-se, nos quadros de nossa realidade prática,
3. G. DELEUZE, Diferença e Repetição. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro:
Graal, 1988, p. 22, nota 7. Ver também, G. W. LEIBNIZ, Discurso de Metafísica. Trad. Marilena
de Souza Chauí Berlinck. In: NEWTON - LEIBNIZ. São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 82 (= DM,
§ 8).
4. Ver, G. DELEUZE, Diferença e Repetição, op. cit., p. 22, nota 7. Ver também, I. KANT, Crítica
da Razão Pura. Trad. Valério Rohden e Udo Baldur Moosburguer. São Paulo: Abril Cultural, 1980,
p. 70, p. 76, p. 325 (= KrV, B 96-98, 111, 684).
5. G. W. F. HEGEL, Wissenschaft der Logik. Zweiter Teil: Die subjektive Logik oder Lehre vom
Begriff (1816), herausgegeben von Friedrich Hogemann und Walter Jaeschke. Hamburg: Felix
Meiner, 1981 [GW, Band 12], p. 70. De ora avante, citar-se-á esse texto como segue: WdL, II,
1816, p. 70 (paginação da edição crítica). Seguiremos o mesmo procedimento para as edições
das doutrinas do Ser e da Essência de 1812 e 1813 (GW 11) e a Doutrina do Ser de 1832 (GW
21). Confronte-se com G. DELEUZE, Diferença e Repetição. op. cit., p. 199, p. 201-202.
6. F. L. BOUTERWEK, apud G. W. F. HEGEL, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie III.
Werke in zwanzig Bänden. Band 20. Auf der Grundlage der Werke von 1832-1845, neu edierte
Ausgabe. Redaktion Eva Moldenhauer und Karl Markus Michel. Frankfurt am Main: Suhrkamp,
1970, p. 419. Essa edição das Werke será indicada de ora avante pelo termo ‘Werke’, antecedido do título da obra citada e seguido do número correspondente e das respectivas páginas.
7. C. L. MICHELET, Geschichte der lezten Systeme der Philosophie in Deutschland von Kant bis
Hegel. Erster Theil. Berlin: Duncker und Humblot, 1837, p. 397.
6
Manuel Moreira da Silva
tão só enquanto uma espécie de unidade de força e resistência, uma unidade de forças opostas, sendo a Virtualidade absoluta nada mais que a unidade virtual de todas as forças, isto é, o Incondicionado8.
8. C. L. MICHELET, Geschichte der lezten Systeme der Philosophie…, op. cit., p. 395-396.
9. De acordo com Gerlach (em 1828), Göschel lhe “nega toda faculdade especulativa” porque
ele se queixa do fato de que Göschel “perde, por seus pensamentos confusos, a consciência da
existência”; todavia, o próprio Gerlach explica que isso ocorre pela razão de, segundo Göschel,
Gerlach ele mesmo não ser “inclinado a deixar as representações materiais” e Göschel pelo
motivo de aí, nas representações materiais, não permanecer. Ver, L. V. GERLACH, apud J.-L.
GEORGET, “A Schwob em Berlin”: Hegel et le pouvoir prussien. [Avant-propos a Écrits sur la
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REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
Ainda que não seja aqui o lugar de um aprofundamento quanto ao
tema da Virtualidade, mediante, por exemplo, o confronto de Kant, Hegel,
Bouterwek, Deleuze, etc., não é fora de propósito afirmar que o tempo presente (já de certo modo prenunciado em Kant, Hegel e Bouterwek) passa
por uma revolução bastante semelhante àquela que transformou o mundo
da oralidade entre os gregos antigos no mundo da escrituralidade em que
hoje ainda vivemos e que, por isso mesmo, é parte integrante essencial dos
programas de disciplinas as mais diversas e dos currículos de vários cursos
universitários. A revolução do tempo presente a que aqui se refere é precisamente a da virtualização e das tecnologias do Virtual, que tem na Internet a sua face mais próxima e, portanto, na qual as suas conseqüências se
fazem presente de modo mais imediato em muitas áreas da Filosofia, assim
como, por conseguinte, na própria Filosofia em seu conjunto. No entanto,
como foi dito mais acima, aqui não se discutirá essa última revolução nela
mesma e nem o seu desdobramento no âmbito disso que se tem designado
Internet, mas tão somente um único de seus muitíssimos aspectos: o efeito
restaurativo (a um tempo atual e virtual) que ela exerce sobre as obras de
todas as áreas e de todos os tempos enquanto estas são passíveis de serem fotocopiadas – mais especificamente: as obras filosóficas, sobretudo,
conforme o escopo deste trabalho, as obras de alguns filósofos hegelianos
cuja posição tem-se denominado Hegelianismo ortodoxo. Essa a posição
que, em se desenvolvendo mediante o próprio Hegel, toma forma entre
1820 e 1831, constituindo assim, a partir de 1826 e 1827, respectivamente,
com a fundação da Sozietät für wissenschaftliche Kritik e dos Jahrbücher
für wissenschaftliche Kritik, o núcleo duro da Escola Hegeliana, a qual, não
obstante, logo após a morte de Hegel, se divide em diversas posições (18321846), terminando por dissolver-se entre 1847-1860; o que, em vista de um
complexo de questões históricas, políticas e religiosas, assim como de certa
alteração na maneira de pensar em filosofia inaugurada em fins do século
XVIII na Alemanha e, enfim, da mudança dos interesses e da constituição da
época, condena ao ostracismo e, portanto, ao esquecimento os fautores do
Hegelianismo ortodoxo, retirando deste inclusive seu lugar e seu momento
no desenvolvimento do Idealismo absoluto tal como concebido por Hegel
nos últimos anos de sua vida, e isso como que em colaboração com alguns
de seus discípulos filosoficamente os mais próximos, em especial Karl Friedrch Göschel. Esse que teve a imagem a mais desfigurada entre os Hegelianos
ortodoxos pelos editores de publicações políticas e literárias influentes da
época; a título de exemplo: o ultraconservador (e em parte aliado político)
Ludwig von Gerlach9 e o defensor da emancipação feminina Theodor Mun-
Editorial
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
dt10, autores cujos pontos de vista, embora não fossem os dos hegelianos,
nem os de seus adversários no plano filosófico11, terminaram por prevalecer
mesmo nos quadros da chamada historiografia hegeliana12. Algo plenamente explicável em vista de Göschel ser considerado muitas vezes fora de seu
contexto histórico; fato que só agora começa a mudar, justamente em função da disponibilização de suas obras em formato digital (bem como das de
outros autores de sua época) e, de modo concomitante, com a reimpressão
dos originais.
A rigor, além de Hegel, são os seguintes os principais adeptos do
Hegelianismo ortodoxo: Hermann Friedrich Wilhelm Hinrichs (1794-1861),
Georg Andreas Gabler (1786-1853) e Karl Friedrich Göschel (1781-1861).
Esses os únicos discípulos verdadeiramente diretos de Hegel, os quais mantiveram com ele certa intimidade filosófica; isso, a ponto deste: (1) escrever
um importante prefácio à Die Religion im innern Verhältnisse zur Wissenschaft, publicada por Hinrichs em 182213; (2) enviar carta – datada de 04
de março de 1828 – com elogios calorosos14 ao System der theoretischen
Philosophie, publicado por Gabler em 182715 e, de modo particular, ao seu
mérito em esclarecer as dificuldades que se apresentam no terceiro capítulo da Fenomenologia do Espírito, intitulado Força e Entendimento, mais
especificamente, no primeiro momento da relação entre a força e sua exteriorização16; assim como (3) publicar uma recensão17 e fazer três remissões
– em uma carta a Ravenstein (de 29 de maio de 1829)18 e em duas de suas
obras mais importantes19 – aos Aphorismen über Nichtwissen und absolutes
religion (1822-1829)]. In. G. W. F. HEGEL, Écrits sur la religion (1822-1829). Avant-propos de
Jean-Louis Georget, introduction de Philippe Grosos et traduction de Jean-Louis Georget, Introduction de Philippe Grosos. Paris: Vrin, 2001, p. 29.
10. Nas palavras desse autor (em 1840), “Göschel queria tudo ensinar: a Bíblia e Babel, Hegel
e Não-Hegel, a lógica e o livro de música, Goethe e Herrnhut, e por isso entrou em uma mística
de tonalidades doces” (T. MUNDT, apud J-L. GEORGET, op. cit., p. 29), Georget as interpreta
como significando que Göschel era um pensador trapalhão (ver J-L. GEORGET, op. cit., p. 29).
11. Sobre este ponto, veja-se, J. FOCK, Karl Friedrich Göschel (1781-1861): der Verteidiger der
spekulativen Philosophie. Lengerisch: Lengericher Handelsdruckerei, 1939, p. 6.
12. Ver, J-L. GEORGET, op. cit., p. 28ss.
13. Ver, G. W. F. HEGEL, [Vorwort zu Hinrichs’ Religionsphilosophie]. In: H. F. W. HINRICHS.
Die Religion im innern Verhältnisse zur Wissenschaft. Mit einem Vorwort von Georg Wilhelm
Friedrich Hegel. Heidelberg: Groos, 1822, p. I-XXVIII. Veja-se, ainda, G. W. F. HEGEL, Vorrede
zu Hinrichs’ Religionsphilosophie [1822]. Werke 11, p. 42-67.
14. Veja-se, G. W. F. HEGEL, Briefe von und an Hegel. Band III: 1823-1831, Hg. von Johannes
Hoffmeister, Berlin: Akademie Verlag, 1970, p. 224-225 (citado de ora avante, para os três
tomos utilizados, conforme o modelo: Briefe, III, p. 224-225).
15. Ver, G. A. GABLER, System der theoretischen Philosophie. Erster Band. Die Propädeutik der
Philosophie Erste Abtheilung. Die Kritik des Bewusstseins. Erlangen: Palm, 1827. Nova edição:
Kritik des Bewusstseins - Eine Vorschule zu Hegel’s Wissenschaft der Logik. Hrsg. von G. J. P. J.
Bolland. Leiden, A. H. Adriani, 1901.
16. Veja-se, G. A. GABLER, System der theoretischen Philosophie, op. cit., § 89 A. [1827: p.
246-256; 1901, p. 136-141.].
17. G. W. F. HEGEL, Aphorismen über Nichtwissen und absolutes Wissen im Verhältnisse zur
christlichen Glaubenserkentniss. Von Karl Friedrich Göschel [1829]. Werke 11, p. 353-389.
18. Briefe, III, p. 254-255.
19. Ver, G. W. F. HEGEL, Vorlesungen über die Beweise vom Dasein Gottes, Werke 17, p. 381.
Ver ainda: G. W. F. HEGEL, Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse
(1830), III. Die Philosophie des Geistes. Werke 10, p. 374. Versão brasileira: Enciclopédia das
Ciências Filosóficas em Compêndio (1830), III. A Filosofia do Espírito. Trad. Paulo Meneses e Pe.
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Manuel Moreira da Silva
Wissen im Verhältnisse zur christlichen Glaubenserkentniss, publicados por
Göschel em 182920.
Neste sentido, a título meramente introdutório, apresentar-se-á, a
seguir, em que consiste o Hegelianismo ortodoxo, o significado histórico da
restauração digital das obras de seus principais representantes e o renascimento do espírito que as habita. Igualmente, por-se-á em questão o ponto
de partida histórico-sistemático de tal posição, seu desenvolvimento especulativo nos quadros do embate interno e externo da Escola Hegeliana pela
herança filosófica de Hegel entre 1832 e 1846, bem como sua dissolução,
simbolizada com a interrupção da publicação dos Jahrbücher für wissenschaftliche Kritik, em 1846, e com o início da publicação de Der Gedanke,
em 1860, a partir de um novo programa para filosofia hegeliana – a qual,
desde então, se poderia considerar pura e simplesmente acadêmica. Enfim,
mostrar-se-á a necessidade de uma correta apreciação do legado hegeliano
ortodoxo a fim de que se ilumine de modo mais adequado o desenvolvimento, assim como os acertos e os desacertos do próprio Idealismo especulativo
em sua elaboração hegeliana e nas vicissitudes históricas desta.
José Machado, São Paulo: Loyola, 1995, p. 347. [De ora avante citada pela inicial ‘E’, seguida
de ‘§§’, para os parágrafos correspondentes, e, quando for o caso, de ‘A’, para a respectiva Anotação (Anmerkung); ‘Ad.’, refere-se ao adendo (Zusatz) do “§” em tela]. (= E, 1830, III, § 564
A.). Esse também o modelo seguido para a citação das outras partes desta e para as edições
anteriores da Enciclopédia.
20. Ver, K. F. GÖSCHEL, Aphorismen über Nichtwissen und absolutes Wissen im Verhältnisse zur
christlichen Glaubenserkentniss, Berlin, Franklin, 1829.
9
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
Justamente por esses motivos e em certo sentido mais que os outros
membros da Escola Hegeliana, tais filósofos levam a cabo a tarefa não só de
uma defesa intransigente do Sistema de Hegel, mas também, sobretudo, a
de um diálogo coerente – a partir e em função dessa defesa – com os críticos daquele Sistema no sentido de uma compreensão adequada do pensamento científico, filosófico, político e religioso de seu tempo. Não obstante,
embora respeitados em vida, esses filósofos foram rapidamente esquecidos
e postos à margem da História da Filosofia em geral e do Hegelianismo em
particular; isso, em parte devido à pecha de pouca profundidade filosófica,
em parte por suas posições políticas e religiosas liberais conservadoras ou
reformistas – contudo, mais em razão destas que por seus pontos de vista
filosóficos –, o que, inclusive no interior do Hegelianismo, resultou na desautorização dos mesmos, em especial de Gabler e Göschel, como intérpretes
e continuadores legítimos de Hegel. Considerados integrantes da ala dos
Velhos Hegelianos e, mais precisamente, da Direita Hegeliana, tais filósofos
podem ser mais bem compreendidos em sua posição filosófica tão somente
no caso de sua distinção em relação aos demais hegelianos de direita e aos
de centro. Neste sentido, partindo diretamente das posições assumidas por
Hegel a partir de 1817 e, sobretudo, de 1820, assumindo para si a correção
e o rigor, a validade e a verdade das teses então professadas pelo filósofo de
Berlim em seu significado o mais elevado possível, essa posição se apresenta enquanto Hegelianismo ortodoxo.
Editorial
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
II. O Hegelianismo ortodoxo, a restauração digital de
suas obras representativas e o seu renascimento espiritual
Considera-se aqui Hegelianismo ortodoxo a posição assumida por
Hegel ele mesmo e emergida com a publicação das Linhas fundamentais
da Filosofia do Direito em 1820 (datada de 1821). Tal posição apresenta-se
intermediária entre aquela fundada na concepção fenomenológica do Elemento especulativo, portanto, justificada pela Fenomenologia do Espírito de
1807, e o ponto de vista propriamente especulativo puro. Esse que Hegel
não chegou a desenvolver nem mesmo em suas linhas gerais, dele apresentando apenas indicações e aproximações aqui e ali, especialmente na Enciclopédia de 1817 e na de 1830, bem como na Filosofia do Direito (1821) e na
Ciência da Lógica de 1832. Com isso, sobretudo entre 1820, ano da efetiva
publicação da Filosofia do Direito, e 1830, quando da terceira edição da Enciclopédia e do início das revisões da Ciência da Lógica em vista de uma exposição mais plástica do Especulativo puro, os desenvolvimentos sistemáticos
que nesse meio tempo tem lugar nem se reduzem à concepção fenomenológica, nem avançam ao Especulativo puro; desse modo, eles constituem
uma segunda determinação deste, a qual, na falta de melhor nome é aqui
designada Hegelianismo ortodoxo. Na medida em que se distingue tanto da
concepção fenomenológica do Especulativo puro (a primeira determinação
deste), quanto da concepção puramente especulativa do mesmo (sua terceira determinação) e, portanto, como a segunda determinação do próprio
Especulativo puro, o Hegelianismo ortodoxo tem de ser reconhecido como
uma concepção distinta das duas outras e assim investigado como tal.
Assim, no que tange ao Hegelianismo ortodoxo, seu núcleo principal
parece ser a Filosofia do Direito (1821), as Preleções sobre a Filosofia da Religião [em especial aquelas em torno da Religião consumada] pronunciadas
em 1821, 1824 e 1827, bem como a segunda edição da Enciclopédia publicada em 1827. Seu desenvolvimento, embora se situe no âmbito da superação
especulativa das instâncias fenomenológicas, com o que o Especulativo puro
é entendido como o Místico, confere a estas – no plano da representação –
como que certa autonomia e realidade, confundindo-se assim, a expensas
do próprio Hegel, (1) o fenomenológico e o efetivo, assim como a realidade
e a efetividade e (2) estes e o chamado Elemento especulativo ele mesmo.
Essa a concepção que, assumida e desenvolvida por Hegel, Hinrichs, Gabler
e Göschel enquanto determinação fundamental do próprio Absoluto, não
fez mais que introduzir no Sistema da Ciência um elemento de desintegração estrutural e provocar nos adversários e mesmo nos simpatizantes do
Idealismo absoluto em geral e de Hegel em particular o estranhamento em
relação ao Sistema e a recusa em discutir com seus defensores. O que, não
obstante, não retira disso que aqui se tem designado Hegelianismo ortodoxo
o caráter de uma premissa fundamental da Filosofia especulativa pura propriamente dita; isso, da mesma forma em que também o é a concepção que
se exprime na Fenomenologia do Espírito e em seu auto-anúncio, ambos de
1807, assim como na Ciência da Lógica de 1812-1816, sobretudo na Lógica
10
Manuel Moreira da Silva
objetiva. Tal compreensão, no entanto, ainda permanece bastante marginal
no âmbito dos estudos hegelianos; o que se justifica tanto pela dificuldade
em se encontrar os originais dos principais representantes do Hegelianismo
ortodoxo, inclusive em condições de serem manuseados, pois quase não
existem edições posteriores de suas obras, quanto pelo preconceito em relação às suas posições – o mesmo ocorrendo com certas instâncias do pensamento do próprio Hegel.
21. Para mais informações, ver: INTERNET ARCHIVE. About the Internet Archive. Disponível
em: <http://www.archive.org/about/about.php>. Acesso em outubro de 2009. Para verificar
os materiais do Google aí disponibilizados há que se fazer a busca pelos itens desejados.
22. Para mais informações, veja-se: GOOGLE BOOKS. Histórico da Pesquisa de Livros do Google.
Disponível em: <http://books.google.com/intl/pt-BR/googlebooks/history.html>. Acesso em
outubro de 2009.
11
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
De qualquer modo, pode-se dizer que esta situação ou está se modificando ou está em vias de uma modificação substancial que traz em si não
só a realidade da restauração de tais obras, mas também a possibilidade de
uma reabilitação de seus autores; inicialmente, essa restauração apresentase sob a forma de disponibilização on-line dos textos aludidos, o que, de
um modo ou de outro, tem contribuído para o surgimento de novas edições
impressas, mas também de reimpressão das originais. Essa disponibilização
on-line, ao dar a conhecer o conteúdo efetivo das obras em questão, torna
possível uma reavaliação das mesmas sem subordiná-las a aspectos exteriores e contingentes, sejam estes relativos à época em que tal conteúdo se
desenvolvera, sejam referentes às diversas tomadas de posição em relação
ao mesmo. As interessadas e os interessados na investigação on-line dos
representantes do Hegelianismo ortodoxo, assim como na de outros autores
cujos originais – sobretudo aqueles em domínio público e, portanto, passíveis
de download – estejam disponíveis na Internet, podem contar atualmente
com três ferramentas: (1) o Google Books <http://books.google.com>, do
Google, (2) o Internet Archive <http://www.archive.org>, vinculado à ���
Microsoft Corporation, responsável pela digitalização de boa parte dos livros
aí então disponibilizados, e (3) a Gallica, vinculada à Bibliothèque nationale
de France, <http://gallica.bnf.fr/>. Esses três projetos respondem hoje pela
maioria dos livros digitalizados e disponibilizados em diferentes tipos de bibliotecas digitais ou arquivos on-line pelo mundo afora: fundado em 1996,
o Internet Archive disponibiliza espaço para livros (em diversos formatos
digitais) e outras formas de arquivos – como, por exemplo, arquivos de áudio e outros (inclusive versões de links já mortos) –, incluindo materiais de
usuários anônimos e do próprio Google (no caso os livros disponibilizados
por este, alguns dos quais ainda não visualizados no books.google.com e
seus espelhos)21; por seu turno, gestado de certo modo também a partir de
1996, mas passando por fases preparatórias específicas, as quais incluem
pesquisas com “técnicas de digitalização não-destrutivas” e parcerias com
bibliotecas in loco vinculadas às principais universidades dos Estados Unidos
da América e da Inglaterra, como Harvard, a Universidade de Michigan, a
Biblioteca pública de Nova York, Oxford e Stanford, cujos acervos combinados alcançam aproximadamente mais de 15 milhões de volumes, o Google
Lança seu Projeto Biblioteca em 200422. Por seu turno, a Gallica “se define
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
Editorial
como o portal de acesso às coleções francesas digitais”, mantendo, contudo,
um rico acervo de coleções digitalizadas “pela Biblioteca nacional da França,
dentro do quadro de seus programas de digitalização em massa e/ou de
proteção”, chegando atualmente a quase 800.000 documentos impressos
dentre outros e a mais 8.000 bibliotecas parceiras23. A digitalização em massa e a disponibilização on-line de obras em domínio público mostra-se como
algo revolucionário justamente pelo fato de, muitas vezes, certas obras não
estarem disponíveis fisicamente em seu país de origem ou, mesmo que estejam, podem não haver exemplares em número suficiente e os existentes
não estarem em condições de manuseio por um público mais considerável.
O que significa, enfim, que mesmo em seu país, isto é, no caso dos autores
aqui considerados, a Alemanha, o acesso às suas obras impressas não mais
editadas é muito restrito ou praticamente nulo; portanto, dificultando qualquer avaliação mais sensata ou pelo menos o desenvolvimento e a aceitação
de pontos de vista menos restritivos em torno dessas obras e seus autores.
Pode-se dizer que, entre outras coisas, o advento da Internet e das
bibliotecas digitais está literalmente revivendo ou fazendo renascer o espírito já morto que outrora habitou a Filosofia em sua forma a mais elevada
ou, antes, libertando e liberando tal espírito da clausura em que o mesmo
se encontrava até então. Esse o caso inclusive de Hegel, cujas obras originais – ou, antes, originárias (bem entendido: aquelas cujos volumes foram
publicados por ele próprio ou ao menos preparados para publicação pelo
mesmo quando ainda em vida) – muito dificilmente se faziam disponíveis
sob a forma impressa, mas principalmente as de Hinrichs, Gabler e Göschel. Todavia, como nenhum desses pensadores foi capaz de fornecer uma
elaboração plenamente especulativa do Especulativo puro, e isso a começar
pelo próprio Hegel24, assim como a época em que eles a deram à luz já não
estava solícita e benevolente a um desenvolvimento imanente do ponto de
vista especulativo, sua contribuição ou foi interpretada pura e simplesmente como peça de um quebra-cabeça político (começando por Hegel mesmo
a partir de 1822, sobretudo em sua relação com Hinrichs, bem como nos
desdobramentos da filosofia deste)25 ou foi posta de lado e mesmo acusada de acrítica e medíocre (como nos casos de Gabler e Göschel)26 ou ainda
atrapalhada e confusa, assumida por Hegel tão só em face da estatura e do
reconhecimento político de seu autor (como em Göschel)27. Interpretação e
acusação estas que, embora perdurem ainda hoje e mesmo exprimam certa
consistência, tem sido colocadas em xeque pelo simples contato – ainda que
indireto – com aqueles autores e suas obras segundo o ponto de vista que
lhes é próprio28; o que permite a ilação segundo a qual o acesso de um nú23. Para mais informações, veja-se: BIBLIOTECA NACIONAL DA FRANÇA. O acervo da Gallica.
Disponível em: URL = <http://gallica.bnf.fr/content?lang=pt#stats>. Acesso em outubro de
2009.
24. Sobre esse ponto, veja-se, WdL, I, 1, 1832, p. 10.
25. Ver, J.-L. GEORGET, op. cit., p. 23-28.
26. Veja-se, J. E. TOEWS, Hegelianism: the path toward dialectical humanism, 1805-1841,
Cambridge: Cambridge University Press, 1980, p. 87.
27. Ver, J.-L. GEORGET, op. cit., p. 28-32.
28. Veja-se, a título de exemplo, V. HÖSLE, O sistema de Hegel. Trad. Antônio C. P. de Lima. São
Paulo: Loyola, 2007. No que tange a Gabler: p. 30, nota 8; p. 78 (nota 78, iniciada à p. 77); p.
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Manuel Moreira da Silva
mero maior de estudiosos às obras desses e de outros autores de sua época
poderá finalmente esclarecer seus acertos e desacertos segundo o contexto
mesmo de sua elaboração. Algo plenamente plausível, sobretudo na medida
em que várias editoras estão relançando tais obras e autores, basicamente
por meio de reimpressão dos originais digitalizados e disponíveis on-line,
dado o número crescente dessas republicações29.
Embora seja aquele também o modo de atuar dos discípulos mais
diretos de Hegel, à diferença do procedimento formal deste e de sua própria
atuação, tal modo, nos discípulos, abrange ainda os procedimentos pedagógico-literários e científicos propriamente ditos, seja na interpretação e na
leitura das obras de Hegel, seja nos desdobramentos e nas conseqüências
teórico-práticas (ou especificamente especulativas) resultantes da amplia305, nota 213; no tocante a Göschel: p. 108.
29. Ver, a título de exemplo: Die hegelsche Philosophie, de Gabler, reimpresso pela Bibliolife,
2009; Geschichte des Rechts- und Staatsprincipien, de Hinrichs, pela Adamant, em 2002, além
de várias obras de Göschel, a começar por Hegel und seine Zeit, reimpresso pela BiblioBazaar, 2009. Esses e outros materiais podem ser tanto consultados on-line como adquiridos por
livrarias virtuais como a Amazon.
30. Veja-se, G. W. F. HEGEL, Vorlesunguen über Logik und Metaphysik (Heidelberg 1817).
Mitgeschrieben von F. A. Good. Herausgegeben von Karen Gloy, unter Mitarbeit von Manuel
Bachmann, Reinhard Heckmann und Rainer Lambrecht. Hamburg: Felix Meiner, 1992, p. 24 (=
VLM, 1817, ad § 17, p. 24).
31. Ver, G. W. F. HEGEL, Encyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse
(1817). In: G. W. F. HEGEL, Encyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse
und andere Schriften aus der Heidelberg Zeit, neue herausgegeben von Hermann Glockner,
Heidelberg: Frommanns Verlag, 1956, p. 37-38. (= E. 1817, § 17, A.).
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REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
Entretanto, isso não dissolve por completo a interpretação e a acusação acima aludidas, pois em última instância as mesmas se dirigem antes
de tudo ao modo como o Elemento especulativo fora expresso em Hegel ele
mesmo. Quer dizer: (1) em 1816, Hegel afirma que a Ciência da Lógica é
a Ciência absoluta e, como tal, é tanto anterior quanto posterior às ciências reais, assumindo, por conseguinte, o conteúdo destas em sua esfera
a mais elevada; (2) já em 1817, em suas Preleções sobre Lógica e Metafísica, Hegel afirma explicitamente que (a) “o Lógico é o conteúdo universal
de tudo” e que (b) o elemento concreto do saber, isto é, o Espírito, não é
nem o Universal nem o Concreto da Lógica, mas é tanto o Universal quanto
o Concreto; isso ao mesmo tempo em que, ainda nestas Preleções, (3) ele
nos diz que “a Lógica não será considerada enquanto Ciência absoluta, mas
simplesmente como uma ciência pela qual o Universal é determinado separado do concreto”30. Ora, Hegel mantém esse procedimento formal (aliás,
pedagógico-literário) praticamente até o fim de sua vida, atuando, porém,
sobretudo nos planos da Filosofia do Direito e da Filosofia da Religião, como
se aí a Ciência absoluta estivesse perfeitamente consumada, portanto, como
se esta já tivesse perpassado aquelas em sua totalidade, as assumindo e
mantendo dentro de si mesmo em sua perfeição como Teologia especulativa; isso, como que já assumindo e mantendo tanto a determinação da Ciência da Lógica entendida como Ciência universal-formal, subjetiva e primeira
e como Ciência universal-real, objetiva ou última31. O que, em todo caso, ele
jamais chegou a elaborar conceitualmente após o período de 1816-1817.
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
Editorial
ção do referido modo de atuar enquanto tipicamente místico-especulativo32.
Pode-se dizer, então, que enquanto Hegel procede formalmente ao nível da
Lógica concebida como Ciência primeira (na qual o Universal é tomado como
separado do Concreto), mas atua ao nível da mesma enquanto Ciência última (que tem por resultado a assunção e a manutenção da “riqueza real” pelo
Universal33, mas que não consumou ainda esse resultado – portanto, apenas
como tendo em vista a Teologia especulativa), seus discípulos assumem
para si a unidade de ambas as ciências, tendo, pois, que proceder à elaboração ela mesma dessa Teologia especulativa34; no que, infelizmente, ao não
terem plena consciência de sua tarefa, eles fracassam. Por isso, apesar da
consistência da interpretação e da acusação acima aludidas, estas resultam
em grande parte de mal-entendidos – tanto de Hegel e dos hegelianos ortodoxos, quanto de seus adversários ou intérpretes e mesmo comentadores –,
em suma, do pensamento (Denkkraft) ainda não exercitado, nem livre35.
III. O ponto de partida histórico-sistemático do Hegelianismo ortodoxo, seu desenvolvimento e sua dissolução
Pode-se dizer que o ponto de partida histórico-sistemático do Hegelianismo ortodoxo – no sentido aqui entendido – esteja na compreensão
da unidade do Lógico ou do Racional e do Efetivo. Isso foi expresso primeiramente, em sua forma articulada, no Prefácio às Linhas fundamentais da
Filosofia do Direito, bem como no primeiro (juntamente com a Anotação e
os adendos à mão e oral a este) e no último parágrafo dessa obra; os quais
se mostram articulados a partir daquilo que Hegel escreve, no § 2 e seus
respectivos adendos (oral e à mão), em torno do começo e do resultado da
Ciência36. O que só mais tarde (em 1827) ganha uma redação mais formal
– especificamente na anotação ao § 6 da segunda edição da Enciclopédia –,
a qual retoma justamente a divisa anunciada no Prefácio à obra de 1820 e,
como tal, em linhas gerais, é mantida na Enciclopédia de 1830.
No § 360 da Filosofia do Direito, partindo, pois, do fato de que a
verdadeira reconciliação torna-se objetiva quando “o presente se desfaz de
sua barbárie e de seu arbítrio contrário ao direito e a verdade se desfaz
de seu caráter de além e de sua violência contingente”, Hegel afirma que
32. G. W. F. HEGEL, Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1830),
I. Die Wissenschaft der Logik. Werke 8, p. 47-49, p. 177-179. Versão brasileira: Enciclopédia
das Ciências Filosóficas em Compêndio (1830), I. A Ciência da Lógica. Trad. Paulo Meneses e
Pe. José Machado, São Paulo: Loyola, 1995, I, p. 44-46, p. 167-169. (= E, 1830, I, § 6, A, §
82, Ad). Confronte-se com: K. F. GÖSCHEL. Der Monismus des Gedankens, Naumburg: Zimmermann, 1832, p. 21-22, p. 55; G. A. GABLER, Die Hegelsche Philosophie: Beiträge zu ihrer
richtigeren Beurtheilung und Würdigung, Berlin: Duncker und Humblot, 1843, p. VII, p.9-10ss,
p. 159ss; H. F. W. HINRICHS, Die Religion im innern Verhaltniss zur Wissenschaft, Heidelberg:
Groos, 1822, p. 194ss.
33. WdL, II, 1816, p. 198; E. 1817, § 17, A.
34. Sobre este ponto, ver: B. BAUER (Hrsg.). Zeitschrift für spekulative Theologie (1836-1837),
Berlin: Dümmler, 1836 e1837. (Volumes: 1 e 2).
35. WdL, I, 1, 1832, p. 41.
36. Veja-se, G. W. F. HEGEL, Grundlinien der Philosophie des Rechts oder Naturrechts und
Staatswissenschaft im Grundrisse, mit Hegels eigenhändigen Notizen und den mündlichen
Zusätzen. Werke 7, p. 24-25, p. 29-34, p. 512 (= GPhR, Prefácio, p. 24-25; §§ 1-2, § 360).
14
Manuel Moreira da Silva
Aqui, no entanto, não é possível desenvolver esse aspecto no sentido estrito de um desenvolvimento comum da Escola Hegeliana em seu
conjunto; importa, pois, simplesmente destacar o elemento da experiência
escatológica enquanto o motor que impulsiona ambos os movimentos, tanto
em sua relação um com o outro, quanto em sua dinâmica interna43. Essa
mesma que, no caso dos Velhos Hegelianos, implica em reconhecer a existência de um Centro e de uma Direita, assim como no dos Novos Hegelianos,
a de uma Esquerda e, de certo modo, de uma Extrema esquerda; da mesma forma, também se pode determinar de modo mais ou menos rigoroso a
37. GPhR, § 360.
38. G. W. F. HEGEL, Aphorismen…. Werke 11, p. 353-389.
39. E, 1830, III, § 564 A.
40. G. W. F. HEGEL, Vorlesungen über die Beweise vom Dasein Gottes, Werke 17, p. 381.
41. Para essa questão em especial, confronte-se: G. W. F. HEGEL, Aphorismen…, op. cit., p.
377ss; K. F. GÖSCHEL, Aphorismen…, op. cit., p. 113ss.
42. GPhR, § 360. Confronte-se: G. W. F. HEGEL, [Zum Mechanismus, Chemismus, Organismus
und Erkennen]. In: WdL, II, 1816, GW 12, Beilagen, p. 259ss.
43. Veja-se, a respeito, J. GEBHARDT, Politik und Eschatologie. Studien zur Geschichte der Hegelschen Schule in den Jahren 1830-1840. München: Beck, 1963, p. 69-152.
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REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
essa reconciliação ela mesma desdobra o Estado até à imagem e à efetividade da Razão, quando a autoconsciência encontra no desenvolvimento
orgânico a efetividade de seu saber e de seu querer substanciais, tal como
[também] encontra na religião o sentimento e a representação desta sua
verdade como essencialidade ideal, embora seja na ciência que ela encontra
o conhecimento livre, conceitualizado, desta verdade, enquanto ela é uma
e idêntica em suas manifestações que se completam, o Estado, a Natureza
e o Mundo ideal”37. Algo muito próximo disso, quando não o seu próprio
desenvolvimento interior na efetividade destas “manifestações que se completam”, pode ser lido já nas primeiras linhas do Prefácio de Hegel à Religion
im innern Verhaltniss zur Wissenschaft, de Hinrichs, publicada em 1822, o
mesmo ocorrendo no caso da recensão38 dos Aphorismen publicados por
Göschel em 1829 e nas duas referências de Hegel a estes, a saber: uma na
Enciclopédia de 183039 e outra nas Preleções sobre o ser-aí de Deus40, obra
em fase final de preparação para publicação quando a morte surpreende
seu autor em novembro de 1831. Nestes três casos, assim como nas duas
obras de seus discípulos aqui aludidas, o problema em tela é justamente o
da unidade, ou da verdadeira reconciliação tornada objetiva, do Além e do
Aquém, isto é, do elemento eclesiástico que degrada a existência de seu
céu em Aquém terrestre e em mundanidade vulgar, portanto na Efetividade
e na representação41, assim como do elemento mundano que eleva a cultura de seu ser para si abstrato ao pensamento e ao princípio do ser e do
saber racionais, por conseguinte à racionalidade do direito e da lei42. O que,
longe de se impor como fundamento de uma atitude pura e simplesmente
interessada, se mostrou como a imposição de uma experiência escatológica
fundamental e como a exigência mesma da realização desta no Aquém; algo
passível de explicar de modo plausível e sensato não apenas os desenvolvimentos especulativos da chamada Direita Hegeliana ou dos Velhos Hegelianos, mas também, em certo sentido, a dos hegelianos de esquerda, i.é, dos
Jovens ou Novos Hegelianos.
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
Editorial
existência de um Hegelianismo ortodoxo, de um lado, e, de outro, a de um
Materialismo histórico. Ambos, em certo sentido, apresentando-se (1) como
resultantes da cisão originária disso que, ao nível do projeto fenomenológico (1807-1816)44, se mostra enquanto uma concepção ingênua do Método
especulativo e do Sistema da Ciência enquanto tais, mas também (2) como
o ponto de partida e o ponto de chegada da dissolução do Hegelianismo
em seu contexto histórico inicial, ou ainda como os resultados primeiro (a
desintegração estrutural do Sistema da Ciência) e último (a inversão materialista do Método especulativo) das opções de Hegel documentadas em
textos datados de 1817, 1821, 1822 e 1827; essas das quais, embora de
cujos problemas o filósofo de Berlim torne-se consciente já em 1829, este
jamais conseguirá se libertar. Exemplo disso mostra-se no problema da relação entre o Conceito e a Representação [em sua imanência], mais especificamente, o caso da passagem do primeiro a segunda e o da determinação
da esfera desta como a da realização [Vollbringung] do Conceito; relação
essa corretamente apreendida e desenvolvida por Göschel à luz da Filosofia
especulativa pura – ainda em 182945 – e que, de certo modo, impactou o
próprio Hegel, levando-o a reconhecer a insuficiência de sua exposição de tal
relação46. O mesmo ocorre quando, ainda em 1829, Hegel tem sob os olhos
o livro intitulado Über den gegenwärtigen Standpunkt der philosopphischen
Wissenschaft, de Christian Hermann Weisse47, assim como uma carta deste,
datada de 11 de julho48, em torno da Enciclopédia de 1827.
Em sua carta, Weisse como que justifica o ponto de vista desenvolvido em Über den gegenwärtigen Standpunkt der philosopphischen Wissenschaft sobre o Sistema de Hegel e condensa as críticas à elaboração deste, tal
como levada a cabo na Enciclopédia de 1827, em duas objeções fundamentais: (1) no que tange à passagem da Idéia lógica absoluta aos conceitos de
espaço e tempo e à Natureza: o caráter exterior da Natureza em relação à
Idéia lógica absoluta49; (2) no que diz respeito à conclusão do todo: aqui, em
retornando ao Começo lógico abstrato, o Sistema terminaria por se fechar
em si mesmo e, assim, com a admissão de um círculo [vicioso] no qual o que
há de mais elevado retornaria ao que é mais pobre, não significando senão
a recusa de toda atividade – inicialmente pressuposta – e a afirmação de
um quietismo absoluto, negando assim o método mesmo que o anima e que
44. Sobre o chamado projeto fenomenológico, veja-se: M. M. DA SILVA, A “Phänomenologie
des Geistes” de Hegel e a insuficiência do chamado sistema-fenomenologia: Limites e alcances
da concepção fenomenológica do Especulativo puro. In: E. F. CHAGAS; K. UTZ; J. W. J. DE
OLIVEIRA, Comemoração aos 200 anos da “Fenomenologia do Espírito” de Hegel. Fortaleza:
UFC Edições, 2007, p. 105-125.
45. K. F. GÖSCHEL, Aphorismen…, op. cit., p. 114-115. Ver também, K. F. GÖSCHEL, Beiträge
zur spekulativen Philosophie von Gott und dem Menschen und von dem Gott-Menschen. Berlin,
Duncker und Humblot, 1838, p. 182ss.
46. G. W. F. HEGEL, Aphorismen…, op. cit., p. 378. Neste caso, confrontem-se as versões de
1827 e de 1830 do § 573 da Enciclopédia. Para a edição de 1827, seguimos aqui: G. W. F. HEGEL, Encyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse. Zweite Ausgabe. Heidelberg: Osswald, 1827. Confrontem-se ainda, E, 1827, Vorrede, p. XIX; WdL, II, 1816, p. 55ss.
47. C. H. WEISSE, Über den gegenwärtigen Standpunkt der philosopphischen Wissenschaft, in
besonderer Beziehung auf das System Hegels, Leipzig: Joh. Ambr. Barth, 1829.
48. Briefe, III, p. 259-263.
49. Briefe, III, p. 260.
16
Manuel Moreira da Silva
Com isso, de modo mais preciso, pode-se afirmar que, ao dimanarem
da cisão originária da concepção ingênua (de 1807-1816) do Método especulativo e do Sistema da Ciência como tais, embora o Hegelianismo ortodoxo
resulte do ataque dirigido à Enciclopédia em geral e à Filosofia da Religião
em particular, e o Materialismo histórico provenha do ataque à Ciência da
Lógica em geral e à Filosofia do Direito em especial56, ambos originam-se
primariamente da perda do caráter ativo do Método especulativo, de sua
redução ao Método dialético e, por fim, da respectiva desaceleração deste
na Enciclopédia de 1827. Estas as conseqüências as mais interessantes e
as mais desastrosas resultantes das tentativas de Hegel em levar a cabo
a equação já presente nas Vorlesungen über Logik und Metaphysik segundo a qual “o Elemento concreto do saber é o Espírito”, que “não é nem o
Universal nem o Concreto da Lógica” entendida como Ciência primeira, na
qual o Universal se mostra separado do Concreto, mas é “tanto universal
quanto concreto”57; uma primeira tentativa já se apresenta nessas próprias
Vorlesungen, a saber, quando Hegel afirma: “o Conceito é o Universal, mas
o Universal enquanto ativo, enquanto O que se põe e, como tal, o Efetivo
simples que se põe a si mesmo, e este Efetivo é a Reflexão, o Um que põe
na Universalidade, – unidade d’O que põe e do Posto”58. Tentativa essa que
se prolonga nas Vorlesungen über Naturrecht und Staatswissenschaft de
1817-1818 e 1818-181959, que seguem praticamente o mesmo programa
50. Briefe, III, p. 261.
51. M. M. DA SILVA, Sobre a determinação do objeto e o escopo da Wissenschaft der Logik de
Hegel. In: Revista Filosófica de Coimbra. Coimbra, vol. 17, n° 34, 2008, p. 295-322.
52. Briefe, III, p. 260
53. Briefe, III, p. 261.
54. Ver, Berliner Schriften, Werke 11, p. 390, nota 1 (do editor).
55. Ver, por exemplo, C. H. WEISSE, op. cit., p. 4 ss., p. 210-212 ss., p. 219 ss.
56. Ver mais abaixo.
57. VLM, 1817, ad § 17, p. 24.
58. VLM, 1817, ad § 31, p. 55.
59. Veja-se, G. W. F. HEGEL, Vorlesungen über Naturrecht und Staatswissenschaft (Heidelberg
1817/18, mit Nachträgen aus der Vorlesung 1818/19). Nchgeschrieben von P. Wannenmann.
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REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
nele se ampliaria50. Conforme dito em outro lugar51, enquanto referem-se à
auto-exteriorização da Idéia absoluta na Natureza e ao seu retorno dentro
de si a partir do Espírito, essas objeções parecem justificar-se, sobretudo,
no fato da subtração do § 17 (em especial de sua anotação) e dos §§ 475477 da Encyklopädie de 1817 na de 1827. Desse modo, no caso da primeira
objeção, Weisse sugere que, ao invés de se mostrar como algo exterior
à Idéia lógica absoluta, a Natureza teria que ser tanto o aprofundamento
quanto o enriquecimento daquela52; já no caso da segunda, a restrição da
conclusão do todo ao que é dito no § 574 na Encyklopädie de1827 – sem os
silogismos da Filosofia apresentados nos §§ 475-477 na edição de 1817 e
nos §§ 575-577 na de 1830 – termina por impedir a suprassunção dos momentos anteriores do Sistema, bem como seu prosseguimento ascendente e
seu aprofundamento em si mesmo53. Enfim, as objeções de Weisse parecem
atingir o ponto, pois (1) embora na mesma época, junto com as recensões
de 182954, Hegel planeje recensear o livro Weisse, o filósofo de Berlim como
que aborta este projeto e, ao que parece, jamais responde à carta de Weisse55.
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
Editorial
daquelas, mas que tem uma reviravolta – ou mesmo um desvio – importante nas Vorlesungen über Philosophie des Rechts de 1819-182060, i.é, assumir na Filosofia real a unidade do Universal e do Concreto, deixando-se
de lado o seu desenvolvimento nos quadros da Lógica concebida como Filosofia especulativa pura e, mais rigorosamente, como Teologia especulativa
ou enquanto a Ciência absoluta propriamente dita61; fato consolidado nas
Grundlinien der Philosophie des Rechts (1820-1821)62 e que só voltará a ser
considerado (embora de modo assaz tímido) quando da tematização do Espírito livre (em uma seção inédita, destinada especificamente a ele) nos §§
481-482 da Enciclopédia de 183063. O que exigirá um novo estatuto, assim
como um novo ponto de partida e um novo ponto de chegada para o Sistema
da Ciência em geral e o Especulativo puro em especial, cuja tematização se
apresentará então como a tarefa principal da Filosofia especulativa pura; a
qual, não obstante, jamais se realizará.
Em vista disso, o chamado Sistema de Hegel ficara profundamente
fragilizado, restando, pois, do ponto de vista hermenêutico, tão só o paciente
trabalho de sua reconstituição histórico-sistemática ou pedagógico-literária
e, do ponto de vista teorético, ou apenas a sua defesa ortodoxa (fundamentalmente piedosa) ou a sua crítica filosófica a mais impiedosa. Neste sentido,
aqueles ataques acima referidos tiveram como golpes mortais, respectivamente: (1) em 1829, o de Christian Hermann Weisse à Enciclopédia de 1827
(tal como já relatado) e, (2) a partir de 1835, ainda que indiretamente, com
a introdução do ponto de vista mítico na consideração da história evangélica,
o de David Friedrich Strauss à Cristologia hegeliana64, essa o núcleo duro
do Sistema da Ciência em geral e da Filosofia da Religião em particular, que
perdem então o elemento chave de sua autenticidade e de sua cientificidade
no que tange ao conteúdo. O mesmo ocorre (3) de 1840 a 1843, com o ataque de Adolf Trendelenburg, no que respeita à forma, ao (para ele suposto)
procedimento científico da Dialética tal como concebido na Ciência da Lógica
de Hegel65 e, enfim, (4) ainda em 1843 e 1844, o de Karl Marx ele mesmo
à concepção hegeliana do Estado – ataque esse começado, mas não terminado66. Os três primeiros golpes tiveram como resultado certeiro: (1) a disHerausgegeben von C. Becker ..., mit eine Einleitung von O. Pöggeler. Hamburg: Felix Meiner,
1983, p. 5-13, p. 269-280, sobretudo, p. 5, p. 8-9, p. 269, p. 273-275ss (= VNS, 1817/18, §
1, p. 5; §§ 5-7, p. 8-9; ad § 1, p. 269; ad § 5-7, p. 273-275ss).
60. Veja-se, G. W. F. HEGEL, Vorlesungen über Philosophie des Rechts (Berlin 1819/1820). Nchgeschrieben von Johann Rudolf Ringier. Herausgegeben von Emil Angehrn, Martin Bondeli und
Hoo Nam Seelmann. Hamburg: Felix Meiner, 2000, p. 3ss, p. 8-9, p. 205 (= VPhR, 1819/20, p.
3ss, p. 8-9, p. 205).
61. Confrontem-se: WdL, II, 1816, p. 129, p. 197-199, sobretudo p. 198; E, 1817, § 17, A. Ver
também, M. M. DA SILVA, Sobre a determinação ..., op. cit., p. 307-317.
62. Ver mais acima, a partir da nota 30.
63. Confrontem-se: E, 1817, §§ 399-400; E, 1827, §§ 481-482; E, 1830, §§ 480-483.
64. D. F. STRAUSS, Das Leben Jesu. Erster Band. Zweite, verbesserte Auflage. Tubingen: Osiander, 1837, p. Xss, p. 1ss.
65. Vejam-se, a respeito: A. TRENDELENBURG, Logische Untersuchungen. Erster Band. Berlin:
Bethge, 1840, p. 23-99, p. 100ss; A. TRENDELENBURG, Die logische Frage in Hegel‘s Sytem.
Zwei Streitschriften. Leipzig: Brockhaus, 1843, passim. Veja-se ainda: A. TRENDELENBURG,
Logische Untersuchungen. Erster Band. Zweite ergänzte Auflage. Leipzig: Hirzel, 1862, p.VIIss,
p. 36-129.
66. Veja-se, K. MARX, Crítica da filosofia do direito de Hegel. Trad. Rubens Enderle e Leonardo
18
Manuel Moreira da Silva
tinção formal e real da Lógica como Filosofia especulativa pura e das outras
ciências do Sistema enquanto Filosofia real; (2) a distinção entre o Lógico
e o Real, assim como do Apriori e do Aposteriori ou, ainda, do Divino e do
Humano; por fim, (3) a distinção entre o Sistema e o Método da Filosofia
como tal – essa última levada a efeito pelo próprio Marx em seus Manuscritos econômico-filosóficos67.
de Deus, supervisão e notas de Marcelo Backes. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 27-141. Veja-se
ainda o apêndice a esta edição, o famoso artigo “Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução”. p. 145-156. Ver também, K. MARX, Para a crítica da economia política. Trad. José
Arthur Giannoti e Edgar Malagodi. In: Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. Seleção de textos de José Arthur Giannoti. Trad. José Carlos Bruni et alii. 2. Ed. – São
Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 101-257, sobretudo, p. 116-123.
67. K. MARX, Manuscritos econômico-filosóficos – Terceiro manuscrito. Trad. José Carlos Bruni.
In: Manuscritos econômico-filosóficos..., op. cit., p. 1-48, sobretudo, p. 32-48.
68. A. TRENDELENBURG, Die logische Frage, op. cit., p. 29.
69. A. TRENDELENBURG, Die logische Frage, op. cit., p. 26.
70. Veja-se, K. MARX, Crítica da filosofia do direito de Hegel - Introdução, op. cit., p. 150156.
71. Veja-se, H. F. W. HINRICHS. Politische Vorlesungen. Erster Band. Halle: Schwetschke und
Sohn, 1843, p. 1-17, no caso: a primeira preleção, em torno da liberdade e da emancipação
política. Veja-se, igualmente: Zweiter Band: (1) da trigésima sexta à trigésima nona preleção
– sobre o socialismo, o comunismo e a Filosofia do Direito de Hegel (p. 342-406); (2) da
quadragésima terceira à quadragésima quinta preleção – que discutem as posições da Esquerda
hegeliana (p. 450-479).
72. Veja-se, H. F. W. HINRICHS. Das Leben in der Natur. Halle: Schmidt, 1854.
73. K. F. GÖSCHEL, Der Mensch nach Leib, Seele und Geist. Leipzig: Dörffling und Francke,
1856.
19
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
Isso, de certo modo, explica a razão pela qual o ataque marxiano
à Filosofia do Direito não fora consumado, o que ocorre pelo fato de Marx
deixar de lado o Sistema da Ciência em sua elaboração hegeliana e assumir
tão somente o Método entendido segundo seu momento dialético – mas
este, enquanto tal, invertido materialista e historicamente; assumindo como
que, de certo modo, também a tarefa de responder à intimação de um Trendelenburg acerca da necessidade de uma execução científica68 do “método
dialético do pensar puro” de Hegel para então se verificar em que medida
este se constitui como um procedimento científico69 algo que, para Marx, só
seria possível mediante a realização da Filosofia, vale dizer, da efetivação
prática daquela emancipação teórica alcançada somente na Filosofia e pela
própria Filosofia70. Atitude que, em permanecendo ao nível do pensamento
puro, por conseguinte sem se descuidar do Especulativo puro, é também
a de Hinrichs e Göschel entre outros, esses cujas obras publicadas a partir
de 1843 procuram dar conta seja de certas instâncias mais concretas do
Político71, assim como de problemas atinentes à Filosofia da Natureza72 e à
Antropologia filosófica73.
Editorial
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
IV. A guisa de conclusão
Levados a cabo principalmente entre 1829 e 1843, os ataques e as
distinções a que acima se refere desdobram-se de modo vertiginoso nos
anos que seguem, como que dissolvendo por completo as instâncias e posições do Hegelianismo ortodoxo. Isso explica o fato de, por um lado, os anos
de 1830 se mostrarem os mais produtivos desta corrente, mas também,
não obstante, o de sua produção sistemática e metódica apresentar-se essencialmente apologética; assim como, por outro lado, também explica o
fato dessa produção praticamente paralisar-se após 1843, sendo retomada
somente a partir dos fins dos anos de 1840, mas já sem a força e o vigor
com que se mostrara desde os anos de 1820, esgotando-se por completo
ao final dos anos de 1850. O que exige, por assim dizer, um novo ponto de
partida para a Filosofia hegeliana em geral, justamente aquele cujas tarefas
são apresentas em Der Gedanke, a nova revista que, sob a direção de Karl
Ludwig Michelet, a partir de 1860, mas não sem dificuldades, cumprirá o
papel de rearticular, embora mais histórica que sistematicamente, o legado
hegeliano74. Isso, contudo, em um tempo cujo caráter próprio consistirá em
que “a vida efetiva e o mundo do pensamento” que antes impulsionara toda
uma geração que reivindicara para si o ponto de vista especulativo, “agora
não mais seguem um ao lado do outro”75.
Não impressiona, portanto, que os adeptos dessa unidade da vida
efetiva e do mundo do pensamento – inaugurada precisamente em 18191820 – sejam então, de ora avante, postos à margem do desenvolvimento
da Ciência pela qual dispensaram os maiores esforços; de início por seus
adversários, mas logo depois também por aqueles que, em certa medida,
deveriam pelo menos investigar de modo mais cuidadoso esse período da
Filosofia em geral e da Filosofia hegeliana em particular, o qual bem se poderia designar a época do Hegelianismo ortodoxo. Mas isso, em grande parte,
não resulta senão de mal-entendidos e de desinformações; o que vale, antes
de tudo, para o caso de Göschel, sobre o qual podem ser constatadas opiniões as mais paradoxais – como o comprovam as atitudes de um Gerlach,
sobretudo no que diz respeito à sua objeção aos pensamentos confusos de
Göschel em 1828 e, em 1846, sua adesão à exigência göscheliana de que
o discurso filosófico deva chegar a resoluções práticas, quando então, para
Gerlach, a “expressão dantesca” de Göschel “o Estado se construindo de baixo para cima é a expressão do mandamento do amor ao próximo, a igreja de
cima para baixo é a expressão do amor de Deus” “se aproxima da verdade”76
Algo já constatado por Georget, para quem Göschel – embora apresentado
como um pensador trapalhão e com uma imagem desfigurada (décousue)
74. Veja-se, [K. L. MICHELET], Unser Program. In: Der Gedanke, Erster Band. Erster Jahrgang,
(1860,1), Berlin: Nicolai, 1861, p. 1-8. Ver também, N. J. MONRAD, Ueber die gegenwärtige
Stellung und Aufgabe der Hegel’schen Philosophie. In: Der Gedanke, Erster Band. Erster Jahrgang, (1860,1), Berlin: Nicolai, 1861, p. 8-20. E ainda: K. L. MICHELET, Wo stehen wir jetzt in
der Philosophie? In: Der Gedanke, Siebenter Band. Berlin: Nicolai, 1867, p. 1-23.
75. [K. L. MICHELET], Unser Program. In: Der Gedanke, Erster Band. Erster Jahrgang, (1860,1),
Berlin: Nicolai, 1861, p. 1.
76. Ver, J.-L GEORGET, op. cit., p. 31-32.
20
Manuel Moreira da Silva
De qualquer modo, o acesso on-line hoje permitido aos textos originais de Hegel, de seus discípulos diretos e demais obras vinculadas aos
problemas dos quais eles se ocuparam possibilita ao estudioso do presente
desfazer uma série de equívocos e preconceitos que, em grande parte pela
desinformação e pela posição contrária esposada, levou o Hegelianismo ortodoxo ao desprezo e seus representantes ao silêncio quase absoluto. Não
obstante haverem se limitado à defesa do Sistema de Hegel sem distingui-lo
da forma de filosofia que o filósofo de Berlim intentava elaborar e, portanto,
apesar de se reduzirem ao campo minado – portanto, inadequado, complexo e mesmo constrangedor – da apologia e da puramente negativa pars
destruens, os hegelianos ortodoxos aqui considerados foram não só fiéis a
Hegel e ao seu Sistema da Ciência no que tange à defesa intransigente destes, mas também contribuíram de certo modo para que a própria Filosofia
especulativa pura se desenvolvesse mesmo no campo estéril da disputa e da
apologia enquanto tais. O principal erro destes filósofos, por assim dizer, foi
o de não terem assumido mais claramente a sua diferença para com Hegel
ele mesmo, algo apenas em parte realizado por Göschel e Hinrichs, respectivamente: em Göschel, sobretudo no que concerne à Doutrina da Representação objetiva80; em Hinrichs, especialmente em suas teses sobre o Pensar
genético e o Pensar imanente81. Mas este nem em parte foi o caso de Gabler,
que então, oficialmente se tornara em 1835 o diádoco de Hegel em Berlim;
razão pela qual, em certo sentido, por ter se limitado pura e simplesmente
a esclarecer e defender a filosofia hegeliana, seu silêncio a partir de 1843
77. J.-L. GEORGET, op. cit., p. 32.
78. V. HÖSLE, O sistema de Hegel, op. cit., p. 108, p. 477.
79. Sobre este ponto, vejam-se as cartas de Hegel ao Senado da Universidade de Heidelberg
(essa de 21 de abril de 1818) e ao Ministério do Interior de Baden (também de 21 de abril de
1818), respectivamente, em: Briefe, II, p. 182-183, p. 181-182, bem como a carta do Ministério prussiano dos Cultos a Hegel em 14 de junho de 1820 (Briefe II, p. 232-233) e a resposta
de Hegel e este ministério em 21 de junho de 1820 (Briefe II, p. 234-235). Ver ainda: H. F. W.
HINRICHS. Politische Vorlesungen, Erster Band, op. cit., p. VIss,
80. Ver mais acima, na seção III deste trabalho, as notas 41, 45 e 46.
81. H. F. W. HINRICHS, Grundlinien der Philosophie der Logik, Halle: Ruff, 1826, passim.
21
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
pela posteridade hegeliana – seria na verdade, “tanto por seu estilo quanto
por sua atitude em matéria de reflexão filosófica, parece comportar-se de
forma extremamente firme e profissional”, sendo ainda, no plano político
um contraponto de Hegel e ao mesmo tempo muito complementar77. Entendimento esse que não é, de modo algum, o de um Hösle, quem, passando
por cima da contribuição de Göschel no concernente à representação, não só
rechaça a exigência e a unidade acima referidas, mas antes considera que “a
última palavra da Enciclopédia de Hegel é (...) a pura teoria do pensamento
que se retira do mundo (...) – um gozo intelectual aristocrático, que não tem
consciência de qualquer responsabilidade com o mundo, é aquilo em que a
filosofia de Hegel culmina e necessariamente tem de culminar”78. Algo que,
apesar dos desacertos de Hegel e seus discípulos mais próximos, não pode
ser considerado senão como uma grave desconsideração dos verdadeiros
objetivos de Hegel em Berlim e as conseqüências disso na formação da
Filosofia hegeliana em geral, após 181879, e no desenvolvimento imanente
desta nos quadros do Hegelianismo ortodoxo em especial.
Editorial
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
na disputa com Trendelenburg em torno do Método dialético em Hegel praticamente sela o destino do Hegelianismo ortodoxo. O que de modo algum
parece invalidar a contribuição de Gabler ou, principalmente, as de Hinrichs
e Göschel; além, é claro, das de outros hegelianos ortodoxos.
Isso pode agora ser verificado pelos que se interessam pelas instâncias do Idealismo especulativo e, mais propriamente, pelas razões de
sua perda de integridade estrutural em Hegel e no Hegelianismo ortodoxo,
deixando-o inerte por quase dois séculos. Razões essas para cujo esclarecimento, independente do seu valor teórico e de seu alcance filosófico, as
contribuições de Hinrichs, Gabler e Göschel mostram-se fundamentais; o
que se explica justamente pelo fato de serem estes os que mais empunharam armas em defesa do território conquistado por Hegel e então por eles
herdado em comum, a saber: o ponto de vista especulativo puro. Só isso
já bastaria para que o espírito que habita a filosofia destes filósofos fosse
revivescido mediante não só a restauração de suas obras, mas também pela
reabilitação dos mesmos segundo sua estatura própria, inclusive no que
tange aos limites e ao alcance de suas contribuições.
22
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos
Ano 6, nº10, Junho-2009: 23-24
REH, NOTA SOBRE O NÚMERO 10
Manuel Moreira da Silva
Editor REH
No que diz respeito ao primeiro grupo, “Sobre a (in)certeza sensível
em Hegel”, de Ana Paula Repolês Torres, pretende demonstrar, através da
análise da experiência da “certeza sensível”, a crítica que Hegel realiza à
imediatez, o que leva a autora a ressaltar a relevância da negatividade, do
ser-outro, no pensamento hegeliano, buscando compreender o que seja a
unidade dialética, isto é, a identidade da identidade e da diferença. Já em
“Sobre a tradução do termo ‘Knecht’”, Matheus Pelegrino da Silva discute o
problema da tradução do termo “Knecht”; apresenta-se aí uma avaliação
das opções de tradução do termo “Knecht” e uma tematização do termo
“Sklave”, a fim de mostrar que estes dois termos se referem a um mesmo
indivíduo. Enfim, “O Desejo e seu Outro”, de Luiz Henrique Vieira da Silva,
analisa o movimento do desejo no Capítulo IV da Fenomenologia do Espírito
de modo a evidenciar uma dialética transformativa do desejo em trabalho,
permitindo assim entender como surge a temática do trabalho no capítulo e
obra retrocitados.
O segundo grupo de questões acima aludido exprime-se nos artigos
“Hegel e a crítica ao estado de natureza do Jusnaturalismo moderno”, de
Cesar Augusto Ramos, e “A Lei de Talião e o princípio de igualdade entre
crime e punição na Filosofia do Direito de Hegel”, de Melina Duarte. Em seu
trabalho, Cesar Augusto Ramos pretende desenvolver três teses em torno da
questão da exterioridade da natureza e das relações de dominação no campo político, nas quais os traços de naturalidade permanecem presentes nas
concepções de estado de natureza da doutrina do Direito Natural, reforçando
a idéia hegeliana de que a “coação é violência contra um ser-aí natural”,
essa que assim se apresenta compatível com a determinação essencial da
natureza e marca a condição da imediatidade do homem como ser natural,
o qual, como tal, pode ser coagido. Por seu turno, em “A Lei de Talião e o
princípio de igualdade entre crime e punição na Filosofia do Direito de Hegel”, de Melina Duarte, está em questão a tese da necessária existência de
uma exata medida entre a negação e o restabelecimento da justiça, assim
23
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
Este número da Revista Eletrônica Estudos Hegelianos concentra-se
em três grupos de questões. O primeiro grupo ocupa-se de alguns dos temas clássicos da primeira parte da Fenomenologia do Espírito, a saber: o da
certeza sensível e o da dialética do senhor e do escravo; o segundo se volta
para as questões do crime e da punição e da crítica de Hegel ao estado de
natureza; por fim, o terceiro se reporta a questões atinentes às relações da
filosofia de Hegel com a arte e a religião. Em todos estes casos o elemento
unificador é a História, que se apresenta, de um modo ou de outro, como
a plataforma a partir da qual as autoras e os autores levam a termo suas
contribuições.
REH, Nota sobre o número 8
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
como o problema da insuficiência da igualdade de valor (enquanto distinta
da igualdade específica) para, além de garantir a justiça na esfera teórica,
estendê-la à esfera prática; algo possível em Hegel, segundo a autora, graças à autodeterminação do espírito livre, i.é, a união dos âmbitos teórico e
prático.
Enfim, no terceiro e último bloco de questões, “Da ‘Syn Díkei’ à Lógica
da Corporação – A superação da Tragödie im Sittlichen na filosofia de Hegel”,
de Sergio Portella, objetiva apreender as interfaces conceituais que habilitam
conferir a unidade pretendida pela modernidade à cultura helênica ao incidir
no pensamento de Hegel como a releitura da antiguidade greco-clássica à
luz dos desafios legados pela filosofia kantiana. “Estética e consciência infeliz na filosofia hegeliana”, de Lincoln Menezes de França, discute a oposição
entre a finitude do homem e o pensamento do infinito enquanto essencial
para a caracterização da consciência infeliz, a qual, enquanto consciência infeliz da realização infinita do pensamento na finitude humana, se manifesta
historicamente. Enfim, em “Hegel e Hamann: alguns diálogos”, Ilana Viana
do Amaral busca explicitar o diálogo de Hegel com H. G. Hamann a partir da
oposição, por este último, de uma idéia de razão mediada pela linguagem
ao que ele nomeia, sob forma humorística, como a razão “purificada” resultante do esforço crítico kantiano. De acordo com a autora, a exposição tem
o sentido de explicitar os termos nos quais a reflexão hamanniana sobre a
linguagem aparece a Hegel como exposição da idéia subjetiva, exposição
capaz, nos termos de seus Escritos sobre Hamann, de apresentar a crítica
ao que Hegel chama de “entendimento seco”, para evidenciar tanto a sua
verdade quanto o seu limite diante da exposição especulativa da mediação
do Estado.
Como que se conectando a este último grupo de questões, concentrando-se, porém, nas vicissitudes históricas dos principais representantes
do chamado Hegelianismo ortodoxo, o Editorial, intitulado “Hegel e o Hegelianismo ortodoxo (1820-1860) na aurora do século XXI: A restauração digital das obras e a reabilitação de Hinrichs, Gabler e Göschel”, busca desenvolver uma nova compreensão em torno dessa corrente do Hegelianismo,
seu lugar histórico-sistemático no desenvolvimento da Filosofia Hegeliana e,
em certo sentido, sua atualidade. Compreensão essa que começa a se impor
justamente a partir da restauração digital e da disponibilização on-line de
obras fundamentais até então praticamente desconhecidas ou inacessíveis à
grande maioria dos estudiosos da Filosofia especulativa pura em sua matriz
hegeliana.
24
REH10 – Nota adicional
O número 10 da Revista Eletrônica Estudos Hegelianos estava praticamente no prelo quando sobrevieram alguns problemas de ordem técnica,
atrasando sua publicação por alguns meses. Em vista disso, como já se avizinhava o V Congresso Internacional da Sociedade Hegel Brasileira – SHB, o
Staff da Revista considerou melhor disponibilizar o referido número depois
do evento. Após a realização deste, algumas tarefas mais urgentes exigiram
a atenção dos membros do novo Conselho Executivo, recém empossado; o
que também fez com que a resolução dos problemas acima aludidos fosse
protelada por mais tempo. Em todo caso, publicam-se agora os materiais
anteriormente definidos, acrescidos de uma ou outra colaboração.
O V Congresso Internacional da Sociedade Hegel Brasileira realizouse em Fortaleza/CE, no Ponta Mar Hotel, entre os dias 28 de setembro e 02
de outubro de 2009. O evento discutiu o tema A Noiva do Espírito: Natureza
em Hegel e contou com a presença de renomados especialistas em Filosofia
da Natureza em geral e na Filosofia da Natureza de Hegel em especial, entre
eles: Alfredo Moraes (UFPE), Alfredo Pereira Jr. (UNESP), Anton Friedrich
Koch (Heidelberg), Christian Iber (Berlim), Diogo Falcão Ferrer (Coimbra),
. Dirk Stederoth (Kassel), Gilles Marmasse (Sorbonne, Paris), Manfredo A.
de Oliveira (Fortaleza), Marcos Lutz Müller (UNICAMP), Klaus Vieweg (Jena)
e Sebastian Rand (Atlanta). Ao fim do evento elegeu-se o novo Conselho
Executivo (CE) – Gestão 2009-2011 – da Sociedade Hegel Brasileira, a saber: Presidente: Márcia Cristina F. Gonçalves (UERJ); Vice-Presidente: Konrad Utz (UFC); Primeiro Secretário: Manuel Moreira da Silva (UNICENTRO/
PR) Segundo Secretário: Verrah Chama (UFRGS; Secretário de Publicações:
Hans Christian Klotz (UFG); Secretário de Finanças: Márcia Zebina (UFG).
Enfim, na qualidade de Editor da REH e de Secretário de Publicações
da SHB, com este número também nos despedimos de nossos leitores e de
nossos colaboradores, haja vista havermos abraçado outros desafios nas
tarefas que o Idealismo especulativo hoje nos impõe. Esperamos que o trabalho realizado nos últimos dois anos à frente desses cargos possa ter sido
de valia para a consolidação deste importante veículo que, por suas características próprias e pelos conteúdos tratados em suas páginas, se apresenta como sui generis em sua esfera. Desejamos muito sucesso e boa sorte
ao novo Editor da REH e Secretário de Publicações da SHB, o Professor Hans
25
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
Manuel Moreira da Silva
Editor REH
Christian Klotz; que o mesmo possa dar continuidade ao que até aqui conseguimos realizar.
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
Fevereiro de 2010
26
Artigos
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos
Ano 6, nº10, Junho-2009: 27-34
Sobre a (in)certeza sensível em Hegel
Ana Paula Repolês Torres1
Palavras-chave: Negação, Mediação, Identidade, Diferença, Dialética.
ABSTRACT: Based upon the experience of “sensible certitude” in the first chapter of the Phenomenology of Spirit, we aim to demonstrate the critique of all kind of immediateness in Hegel’s
thought, what permit us to focus the relevance of negativity in his work. We also intend to
understand what means the dialectical unity, that is, the identity of identity and difference,
showing the platonic heritage of Hegel.
Keywords: Negativity, Mediation, Identity, Difference, Dialectic.
Introdução
A certeza sensível, primeira figura da consciência natural que aparece na Fenomenologia do Espírito buscando provar, através de sua própria
experiência, seu critério de verdade, qual seja, a imediatez do conhecimento, pode ser visualizada para além dela mesma, na medida em que o reconhecimento da mediação, do ser outro, do próprio processo dialético de
constituição do saber, que se torna manifesto nesse momento, pode ser tido
como paradigma para se pensar todos as demais figuras da consciência em
seu desenvolvimento posterior. Na verdade, o capítulo da certeza sensível
pode ser visto como uma crítica a toda imediatez, o que nos faz retornar
à certeza sensível quando chegamos ao final do caminho percorrido pela
consciência, pois o próprio saber absoluto, ao postular uma igualdade entre
sujeito e objeto, reconhece uma mediação nessa identidade.
Por outro lado, toda a questão religiosa que Hegel desenvolve já
no Prefácio da citada obra pode ser resgatada para se demonstrar a importância que o trabalho do negativo, a dor, o desespero, o “calvário da
mediação”(HYPPOLITE, 1999, p. 97) assume em sua obra. De fato, para Hegel, a substância teve que se tornar sujeito, Deus teve que se fazer homem
para retornar a si mesmo, em outros termos, o absoluto, o incondicionado,
não é alcançado de modo imediato por alguma intuição intelectual ou artefato místico, é necessária a mediação do conceito, por isso não se pode mais
distinguir, tal como fazia Kant, o conhecer e o pensar, o entendimento e a
1. Doutoranda em Filosofia pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, bolsista
da FAPEMIG. Texto submetido em outubro de 2008 e aprovado em Maio de 2009.
27
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
RESUMO: Pretendemos demonstrar, através da análise da experiência da “certeza sensível”,
primeiro Capítulo da Fenomenologia do Espírito, a crítica que Hegel realiza a toda imediatez,
o que nos leva a ressaltar a relevância da negatividade, do ser-outro, em seu pensamento.
Buscamos também compreender, resgatando o legado platônico de Hegel, o que seja a unidade
dialética, isto é, a identidade da identidade e da diferença.
Sobre a (in)certeza sensível em Hegel
razão, pois o infinito está no finito, não sendo a Verdade algo a ser alcançado
no final do percurso, mas sim o próprio movimento do saber.
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
O Verdadeiro é o sujeito ou conceito, o que equivale a dizer que ele próprio é esse movimento de tornar-se o que ele é, ou ainda de pôr-se a si
mesmo. O Verdadeiro não é, portanto, o imediato, mas a ‘imediatez-queveio-a-ser’ (HYPPOLITE, 1999, 96).
Se é uma necessidade da razão pensarmos o absoluto, Hegel nos
mostra que é o próprio absoluto que movimenta o pensar, que nos faz ir
além do dado, não aceitar os limites, nas palavras de José Henrique Santos,
trata-se da “pulsão de liberdade que o espírito é chamado a efetivar” (SANTOS, 2007, p. 28). O absoluto então não significa saber tudo, a completude
do conhecer, mas sim o seu devir permanente, a omnipresença do Tribunal
da razão, em outros termos, diríamos, em consonância com toda uma tradição que entende ser o saber filosófico inesgotável2, que a busca da verdade
já é a própria Verdade, que não há um sentido último a ser alcançado, nas
palavras de Slavoj Zizek, o saber absoluto é um buraco, “o vazio traumático
em torno do qual se articula o processo significante” (ZIZEK, 1991, p. 14).
Sobre a (in)certeza sensível
A certeza sensível é a primeira figura da consciência natural na qual
o sujeito ainda não se tornou o objeto da consciência (Consciência de si),
o objeto de conhecimento então é algo exterior, independente, mesmo que
nesse processo haja uma sucessão de experiências em que a consciência vai
gradativamente relacionando a Verdade do objeto (Em si) com seu próprio
Saber (Para si), até o momento em que a coisa em si kantiana é ‘exorcizada’,
passando então a consciência a se reconhecer em seu objeto de conhecimento. No início do processo de conhecimento, devemos afirmar então que
a consciência se constituiu como tal a partir da separação entre sujeito/
certeza e objeto/verdade, haja vista que “a alma que sente não se distingue
ainda de seu objeto” (HYPPOLITE, 1999, p. 99). O fato é que a consciência
separa o seu saber da verdade, postulando ainda uma igualdade, uma relação imediata entre sujeito e objeto. Entretanto, a própria distinção entre
sujeito e objeto, um sendo essencial e outro não, como veremos em pormenores ao analisar a seguir a experiência da certeza sensível, pode ser
vista como um desdobramento, como mediação, sendo esta, para Hegel, a
“diferença capital” (HEGEL, 2008, p. 86).
A certeza sensível acredita que seu saber é rico porque o “aqui” e o
“agora” podem abarcar qualquer dimensão do espaço ou momento do tempo, mas “para nós”, que estamos rememorando os passos da consciência
2. Leo Strauss sintetiza bem essa compreensão da atividade filosófica, cuja origem remonta à
Grécia antiga: “Philosophy is essentially not possession of the truth, but quest for the truth. The
distinctive trait of the philosopher is that ‘he knows that he knows nothing’, and that his insight
into our ignorance concerning the most important things induces him to strive with all his power
for knowledge” (STRAUSS, 1988, 11).
28
Ana Paula Repolês Torres
natural, trata-se de um saber pobre já que impreciso, incapaz de determinação. Ao tentar apreender o mais concreto, a certeza sensível cai num
universal, sendo levada a reconhecer uma multiplicidade no que entendia
unicamente singular. Vejamos quais são as experiências que a certeza sensível realiza para tentar provar seu critério de saber.
Diante da frustração em captar o singular tendo o objeto como padrão de imediaticidade, a consciência natural realiza uma inversão, o objeto passa a ser o inessencial e o sujeito/saber o essencial, trata-se de um
momento reflexivo em que a certeza sensível é recambiada ao Eu, mas não
ocorre aqui uma suprassunção, a imediatez ainda continua a ser o padrão
de medida. A certeza sensível ainda persevera em seu discurso, situando a
verdade não mais no objeto, mas no “meu” visar, no “meu” saber sobre o
objeto, ou seja, não se fala mais no “agora é noite” ou no “isto é uma árvore” como algo que é em si, mas sim como um ser-para-mim. A certeza
sensível acredita, nessa segunda experiência, que o sujeito, na imediatez do
seu ver e ouvir, é o que permanece, é o que se mantém único, singular, no
desvanecer do agora e aqui. Hegel então refere-se implicitamente à tese do
homem-medida de Protágoras3 e à concepção de ciência como sensação dos
sofistas. “A verdade é aquilo que experimento imediatamente enquanto a
experimento” (HYPPOLITE, 1999, p. 109). Trata-se de uma concepção relativista que nos leva a aceitar toda opinião como verdadeira, não obstante uma
se contrapor à outra, mas, como podemos apreender de Platão, não se trata
de uma verdadeira contradição, o que só seria possível pela afirmação da
possibilidade do falso4. Dessa forma, ao se tentar assegurar a singularidade
e credibilidade de cada saber, de cada Eu, o que a certeza sensível consegue
é o Eu como um universal.
3. Protágoras afirmava que “el hombre es la medida de todas las cosas; de las que son como
medida de su ser y de las que no son como medida de su no-ser”(PLATON, 1973, 52).
4. “Dizer que a opinião é sempre verdadeira significa dizer que o que importa é que aquilo que
aparece é experimentado de tal ou tal modo, suspendendo a possibilidade de dizer a verdade
compreendida como ‘dizer o ser’” (MARQUES, 2006, 120).
29
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
Num primeiro momento, o objeto é o essencial, onde se situaria a
imediaticidade do saber, assim a certeza sensível realiza a experiência na
perspectiva temporal, a afirmação do agora como noite é refutada quando
se anota essa primeira verdade e se percebe que ela não permanece, que
em outro momento o agora é dia; de modo semelhante, na perspectiva espacial também ocorre um deslocamento, pois o “isto é uma árvore” não se
sustenta quando nos viramos e visualizamos o “isto é uma casa”. Dessa forma, ao buscar alcançar o agora, a consciência natural depara-se com todos
os agoras, ao tentar capturar o aqui, ela se defronta, de modo semelhante,
com todos os aquis. Em outros termos, diríamos que a consciência natural
não consegue apreender o objeto em sua singularidade ao visá-lo como o
imediato, como aquilo que é, que permanece sempre o mesmo (referência
a Parmênides e Zenão que negam o movimento, afirmando o ser como repouso), pois o que se consegue nessa busca é um universal, a ausência de
determinação.
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
Sobre a (in)certeza sensível em Hegel
O ‘visado’ pela certeza sensível, o eu singular, único, é negado então
seja pela existência de outro Eu ou seja pela consideração de mim mesmo
em outra ocasião. O fato é que a pluralidade dos eus nos faz já antever a
noção de Espírito hegeliana: “Este eu que é um nós, este nós que é um eu”
(HEGEL apud HYPPOLITE, 1999, p. 110). O gênero do outro, como podemos
apreender da leitura do Sofista de Platão, é universalmente participado, isto
é, o um está mediatizado por todos os outros, cada indivíduo é idêntico consigo mesmo e outro em relação aos outros. Dessa forma, não obstante Hegel
se opor a qualquer tipo de dualismo, vemos que ele retoma o pensamento
platônico no que se refere à afirmação de que tanto o ser quanto o não-ser,
a identidade e a diferença, o repouso ou o movimento fazem parte do Ser.
“O múltiplo eleático é a negação absoluta do Ser-Uno. O múltiplo platônico
é a posição de um ‘ser-outro’, que torna possível a unidade distinta de cada
Idéia” (VAZ, 2001, p. 50). Ressalte-se, todavia, que essa experiência da
unidade, o terceiro momento dialético, faz com que abandonemos a certeza
sensível, já que esta não reconhece a mediação do imediato, e passemos
para a figura da percepção.
Podemos ver, ainda no Capítulo sobre a certeza sensível, uma referência implícita a Aristóteles, quando o mesmo diz que a substância última,
o indivíduo sensível, concreto e singular sobre o qual recaem as predicações
só pode ser indicado pelo pronome demonstrativo - este homem, mas a pretensão de mostrar o concreto, por ser realizado por meio do logos universal,
leva-nos à indeterminação, à indiferenciação5.
Dessa forma, como através do “isto” ou do “visar” a certeza sensível
não conseguiu apreender a singularidade, sendo a universalidade a verdade
de ambos, ela parte então para uma terceira experiência onde ainda defende
seu discurso, qual seja, da imediatez da verdade, sendo que esta não será
mais garantida pelo sujeito ou pelo objeto, mas sim pela relação que se
constitui entre eles. Não há que se falar mais nem mesmo em essencialidade
ou inessencialidade, negando assim a certeza sensível qualquer diferença,
qualquer movimento. Como podemos ver no texto da Fenomenologia do
Espírito, o eu “não se vira”, “não toma conhecimento de um outro Eu”, “não
compara”, “se atém firme a uma relação imediata: o agora é dia” (HEGEL,
2008, p. 90).
Hegel passa então a nos mostrar como a certeza sensível constitui
essa relação imediata entre sujeito e objeto, e será então ao nos indicar
essa relação que a própria certeza sensível irá topar com o movimento do
pensamento, a mediação que nega a sua própria verdade, forçando-nos a
passar então para a nova figura da consciência, a percepção. Temos então a
diferença entre o agora mostrado e o mostrar do agora, sendo que o primei5. Sobre o tema, interessantes são as seguintes palavras de Giorgio Agamben:“A cisão aristotélica da ousia (que, como essência primeira, coincide com o pronome e com o plano de ostensão
e, como essência segunda, com o nome comum e com a significação) constitui o núcleo originário de uma fratura, no plano da linguagem, entre mostrar e dizer, indicação e significação,
que atravessa toda a história da metafísica e sem a qual o próprio problema ontológico permanece informulável” (AGAMBEN, 2006, 34).
30
Ana Paula Repolês Torres
ro deixa de ser quando é indicado. Podemos visualizar assim o movimento
dialético dessa indicação do agora: 1) O agora é – primeira verdade; 2) O
agora não é, foi, não-ser do agora – negação da primeira verdade; 3) O
agora é e não é – negação da negação, isto é, unidade da identidade e da
diferença.
Hegel também realiza a experiência da imediaticidade na relação entre sujeito e objeto na dimensão espacial, mas o aqui “visado”, imediato,
não se mantém, sendo também ele um “múltiplo ser-Outro”, pois quando
se indica este aqui, temos simultaneamente muitos outros aquis. Os termos
utilizados por Hegel: “complexo simples”, “pluralidade simples de agora” ,
“multiplicidade simples de aqui”, mostra a articulação de elementos opostos:
singular e universal, imediato e mediatizado, simples e múltiplo, ser e não
ser, positivo e negativo, coisa que a certeza sensível não admite, sendo então o resultado de sua experiência sua própria superação.
Ocorre que somos capazes, na medida em que rememoramos a experiência da certeza sensível, de constatar algo que a consciência ingênua
não conseguia perceber, ou seja, resta clara “para nós” a existência de uma
incompatibilidade entre sua opinião, seu critério de verdade, qual seja, a
imediatez, e o resultado de sua própria experiência. A certeza sensível “quer
dizer” o imediato, mas o “dito”6 a destrói, ou seja, ao buscar o singular, a
certeza sensível alcança um universal, tornando o saber que se pretendia o
mais concreto, um saber abstrato, indeterminado.
A referência aos mistérios de Eleusis, de Ceres e de Baco, revelanos não só que o Espírito se presentifica pela aniquilação, negação, perda
da naturalidade, mas também que a impotência do espírito para alcançar o
singular não se deve à ele próprio, mas à própria natureza.
A verdade das coisas sensíveis é a contingência do desaparecimento que
toda a natureza celebra, ao contrário do espírito, que paira sobre os abismos, acima de todo limite, porque ultrapassa tudo o que os sentidos oferecem. A força do tempo não tem poder sobre o espírito (SANTOS, 2007,
p. 55).
6. “Hegel sabe, pois, que sempre dizemos demais ou de menos: em suma, algo diferente em
relação ao que queríamos dizer; é essa discordância que constitui a mola do movimento dialético, é ela que subverte toda proposição”(ZIZEK, 1991, 23).
31
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
Nesse terceiro momento dialético constatamos a superação da própria certeza sensível, pois a afirmação do agora não é mais imediata, o agora é algo“que permanece no ser-Outro o que ele é” (HEGEL, 2008, p. 91).
Podemos recordar, mais uma vez, do Sofista de Platão, onde se reconhece
que o falso, o não-ser, a imagem, também é, mesmo não sendo verdadeiramente, o que nos leva a afirmar que o passar pelo seu ser-outro é fundamental para a constituição do aqui e do agora. Nesse sentido é que podemos
entender o ceticismo amadurecido de Hegel, pois a negação não significa um
“puro nada”, mas um “nada determinado” (HEGEL, 2008, p. 76), o que quer
dizer que toda determinação é negação e toda negação é determinação.
Sobre a (in)certeza sensível em Hegel
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
Em outros termos, diríamos que a natureza é sempre fugidia, sempre
procura ocultar-se, sendo que toda apreensão da mesma é manifestação do
Espírito, é transposição do dado, por isso Hegel busca “exorcisar” o objeto
como algo outro que a consciência, como o “Em si”, diríamos então que é
através do sacramento que o “comer o pão” e o “beber o vinho” podem
permanecer para além da imediaticidade, podem ser apreendidos após a
consumação do ato.
Para finalizar, diríamos, com Platão, que o Ser não pode ser alcançado pelo logos, que discurso é imagem, “é algo de outro e semelhante
àquilo de que é imagem” (MARQUES, 2006, p. 325), dessa forma, a certeza
sensível se desdiz ao passar para o âmbito da linguagem, ou seja, ao falar
do ser-aí dos objetos externos, visando captar a singularidade dos mesmos,
nada mais afirma do que a igualdade e não a diferença com relação aos
outros objetos. Este pedaço de papel é todo e qualquer papel. Portanto, é a
própria experiência da certeza sensível que nos leva para uma nova figura, a
percepção, em que a particularidade é apreendida através de articulação de
opostos, da singularidade e da universalidade, do imediato e do mediato.
Considerações finais
Podemos visualizar, nessa primeira figura da consciência natural, a
certeza sensível, todo o movimento dialético de suprassunção que se reproduzirá em cada nova figura de manifestação do Espírito. Dessa forma,
seja na dialética do objeto, onde há o desvanescimento do objeto exterior
à consciência, seja na dialética do sujeito, onde a consciência passa a se
reconhecer no objeto que ela própria produz, tornando-se o conhecer um
reconhecer-se, o que temos é um processo de reflexão, de negação, em que
o “ser em si” não deixa de ser idêntico a si mesmo ao passar pelo “ser-outro”, na verdade, constatamos que a identidade só se alcança pela afirmação
da diferença, que a independência da consciência de si requer certa dependência, requer o reconhecimento de outra consciência como um igual, nas
palavras de Hegel, a “consciência-de-si só alcança sua satisfação em outra
consciência- de-si”(HEGEL, 2008, p. 141).
Dessa forma, tal como Platão tenta conhecer o filósofo através da
“caça” a seu ser-outro, o sofista, Hegel mostra-se toda a trajetória na qual
a consciência percebe que a certeza de si mesma só será alcançada quando
ela se defrontar com outra consciência de si, quando ela não mais negar esse
ser-outro que é essencial para a constituição de sua própria identidade. Na
verdade, o que Hegel nos mostra é que até mesmo a nadificação do outro,
o torná-lo escravo, esbarra necessariamente na independência do objeto,
em outros termos, diríamos, com La Boétie, que toda servidão é voluntária,
pois uma consciência só consegue realizar na outra o que esta lhe permite
fazer. 32
Ana Paula Repolês Torres
Referências bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. A linguagem e a morte. Belo Horizonte: Ed. UFMG,
2006.
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33
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
D´HONDT, Jacques. Hegel et la pensée grecque. Paris: Presses Universitaires de France, 1974.
Sobre a (in)certeza sensível em Hegel
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
ZIZEK, Slavoj. O mais sublime dos histéricos. Hegel com Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.
34
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos
Ano 6, nº10, Junho-2009: 35-45
Sobre a tradução do termo “Knecht”
Matheus Pelegrino da Silva1
Palavras-chave: Hegel, Fenomenologia do Espírito, Escravo.
ABSTRACT: In Hegel’s Phenomenology of Spirit we find the use of the term “Knecht” referring
to the individual that has lost a fight and now is under someone else control. The word “Knecht”
has being translated to other languages with different terms, that usually are followed by justifications of the selected term. The aim of this paper is to analyze how the term “Knecht” should
be translated to Portuguese, trying to find which is the best word to describe the individual called by Hegel “Knecht”. Firstly, it is presented an evaluation of the options of translation to the
term “Knecht” that are pointed by some translator and commentator of the Phenomenology of
spirit. Secondly, considering that Hegel makes use of the term “Sklave” in others works, some
extracts are quoted to point the similarities between the subject called “Knecht” and the subject
called “Sklave”, in order to show that this two terms mostly refer to the same individual.
Keywords:Hegel, Phenomenology of Spirit, Slave.
I. Considerações preliminares
O termo “Knecht”, empregado por Hegel tanto na Fenomenologia do
Espírito quanto em outros de seus textos2 se mostra claramente como objeto de debate entre os tradutores, razão pela qual, neste texto, buscaremos
apresentar algumas indicações sobre como tal termo deve ser compreendido
e traduzido para o português. Com esse intuito, analisaremos, primeiramente, quais as sugestões de tradução apresentadas para o termo na Fenomenologia. Em seguida, tomando em consideração o fato de que em outras
obras de Hegel há o emprego tanto do termo “Knecht” quanto do termo
1. Mestrando do Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFRGS. Texto submetido em
Junho de 2009 e aprovado para publicação em Setembro de 2009.
2. Para a identificação dos termos em alemão objetos da discussão do presente artigo, utilizaremos a seguinte edição: HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Hegel Werke. Seitenangabe der
Textvorlage Hegel Werke in zwanzig Bänden, Suhrkamp Verlag, 1970. Berlin, Hegel-Institut,
Talpa Verlag, 2000. CD-ROM. Faremos referência a tal obra através da sigla HW. Uma exceção,
porém, será feita à regra de utilizar essa obra, quanto referirmos o texto do Sistema da vida
ética, o faremos a partir de outra edição, pois tal obra não consta na Hegel Werke.
35
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
RESUMO: Na Fenomenologia do Espírito de Hegel encontramos o emprego do termo “Knecht”
fazendo referência ao indivíduo que perdeu uma luta e que então está sob o controle de alguém. A palavra “Knecht” tem sido traduzida para outras línguas com diferentes termos, que
usualmente são seguidos de justificações do termo selecionado. O propósito deste trabalho é
analisar como o termo “Knecht” deve ser traduzido para o português, tentando encontrar qual
é a melhor palavra para descrever o indivíduo chamado por Hegel de “Knecht”. Primeiramente,
é apresentada uma avaliação das opções de tradução do termo “Knecht” que são apontadas por
alguns tradutores e comentadores da Fenomenologia do Espírito. Em um segundo momento,
considerando que Hegel faz uso do termo “Sklave” em outras obras, algumas passagens são
citadas para apontar as semelhanças entre o sujeito chamado de “Knecht” e o sujeito chamado
de “Sklave”, a fim de mostrar que estes dois termos na maior parte do tempo se referem a um
mesmo indivíduo.
Sobre a tradução do termo “Knecht”
“Sklave”, verificaremos em que medida é possível compreender o termo
“Knecht” como um sinônimo de “Sklave”. Como última tarefa, discutiremos
a validade e os limites de uma possível justificação para a opção de uma
tradução do termo “Knecht” por “escravo”.
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
II. Análise das alternativas de tradução do termo “Knecht”
na Fenomenologia do Espírito
Alguns tradutores da Fenomenologia, quando iniciam a seção dedicada à dialética do senhor e do escravo, indicam quais critérios utilizaram para
decidir a respeito de qual seria a melhor tradução do termo “Knecht”. Nessa
primeira parte do presente texto, consideraremos os argumentos de alguns
tradutores a sobre esse tema3. Jean Hyppolite, na versão francesa da Fenomenologia, traduz “Knecht” por “escravo”, e sustenta sua opção afirmando
que, ao empregar o termo “Knecht”, Hegel teria em mente a etimologia de
“servus”. Hyppolite defende essa opção tomando em conta a afirmação, feita
por Hegel, de que “o escravo é aquele que foi conservado (servare)”4. Assim,
argumenta Hyppolite, a afirmação de que o escravo foi “conservado” indica
que Hegel está pensando na condição de “servare”, “conservado”, logo, se
houvesse escrito em latim, teria empregado o termo “servus”, para assim
manter a ligação com o fato de o escravo ter sido “conservado”. Essa alternativa de tradução, proposta por Hyppolite, sofre de um problema relativo
à justificativa da escolha de tradução, eis que se mostra um tanto arbitrário
decidir traduzir “Knecht” por “escravo” simplesmente supondo que Hegel
teria empregado o termo “servus” caso houvesse escrito a Fenomenologia
em latim.
Uma segunda proposta de tradução é apresentada por Labarrière
e Jarczyk em seu livro dedicado à dialética do senhor e do escravo. Nessa
obra, encontramos a sugestão de tradução de “Knecht” por “vassalo”, sob a
justificativa de que o par “Herr/Knecht” costuma ser traduzido, na tradição
literária, por “mestre/vassalo [maître/valet]”5. Entretanto, posteriormente
3. É oportuno mencionar a maneira como o termo “Knecht” foi traduzido por Paulo Meneses, Marcos Lutz Müller e Arnold Vincent Miller, cabendo apenas destacar que as escolhas de
tradução destes autores não foram acompanhadas de uma justificação. Em sua tradução para
o português da Fenomenologia do Espírito, Meneses opta por traduzir o termo “Knecht” por
“escravo”. Cf. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. [Trad. MENESES,
Paulo] 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 147. HW 3/147. Marcos Müller, por sua vez, nas partes
que traduz da Filosofia do Direito, traduz “Knecht” por “servo”, como pode ser constatado na
observação ao § 57 do referido texto. Cf. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Linhas fundamentais
da filosofia do direito ou Direito natural e ciência do estado em compêndio – primeira parte,
o direito abstrato. [Trad. MÜLLER, Marcos Lutz] Clássicos da Filosofia: Cadernos de Tradução
nº 5. Campinas: IFCH/UNICAMP, 2003, p. 56-7. HW 7/123-4. Por fim, na tradução inglesa de
Miller o termo “Knecht” é traduzido por “bondsman”. Cf. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Phenomenology of Spirit. [Trad. MILLER, Arnold Vincent] New York: Oxford University Press, 1977,
p. 115. HW 3/147.
4. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Phénomenologie de l’Esprit. [Trad. HYPPOLITE, Jean] Paris:
Aubier, 1939, t. I, p. 155, nota número 1. O texto entre parêntesis é um acréscimo feito por
Hyppolite ao texto de Hegel em sua justificação da opção de tradução.
5. LABARRIÈRE, Pierre-Jean. e JARCZYK, Gwendoline. Les premiers combats de la reconnaissance. Paris: Aubier – Montaigne, 1987, p. 75.
36
Matheus Pelegrino
Labarrière e Jarczyk modificaram em certa medida sua posição a respeito
da tradução do termo, uma vez que em sua versão francesa da Fenomenologia encontramos o termo “Knecht” traduzido por “servo”. Nessa obra, a
justificativa apresentada para a escolha do termo “servo” se baseia no fato
de que “Knecht designa mais propriamente aquele que está ao ‘serviço’ de
um mestre”6. Assim, mesmo admitindo que o termo “vassalo” fosse apto a
indicar essa condição do indivíduo, opta-se por “servo” em razão da proximidade do termo com a atividade própria do indivíduo, “servir”7.
A quarta posição a respeito da tradução do termo “Knecht” que encontramos é a de Tinland, que em seu livro dedicado à analise da dialética
do senhor e do escravo defende a escolha do termo “servo” por motivos
diversos daqueles apresentados por Lefebvre ou Labarrière e Jarczyk. Tinland observa que Hegel, em sua obra Lições sobre a História da Filosofia,
faz referência à seção da Ética de Espinosa que possui o titulo original de
“De servitude humana”, em alemão, como “menschlischen Knechtschaft”10.
Assim, considerando que Hegel optou por traduzir o termo “servitude” por
“Knechtschaft” e não “Sklaverei”, poderíamos concluir que a melhor tradução
do termo “Knecht” seria “servo”, e não “escravo”. O argumento utilizado por
Tinland, entretanto, não parece resistir a uma análise mais detida. Inicialmente, caberia apontar que, do fato de Hegel ter optado traduzir “servitude”
por “Knechtschaft”, ao invés de “Sklaverei”, não se segue que ele não considere os dois termos sinônimos. Dada a opção de Hegel, a única alternativa
eliminada é a de que Hegel não considere válida a tradução de “servitude”
por “Knechtschaft”. Do fato de ter optado pelo termo “Knechtschaft” não se
6. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Phénomenologie de l’Esprit. [Trad. JARCZYK, Gwendoline e
LABARRIÈRE, Pierre-Jean] Paris: Gallimard, 1993, v. 1, p. 700, nota 53.
7. Cf. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Phénomenologie de l’Esprit. [Trad. JARCZYK, Gwendoline e LABARRIÈRE, Pierre-Jean] Paris: Gallimard, 1993, v. 1, p. 701, nota 53.
8. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Phénomenologie de l’Esprit. [Trad. LEFEBVRE, Jean-Pierre]
Paris: Aubier, 1991, p. 150, nota número 3.
9. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Phénomenologie de l’Esprit. [Trad. LEFEBVRE, Jean-Pierre]
Paris: Aubier, 1991, p. 150, nota número 3.
10. TINLAND, Olivier. Maîtrise et servitude. Phénoménologie de l’esprit B, IV, A. Paris: Ellipses,
2003, p. 25, nota 3.
37
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
Outra opção de tradução, que surge no período intermediário entre
a obra de Labarrière e Jarczyk sobre a dialética do senhor e do escravo e
sua tradução da Fenomenologia, é apresentada por Lefebvre em sua tradução da Fenomenologia. Lefebvre sugere o termo “servo” e critica a escolha
do termo “vassalo”, apresentada por Labarrière e Jarczyk, pois este possui
“uma referência histórica ou antropológica excessiva”8, não ajustada ao contexto em que o termo “Knecht” surge na Fenomenologia. Sobre a escolha do
termo “servo”, Lefebvre argumenta que ele seria a escolha mais adequada
tendo em vista uma conotação psicológica presente naquele indivíduo chamado de “Knecht”, o fato de ele “possuir um comportamento servil”9. Se
tomarmos em conta a crítica apresentada por Lefebvre à escolha do termo
“vassalo” para traduzir “Knecht”, podemos supor que tenha sido esta crítica
a razão pela qual Labarrière e Jarczyk modificaram sua posição a respeito da
tradução do referido termo.
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
Sobre a tradução do termo “Knecht”
segue que não seja igualmente válida a tradução por “Sklaverei”. Além disso, ainda devemos levar em conta o fato de que as Lições sobre a História
da Filosofia são uma obra posterior à Fenomenologia, bem como o conteúdo
do texto de Espinosa, para tentar compreender o que Hegel está chamando
de “Knechtschaft”. Na seção da Ética cujo título Hegel traduziu, encontramos trechos que se mostram de particular valor na determinação do que
Espinosa apresenta como consistindo um traço da “servitude”: “chamo de
servidão a humana impotência para governar e refrear as afecções. Com
efeito, o homem, submetido às afecções, não é senhor de si, mas depende
da fortuna”11. “O homem livre, isto é, aquele que vive segundo o ditame da
Razão, não é levado pelo medo da morte”12. Considerando essas afirmações
de Espinosa, podemos argumentar, contra Tinland, que Hegel optou por traduzir “servitude” por “Knechtschaft” pelo simples fato de que, quando na
Fenomenologia tratou do “Knecht”, afirmou que tal indivíduo possuía um
medo da morte e era incapaz de controlar seus desejos.
A última alternativa de tradução que consideraremos foi apresentada
recentemente, na nova tradução para o francês da Fenomenologia do Espírito, elaborada por Bernard Bourgeois, e parte do seguinte argumento:
Nenhuma tradução francesa de “Knecht” se impõe ver-dadeiramente. Os termos mais fortes: “escravo” ou “servo” [serf], e os mais fracos:
“vassalo” ou “criado” [domestique], remetem demasiadamente ao contexto social (da cidade para a casa), [mais do] que Hegel atribuiu ao “espí-rito
objetivo” e, na Fenomenologia do Espírito, ao “espíri-to”, de tal forma que,
aqui, a relação do reconhecimento desigual mestre-servidor [serviteur] se
situa em um nível mais elementar da existência humana, aquele da intersubje-tividade essencial originária. É essa consideração, verda-deiramente
negativa, que nos faz reter o termo “servidor” [serviteur] sem dúvida um
pouco fraco – e, para traduzir “Knechtschaft”, o termo “servidão” [servitude], o qual, por sua vez, é um pouco forte – , termos cuja significação é,
com efeito, mais indeterminada, abstrata e geral.13
Sobre esse argumento e as opções de tradução por ele defendidas, é
necessário fazer alguns comentários. Primeiramente, é adequado reconhecer que o termo “servidor”, como reconhece Bourgeois, é fraco em relação à
situação em que se encontra o indivíduo que perdeu a luta. Entretanto, esse
termo pode ser classificado não apenas como “fraco”, tendo em conta as
opções de tradução do termo “Knecht”, mas até mesmo constituindo em um
eufemismo para designar a situação em questão. É preciso reconhecer que
há algo em comum entre um “escravo” e um “servidor”, o fato de que ambos
executam certas atividades em proveito de um terceiro, contudo, é bastante
clara a inadequação do termo “servidor” para denominar um indivíduo que
se encontra em uma circunstância tal que, se ele não executar aquelas atividades que lhe foram exigidas, será punido com a morte. Em segundo lu11. ESPINOSA, Baruch de. Ética. [Trad. SIMÕES, Antonio] São Paulo: Nova Cultural, 1997, p.
341.
12. ESPINOSA, Baruch de. Ética. [Trad. SIMÕES, Antonio] São Paulo: Nova Cultural, 1997, p.
391.
13. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Phénoménologie de l’esprit. [Trad. BOURGEOIS, Bernard]
Paris: Vrin, 2006, p. 206, n. 2.
38
Matheus Pelegrino
gar, a respeito da escolha do termo “servidão” para traduzir “Knechtschaft”,
entendemos que seria mais adequado traduzir tanto “Knecht” quanto “Knechtschaft” com palavras que possuam uma raiz comum. Dessa maneira, tal
opção fica condicionada à escolha de como traduzir o termo “Knecht”, se
escolheremos traduzi-lo por “servo” ou “escravo”, e é a tal questão que nos
ocuparemos a seguir.
III. Análise do uso do termo “Knecht” em outras obras
de Hegel
O primeiro texto de Hegel em que encontramos a presença dos dois
termos, “Knecht” e “Sklave”, é o Sistema da vida ética. Nessa obra, em um
primeiro momento Hegel apresenta uma caracterização de diversas situações que envolveriam um Knecht, entretanto, em outro momento do texto
encontramos o emprego do termo “Sklave”. Para avaliar de que modo os
dois termos se relacionam, inicialmente exporemos como o Sklave é caracterizado por Hegel, e, posteriormente, através da apresentação do Knecht
analisaremos em que medida há uma correspondência entre os dois termos.
Na terceira parte do Sistema da vida ética Hegel afirma que o “estado de escravo [Sklave] não é estado algum; com efeito, é apenas um
universal formal. O escravo reporta-se ao senhor [Herrn] como singular”14.
Uma primeira observação que devemos indicar concerne ao fato de que no
trecho afirma-se que o escravo “reporta-se ao senhor [Herrn]”, ou seja, aqui
encontramos o termo “Herrn”, senhor, relacionado com o termo “Sklave” ao
invés de estar relacionado com o termo “Knecht”, como até então ocorria
14. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Sistema da vida ética. [Trad. MORÃO, Artur] Lisboa:
Edições 70, 1991, p. 63, a partir de agora este texto será referido com a sigla SdVE. Avisamos,
desde já, que todas as ocorrências do termo “Knecht” no texto em alemão serão traduzidas com
o termo “escravo”, e não com o termo “servo”, como ocorre na tradução portuguesa. Utilizamos,
como fonte dos termos do texto original, que indicaremos com a sigla SdS, a seguinte edição
do texto do Sistema da vida ética: HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. System der Sittlichkeit.
Hamburg: Felix Meiner, 1967, p. 63.
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REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
Tendo em conta os argumentos até então apresentados, podemos
chegar a duas conclusões: 1a Que o termo “vassalo” definitivamente não
é a melhor opção quando tentamos traduzir o termo “Knecht”, tendo em
conta o argumento apresentado por Lefebvre, de que o contexto no qual o
Knecht é apresentado não parece ser condizente com o termo “vassalo”, que
costuma estar circunscrito a um período histórico determinado; 2a Quanto à
discussão sobre se a melhor opção de tradução seria aquela que empregasse o termo “servo” ou o termo “escravo”, os argumentos apresentados até
então não parecem ser suficientemente fortes para que haja uma decisão
bem justificada em favor de uma das alternativas. Em razão desse resultado
insatisfatório, propomos que a decisão sobre qual é a melhor alternativa de
tradução seja condicionada à análise de outras obras de Hegel, nas quais fazem-se presente tanto o termo “Knecht”, objeto de nosso problema, quanto
o termo “Sklave”, que, tranqüilamente, pode ser traduzido por “escravo”.
Sobre a tradução do termo “Knecht”
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
no texto e como ocorre na Fenomenologia (“Herrschaft e Knechtschaft”). No
trecho acima citado afirma-se que “o estado de escravo não é estado algum”,
o que significa que a circunstância de um indivíduo ser um escravo, estar
neste “estado”, nesta condição, não representa, em verdade, um “estado”
do indivíduo, não há um tal “estado” de escravo. Para compreendermos tal
afirmação, é necessário recuar um pouco no texto para verificar o que Hegel
pretende dizer ao empregar o termo “estado” e como seu argumento funciona.
Hegel afirma que, “segundo o conceito verdadeiro de um estado,
este não é uma universalidade que reside fora dele [do indivíduo], e algo de
pensado, mas a universalidade é nele real”15. Um “estado” é algo que está
no indivíduo, não é algo de que o indivíduo participa, o indivíduo não se inclui em uma universalidade, mas, isto sim, ele constitui uma universalidade.
Desse modo, podemos entender que quando um indivíduo está na condição
de escravo, ele não se concebe e não é concebido como portador de um
universal, como consistindo em uma totalidade na qual ocorre a “subsistência de todas as potências”16 do indivíduo, quando na condição de escravo o
indivíduo se vê limitado externamente, por outro indivíduo. A partir desses
elementos podemos destacar um traço fundamental da caracterização do
escravo (Sklave), o fato de ele não ter reconhecida a sua totalidade, de não
constituir uma universalidade, de lhe ser negada a possibilidade de realizar
algumas de suas potências.
Passemos agora a uma breve exposição da maneira como o Knecht
é caracterizado. Hegel chama de relação de dominação e escravidão aquela
relação em “que o indivíduo indiferente e livre é o indivíduo poderoso, perante o diferente”17, portanto, o que distingue os indivíduos nesta relação,
e determina quem ocupará qual posição, é o poder que cada um possui.
Consideremos, então, o que é afirmado sobre a noção de “poder” e seu encadeamento com a noção de “indiferença”:
[...] o indivíduo vivo encontra-se perante o indivíduo vivo, mas com desigual poder da vida; um é, pois, o poder ou a potência para o outro; é
a indiferença, enquanto o outro está na diferença; aquele comporta-se,
portanto, em relação a este como causa; enquanto sua indiferença, é a
sua vida, a sua alma ou espírito.18
Na relação de dominação e escravidão os indivíduos encontram-se,
um frente ao outro, como diferentes, e esta diferença ocorre em razão de
uma desigualdade de poder, quando um dos indivíduos possui um poder que
o outro não possui. O indivíduo que possui o poder é indiferente, indiferente
em relação a seu poder, e dizer que ele é indiferente significa dizer que em
certa medida ele é igual a seu poder. Já o indivíduo que não possui o poder
é diferente, é diferente daquele que possui, e por isto se diz que ele “está
na diferença”. Aqui encontramos um traço comum à descrição do Sklave e
15.
16.
17.
18.
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SdVE,
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34.
33.
Matheus Pelegrino
do Knecht, o fato de que o indivíduo envolvido na relação de escravidão e
dominação, em ambos os casos, não é reconhecido pelo dominador como
um semelhante. Tanto o Sklave quanto o Knecht é observado como um ser
diferente, que, portanto, não deve ser reconhecido.
Prosseguindo na leitura do texto, encontramos uma passagem que a
um só tempo consegue tornar problemática correspondência entre os termos “Knecht” e “Sklave” e a tentativa de aproximar a noção de “Knecht” do
que ordinariamente se compreende como consistindo em um escravo:
A primeira observação que se pode fazer, diante do exposto, é que
há uma diferença substancial entre o escravo e a mulher que integra uma
família. Apesar de ambos estarem sob o domínio de um senhor, o domínio
não ocorre da mesma maneira. O domínio que o senhor tem sobre a mulher
com quem é casado é um domínio como chefe da família, e, neste caso, a
diferença de poder é relativa à capacidade de administração e liderança. Por
ser essa a diferença entre os envolvidos, porque o senhor apenas é chefe da
família se há uma família, se há uma esposa, e em razão de um casamento
que apenas ocorreu pois a mulher aceitou livremente esta condição, o senhor não pode vender a sua esposa. O escravo, por sua vez, pode ser vendido, pois o senhor pode dispor do escravo da maneira que bem entender, ele
não encontra qualquer limitação ao seu poder.
É interessante destacar que a apresentação que Hegel faz da dominação que ocorre na relação familiar parece destoar daquela relativa à dominação de um indivíduo que não integra a família. Apesar de Hegel continuar
empregando o termo “Knecht” ao fazer referência ao dominado na relação
familiar, neste contexto a dominação é muito mais branda que no contexto
da relação entre senhor e escravo. Na relação familiar a dominação se estabelece em razão de uma diferença de poder que é meramente formal, não
se trata de o senhor ter posses que os dominados não têm, mas apenas de
ele possuir uma capacidade que o distingue dos demais20. A relação de dominação não surge de um carecimento material dos dominados, mas de um
carecimento que poderíamos chamar de administrativo, uma incapacidade
de administrar suas posses. Outra nota distintiva da relação de dominação
19. SdVE, p. 38. SdS, p. 37.
20. “A diferença [entre os envolvidos] é a diferença superficial da dominação. O homem é o senhor e o intendente; não o proprietário por oposição aos outros membros da família. Como administrador, tem unicamente a aparência da livre disposição. O trabalho também está repartido
segundo a natureza de cada membro, mas o seu produto é comum; cada qual elabora justamente graças a esta repartição um exceden-te, mas não como sua propriedade. A transferência
não é uma troca, mas é imediata, comunitária em si e por si”. SdVE, p. 37. SdS, p. 36.
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REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
O escravo [Knecht] pode, enquanto todo da personali-dade, tornar-se propriedade, e assim também a mulher; mas semelhante relação não é o
casamento, também não é um contrato com o escravo [Knecht] mas contrato com outro a propósito do escravo [Knecht] ou da mulher; em muitos
povos, a mulher era assim comprada aos pais. Com ela própria, porém,
nenhum contrato é possível, pois por ter justamente de se dar livremente
no casamento ela remove consigo mesma, e também o homem, a possibilidade do contrato.19
Sobre a tradução do termo “Knecht”
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
familiar em comparação com a dominação de um escravo diz respeito à possibilidade de vender o dominado, visto que o chefe da família não possui tal
poder em relação aos membros da família, ao passo que o senhor do escravo
o possui. Esses elementos nos levam a pensar que há uma diferença muito
grande, quanto ao dominado, em função de ele pertencer ou não à família
do dominador.
O trecho que acima citamos, além de ser importante para que se estabeleça uma distinção das espécies de dominação, também é de interesse
pois, empregando o termo “Knecht”, Hegel afirma que é possível vender este
indivíduo. Essa afirmação é relevante pois marca um traço comum entre o
Sklave e o Knecht, a possibilidade de que tanto um como o outro seja vendido. Tal característica da condição de escravo parece não ser adequada à
relação de servidão, pois esta não envolveria uma tal disposição do senhor
sobre o servo, aquele que domina o servo não possui o poder de vendê-lo,
como ocorre com o escravo. Assim, verificamos que a opção feita por alguns
tradutores da Fenomenologia, ao traduzir “Knecht” por “servo”, não se mostra adequada. Hegel afirma que o Knecht pode ser vendido, e tal característica não pertence à condição específica do servo. Portanto, o termo “Knecht”
não pode ser traduzido, se quisermos manter o significado a ele atribuído
por Hegel, com o termo “servo”.
Por outro lado, o fato de ser afirmado que o Knecht pode ser vendido
não soluciona definitivamente a questão relativa à tradução deste termo,
uma vez que sabemos que alguns indivíduos referidos por Hegel com o termo “Knecht”, a saber, os membros de uma família, não podem ser vendidos.
Nesse caso específico, tendo em vista a maneira como a relação entre dominado e dominador é exposta, podemos concluir que o emprego do termo
“escravo” não parece ser plenamente satisfatório. O problema, nesse caso
particular, é que não parece ser válida a tradução do termo “Knecht” por
“escravo”, ao contrário do que ocorre com as outras espécies de escravo
(Knecht) que encontramos ao longo do texto do Sistema da vida ética. Considerando que não há em português um termo que traduza plenamente o
significado do termo “Knecht” (servidor do trabalho), talvez a maneira mais
adequada de referir aos dominados na relação familiar seja empregando o
termo “servo”, que refere uma relação de dominação mais branda que aquela contida no termo “escravo”.
Não obstante essas considerações, devemos ter consciência de que
Hegel emprega o termo “Knecht” para designar mais de uma espécie de indivíduo dominado21, e todas estas espécies encontramos encontram-se em
acordo com a caracterização geral da escravidão feita por Hegel no início de
sua análise do tema, em todos os casos o Knecht é produto de uma diferença de um poder qualquer entre os indivíduos envolvidos, ou seja, ele não é
21. No Sistema da vida ética encontramos cinco espécies de escravidão, isto é, situações em
que há um Knecht: 1a A escravidão que resulta de uma diferença de poder entre os envolvidos;
2a A escravidão dos membros da família ao chefe da mesma; 3a A escravidão do criminoso que
roubou a propriedade de alguém; 4a A escravidão daquele que lesou a honra de alguém; 5a A
escravidão daquele que lutou em uma guerra e foi derrotado.
42
Matheus Pelegrino
reconhecido pelos demais como um semelhante, como um universal. Tendo
em conta que inclusive os demais membros da família são observados pelo
chefe da família como diferentes dele, logo, não são por ele reconhecidos
como seus semelhantes, portanto possuem o traço essencial à condição de
Sklave, ou seja, mesmo nesse caso Hegel chamaria todo membro da família,
exceção feita ao chefe da mesma, com o termo “Sklave”. Dessa maneira,
não seria apenas o Knecht que não poderia ser vendido, mas também o
Sklave, com ambos os termos haveria a referência a alguém que não pode
ser vendido.
O segundo texto de Hegel pertinente ao nosso presente objetivo é
a Filosofia do Direito. Nessa obra, mais especificamente na observação do
parágrafo 57, verificamos que Hegel emprega o termo “Sklaverei” e, em
seguida, faz referência à circunstância específica do indivíduo como consistindo naquela descrita na seção da Fenomenologia dedicada à relação de
dominação e de escravidão:
O ponto de vista da vontade livre, com o qual principia o direito e a ciência
do direito, já está para além do ponto de vista não-verdadeiro, segundo o
qual o homem como ser natural e como conceito somente sendo em si é,
por isso, suscetível de escravidão [Sklaverei]. Este aparecimento precedente e não-verdadeiro concerne só o espírito que ainda está no ponto de
vista da sua consciência; a dialética do conceito e da consciência primeiro
somente imediata da liberdade provoca aí a luta pelo reconhecimento e
a relação do senhorio e da servidão [Knechtschaft] (vide Fenomenologia
do Espírito, pp. 115 e ss. e Enciclopédia das Ciências Filosóficas [1817],
§§ 325 e ss.) Mas que o espírito objetivo, o conteúdo do direito, não seja
ele próprio de novo apreendido somente no seu conceito subjetivo e, portanto, que o fato, o de que o homem em si e por si não esteja destinado
à escravidão [Sklaverei], não seja de novo apreendido como um mero
dever-ser, isso tem lugar unicamente no conhecimento de que a Idéia da
liberdade só é verdadeiramente como Estado.22
Nessa passagem da Filosofia do Direito é perfeitamente claro que
Hegel se refere a um mesmo indivíduo, alternadamente, com os termos
“Sklaverei” e “Knechtschaft”. No texto é afirmado que o sujeito “suscetível
de escravidão [Sklaverei]” se envolverá em uma “relação do senhorio e da
servidão [Knechtschaft]”.
22. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Linhas fundamentais da filosofia do direito ou Direito
natural e ciência do estado em compêndio – primeira parte, o direito abstrato. [Trad. MÜLLER,
Marcos Lutz] Clássicos da Filosofia: Cadernos de Tradução nº 5. Campinas: IFCH/UNICAMP,
2003. § 57, A. HW 7/123-4.
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REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
A conclusão final a que podemos chegar, considerando todas essas
informações, é que tanto com a noção de “Knecht” quanto com a noção de
“Sklave” Hegel designa indivíduos que, quanto pertencem a uma família e
são dominados por pertencerem a uma família, não correspondem plenamente àquilo que se entende por escravidão. Nos demais casos, parece ser
claro que o termo “Knecht” refere àquela condição que claramente designaríamos com o termo escravo.
Sobre a tradução do termo “Knecht”
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
Além desses dois textos em que encontramos uma correspondência
entre os termos “Sklave” e “Knecht”, podemos ainda citar outras duas ocorrências conjuntas dos dois termos, agora em textos que não foram escritos
por Hegel mas sim constituem notas de suas aulas. Na Filosofia da História,
ao tratar da escravidão do povo chinês, encontramos a seguinte afirmação: “A opressão que os pressiona de encontro ao solo, a eles parece ser
seu destino inevitável; e não parece ser nada terrível, a eles, venderem-se
como escravos [Sklaven] e comer o pão amargo da escravidão [Brot der
Knechtschaft]”23. No mesmo sentido, e com importância ainda maior, é o
texto do adendo do § 435 da Enciclopédia, no qual verificamos que os dois
termos fazem referência, claramente, a um mesmo indivíduo:
A escravidão [Knechtschaft] e a tirania são assim, na história dos povos,
um grau necessário e por isso algo relativamente legítimo. Aos que permanecem escravos [Knechte], não se faz nenhuma injustiça absoluta; pois
quem não possui a coragem de arriscar a vida pela conquista da liberdade,
esse merece ser escravo [Sklave].24
IV. Considerações finais
Após termos analisado as ocorrências dos termos “Knecht” e “Sklave”, podemos apresentar algumas conclusões sobre o termo mais adequado
para referir em português aquele indivíduo que Hegel chama de “Knecht”. O
resultado a que chegamos, após analisar o texto do Sistema da vida ética,
foi que o termo “escravo” parece ser a melhor alternativa de tradução, mas,
com a necessidade de apontar que em um caso específico, aquele relativo
à família, o termo “escravo” não se mostra em perfeita harmonia com a caracterização do Knecht, uma vez que tal indivíduo pode ser vendido, exceto
quando possui tal condição por ser membro de uma família. Já o produto da análise do texto da Filosofia do Direito nos fornece um motivo mais
forte para sustentarmos a opção de tradução de “Knecht” por “escravo”, e
os textos dos adendos podem ser mencionados em apoio a essa opção. A
conclusão final a que chegamos, se tomarmos em conta as informações de
todos os textos analisados, é a de que com o termo “Knecht” Hegel refere,
via de regra, aquele indivíduo que referiríamos com o termo “escravo”, mas,
excepcionalmente, tal termo designa uma outra espécie de sujeição, que
talvez possa ser chamada de “servidão”, dado que sua diferença, em relação
à outra espécie de sujeição, é resultado de um menor grau de dominação.
23. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. The Philosophy of History. [Trad. SIBREE, John] Chicago:
Encyclopaedia Britannica, 1978. HW 12/174.
24. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio.
[Trad. MENESES, Paulo] São Paulo, Loyola, 1995. v. 3. § 435, Ad. HW 10/225.
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Referências bibliográficas
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45
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Revista Eletrônica Estudos Hegelianos
Ano 6, nº10, Junho-2009: 47-59
O Desejo e seu Outro
Luiz Henrique Vieira da Silva1
Abstract: This paper examines the ramifications of the movement of desire in the Chapter IV
of Hegel’s Phenomenology of Spirit in every moment of the process, in order to show how
the desire as a moviment is gradually changing its caracteristics until reaches the point of its
transmuting. This transmuting of desire puts in evidence a transformative dialectic of desire
into work and it will allow to understand how the subject of work appears in the chapter and
book already stated above.
Keywords: Desire, Work, Self-consciousness, Hegel.
I
O desejo (Begierde)2 consiste no movimento primordial da consciência porque a põe como primeira forma de negatividade em relação à realidade que a cerca e seus objetos postos como independentes. Essa forma de
negatividade leva à consciência a reflexão que traz à tona a realidade que
a cerca como realidade viva e, conseqüentemente, a descoberta de que é
consciência de si justamente porque existe outra consciência de si.
O processo dialético inerente ao próprio movimento do desejo (Begierde) gera a duplicação dos desejos que consiste na duplicação da consciência de si que, por sua vez, resulta na luta das consciências de si desejantes, a qual gera a divisão do conceito de desejo (Begierde) transformando-o
em desejo (Begierde) e desejo refreado (gehemmte Begierde). O desejo refreado (gehemmte Begierde) constitui o outro do desejo (Begierde) porque
não consiste mais num movimento de pura negação que afirma a consciência imediatamente no mundo; contudo, se constitui destarte na negação
1. Mestre em Filosofia (UFPR). Professor da Secretaria de Estado da Educação do Paraná –
SEED/PR. Texto submetido em Junho de 2009 e aprovado para publicação em Setembro de
2009.
2. A palavra alemã utilizada por Hegel para determinar o movimento inicial da Consciência no
Capítulo IV da Fenomenologia do Espírito é Begierde. A palavra Begierde foi traduzida comumente para as línguas latinas (Francês, Espanhol e Português) como desejo, porém, a palavra
desejo – no sentido geral e comum – em alemão é Wunsch; e a palavra Begierde em alemão
é apetite. Manteremos aqui a tradução de Begierde como desejo, mas gostaríamos de alertar
o leitor desse detalhe.
47
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
Resumo: Este artigo analisa os desdobramentos do movimento do desejo no Capítulo IV da
Fenomenologia do Espírito de Hegel em todos os seus momentos para mostrar como o desejo
na qualidade de movimento vai paulatinamente mudando sua característica enquanto movimento até atingir o ponto de sua transmudação. Esta transmudação evidencia uma dialética
transformativa do desejo em trabalho e permitirá entender como surge a temática do trabalho
no capítulo e obra retrocitados.
Palavras-chave: Desejo, Trabalho, Consciência de si, Hegel.
O Desejo e seu Outro
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
oposta já que a sua negação consiste na transformação e produção do que
lhe é dado como o oposto.
Porém, toda essa trajetória de movimento negador do desejo (Begierde) e as transformações geradas por ele não permitiram que o desejo
(Begierde) – enquanto movimento – permaneça o mesmo, ou seja, do mesmo modo que o desejo (Begierde) transformou os objetos que cercam a
consciência de si, os objetos do desejo (Begierde) transformaram o desejo
(Begierde) em um outro movimento. Ora, o que pretendemos no presente
texto consiste em analisar as conseqüências do movimento do desejo (Begierde) sobre ele mesmo.
II
O desejo é apresentado por Hegel logo no início do Capítulo IV da
Fenomenologia do Espírito como o caráter negador da consciência de si em
relação à realidade que a cerca, que nada mais são que as experiências suprassumidas pela consciência nas figuras que a precederam até aqui. Essa
negação consiste na supressão entre o si da consciência e a realidade que a
cerca.
Para a consciência-de-si, portanto, o ser-Outro é como um ser, ou como
momento diferente; mas para ela é também a unidade de si mesma com
essa diferença, como segundo momento diferente. Com aquele primeiro
momento, a consciência-de-si é como consciência e para ela é mantida toda a extensão do mundo sensível; mas ao mesmo tempo, só como
referida ao segundo momento, a unidade da consciência de si consigo
mesma. Por isso, o mundo é para ela um subsistir, mas que é apenas um
fenômeno, ou diferença que não tem em si mesma nenhum ser. Porém
essa oposição, entre seu fenômeno e sua verdade, tem por sua essência
somente a verdade, isto é, a unidade da consciência de si consigo mesma.
Essa unidade deve vir a ser essencial a ela, o que significa: a consciência
de si é desejo, em geral3. (Hegel, G. W. F. Fenomenologia do Espírito.
§167, p. 136, 2007).
A consciência desejante constitui a própria consciência de si e a transforma em um objeto duplo para si: a realidade que a cerca como oposição
a ser negada e a própria consciência que se coloca como a verdade nessa
oposição perante essa realidade que a cerca e da qual ela enquanto movimento deve suprassumir na busca da igualdade consigo mesma que é sua
única verdade.
3. “Es ist hiemit für es das Anderssein, als ein Sein, oder als unterschiedenes Moment; aber es
ist für es auch die Einheit seiner selbst mit diesem Unterschiede, als zweites unterschiedenes
Moment. Mit jenem ersten Moment ist das Selbstbewusstsein als Bewusstsein, und für es die
ganze Ausbreitung der sinnlichen Welt erhalten; aber zugleich nur als auf das zweite Moment,
die Einheit des Selbstbewusstseins mit sich selbst, bezogen; und sie ist hiemit für es ein Bestehen, welches aber nur Erscheinung, oder Unterschied ist, der an sich kein Sein hat. Dieser Gegensatz seiner Erscheinung und seiner Wahrheit hat aber nur die Wahrheit, nämlich die Einheit
des Selbstbewusstseins mit sich selbst, zu seinem Wesen; diese muss ihm wesentlich werden;
das heisst, es ist Begierde überhaupt.” (Hegel, G. W. F. Phänomenologie des Geistes, p. 121.
2006).
48
Luiz Henrique Vieira da Silva
A consciência tem de agora em diante, como consciência de si, um duplo
objeto: um, o imediato, o objeto da certeza sensível e da percepção, o
qual porém é marcado para ela com o sinal do negativo; o segundo objeto
é justamente ela mesma, que é essência verdadeira e que de início só está
presente na oposição ao primeiro objeto. A consciência-de-si se apresenta
aqui como o movimento no qual essa oposição é suprassumida e onde a
igualdade consigo mesma vem-a-ser para ela4 (Ibidem. §167 p. 136-137.
2007).
Para nós, ou em si, o objeto que para a consciência-de-si é o negativo,
retornou sobre si mesmo, do seu lado; como do outro lado, a consciência
também [fez o mesmo]. Mediante essa reflexão-sobre-si, o objeto veioa-ser vida. O que a consciência-de-si diferencia de si como essente não
tem apenas, enquanto é posto como essente, o modo da certeza sensível
e da percepção, mas é também Ser refletido sobre si; o objeto do desejo
imediato é um ser vivo7. (Ibidem §168, p. 137, 2007).
A vida tal como surge da reflexão causada pelo desejo pode ser en-
4. “Das Bewusstsein hat als Selbstbewusstsein nunmehr einem gedoppelten Gegenstand,den
einen, den unmittelbaren, den Gegenstand der sinnlichen Gewissheit und des Wahrnehmens,
der aber für es mit dem Charakter des Negativen bezeichnet ist, und den zweiten, nämlich sich
selbst, welcher das wahre Wesen, und zunächst nur erst im Gegensatze des ersten vorhanden
ist. Das Selbstbewusstsein stellt sich hierin als die Bewegung dar, worin dieser Gegensatz aufgehoben, und ihm die Gleichheit seiner selbst mit sich wird.“ (Hegel, G. W. F. Phänomenologie
des Geistes, p. 121-12. 2006).
5. Utilizaremos o termo afã em troca da palavra trabalho ou lida compreendida em sua maneira comum e cotidiana.
6. “Ora, o que é o Eu do desejo – O Eu do homem faminto, por exemplo – se não um vazio ávido
de conteúdo, um vazio que quer preencher-se com o que é cheio, preencher-se esvaziando esse
cheio, colocar-se – uma vez preenchido – no lugar desse cheio, ocupar por seu cheio o vazio
formado pela supressão do cheio que não era o seu? Logo, de modo geral: se a filosofia verdadeira (absoluta) é – diferentemente da filosofia kantiana e da pré-kantiana, que são filosofias
da consciência – uma filosofia da consciência-de-si uma filosofia consciente de si, prestando
contas de si, justificando a si própria, sabendo que é absoluta e revelando-se como tal a si
mesma, é preciso que o filósofo, é preciso que o homem seja, no fundo de seu Ser, não apenas
contemplação passiva e positiva, mas também desejo ativo e negador.” (Kojève. A, Introdução
à leitura de Hegel. p. 162. 2002).
7. “Der Gegenstand, welcher für das Selbstbewusstsein das Negative ist, ist aber seinerseits
für uns oder an sich ebenso in sich zurückgegangen als das Bewusstsein andererseits. Er ist
durch diese Reflexion in sich Leben geworden. Was das Selbstbewusstsein als seiend von sich
unterscheidet, hat auch insofern, als es seiend gesetzt ist, nicht bloss die Weise der sinnlichen
Gewissheit und der Wahrnehmung an ihm, sondern es ist in sich reflektiertes Sein, und der
Gegenstand der unmittelbaren Begierde ist ein Lebendiges.“ (Hegel, G. W. F. Phänomenologie
des Geistes, p. 122. 2006).
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REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
A consciência desejante inicia seu afã5: o desejo lança-se sobre a
realidade circundante para marcá-la com a negação, ou seja, a consciência
quer a todo custo suprimir esta realidade, esvaziá-la para poder encherse dela, apropriar-se e tornar-se a sua verdade6. Contudo, a consciência
desejante é movimento e, como todo movimento, constitui uma ação direta
em seu objeto. Essa ação negadora do desejo desdobra-se no objeto que
se reflete pela ação imposta a ele e, assim, como o desejo é reflexão sobre
a consciência, ele traz essa reflexão ao objeto que já não constitui o que a
consciência anteriormente o tinha conhecido. Esse objeto se apresentará à
consciência como objeto vivo.
O Desejo e seu Outro
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
tendida como retorno reflexivo do ser sobre si mesmo, isto é, a vida consiste num infinito movimento de conservação e superação das diferenças,
mas também geração e colocação das diferenças. A vida neste momento é
o puro movimento das diferenças na unidade que as suprassume ou “a essência simples do tempo que tem, nessa igualdade-consigo-mesma, a figura
sólida do espaço”8 (Ibidem, §169, p. 137. 2007). Entender a vida como o
processo que resultou da reflexão causada pelo movimento do desejo significa compreender duas características de um único movimento: a ação
conservadora que une e pacifica constitui-se na ação que separa, dissolve
e põe o diferente. A vida fundamenta o ciclo do desenvolvimento gerando o
desenrolamento evolutivo das figuras9.
Esse movimento unitário de suprassunção do diferente denominado
vida nada mais é que o subsistir ou a substância das diferenças e, por isso,
as diferenças nelas ocorrem como membros que portam o puro movimento
da sua unidade em si mesmos e a diferença deles uns com os outros é o puro
movimento. Os membros independentes da unidade da vida são para si ou
movimento negativo, o que equivale a dizer: são outras consciências.
A consciência desejante na persistência do movimento de seu desejo
continuará negando seu objeto para que possa continuar a busca pela sua
verdade, mas quanto mais ela busca a satisfação do seu desejo mais ela experimenta de si no outro. Esta experiência desencadeada com a ação negativa do desejo traz cada vez mais à tona para a consciência a sua verdade.
Porém, a consciência desejante ainda não se fez cônscia de que esse objeto
vivo no qual ela imprime seu desejo para eliminá-lo como o outro entre ela e
sua verdade é apenas outro que ela mesma, isto é, o único objeto vivo que
tem a capacidade de suportar o desejo alheio e tornar-se reflexão a partir
da consciência de si consiste em outra consciência de si. A experiência do
desejo foi encontrar outro desejo, o que equivale dizer que a consciência
experimentou a independência de seu objeto.
A consciência-de-si não pode assim suprassumir o objeto através de sua
relação negativa para com ele; pois essa relação antes reproduz o objeto,
assim como o desejo. De fato, a essência do desejo é um Outro que a consciência-de-si; e através de tal experiência essa verdade veio-a-ser para a
consciência. Porém, ao mesmo tempo, a consciência-de-si é também absolutamente para si, e é isso somente através do suprassumir do objeto;
suprassumir que deve tornar-se para a consciência-de-si sua satisfação,
pois ela é sua verdade. Em razão da independência do objeto, a consciên8. “(...) das einfache Wesen der Zeit, das in dieser Sichselbstgleichheit die gediegene Gestalt
des Raumes hat.“ (Hegel, G. W. F. Phänomenologie des Geistes, p. 122-123. 2006).
9. Esta caracterização da interpretação da vida – do modo como Hegel a apresenta no capítulo
IV da Fenomenologia do Espírito – de geração ou auto geração das figuras é evidente para Siep
em seu livro sobre a Fenomenologia como vemos na seguinte passagem: “(...) Leben ist ein
noch gegenständliche gedachtes »Unterscheiden des nicht zu Unterscheidenden «, ein Prozess
des Gestaltens bzw. der (» autopoietischen «) Selbstgestaltungen und der Auflösung dieser
Gestaltungen in den Prozessen der Selbsterhaltung und der Reproduktion der Gatung.“ (Siep,
L. Der Weg der Phänomenologie des Geistes, p. 100. 2000). “A vida é um objetivo pensado
da “diferença da não diferença”, um processo das figuras, isto é, da (“autopoiesis”) auto organização e da dissolução dessa organização no processo de auto conservação e reprodução da
espécie.” (Siep, L. O caminho da Fenomenologia do Espírito, p. 100. 2000).
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Luiz Henrique Vieira da Silva
cia de si só pode alcançar satisfação quando esse objeto leva a cabo a
negação de si mesmo, nela; e deve levar a cabo em si tal negação de si
mesmo, pois é em si o negativo, e deve ser para o Outro o que ele é. Mas
quando o objeto é em si mesmo negação, e nisso é ao mesmo tempo independente, ele é consciência10 (Ibidem §175 p. 141. 2007).
A partir de agora temos uma consciência de si para uma consciência
de si, ou podemos dizer que a consciência de si encontra sua realização efetiva mediante outra consciência de si. De acordo com Hegel (2007, p. 144),
“por conseguinte, o agir tem duplo sentido, não só enquanto é agir quer
sobre si mesmo, quer sobre o outro, mas também enquanto indivisamente
é o agir tanto de um quanto do outro”12.
Dessarte, essa relação entre desejos desencadeia um novo momento reflexivo da consciência sobre ela mesma. Num primeiro momento, a
consciência desejante reconhece outra consciência desejante e vice-versa
10. “Das Selbstbewusstsein vermag also durch seine negative Beziehung ihn nicht aufzuheben;
es erzeugeugt ihn darum vielmehr wieder, so wie die Begierde. Es ist in der Tat ein anderes, als
das Selbstbewusstsein, das Wesen der Begierde und durch diese Erfahrung ist ihm selbst diese
Wahrheit geworden. Zugleich aber ist es ebenso absolut für sich, und ist dies nur durch Aufheben des Gegenstandes, und es muss ihm seine Befriedigung werden, denn es ist die Wahrheit.
Um der Selbstständigkeit des Gegenstandes willen kann es daher zu Befriedigung nur gelengen,
indem dieser selbst die Negation an ihm vollzieht; und er muss diese Negation seiner selbst an
sich vollziehen, denn er ist an sich das Negative, und muss für das andre sein, was er ist. Indem er die Negation an sich selbst ist, und darin zugleich selbstständig ist, ist er Bewusstsein.“
(Hegel, G. W. F. Phänomenologie des Geistes, p. 126. 2006).
11. “Para que haja consciência de si, para que haja filosofia, é preciso que haja transcendência de si com referência a si como dado. E isso só é possível, segundo Hegel, se o desejo se
dirige não a um Ser dado, mas a um não-ser. Desejar o Ser é preencher-se desse Ser dado,
é sujeitar-se a ele. Desejar o não-ser é libertar-se do Ser, é realizar a própria autonomia, a
liberdade. Para ser antropogênico, o desejo deve dirigir-se a um não-ser, isto é, a um outro
desejo, a um outro vazio ávido, a um outro Eu. Pois o desejo é ausência de ser (ter fome é estar
privado de alimento): um nada que nadifica no Ser, e não um Ser que é. Em outros termos, a
ação destinada a satisfazer um desejo animal, que se dirige a uma coisa dada, existente, nunca
chega a realizar um Eu humano, consciente de si. O desejo só é humano – ou mais exatamente
humanizante, antropogênico – se for orientado para um outro desejo e para um outro desejo.”
(Kojève. A. Introdução à leitura de Hegel. p. 162. 2002).
12. “Das Tun ist also nicht nur insofern doppelsinnig, als es ein Tun ebensowohl gegen sich als
gegen das andre, sondern auch insofern, als es ungetrennt ebensowohl das Tun des Einen als
des Andern ist.“ (Hegel, G. W. F. Phänomenologie des Geistes, p. 129. 2006).
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REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
Agora, a consciência de si tem no seu objeto outra consciência de si
ou o que equivale a dizer: o desejo tem por objeto outro desejo. Isto ocorre
porque o desejo que consome o objeto (a coisa) não se satisfaz plenamente
com isso por que essa coisa consumida some, deixa simplesmente de existir
em si e não retorna. Este findar-se do objeto sem retorno impede a completa realização da consciência de si que visa suprimir a realidade que a cerca
para ser a verdade da relação com esta realidade. O desejo – este caráter
negativo da consciência de si – busca na negação a relação da consciência
de si para com o mundo. Ora, toda relação pressupõe duas ou mais partes
iguais, o que significa que a busca do desejo ao consumir o mundo procura
outro desejo diferente dele, mas que ao mesmo tempo seja igual a ele e, por
isso, o desejo só se realiza em sua plenitude num outro desejo11.
O Desejo e seu Outro
porque ambas se encontraram na realidade que consumiam ou apropriavam-se. Identificaram-se como semelhantes, mas semelhantes que tem a
verdade de si no outro e conseqüentemente se apresentam como a mediação para a realização do si do outro de modo recíproco e mútuo.
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
(...) Cada extremo é para o Outro o meio-termo, mediante o qual é consigo mesmo mediatizado e concluído; cada um é para si e para o Outro,
essência imediata para si essente; que ao mesmo tempo só é para si
através dessa mediação. Eles se reconhecem como reconhecendo-se reciprocamente13. (Ibidem §184 p. 144. 2007).
O movimento reflexivo que agora observamos nos põe em evidência
o conceito de reconhecimento (Anerkennen). O reconhecimento (Anerkennen), para Hegel, é o momento que traz à tona o conceito do espírito porque
ambas as consciências de si consentem em se tratar como consciências de
si iguais. Ao admitirem a igualdade uma da outra abre-se a possibilidade da
liberdade pois só a liberdade torna possível a igualdade das consciências de
si. Esse processo resulta em um silogismo no qual as consciências de si se
apresentam como extremos livres sendo o termo médio entre eles o reconhecimento.
Contudo, o reconhecimento (Anerkennen) não traz consigo somente essa estrutura silogística de explicação da formação da consciência de
si em um de seus movimentos dialéticos ou momento de reflexão sobre si
mesma, mas, antes, carrega consigo todo um desenvolvimento histórico e
função social de grande importância para Hegel. O conceito de reconhecimento (Anerkennen) tem uma derradeira finalidade (télos) na filosofia de
Hegel, porque envolve a compreensão do direito moderno, da moralidade,
da religião e da política, o que equivale dizer: as figuras constituintes do
espírito objetivo. Mesmo a Fenomenologia do Espírito sendo parte constitutiva do espírito subjetivo, ela traz em sua estrutura – em grande parte pelo
conceito de reconhecimento – elementos do espírito objetivo14. Obviamente,
os elementos de que falamos agora, não estão presentes em sua plenitude
no capítulo IV da Fenomenologia do Espírito e, por vezes, estão apenas subentendidos na exposição do texto ou da argumentação hegeliana.
13. “(...) Jedes ist dem andern die Mitte, durch welche jedes sich mit sich selbst vermittelt und
zusammenschliesst, und jedes sich und dem andern unmittelbares für sich seiendes Wesen,
welches zugleich nur durch diese Vermittlung so für sich ist. Sie anerkennen sich, als gegenseitig sich anerkennend.“ (Hegel, G. W. F. Phänomenologie des Geistes, p. 129. 2006).
14. A tese de que o conceito de reconhecimento traz consigo elementos do espírito objetivo
ou prático na Fenomenologia do Espírito – inclusive no capítulo IV, no qual o reconhecimento
não se realiza plenamente – é evidenciada por Siep como podemos observar na seguinte passagem: “(...) Die »Bewegung des Anerkennens« ist dabei nicht auf den Kampf um Anerkennung
beschränkt. Sie ist vielmehr das »Telos«, das Ziel, das durch alle Entwicklungsstufen des praktischen Geistes erreicht werden soll und erst im letzten Kapitel der Phänomenologie jedenfalls
in den Grundzügen erreicht wird. Historisch bedeutet das, dass Hegel in einem bestimmten
Verständnis des modernen Rechts, der Moralität und der Religion den Begriff der Anerkennung
verwirklich sieht.“ (Siep, L. Der Weg der Phänomenologie des Geistes, p. 98-99. 2000). ”(...)
O movimento do reconhecimento não é apenas limitado pela luta por reconhecimento. Ele
consiste, antes de mais nada, no télos, na derradeira finalidade, que deve ser atingida pelas
etapas do desenvolvimento do espírito objetivo e apenas no último capítulo da Fenomenologia,
pelo menos, em seu fundamento será alcançado.” (Siep, L. O caminho da Fenomenologia do
Espírito, p. 98-99. 2000).
52
Luiz Henrique Vieira da Silva
Ora, se o conceito de reconhecimento traz consigo esta certa carga
histórica e função social, ele não se reduz somente a uma estrutura lógica
silogística assim como não é somente uma simples duplicação de consciências, no sentido de uma pluralidade simples deslocada do real. No entanto,
o reconhecimento requer uma pluralidade constituinte das consciências de
si, uma relação entre eu e você ou entre nós e eu. “(...) Eu, que é Nós, Nós
que é Eu.” (Ibidem §177 p. 142. 2007)15.
Deste modo, a intersubjetividade trará à tona um momento outro que
o reconhecimento. O movimento mútuo e recíproco entre as consciências de
si juntamente com a carga histórica e a coletividade postas transformarão
o reconhecimento no seu contrário, levando a consciência a experimentar
as figuras das relações sociais desenvolvidas pela história humana (Menschheitgeschichte) durante a sua jornada em busca da verdade de seu si ou
a certeza de si mesma.
Essa busca da verdade de si no outro nos conduz ao segundo momento que se caracteriza pela desigualdade entre eles. A desigualdade entre
os desejos vem da sua própria característica negadora, pois os dois buscam
ser reconhecidos como iguais no outro, numa relação que procura afirmar-se
como verdade no outro pela supressão do outro. Ora, uma relação de afirmação que requer a supressão ou negação do outro, não pode se estabelecer
como igual ao outro, pois a sua igualdade está na supressão desse outro e,
assim, este desejo de reconhecimento dos desejos transformar-se-á em seu
contrário tornando-se disputa pelo reconhecimento, ou uma desigualdade
impressora de igualdade.
Consideremos agora este puro conceito do reconhecimento, a duplicação
da consciência-de-si em sua unidade, tal como seu processo se manifesta
para a consciência-de-si. Esse processo vai apresentar primeiro o lado da
desigualdade de ambas [as consciências-de-si] ou o extravasar do meiotermo nos extremos, os quais, como extremos, são opostos um ao outro;
15. ”(...) Ich, das Wir, und Wir, das Ich ist.“ (Hegel, G. W. F. Phänomenologie des Geistes, p.
127. 2006).
16. Siep faz menção ao primeiro Fichte, da obra Grundlage des Naturrechts nach Prinzipien der
Wissenschaftslehre von 1796/97, e apresenta semelhanças entre Fichte e Hegel na questão da
intersubjetividade da consciência de si. C.f. (Siep, L. Der Weg der Phänomenologie des Geistes,
p. 99. 2000).
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REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
Esta relação constituinte das consciências de si consiste na formação
da intersubjetividade da consciência de si16. A constituição desta intersubjetividade da consciência de si recoloca consistentemente a função social
implícita no reconhecimento porque põe recíproca e mutuamente a relação
das consciências de si como coletiva e correspondente ao espírito. A correspondência ao espírito coloca a história, e a coletividade – a pluralidade de
eus que se relacionam mútua e reciprocamente – coloca as relações sociais
desenvolvidas pela humanidade (Menschheit) nas suas mais variadas formas.
O Desejo e seu Outro
um extremo é só o que é reconhecido; o outro, só o que reconhece17 (Ibidem §185 p. 144. 2007).
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Nessa busca dialética pelo reconhecimento os desejos se transformaram em impositores de reconhecimento, o que desfalece o reconhecimento
enquanto tal e nos põe o seguinte impasse: como um desejo se realiza no
outro se essencialmente seu puro movimento é o negar do outro? A alternativa mais plausível para esse impasse consiste no enfrentamento dos desejos entre si, ou seja, eles devem levar a cabo a pura negatividade que são e
um suprimirá o outro.
Esta apresentação é o agir duplicado: o agir do Outro e o agir por meio de
si mesmo. Enquanto agir do Outro, cada um tende, pois, à morte do Outro.
Mas aí está também presente o segundo agir, o agir por meio de si mesmo,
pois aquele agir do outro inclui o arriscar a própria vida. Portanto, a relação das duas consciências-de-si é determinada de tal modo que elas se
provam a si mesmas e uma a outra através de uma luta de vida e morte18
(Ibidem §187 p. 145. 2007).
Esta luta que os desejos travam para realizarem seu movimento pela
supressão do outro implicará na negação da essência do outro, isto é, eles
lutaram visando a negação absoluta e completa do outro ou a morte do
outro. O desejo somente será desejo se outro desejo não for mais desejo e a
forma imediata do desaparecimento do outro desejo apresenta-se na forma
imediata da morte. Ambos os desejos se apegaram na imediatez da forma
da morte e se dispõem a matar o outro ou morrer e partem para a realização
desta imediatez. Mas essa luta que põe em jogo a vida natural dos desejos
pela forma imediata da morte e não realiza aquilo que o desejo quer, pois
como vimos anteriormente, o desejo só se realiza em relação com outro
desejo, isto é, uma consciência de si se relacionando com outra consciência
de si. A morte, portanto, não realiza uma relação e sim a impede porque a
morte do outro desejo traz à tona a total impossibilidade da relação, pois
aquilo que é morto não se relaciona com nada. A morte não é o que o desejo
da consciência de si deseja.
Entretanto, essa comprovação por meio da morte suprassume justamente
a verdade que dela deveria resultar, e com isso também [suprassume] a
certeza de si mesmo em geral. Com efeito, como a vida é a posição natural da consciência, a independência sem a absoluta negatividade, assim
a morte é a negação natural desta mesma consciência, a negação sem a
independência, que assim fica privada da significação pretendida no reconhecimento19 (Ibidem §188 p. 146. 2007).
17. “Dieser reine Begriff des Anerkennens, der Verdoplunng des Selbstbwusstseins in seiner
Einheit, ist nun zu betrachten, wie sein Prozess für das Selbstbewusstsein erscheint. Er wird
zuerst die Seite der Ungleichheit beider darstellen, oder das Heraustreten der Mitte in die Extreme, welche als Extreme sich entgegengesetzt, und das eine nur Anerkanntes, [das] andre nur
Anerkennendes ist. (Hegel, G. W. F. Phänomenologie des Geistes, p. 129. 2006).
18. “(...) Diese Darstellung ist, das gedoppelte Tun; Tun des andern, und Tun durch sich selbst.
Insofern es Tun des andern ist, geht also jeder auf den Tod des andern. Darin aber ist auch
das zweite, das Tun durch sich selbst, vorhanden; denn jenes schliesst das Daransetzen des
eignen Lebens in sich. Das Verhältnis beider Selbstbewusstsein ist also so bestimmt, dass sie
sich selbst und einender durch den Kampf auf Leben und Tod bewähren. (Hegel, G. W. F. Phänomenologie des Geistes, p. 130. 2006).
19. “Diese Bewährung aber durch den Tod hebt eben so die Wahrheit, welche daraus hevorge-
54
Luiz Henrique Vieira da Silva
Nessa nova dialética das consciências de si, o desejo fará a experiência da descoberta de transformação do seu outro porque uma das consciências abriu mão da realização de seu desejo e já se pôs na forma de desejo
refreado (gehemmte Begierde), ou seja, um desejo que já não é igual ao
outro. Dessa maneira teremos dois movimentos distintos: uma consciência
de si se afirmando a partir da negação imediata da realidade que a cerca e
realizando sua satisfação no gozo desse movimento, e a outra reconhecendo
essa consciência de si como legítima, mas impossibilitada de reconhecimento
pela outra que a impediu de realizar seu desejo e, por isso, não a reconhece
como desejo e sim como uma das coisas que foram negadas.
Quando as consciências de si se colocaram como extremos diferentes assumindo as figuras de senhor e escravo, entramos num dos campos
históricos sociais importantes para Hegel. Pela primeira vez, a consciência
de si experimentará a si mesma e ao outro numa ação concreta de uma forma de relação social. Essa forma de relação social – senhor e escravo – permitirá a consciência de si realizar de maneira concreta tudo o que foi intuído
no reconhecimento (Anerkennen) e nesse processo modificará a natureza do
movimento do desejo (Begierde) transformando-o em um novo movimento
vinculante com a realidade, que trataremos a partir desse momento.
III
A consciência de si desejante que se pôs na figura do senhor e aparentemente se realiza no gozo e satisfação de seu desejo, constitui a consciência desejante que mais se afasta do desejo de reconhecimento (Anerkennen)
que a consciência desejante almejava: ser reconhecida por outra consciência de si. Isto ocorre porque a consciência desejante do senhor se satisfaz
com a mera negação imediata da realidade que é o consumo do objeto,
hen sollte, als damit auch die Gewissheit seiner selbst überhaupt auf; denn wie des Leben die
natürliche Position des Bewusstseins, die Selbstständigkeit ohne die absolute Negativität, ist,
so ist er die natürliche Negation desselben, die Negation ohne die Selbstständigkeit, welche
also ohne die gefordete Bedeutung des Anerkennens Bleibt.“ (Hegel, G. W. F. Phänomenologie des Geistes, p. 131. 2006).
55
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
Ao travar a luta de vida ou morte os desejos apenas realizam a imediatez da morte que nunca os levará à relação almejada por ambos, e um
dos desejos intuirá essa impossibilidade de relação pela imediatez da morte
e deixará de levar essa luta a cabo para se colocar fora da disputa e ceder de
imediato ao outro desejo. Com essa decisão tomada por uma das consciências desejantes, o desejo entrará numa outra dialética que consistirá em
dois tipos de desejo: uma das consciências desejantes se mostrará apegada
à negação imediata da realidade que a cerca e a outra consciência desejante
se apresentará na forma reprimida, isto é, ao ceder à outra consciência
desejante que se apegou à negação imediata da realidade, ela – consciência
desejante cedente – ficou impedida de realizar a satisfação do desejo e, por
isso, o reprimiu e não o realizou por completo. Essas consciências desejantes são respectivamente o senhor – consciência que realiza o desejo – e
o escravo – consciência que foi obrigada a refrear seu desejo.
O Desejo e seu Outro
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
mas esse consumo simples que gera a satisfação imediata do desejo pelo
gozo e afirma imediatamente a consciência faz justamente o contrário, isto
é, não realiza o desejo de reconhecimento (Anerkennen) pressuposto pelas
consciências porque não reconhece a outra como consciência e apega-se no
gozo do simples consumo.
Esse apego ao gozo do simples consumo consiste na radicalidade
mais contraditória em relação à essência da consciência de si porque no
consumo simples a consciência realiza o desejo natural, ou seja, um desejo
apegado ao mundo natural e, por isso, dependente dele20. Deste modo, o
desejo que se satisfaz apenas com o consumo – simples negação da natureza – torna-se uma espécie de prisioneiro da vida natural, isto é, gera uma
vinculação com o mundo que o cerca de maneira imediata (biológica), que
se torna um ciclo vicioso de dependência com o mundo natural; e a cada
satisfação e gozo permanece mais enraizado na natureza, na vida natural
que desejava abolir.
A consciência desejante que figura como senhor torna-se o contrário
daquilo que se pretende já que o movimento do desejo realizado por ela
apresenta-se como um movimento de negação que afirma de imediato o
contrário do que deveria ser: o caráter negador da consciência de si em
relação à realidade que a cerca e a supressão entre o si da consciência e
a realidade que a cerca. O desejo do senhor não se apresentou como o
caráter negador da consciência em relação à realidade que a cerca, mas sim
afirmou essa realidade de maneira imediata e ignorou o reconhecimento da
outra consciência. O desejo, tal como se desenvolveu até a figura do senhor,
apenas gerou para a consciência de si uma afirmação ou vinculo imediato
para com o mundo que a cerca, contudo não suprimiu esta realidade para
que a consciência realize seu si, ou seja, o desejo da maneira pela qual foi
apresentado até aqui não constitui aquilo que a consciência de si é essencialmente.
Todavia, resta-nos analisar o desejo que se transformou em desejo
refreado (gehemmte Begierde) durante esta dialética realizada pelas consciências. A consciência desejante que se apresenta sob a figura do escravo
foi obrigada a renunciar o gozo e a plena satisfação do desejo já que não estava disposta a negar a vida na forma imediata da morte e, por isso, tornou20. “O desejo animal – a fome, por exemplo, e a ação dela decorrente – nega, destrói o dado
natural. Ao negá-lo, ao modificá-lo, ao fazê-lo seu, o animal eleva-se acima desse dado. Segundo Hegel, o animal, quando come a planta, realiza e revela sua superioridade sobre ela. Mas
porque se alimenta de plantas, o animal depende delas e, por isso, não chega a superá-las de
fato. De modo geral, o vazio ávido – ou o Eu – que se reserva pelo desejo biológico só se preenche – pela ação biológica dele decorrente – com um conteúdo natural, biológico. O Eu, ou o
pseudo-Eu, realizado pela satisfação ativa desse desejo, é, pois tão natural, biológico, material,
quanto àquilo que atrai o desejo e a ação. O animal só se eleva acima da natureza negada em
seu desejo animal para nela recair imediatamente quando satisfaz esse desejo. Assim, o animal
só chega ao sentimento de si (Selbst-gefühl), mas não à consciência-de-si (Selbestbewusstsein); isto é, ele não pode falar de si, dizer: “Eu...”. E isso porque ele não transcende realmente
a si mesmo como dado, isto é, como corpo; ele não se eleva acima de si para poder voltar para
si: ele não tem distanciamento em relação a si, para poder contemplar-se.” (Kojève. A. Introdução à leitura de Hegel. p. 163. 2002).
56
Luiz Henrique Vieira da Silva
Este outro movimento do desejo – o desejo refreado (gehemmte
Begierde) – transformou-se em um movimento negador que se diferencia e
realiza uma negação contrária à negação do desejo (Begierde). Esse novo
movimento negador – desejo refreado (gehemmte Begierde) – estabelece
uma nova relação com o objeto negado que o transforma e permite sua permanência, isto é, ao negar o objeto, ele produz num novo objeto porque criou
este objeto antes de consumi-lo, o que equivale a dizer: o desejo refreado
(gehemmte Begierde) transformou-se em trabalho (Arbeit). O trabalho (Arbeit) constitui essa relação negativa que cria uma relação permanente com
a realidade em torno da consciência de si desejante; que estabelece uma
relação vinculante com a realidade que, por isso, se torna a realidade da
consciência de si e não apenas consumo imediato ou destruição da natureza
como foi realizada pelo desejo, em sua representação máxima que consiste
na figura do senhor, que não permite a relação permanente, mas apenas
dependente e evanescente.
(...) No momento que corresponde ao desejo na consciência do senhor,
parecia caber a consciência escrava o lado da relação inessencial para
com a coisa, porquanto ali a coisa mantém sua independência. O desejo
se reservou o puro negar do objeto e por isso o sentimento-de-si-mesmo,
sem mescla. Mas essa satisfação é pelo mesmo motivo, apenas um evanescente, já que lhe falta o lado objetivo ou o subsistir. O trabalho, ao
contrário, é desejo refreado, um desvanecer contido, ou seja, o trabalho
forma. A relação negativa para com o objeto torna-se a forma do mesmo
e algo permanente, porque justamente o objeto tem independência para
o trabalhador. Esse meio termo negativo ou agir formativo é, ao mesmo
tempo, a singularidade, ou o puro ser para si da consciência, que agora
no trabalho se transfere para fora de si no elemento do permanecer; a
consciência trabalhadora, portanto, chega assim à intuição do ser independente como intuição de si mesma21. (Ibidem, §195 p. 150).
21. “(...) In dem Momente, welches der Begierde im Bewusstsein des Herrn entspricht, schien
dem dienenden Bewusstsein zwar die Seite der unwesentlichen Beziehung auf das Ding zugefallen zu sein, indem das Ding darin seine Selbstständigkeit behält. Die Begierde hat sich das reine
Negieren des Gegenstandes, und dadurch das unvermischte Selbstgefühl vorbehalten. Diese
Befriedigung ist aber deswegen selbst nur ein Verschwinden, denn es fehlt ihr die gegeständliche Seite oder das Bestehen. Die Arbeit hingegen ist gehemmte Begierde, aufgehaltenes Verschwinden, oder sie bildet. Die negative Beziehung auf den Gegensand wird zur Form desselben, und zu einem Bleibenden; weil eben dem Arbeitenden der Gegenstand Selbstständigkeit
hat. Diese negative Mitte oder das formierende Tun ist zugleich die Einzelnheit oder das reine
Fürsichsein des Bewusstseins, welches nun in die Arbeit ausser es in das Element des Bleibens
tritt; das arbeitende Bewusstsein kommt also hiedurch zur Anschauung des selbstständigen
Seins, als seiner selbst.“ (Hegel, G. W. F. Phänomenologie des Geistes, p. 135. 2006).
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se um desejo refreado (gehemmte Begierde). Ora, o início da consciência
de si caracteriza o desejo como um movimento negador que busca incessantemente a supressão do outro ou a realidade que cerca a consciência de
si. A partir dessa caracterização do desejo, ele categorialmente não pode ser
refreado porque um movimento negador consiste em aniquilar o que tenta
refrea-lo, impedi-lo ou se opor a ele de alguma forma ou não seria movimento negador. Deste modo, este desejo que veio-a-ser refreado apenas
assim tornou-se porque já se reconstituiu num outro movimento resultante
da dialética anterior e, apesar de aparecer como um desejo requalificado, já
não consiste mais como desejo.
O Desejo e seu Outro
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
O conceito de desejo refreado (gehemmte Begierde) contido na figura do escravo consiste dessarte no conceito de trabalho (Arbeit), pois o
movimento de negação que nega o desejo por ser outro movimento negativo
que não destrói simplesmente o objeto desejado, mas o transforma em algo
novo permitindo sua durabilidade e assim criando um mundo para a consciência de si, apenas acontece quando se trabalha o objeto e não meramente
o consome.
O trabalho (Arbeit) se constitui na transmudação do desejo (Begierde), o que significa dizer: o trabalho (Arbeit) consiste no resultado da reflexão da negatividade do desejo sobre si mesmo enquanto movimento negador que ao negar seu objeto o transforma lhe imprimindo negatividade,
e ele – desejo (Begierde) –, sofre o retorno do movimento que imprimiu ao
objeto. Ora, se o desejo (Begierde) sofre as conseqüências da sua negatividade, ele deve transformar-se assim como os objetos que recebem sua ação
negativa se transformam. Porém, como ele é movimento ativo, sua transformação não é apenas figurativa e sim uma passagem condicionante de
sua ação transformadora, ou seja, trabalho (Arbeit) fornece aos objetos e,
obviamente, à consciência de si uma nova relação de existência no mundo.
Deste modo, o processo dialético inerente ao próprio movimento do
desejo ocasiona a duplicação dos desejos que consiste na duplicação da
consciência de si; que, por sua vez, desemboca na luta das consciências de
si desejantes, a qual gera a cisão do conceito de desejo divisando-o em desejo (Begierde) e desejo refreado (gehemmte Begierde). O desejo refreado
(gehemmte Begierde) constitui o outro do desejo (Begierde) porque não
consiste mais num movimento de pura negação que afirma a consciência
imediatamente no mundo, contudo, se constitui destarte na negação oposta
já que a sua negação consiste na transformação e produção do que lhe é
dado como o oposto. Ora, tudo aquilo que constitui transformação, formação, produção, etc., é trabalho (Arbeit) humano. O outro do desejo é o trabalho (Arbeit)22.
Assim, a consciência de si desejante só se realiza como consciência
de si em sua essência quando suprassume a forma do simples desejo – vínculo aparente com o mundo – para a forma produtora do trabalho (Arbeit)
– vínculo efetivo com o mundo da consciência de si – que intui e efetiva o si
da consciência de si na realidade que a cerca.
22. A transformação do desejo em outro movimento, ou seja, em trabalho e o trabalho como
formação em Hegel é assinalada por Berman no seu artigo “Formação e Romance de Formação”
do qual reproduzimos apenas a seguinte passagem: “(...) « Dans la mesure où il forme (bildet) la chose, dit le philosophe, il se forme lui même.» Le travail est donc, en tant que « désir
empêché », Bildung”. (Berman, A. Bildung et Bildungsromam. p. 144. 1984) “(...) ‘’A medida
que a consciência trabalha as coisas ao seu redor, ela forma a si mesma’.’ Por isso o trabalho
é ‘’considerado desejo refreado’’, Bildung.” (Berman, A. Formação e Romance de Formação. p.
144. 1984).
58
Luiz Henrique Vieira da Silva
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GONÇALVES, M. Uma concepção dialética da arte a partir da gênese do conceito de trabalho na Fenomenologia do Espírito de Hegel. Revista Kriterion,
Belo Horizonte, n°112, p. 260-272. Dez/2005.
59
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
Obras Secundárias:
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos
Ano 6, nº10, Junho-2009: 61-72
Hegel e a crítica ao Estado de Natureza do
Jusnaturalismo moderno
César Augusto Ramos1
Palavras-chave: Natureza, Jusnaturalismo, Coerção, Exterioridade, Liberdade.
Abstract: In this paper, the following theses are planned to be developed: 1) In the writing
about Natural Law, the question concerning the exteriority of nature it is already present,
constituting an attribute of what is natural and will be expanded in a more consistent mode in
the posterior works of Hegel, especially in the Encyclopedia with the formulation of the concept
of nature as a “idea in the form of other-being (Andersseins)”. 2) This way of comprehending
nature – according to the point of view of an “otherty” that is exterior – will work as a reference
to relations of domination in the political field, in which the traces of nature remain according
to the dialectical paradigm of lord and slave, present in the concepts of state of nature of the
Natural Law doctrine, just like the one in Hobbes, enforcing the Hegelian idea that “coercion is
violence against one natural Being There”. 3) The sense of coercion as violence or the legitimate
subjugation exerted in counter which contains the elements of exteriority of nature is compatible to nature essential determination, and assigns the condition of man immediacy as a natural
being, which can be coerced.
Key-words: Nature, Jus Naturalism, Coercion, Exteriority, Liberty.
Em diversos momentos da sua obra, Hegel critica as teorias do Direito Natural Moderno. Um aspecto central destas teorias é a elaboração
ficcional da condição humana num suposto estado de natureza. Para Hegel,
esta ficção incorre na confusão entre aquilo que o homem é segundo o seu
conceito e a sua condição natural, empírica, imediata. Se é possível falar de
um começo - diz Hegel - ele se apresenta como um “estado de injustiça,
de violência, de tendências não reprimidas, de atos e de sentimentos não
humanos”.2
1. Professor da PUC-PR. Texto submetido em Outubro de 2009 e aprovado para publicação em
Novembro de 2009.
2. HEGEL, G.W.F, Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften III. Frankfurt, Suhrkamp
(Taschenbuch Wissenschaft), 1995, vol. 10, § 502.
61
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
Resumo: Neste trabalho pretende-se desenvolver as seguintes teses: 1) No escrito sobre o Direito Natural, a questão da exterioridade da natureza já está presente, constituindo um atributo
daquilo que é natural e que será desenvolvido de forma mais consistente nas obras posteriores
de Hegel, sobretudo, na Enciclopédia com a formulação do conceito de natureza como a “idéia
na forma do ser-outro (Andersseins)”. 2) Este modo de entender a natureza - segundo o ponto
de vista de uma “outridade” que é exterior - servirá de referência às relações de dominação
no campo político, nas quais os traços de naturalidade permanecem segundo o paradigma da
dialética do senhor e do escravo, presentes nas concepções de estado de natureza da doutrina
do Direito Natural, como a de Hobbes, reforçando a idéia hegeliana de que a “coação é violência
contra um ser-aí natural.” 3) O sentido da coação como violência ou da subjugação legítima que
se exerce contra aquilo que contém o elemento da exterioridade da natureza é compatível com
a determinação essencial da natureza, e marca a condição da imediatidade do homem como ser
natural (Naturwesen), o qual pode ser coagido.
Hegel e a crítica ao Estado de Natureza...
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
Esta primitiva harmonia natural enquanto condição, - continua Hegel - é
uma existência que não é um estado de inocência, mas um estado de
brutalidade, uma condição animal, um estado onde reinam os apetites, a
barbárie. O animal não é nem bom, nem mau, mas o homem no estado
animal é selvagem, mau; ele não é aquilo que deve ser; o homem no
estado de natureza não é como ele deve ser; ele deve ser aquilo que ele
é pelo espírito, pela luz interior, pela ciência e pela vontade daquilo que é
o direito3.
O julgamento do filósofo do homem natural, como se vê, é bastante
depreciativo, pois, quem obedece às suas paixões e instintos está submetido
ao império do apetite, da brutalidade, do egoísmo, tem uma vida de dependência, de medo e quer apenas realizar instinto. Enfim, o “homem natural
não é livre em relação a ele mesmo e à natureza,”4 e que a liberdade começa, precisamente, quando a condição natural do homem é negada.
A representação segundo a qual o homem supostamente viveria num pretenso estado de natureza (Naturzustand), no qual só teria carências assim
chamadas naturais e só usaria para a sua satisfação meios que uma natureza contingente lhe outorgaria, segunda a qual viveria em liberdade no
que diz respeito às carências, é uma opinião falsa5.
Segundo a sua existência imediata, o homem é nele mesmo algo natural,
externo ao seu conceito; só e primeiramente pelo cultivo pleno do seu próprio corpo e espírito, essencialmente pelo fato de que a sua autoconsciência se apreende como livre, é que ele toma posse de si mesmo e torna-se
a propriedade de si mesmo e em face dos outros (...)6.
Em suma, a seguinte passagem da Enciclopédia das Ciências Filosóficas resume a posição crítica do filósofo a respeito do estado de natureza das
teorias do Jusnaturalismo:
A expressão direito natural, que chegou a ser ordinária na doutrina filosófica do direito, contém o equívoco entre o direito entendido como existente
de modo imediato na natureza e aquele que se determina mediante a
natureza da coisa, isto é, o conceito. O primeiro sentido é aquele que teve
curso outrora: assim que, ao mesmo tempo, foi inventado um estado de
natureza, no qual devia valer o direito natural, e frente a este, a condição
da sociedade e do Estado parecia exigir e levar em si uma limitação da
liberdade e um sacrifício dos direitos naturais. Porém, em realidade, o
direito e todas as suas determinações fundam-se somente na livre personalidade: sobre uma determinação de si que é o contrário da determi3. HEGEL, G.W.F, Leçons sur la Philosophie de la Réligion. IIª Partie, (Tradução. J. Gibelin),
Paris: Vrin, 1954, p. 27.
4. Idem, IIIª Partie, p. 99.
5. HEGEL, G.W.F, Grundlinien der Philosophie des Rechts oder Naturrecht und Staatswissenschaft im Grundrisse, Frankfurt: Suhrkamp (Taschenbuch Wissenschaft), vol. 7, § 194, obs.
A tradução dos parágrafos, anotações e adendos desta obra é de Marcos Lutz Müller, extraída
das seguintes partes já publicadas: O Direito Abstrato, in: Clássicos da Filosofia: Cadernos de
Tradução nº 5, IFCH/UNICAMP, Campinas, setembro de 2003; Introdução à Filosofia do Direito,
in: Clássicos da Filosofia: Cadernos de Tradução nº 9, Campinas, outubro de 2003. A Sociedade Civil, in: Clássicos da Filosofia: cadernos de tradução nº 10, Campinas, Agosto de 2005.
Também foi utilizada a versão em arquivo eletrônico da tradução das Linhas Fundamentais da
Filosofia do Direito, disponibilizada pelo tradutor.
6. Idem, § 57.
62
Cesar Augusto Ramos
nação natural. O direito da natureza é, por esta razão, o ser-aí da força,
a prevalência da violência, - e um estado de natureza é um estado onde
reinam a brutalidade e a injustiça do qual nada mais verdadeiro se pode
dizer senão que é preciso dele sair. A sociedade, ao contrário, é a condição
onde o direito se realiza; o que é preciso limitar e sacrificar é precisamente
o arbítrio e a violência do estado natural7.
A luta do reconhecimento, e a submissão a um senhor, é o fenômeno (Erscheinung) do qual surgiu a vida em comum dos homens, como um começo
dos Estados. A violência (Gewalt), que é fundamento nesse fenômeno, não
é, no entanto, fundamento do direito, embora seja o momento necessá7. HEGEL. G.W.F. Enzyklopädie der Philosophischen Wissenschaften im Grundrisse, op.cit, §
502, obs.
8. HEGEL. Lecciones sobre la Historia de la Filosofia. (Tradução de Wenceslao Roces), Vol. III,
México: Fondo de Cultura Económica, 1995, p. 333.
9. A relação de Hegel com o direito natural de Hobbes pode ser analisada a partir de alguns textos que fazem referência explícita a esse filósofo, como é o caso das Lições sobre a História da
Filosofia. Nessa obra, umas poucas páginas são dedicadas para comentar algumas passagens,
sobretudo, do De Cive. Outros textos não são tão explícitos, mas a referência ao hobbesianismo
é visível. Por exemplo, nos escritos juvenis Maneiras de Tratar Cientificamente o Direito Natural
(1802/3), no Sistema da Vida Ética (1802/3), em algumas passagens da Fenomenologia do Espírito (1806/7), da Enciclopédia das Ciências Filosóficas (1817) e da Filosofia do Direito (1821).
As Lições sobre a História da Filosofia, avaliando a obra política de Hobbes (O Leviatã, citado
apenas no Cap. 13 e, principalmente, o De Cive), afirmam que ela “contêm pensamentos mais
sãos acerca da natureza da sociedade e do governo do que aqueles que se achavam em curso
na sua época [...]” (HEGEL. G.W.F. Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie III. Werke
20. Werke in 20 Bänden. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1971, p. 226). Estes “pensamentos
sãos” constituem pontos importantes para a compreensão da política e do Estado que o filósofo
inglês incorpora na sua doutrina, e que são “apropriados” por Hegel naquilo que se chamou da
“correção especulativa do hobbesianismo”, na tese de Taminiaux. Alguns desses pontos são indicados de passagem nas Lições, outros aparecem de forma difusa no conjunto da obra de Hegel, como por exemplo: a dedução do estado político a partir de princípios imanentes inscritos
na racionalidade da natureza humana, a idéia de que o estado de natureza constitui a condição
natural do homem na imediatidade da sua vontade natural (sendo esta condição de violência e
de domínio de uns sobre os outros), o abandono desse estado como exigência racional.
63
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
Contudo, nas Lições sobre a História da Filosofia, Hegel, citando o De
Cive de Hobbes , afirma que o elemento hobbesiano de que ‘todos, no estado de natureza, sentem a vontade de atentar uns contra os outros’ e que o
exercício da violência leva à situação de temor, é uma análise correta se um
suposto estado de natureza for considerado. Diz Hegel: “Hobbes interpreta
este estado em seu verdadeiro sentido e não atém num palavrório vazio
acerca de um estado bom; o estado de natureza é pelo contrário, o estado
animal, o estado da própria vontade não subjugada”8. O estado de natureza
– continua Hegel – “é, portanto, um estado de desconfiança e de guerra de
todos contra todos (bellum omnium in omnes).” O que Hegel quer salientar
na referência a Hobbes é que a condição natural do homem é aquela em que
“todos sentem o impulso de dominar uns aos outros”, sem que isso possa
autorizar a passagem para o Estado mediante o procedimento empírico do
contrato9.
Há, aqui, um ponto importante que Hegel quer ressaltar na sua interpretação crítica do estado de natureza hobbesiano, claramente contrário
à concepção do homem natural na versão do “bom selvagem” de Rousseau.
Este ponto diz respeito à presença da violência neste estado, representada
na luta pelo reconhecimento em relações de submissão a um senhor.
Hegel e a crítica ao Estado de Natureza...
rio e legítimo na passagem do estado da consciência-de-si submersa no
desejo e na singularidade ao estado da consciência-de-si universal. É o
começo exterior, ou o começo fenomênico dos Estados, não seu princípio
substancial.10
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
Nesta passagem, e sem fazer menção explícita à sua presença, o estado de natureza caracteriza-se como momento marcado pela luta do reconhecimento, fenômeno que tem por fundamento a violência, cujo ponto de
partida para o começo do Estado é meramente fenomênico. O aparecimento
do Estado neste momento retrata a passagem da condição de dominação
para a realização ética que tem por fundamento a liberdade, o direito e relações de reconhecimento que excluem a violência.
A questão da submissão e, portanto, do domínio de um homem sobre
outro homem ou do soberano sobre os súditos envolve ações de coerção e,
consequentemente, relações de externalidade ou de exterioridade que são
próprias ao estado de natureza, pois, “a dominação e a servidão pertencem
à natureza”11.
A relação do senhor ao escravo funda-se sobre uma desigualdade na força
vital e é a pura particularidade – instância natural – que lhe é a essência, pois o laço de dominação e servidão de uma necessidade puramente
prática, isto é, daquilo que o senhor está na posse do que é fisicamente
necessário à vida, enquanto que o escravo está destituído12.
Uma relação de domínio se dá em situações de exterioridade, ou que
envolve a exteriorização, como, por exemplo, o corpo as posses materiais da
pessoa, em relação às quais é possível exercer a violência da subjugação no
sentido de dominar.
Como ser vivo o homem pode certamente ser subjugado (bezwungen),
isto é, o seu lado físico e qualquer lado exterior seu pode ser submetido
à violência de outros, porém a vontade livre não pode, em si e por si, ser
coagida (gezwungen) (§ 5), a não ser na medida em que ela não se retira
a si mesma da exterioridade (Äusserlichkeit) na qual ela é retida, ou da
representação desta (§ 7). Somente pode ser coagido a algo aquele que
quer se deixar coagir (zwingen)13.
O direito a um tal bem inalienável é imprescritível, pois o ato pelo qual
tomo posse da minha personalidade e da minha essência substancial, pelo
qual faço de mim um ser capaz de direito e imputável, um ser moral, religioso, subtrai essas determinações precisamente à exterioridade, que,
ela só, as tornava suscetíveis de estarem na posse de um outro. ... Este
retorno de mim em mim mesmo, pelo qual me torno existente enquanto
10. HEGEL, G.W.F, Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften, op. cit. § 433, obs.
11. HEGEL, G.W.F, Système de la Vie Éthique (Tradução J. Taminiaux), Paris : Payot, 1976, p.
140.
12. Idem , p. 60.
13. HEGEL. G.W.F, Philosophie des Rechts, op. cit., § 91. Ao ressaltar a “assimetria entre a
vontade na sua relação interna a si e a vontade na sua relação a outras vontades , para as quais
ela é no seu ser-aí”, Müller observa que esta assimetria leva Hegel “à distinção entre ‘subjugar’
(bezwingen) e ‘coagir’ (zwingen), segundo a qual o homem ‘enquanto ser vivo pode ser subjugado’ (bezwungen), i. é, ele pode na sua exterioridade padecer violência física, ao passo que ‘a
sua vontade livre não pode em si e por si, ser coagida (gezwungen)’ (§ 91)” (Analytica Revista
de Filosofia, v. 9, nº 1, 2005, p. 27).
64
Cesar Augusto Ramos
Idéia, enquanto pessoa jurídica e moral, suprime a relação precedente e a
in-justiça que eu e o outro tínhamos infligido ao meu conceito e à minha
razão, em ter tratado e deixado tratar a existência infinita da autoconsciência como algo exterior. – Esse retorno adentro de mim descobre a
contradição de ter cedido a outros a posse daquilo que eu mesmo não
possuía e do que eu, tão logo o possua, só existe por isso mesmo, essencialmente, como meu e não como algo exterior, a minha capacidade
jurídica, minha eticidade, minha religiosidade14.
(...) a vontade somente natural é em si violência contra a Idéia sendo em
si da liberdade, a qual tem de ser protegida contra tal vontade inculta e
tem nela de se fazer valer. Ou um ser-aí ético já está posto na família ou
no Estado, contra os quais aquela naturalidade é um ato de violência, ou
só existe um estado de natureza, um estado de violência em geral, contra
o qual, então, a Idéia funda um direito dos heróis15.
Como se sabe da análise hegeliana, há aqui dois aspectos importantes. Um deles – a exterioridade (Äusserlichkeit) - merece ser destacado,
ainda que represente um lugar comum na filosofia da natureza de Hegel. O
outro, vinculado à característica da externalidade da natureza, diz respeito à
relação de subjugação ou de domínio. Ora, a exterioridade, cuja característica da externalidade permite a coerção, constitui a determinação essencial da natureza, e marca a condição da imediatidade do homem como ser
natural (Naturwesen), propiciando a luta pelo reconhecimento na relação de
senhorio e servidão.
A legitimação de uma dominação (Herrschaft) como mero senhorio em
geral e todo o modo de ver histórico sobre o direito de escravidão e de
senhorio, repousa sobre o ponto de vista que toma o homem como ser
natural em geral, segundo uma existência (a que pertence também o arbítrio) que não é adequada ao seu conceito16.
ca:
No adendo a esse parágrafo, a posição de Hegel é bastante enfátiO ponto de vista da vontade livre, com o qual principia o direito e a ciência
do direito, já está para além do ponto de vista não-verdadeiro, segundo
o qual o homem como ser natural e como conceito somente sendo em
si é, por isso, suscetível de escravidão. Este aparecimento precedente e
não-verdadeiro concerne só o espírito que ainda está no ponto de vista da
sua consciência; a dialética do conceito e da consciência primeiro somente
imediata da liberdade provoca aí a luta pelo reconhecimento e a relação
do senhorio e da servidão.17
14.
15.
16.
17.
O elemento hobbesiano da violência, de relações de senhorio, de
Idem,
Idem,
Idem,
Idem,
§
§
§
§
66.
93, obs.
57, obs.
57, obs.
65
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
O adendo ao § 92/93 – 362 – (II, 343) traz a idéia de que a “coação é
violência contra um ser-aí natural”, reforça a tese do sentido da coação como
violência (Gewalt) ou da subjugação legítima que se exerce contra aquilo
que contém o elemento da exterioridade da natureza. Isso porque
Hegel e a crítica ao Estado de Natureza...
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
domínio, de submissão próprias da dialética do senhor e do escravo, e que
se exprime por relações de exterioridade, já está presente no escrito juvenil
Maneiras de Tratar Cientificamente o Direito Natural18. Neste texto, Hegel
classifica três maneiras de tratar o Direito Natural: o modo “empirista” de
Hobbes, Locke, Rousseau, o modo “formalista” de Kant e Fichte, e o modo
“especulativo” que Hegel atribui a si próprio como a única maneira correta
(científica) de tratar o Direito Natural, opondo-se, assim, ao empirismo e ao
formalismo.
O resultado do equívoco metodológico das teorias do Direito Natural
moderno repercute na concepção política, revelando-se na impossibilidade
que estas teorias demonstram para se alcançar uma “totalidade orgânica”
que sustenta relações de necessidade interna implícitas nessa totalidade. É,
precisamente, o procedimento formal de separação que fixa determinidades
atomizadas (próprias do modo de pensar a realidade, produzido pelo entendimento) que é preciso negar19. Fundar a sociedade civil ou o Estado sobre
uma natureza absolutizada como essência a partir do aspecto empírico da
exterioridade significa uma “ficção da imaginação”.
Certamente que Hegel sabe que o estado de natureza é apenas de
uma hipótese para aqueles que, como Hobbes e Rousseau, usaram esse recurso como artifício heurístico para melhor caracterizar a existência real do
estado civil. O problema desta ficção é que ela não pode funcionar segundo
a exigência a que ela se propõe: a de ser um recurso hipotético que se coloca vicariamente no lugar da necessidade da realidade, pois, a necessidade
não pode ser um atributo de uma ficção, mas o resultado da unidade entre
a possibilidade e a realidade:
aquilo que, de um lado, é afirmado como inteiramente necessário, em
si, absoluto, é, de outro lado, ao mesmo tempo reconhecido como algo
de não real, de simplesmente imaginado e como coisa de pensamento,
lá como ficção, aqui como simples possibilidade, o que é a contradição a
mais tosca.20
Hegel critica a concepção de estado de natureza na epistemologia e
na doutrina política do empirismo que pretende ser científico - a indicação
não explicita a Hobbes não retira a referência a este pensador. A deficiência
18. Em colaboração com Schelling, o jovem Hegel edita o Kritische Journal der Philosophie
durante os anos 1801/3, onde publica seus primeiros escritos importantes: Diferença entre os
Sistemas de Filosofia de Fichte e de Schelling, Fé e Saber e o artigo que apareceu em 1802/3:
Maneiras de Tratar Cientificamente o Direito Natural.
19. “Esta deficiência metodológica do empirismo repercute diretamente sobre o modo pelo qual
ele aborda a problemática do direito natural: situando a origem da esfera ético-política num estado de natureza que, caracterizando a dispersão e/ou o antagonismo irredutível de indivíduos
que se excluem mutuamente, ele não pode conceber a própria ordem política (a totalidade
ética) senão como uma totalidade justaposta a esta dispersão originária e coagindo de fora, o
que leva, pois, a separar radicalmente estado de natureza e ordem política” (GÉRARD, G. La
naissance de l’État hégélien. Apropos d’un ouvrage récent de Jacques Taminiaux. In, Revue
Philosophique de Louvain, 85, (1985), p. 243).
20. HEGEL. G. W. F, Des Manières de Traiter Scientifiquement du Droit Naturel, (Tradução de B.
Bourgeois), Paris:Vrin, 1972, p. 21.
66
Cesar Augusto Ramos
do modo empírico é, basicamente, de ordem metodológica. O procedimento
empírico parte do pressuposto de que a realidade é constituída de uma multiplicidade de aspectos, ou de uma diversidade de determinações separadas
(o um e o múltiplo, o positivo e o negativo), sem nenhum vínculo orgânico
e que são unidas pela necessidade formal de uma unidade externa imposta
de modo arbitrário. A conseqüência deste procedimento é que os princípios,
que decorrem de relações inicialmente tratadas como determinações separadas e fixas, são arbitrários, pois recorrem à necessidade de um elemento
externo unificador, e que é resultado de ações de domínio.
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Na interpretação de Hegel, o estado político hobbesiano – como resultado da passagem do estado de natureza e com o ditame das “leis da razão” – surge como um estado de um soberano despótico, cuja vontade não
é a vontade de todos, mas a vontade do soberano, o qual não é responsável
perante os indivíduos. Essa questão, tipicamente hobbesiana, diz respeito ao
caráter e à necessidade da dominação ou da irrenunciável força de coação
inerente ao poder político, e o seu estatuto em relação à violência que ele
pode, legitimamente, praticar.
A “relação de submissão absoluta dos sujeitos sob esse poder
supremo”24 não resulta de uma relação identitária da totalidade ética, mas
de um domínio exterior que se impõe sobre os indivíduos atomizados. A unidade (política) que se alcança é exterior, resultado da dominação por parte
do soberano e submissão por parte dos súditos. Hegel. Ou seja, a idéia de
que a dominação no modelo hobbesiano resulta de uma necessidade externa, e que é uma prerrogativa inerente ao soberano que a exerce sobre os
indivíduos.
Pode-se perceber a relação entre esse modo empírico de entender a
lei natural e o momento histórico (e a sua representação teórica na filosofia
política de Hobbes) no qual ele foi formulado, ou seja, como a expressão do
moderno Estado absolutista, no qual o soberano reina de forma absoluta na
21.
22.
23.
24.
Idem,
Idem,
Idem,
Idem,
p. 23.
p. 24.
p. 24.
p. 24.
67
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
Esta doutrina repousa sobre o pressuposto de relações dispersas da
multiplicidade de indivíduos opostos que estão em “conflito absoluto uns em
relação aos outros” (idem). Acima desta multiplicidade deve ser criada uma
unidade, “exprimindo-se como totalidade absoluta”21, mas que é estranha
e que se realiza mediante o signo da exterioridade de algo que advém do
“juntar-se como algo de outro e de estranho” (idem). A reunião que resulta
da “harmonia informe e exterior, sob o nome da sociedade e do Estado”22
com o múltiplo (os indivíduos) realiza-se sob uma relação de dominação
(Herrschaft): “o divino da reunião é algo de exterior para os múltiplos [elementos] reunidos, que, com ele, não podem ser postos senão na relação de
dominação, porque o princípio desta empiria exclui a unidade absoluta do
um e do múltiplo”23.
Hegel e a crítica ao Estado de Natureza...
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
sua divina majestade. Nesta forma de exercício de domínio, a liberdade do
súdito constitui apenas fazer aquilo que o soberano (a lei) permite, revelando-se no estado civil a forma de uma liberdade que se apresenta, ainda,
como ausência de impedimentos legais, possível naquelas esferas nas quais
o Estado não exerce o seu domínio.
Argumentação análoga é desenvolvida na segunda parte do escrito
Direito Natural, agora na crítica endereçada à noção de coerção (Zwang) em
Fichte, como elemento essencial do direito. Para o modo de ver do “formalismo científico” deste filósofo, não obstante o apego a princípios aprioristícos
e formais, a unidade do indivíduo (e da sua liberdade) com a realidade da
vontade universal se dá pela mediação do caráter coercitivo do direito. Isso
significa, mutatis mutandis, um procedimento parecido com o empirismo de
Hobbes, isto é, a construção de uma unidade mediante uma relação externa
de coerção, que acaba subjugando um dos pólos dessa relação, negando a
liberdade do indivíduo que vê o seu arbítrio subjugado pela coerção, e ele só
tem consistência dessa unidade mediante a intervenção externa da coação.
Nesse caso, o “elemento ético que está posto, unicamente, segundo a relação – ou a exterioridade e a coerção -, [se ele é] pensado como totalidade,
suprime-se a si mesmo”25. Para Fichte, interpreta Hegel, no próprio conceito
de coerção se põe algo de exterior à liberdade26.
Assim, o conceito fichteano de coerção só é aceitável naquelas situações de externalidade, nas quais é possível o exercício de uma coerção
forte, ou seja, aquela que se caracteriza como subjugação e que se aplica
à liberdade do livre-arbítrio, uma forma de liberdade (empírica) que guarda
elementos da naturalidade da particularidade, porque está submetida à “necessidade empírica não separável dela”, e que, portanto, pode ser submetida
ou sujeitada a uma força exterior. Ainda que Hegel possa admitir a presença
de uma coerção fraca da não-dominação (não-subjugação) entre o indivíduo
(e a sua liberdade individual) e a totalidade ética, ela deve ser a expressão
de uma relação ética interna27.
25. Idem, p. 49.
26. “Portanto, comenta Müller, a construção fichteana da liberdade universal por meio de um
sistema da coerção recíproca universal das liberdade singulares que se autolimitam, não só
compreende a liberdade ‘derivadamente’ a partir da relação entre unidade e multiplicidade,
relação na qual liberdade universal e liberdade singular se opõem como determinações da reflexão distintas, portanto não concebidas igualmente na sua indiferença/identidade, mas essa
construção tem na sua base um falso conceito de liberdade, pois a coerção é externa e estranha
à liberdade.” (MÜLLER, M. O direito natural de Hegel: pressupostos especulativos da crítica ao
contratualismo, in: Filosofia Política, série III, n. 5 (2003), p. 51).
27. Marcos Müller entende que o sentido do uso do termo coerção (Zwang) como relação externa que unifica a liberdade singular com a liberdade universal, procedimento esse que é comum
a todo o jusnaturalismo, e que Hegel quer criticar. Entende que, diferentemente da liberdade
empírica que pode ser coagida, pois é algo externo, a “liberdade pura” não pode ser coagida.
Esta liberdade “que não é apenas a relação simples e vazia a si da universalidade abstrata
oposta às determinações particulares, mas de uma liberdade que, na infinitude da indiferença
absoluta em face destas determinações, está para além da exterioridade da coerção e da dominação, pois ela é ‘subjugada’ pela universalidade concreta da totalidade ética, que se autodiferencia, se particulariza e se exprime nos modos de agir universal que não estão à disposição
do arbítrio do indivíduo. Esta infinitude da indiferença absoluta, que suspende a coerção, e
pela qual o indivíduo é subjugado na totalidade das sua determinidades, inclusive na sua sin-
68
Cesar Augusto Ramos
Contrariamente ao entendimento do empirismo e do formalismo, pelo
qual o sujeito não está consigo mesmo, manifestando, assim, relações de
sujeição e de dominação retratada pela filosofia política hobbesiana da separação entre o poder externo do soberano e a obediência dos súditos - a liberdade, para Hegel, deve superar a determinação da exterioridade, própria da
natureza. Para o filósofo, o que é fundamental, e que já está delineado de
forma programática no escrito sobre o Direito Natural, é compreender que
“a essência da liberdade e a sua própria definição formal é, precisamente, a
de que não há nada de absolutamente exterior para ela”28.
Assim, o organicismo especulativo do jovem Hegel induz à crítica do
mecanismo de externalidade do estado de natureza para a dedução, por via
negativa dessa externalidade, da origem do poder político. Critica, também,
a forma artificial que o empirismo do direito natural emprega para unificar
a vontade particular com a vontade geral, em que pese o caráter da constituição de um corpo único de um Estado forte e poderoso, ou de um Estado
gularidade, revela-se, agora, como a negatividade imanente do próprio absoluto prático, a sua
‘forma absoluta ou infinitude” (O direito natural de Hegel: pressupostos especulativos da crítica
ao contratualismo, op. cit., p. 54). Assim, Müller interpreta distintivamente as duas formas de
domínio presente neste escrito: a coerção (Zwang) e a subjugação (Bezwingung). A primeira
atinge “somente a exterioridade do indivíduo em suas determinações finitas” (p. 55), a segunda
“que opera na negatividade infinita (‘infinitude negativamente absoluta’) da ‘liberdade pura’,
visa a exterioridade no seu todo, a totalidade das determinidades e relações que constituem
a vida enquanto tal, inclusive a singularidade da liberdade empírica.” (idem, p. 55) Na nota 4,
Müller observa que, a tradução de Bezwingung por “subjugação” permite que este termo torne
“mias visível a sua contraposição principal aos conceitos de ‘coerção’ e ‘dominação” (idem, p.
63). A partir dessa interpretação, é possível é possível dizer que a coerção supõe relações de
externalidade (semelhantemente à idéia da coerção externa em Kant e, também, em Fichte)
e a subjugação representa uma coerção interna (análoga à coercitividade interna na relação
entre Wille e Willkür no análise kantiana). A primeira envolve a noção de domínio, a segunda
não, porque é auto-coação, ou seja, a repressão ou a sujeição de alguém como o seu outro.
28. HEGEL, Maneiras de Tratar o Direito Natural, op.cit. p. 49.
69
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
No escrito sobre o Direito Natural, a idéia de “vida ética orgânica”
se constitui num conceito diretor para se pensar a realidade política. E a
“vida ética orgânica” não pode ser pensada nem traduzida por uma ficção
metodológica. Aqui a pretensão é pensar “a idéia absoluta da vida ética” na
unidade do estado de natureza e da majestade (do Estado), de tal modo que
este último não é outra coisa senão “natureza ética absoluta”, e a singularidade não é nada, mas absolutamente uma com esta natureza. A totalidade
orgânica da vida ética que se traduz na organização estatal da vida de um
povo é definida por Hegel por uma unidade daquilo que o empirismo político
hobbesiano havia separado: de um lado o estado de natureza, e de outro,
o Estado. Isso só é possível se a realidade ética for pensada segundo a unidade de duas realidades aparentemente contraditórias: estado de natureza
e estado civil (político). Mas, se essa unidade não for compreendida em
termos artificiais do contratualismo, mas em termos organicistas que não
permitem o isolamento e a disjunção daquelas duas realidades, o estado
de natureza é subsumido na majestade do Estado, e este se identifica com
a realidade dos indivíduos, deixando de haver entre a vida natural e a vida
ética qualquer descontinuidade.
Hegel e a crítica ao Estado de Natureza...
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
como expressão da vontade geral. A conseqüência desse procedimento é
a instauração de uma societas política marcada pela abstração de seu ato
constitutivo, e a coerção do Estado um recurso que se cristaliza na figura do
soberano que se opõe aos súditos, sem manifestar nenhuma coesão interna.
O Estado permanece exterior e sujeito a constantes tensões que levam à
instabilidade da vida política, a qual permanece apenas como o resultado de
uma equação vantajosa tanto para o soberano como para o súdito, traduzida
na mútua relação entre proteção que o primeiro oferece e a obediência que o
súdito, em troca, lhe presta. Para que este Estado não se dissolva ele necessita de um lado da dominação que lhe é inerente e, de outro, da submissão
obediente da condição do súdito.
A questão da exterioridade (Äusserlichkeit) de um estado de natureza retrata a intenção já presente no escrito sobre o Direito Natural de entendê-la na sua determinação essencial como algo exterior. A exterioridade
constitui um atributo daquilo que é natural e que será desenvolvido de forma
mais ampla e consistente nos escritos posteriores da obra de Hegel, a partir
da Filosofia do Espírito de 1803-1804 com a concepção da natureza como
ser-outro do espírito, alcançando, sobretudo, na Enciclopédia a formulação
paradigmática do conceito de natureza como a “idéia na forma do ser-outro
(Andersseins)”.
Visto que a idéia é assim como o negativo dela mesma ou exterior a si, assim a natureza não é exterior apenas relativamente ante esta idéia (e ante
a existência subjetiva da mesma, o espírito), mas a exterioridade constitui
a determinação, na qual ela está como natureza29.
Hegel entende a natureza como o “espírito alienado de si”, (§ 247,
ad.), o “cadáver do entendimento”30. A idéia na figura desta exterioridade
“se situa na inconformidade dela consigo mesma”31, ela é, então, o momento da diferença, o ser-outro, o negativo da idéia, a “contradição não
resolvida”32, porque a idéia, enquanto natureza, é exterior a si mesma. A
forma do ser-outro é a imediatez, que consiste em que o diferente subsiste abstratamente por si. Mas este subsistir é só momentâneo, não um
verdadeiro subsistir; só a idéia subsiste eternamente, porque ela é serem-si-e-para-si [Anundfürsichsein], isto é, ser-retornando-a-dentro-de-si
[Insichzurückgekehrtsein]33
Falta à natureza a determinação auto-referencial daquilo que é livre
e espiritual, ela encontra-se, assim, fadada, de um lado, às leis da regularidade da necessidade, e, de outro, às variações do acaso e de fenômenos
marcados pela contingência. Contudo, “o conceito deseja romper a casca da
exterioridade e vir-a-ser para si”34. Hegel termina a sua exposição sobre a
filosofia da natureza recorrendo à metáfora da crisálida que morre para dar
29.
30.
31.
32.
33.
34.
70
HEGEL, G.W.F, Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften, op. cit. § 247.
Idem, § 247, ad.
Idem, § 248, obs.
Idem, ib.
Idem, ib.
Idem, § 251, ad.
Cesar Augusto Ramos
luz a uma nova forma de vida mais bela, representada pela borboleta:
sobre esta morte da natureza emerge deste invólucro morto uma natureza mais bela, sai o espírito...O fim [alvo] da natureza é matar-se a si
mesma e quebrar sua casca do imeditato, sensível, queimar-se como fênix
para emergir desta exterioridade rejuvenescida como espírito... A natureza tornou-se para si algo outro, para de novo se reconhecer como idéia e
reconciliar-se consigo.35
tureza ver um livre reflexo do espírito – conhecer a Deus, não na meditação
do espírito, mas neste seu imediato ser-aí”36.
Essa forma de entender a alteridade - segundo o ponto de vista de
uma outridade que é exterior - servirá de referência às relações de dominação, nas quais os traços da naturalidade permanecem segundo o paradigma
da dialética do senhor e do escravo. Para além do modelo da externalidade
do mecanismo da natureza, as ações mediadas pelo reconhecimento permitem uma forma de sociabilidade ético-política baseadas em relações da
liberdade que excluem o domínio. O reconhecimento só é possível numa
relação que exclui a dominação, isto é, quando o outro está “liberado” de
qualquer sujeição, condição essencial para que o sujeito que os indivíduos
alcancem a liberdade autêntica.
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A autoconsciência universal manifesta-se como o solo de uma comum reciprocidade em que os sujeitos podem exercer o reconhecimento
recíproco, permitindo aos agentes uma igualdade de direitos e de cidadania.
E isso não é possível na relação senhor-escravo que pertence a uma consciência ainda imediata e natural, marcada por interações de externalidade
que propiciam a dominação. Compreender a racionalidade dos meus direitos
e dos meus desejos, bem como a capacidade de agir segundo princípios são
elementos que devem valer para todos como resultado de uma relação de
mútuo reconhecimento.
No que diz respeito à relação entre autoridade e liberdade, o conceito de reconhecimento opera no sentido de buscar formas de legitimação
da lei que não aquelas oriundas da coação externa do direito como para o
Jusnaturalismo que, pela força ideal do contrato, se impõe como um dever
(político-jurídico) de aceitação de normas que regulam a vida social. Esse
modelo contratualista do jusnaturalismo é recusado por Hegel que recorre
a um outro modelo para justificar a legitimidade da lei (e da soberania e da
autoridade) diante da liberdade dos indivíduos. Esse modelo é o do reconhecimento intersubjetivo inexistente na perspectiva do contratualismo, seja
ele hobbesiano, seja kantiano, vinculado ao mecanismo normativo da
35. Idem, § 376, ad.
36. Idem, ib.
71
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
Ao recapitular o percurso da filosofia da natureza, o filósofo observa
que o objetivo desta filosofia é “dar uma imagem da natureza para dominar
este Proteu, nesta exterioridade achar só o espelho de nós mesmos, na na-
Hegel e a crítica ao Estado de Natureza...
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
externalidade coercitiva.
Para Hegel, determinadas atividades do espírito humano como a amizade, o amor e o patriotismo permitem a realização de formas de relações
intersubjetivas – valores éticos-políticos destacados pela tradição republicana - que impedem o jogo de forças estranhas que dominam. São relações
que estão articuladas ao reconhecimento recíproco de sujeitos que buscam
entre si o estar consigo mesmo no seu outro e, nessa reciprocidade, abandonam qualquer pretensão ao domínio. A noção hegeliana da liberdade e de
reconhecimento enseja a recusa a qualquer tipo de dominação ou de coerção não legítima, do contrário, as relações intersubjetivas se restringiriam
à dialética do senhor e do escravo, limitando-se a uma luta por dominação
mesmo que por meio de uma forma primitiva de reconhecimento.
A filosofia hegeliana, portanto, sustenta a tese de que de um estado de natureza é impossível deduzir uma teoria da igualdade dos indivíduos, considerando-os como pessoas, e fundamentar uma teoria ético-política
com base na liberdade. Contudo, muito embora o Estado seja pensado como
a realização máxima do Espírito objetivo, a natureza, de certa forma, nele
subsiste “espiritualizada” permanecendo no elemento da particularidade naquilo que é humano, errático e contingente, sobretudo, na esfera da sociedade civil, onde o conflito subsiste, necessitando da coação do Estado.
A sociedade, ao mesmo tempo em que promove uma igualdade - a
do homem enquanto homem - prolonga e potencia uma desigualdade natural de um suposto estado de natureza. É justamente essa “particularidade
natural”, à qual se acrescenta uma “particularidade arbitrária”, que Hegel
explicitamente chama de “resto do estado de natureza”37. Tudo indica que
este estado refere-se a Hobbes, principalmente quando Hegel caracteriza a
sociedade civil como o “campo de batalha de todos contra todos”38. Como
reino do entendimento e da particularidade – um dos elementos da sociedade civil presente na pessoa como uma “mistura de necesidade natural e de
arbítrio” - esta sociedade conserva e suprime a natureza no seio da própria
Sittlichkeit. Pelo concurso da cultura (Bildung) e pela mediação dos outros
na satisfação social das carências, há um processo de superação da natureza que Hegel chama de libertação da necessidade natural. Mas, adverte o
filósofo, “essa libertação é apenas formal, já que a particularidade dos fins
continua sendo o conteúdo que lhe serve de fundamento”39.
Ao comportar elementos do “estado de natureza” e, ao mesmo tempo, possuir na sua própria lógica contraditória uma racionalidade, embora
astuciosa, a sociedade civil constitui o espaço que possibilita a mediação
entre elementos considerados naturais (o conflito, a luta, a concorrência)
de uma racionalidade negativa e o aspecto ético-político da racionalidade
positiva do Estado.
37. HEGEL, G.W.F, Grundlinien der Philosophie des Rechts, op. cit., § 200, obs.
38. Ibid., § 289, ad, cf. tb. § 198.
39. Ibid., § 195.
72
Cesar Augusto Ramos
73
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
Ao interpretar a sociedade civil segundo alguns aspectos do estado
de natureza hobbesiano, Hegel mantém o conflito como um fato estrutural e
imanente a um momento da eticidade. Cabe à racionalidade do Estado, não
como uma exigência de um ideal normativo, mas como uma necessidade
histórica que os novos tempos revelam, e que a razão traduz como exigência
conceitual, a resolução desse conflito. Por isso, o Estado pode fazer uso da
dominação naquelas situações nas quais predomina o elemento da exterioridade da natureza. Em outras situações, a relação é de coerção, mas não
de dominação repressiva, cujo modelo advém da ação formadora da cultura
(Bildung).
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos
Ano 6, nº10, Junho-2009: 75-85
A Lei de Talião e o princípio de igualdade entre crime
e punição na Filosofia do Direito de Hegel
Melina Duarte1
Palavras-chave: Justiça; Teoria da pena; Igualdade específica e Igualdade de valor; Espírito
livre.
Abstract: ‘An eye for an eye, a tooth for a tooth’. If Lex talionis seems to us today a cruel and
barbarian law, which describes better revenge than the need of punishment following justice, we
should notice however, that this statement is also grounded in a balanced relatioship between
crime and punishment. The aim of this paper is to search for the need of an exact relationship between the denying and the reestablishment of justice, following Lex talionis statement.
However, specific equality and equality of value cannot be mistaken. Equality of value is enough
to provide justice at the theoretical level, but not when it is extended to the practical level. At
the practical level equality can only be obtained in terms of quantity and quality that vary according to culture and time. Thus, the practical level should be as a mirror of the theoretical
one following the demands of reason. In Hegel, this procedure is possible due to free spirit self
determination, which means the unity of theoretical and practical realms.
Keywords: Justice; Theory of punishment; Specific equality; Equality of value; Free spirit.
Se alguém furar o olho de um homem livre, nós lhe furaremos um
olho; se alguém arrancar um dente de um homem livre, nós lhe arrancaremos um dente.
Se a célebre Lei de Talião nos aparece atualmente como uma fórmula
cruel e bárbara que descreve melhor a vingança do que a necessidade de se
punir com justiça, é preciso, no entanto, que atentemos ao fato de que essa
máxima é também baseada numa relação de equilíbrio entre o crime e a
1. Mestranda em Filosofia alemã e francesa no contexto europeu – Europhilosophie LudwigMaximilians Universität München. Texto submetido em Junho de 2009 e aprovado para publicação em Setembro de 2009.
75
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
Resumo: “Olho por olho, dente por dente”. Se a célebre Lei de Talião nos aparece atualmente
como uma fórmula cruel e bárbara, que descreve melhor a vingança do que a necessidade de
se punir com justiça, é preciso, no entanto, que atentemos ao fato de que esta máxima é também baseada numa relação de equilíbrio entre o crime e a punição. Nesse sentido, o objetivo
deste artigo é buscar na expressão teórica da Lei de Talião, a tese da necessária existência de
uma exata medida entre a negação e o restabelecimento da justiça sem, contudo, confundir
aquilo que é uma igualdade específica e o que é uma igualdade de valor. A igualdade de valor é suficiente para garantir a justiça na esfera teórica, mas insuficiente quando se pretende
estendê-la à esfera prática, visto que nessa última, a igualdade só pode ser obtida em termos
de quantidade e qualidade que variam conforme o tempo e cultura. Assim, a esfera prática deveria ser um espelho da esfera teórica e seguir, da mesma forma, as exigências da razão. Esse
procedimento será para Hegel possível graças a autodeterminação do espírito livre, a união dos
âmbitos teórico e prático.
A Lei de Talião e o princípio de igualdade...
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
punição. Nesse sentido, o que a expressão “olho por olho, dente por dente”
nos revela, antes, a ideia da necessidade de se obter uma exata medida
entre a negação e a restituição da justiça. A própria palavra Talião, que vem
do latim talio, significa “tal” ou “igual” e reforça essa tese, ao menos teórica,
de equilíbrio. O problema é que nós não encontramos na prática esta mesma
clareza da teoria e, por isso, a Lei de Talião assumiu posições bem mais próximas de cada extremidade do que da exata medida que se buscava. Dessa
forma, no decorrer da história ela permitiu prolongamentos ou demasiado
agressivos, como na postura descrita no Antigo Testamento2, ou demasiado
passivos, como no Novo Testamento3.
No seu desenvolvimento histórico, nós observamos que as punições
mais grotescas e, também, as mais brandas foram evocadas sempre em
nome da necessidade de punir para se realizar um bem aparentemente maior.
A partir disso, constatamos que ela acaba então por perder seu fundamento
mais valioso, a ideia de dar ao crime a punição na sua correta intensidade
e de poder assim ser considerada justa. Isso tudo, como se a questão da
justiça pudesse ser reduzida à uma questão entre o bem e o mal, tal como
pressupunham diversas teorias da pena: da dissuasão, da prevenção, por
exemplo para Beccaria4, mais tarde, da ameaça para Feuerbach5, etc.
Se essas teorias consideram o crime como um mal, elas consideram,
em consequência, a dissolução do crime como um tipo de bem e, desse
modo, a questão da justiça e da injustiça seria então substituída pela questão do bem e do mal. O problema de transferir este debate é que, neste
caso, nós acabaríamos por esquecer a objetividade da justiça, ponto que é
primeiro e substancial para Hegel, na medida em que isso evitaria a separação entre a lei e sua aplicação. Ao se substituir a questão, a subjetividade do
criminoso, misturada com as suas representações psicológicas, seria então
deixada em primeiro plano, uma vez que o bem e o mal seriam definidos
nestas instâncias. Com a subjetividade em primeiro plano, a punição não
poderia ser aplicada, pois, caso contrário, decorreriam dela sérias consequências, tais como o impedimento do direito da liberdade do pensamento, da
liberdade religiosa, etc. Assim, para Hegel “nessa discussão importa exclusi2. Ver Êxodo 21, 23-25: “Mas se resultar algum dano, pagarás vida por vida, olho por olho,
dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferimento por ferimento, golpe por golpe.” Ver também Levítico 24, 17-21: “E quem matar alguém certamente
morrerá. Mas quem matar um animal, certamente o restituirá, vida por vida. Quando alguém
desfigurar o próximo, assim também lhe será feito: quebradura por quebradura, olho por olho,
dente por dente. Como ele tiver desfigurado a algum homem, assim lhe fará. Quem, pois, matar um animal, restitui-lo-á, mas quem matar um homem será morto”.
3. Mateus 5-38-41: “Ouviste o que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. Eu, porém, vos
digo que não resistais ao mal; mas se alguém te bater na face direita, ofereça-lhe também a
outra face; e, se alguém te obrigar a caminhar uma milha, vai com ele duas milhas”.
4. C. Beccaria, Dos delitos e das penas. Tradução de Nelson Jahr Garcia, Edição Ridendo Castigat Mores, 2001. XV Da moderação das penas. Sistematizando o pensamento da metade do
século XVIII, o que Beccaria escreveu, influenciado também por Machiavel, representou para a
Itália, o mesmo que Helveticus para a França. “Os castigos têm por fim único impedir o culpado
de ser nocivo futuramente à sociedade e desviar seus concidadãos da senda do crime.” p. 85.
5. E. Gans, In: G.W.F. Hegel, PD/Direito Abstrato (DA), sobre a teoria da pena de Feuerbach:
“Essa teoria pressupõe o homem como não livre e ela quer coagir pela representação do mal.”
Tradução de Marcos Lutz Müller, São Paulo: (IFCH/UNICAMP), 2003, §99 Ad, p.116.
76
Melina Duarte
vamente que o crime tem de ser suprimido, e não enquanto produção de um
mal, mas enquanto lesão do direito enquanto direito”6, i.e., é o direito que
deve estar sempre em primeiro plano.
Se nós atacarmos apenas a existência do crime ou apenas o crime
mesmo, nós não cumpriremos a justiça, uma vez que não se pode punir
a existência do crime sem o determinar, nem punir somente o crime sem
considerar sua existência. É preciso então recorrer ao direito para garantir
a efetividade da moral, mas é “a ação baseada no direito que é justa na
medida em que ela pode ser verificada através da subjetividade de cada
indivíduo”8. Dito de outra forma, é a vontade moral que deve dar à justiça
a segurança do impedimento de que as normas jurídicas se tornem instrumentos de dominação utilizados por grupos isolados.
O bem aparece quando o direito abstrato liga-se com a moralidade
e, somente a partir da passagem para a eticidade e do desenvolvimento de
seus momentos é que nós teríamos a afirmação do direito mais elevado em
sua identidade com o maior e mais justo bem. Consequentemente, tería6. G.W.F. Hegel, PD/DA, Tradução de Marcos Lutz Müller, São Paulo: (IFCH/UNICAMP), 2003,
§99 A., p.115.
7. Não pretendemos aqui definir propriamente o que deve ser considerado como um crime e,
por sua vez, como punição, visto que o objetivo do trabalho é apenas extrair o princípio de
igualdade entre eles a partir da Lei de Talião, princípio que entendemos ser a primeira condição
para se obter justiça nesta relação. No entanto, acrescentaríamos essa definição como uma
segunda e terceira condição para a obtenção da justiça nos seguintes termos: que o que seja
considerado ‘crime’ esteja de acordo com a justiça universal e, por conseguinte, que a pena
aplicada esteja também de acordo com esta mesma universalidade.
8. D.L.Rosenfield, Política e Liberdade em Hegel, 2ª Ed., São Paulo: Ática, 1995,p. 102.
77
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
Antes de continuarmos, é preciso perguntar: por que a questão do
bem e do mal não pode ser objetiva? Por que o crime não poderia ser a objetivação do mal e a punição a restituição do bem? À primeira vista, parece
que não haveria problema algum em assumir essa identificação ao dizer
que o mal se objetiva através do crime. Mas o mal se exterioriza em tantas
outras formas que não somente através do crime. Assim, essa identificação
seria limitada, na medida em que o crime não seria então a objetivação do
mal, e sim meramente uma objetivação possível do mesmo. De modo igual
se passa no caso do bem, para o qual a punição não é sua única forma de
manifestação. Desta pluralidade de sentidos surge um problema de representação, pois a objetividade que o mal adquire através do crime é somente
uma forma mais efetiva, mas o critério de definição deste ainda não é objetivo. Dessa forma, o crime e sua anulação dependeriam de uma representação subjetiva do que se considera – num determinado momento, sob um
determinado ponto de vista – como bem ou mal. É preciso, portanto, que
se tenha algo a mais para garantir a objetividade da representação do bem
e do mal, pois é somente dessa maneira que poderemos definir o crime e
aplicar a punição como forma de sua anulação. Este ‘algo a mais’ é o direito. Assim, para Hegel, o mal é a existência do crime e não do crime mesmo
diretamente. Por sua vez, o crime é a negação do direito, ao mesmo tempo
que a punição é a negação da negação do direito7.
A Lei de Talião e o princípio de igualdade...
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
mos sua negação identificada com o mal de mesma natureza. Este bem é,
contudo, o maior possível dentro da esfera do Espírito Objetivo, na qual se
encontra a Filosofia do Direito. Nesse sentido, o bem é, para Hegel, mediado
e isso é o que lhe retira da superficialidade. Contudo, mesmo as teorias que
pretendem ter o bem mediado, i.e. que não tomam a punição no sentido
que Hegel chama de superficial, de fazer um mal a alguém que fez um mal,
como a teoria da cura de Platão em Górgias9 a teoria da expiação em Santo
Agostinho10, nas quais o bem aparece sob a forma da cura do mal ou da liberação da alma – acordam à punição um papel ainda insuficiente. Vejamos
então de que maneira esta insuficiência se apresenta como um obstáculo ao
cumprimento do ponto de igualdade que buscamos:
A principal diferença entre estas duas teorias é o seu ponto de partida e, em consequência, a finalidade de aplicação da pena. A teoria da cura
toma para si o ponto de vista do paciente, que, por sua vez, vê a punição
enquanto sofrimento e dor como aspecto principal e o dever como secundário. A tarefa da punição não seria outra que melhorar um mal estado ao
qual o criminoso teria chegado – como uma doença que precisa ser curada.
O problema desta teoria, segundo Hegel, é que a punição seria uma justificação indireta das regras sobre às quais o criminoso estaria ligado quando
ele as transgrediu e, desta maneira, a cura do criminoso não poderia mais
depender de regras as quais ele negou anteriormente. A teoria da expiação
toma o ponto de vista contrário: o do agente. Assim, o sofrimento e a dor
deixam de ser a questão principal. Ela é substituída pela questão do dever,
da observância das regras. A punição adquire assim um sentido de condenação, de sofrimento compensatório, de sacrifício moral, mas originária da
solução que o criminoso mesmo se dá para se libertar de sua falta. Assim, a
punição repousaria sobre um caráter interior das regras e na medida em que
o criminoso é parte de uma comunidade contra qual o crime foi cometido,
esta individualização da punição como liberação da alma é também problemática.
Portanto, seja do lado da cura ou da expiação, perdura o problema
de encontrar um lugar apropriado a fim de garantir a justiça na relação
entre crime e punição. E, para resolver esta dificuldade, Hegel reivindica o
sentido de punição a partir dos dois caminhos citados. Dito de outra forma,
ele considera, ao mesmo tempo, a punição sob o ponto de vista do paciente
9. Ver Platão, Górgias, Tradução de Alfred Croiset, Paris : Éditions du Passant, 2004, p.98-101.
“Socrate(S) : L’effet produit sur l’objet frappé est donc conforme à l’action de celui qui frappe ?
Polo(P) : Sans doute. S : De même, si une brûlure est faite, il y a nécessairement une brûlure
subie ? P : C’est forcé. S : Et si la brûlure ainsi faite est violente ou douloureuse, l’objet brûle
subit un effet conforme à la brûlure qu’on lui fait ? Qualité de l’effet correspond à la qualité de
l’action. [...] S :Ainsi donc, celui qui paie sa faute est débarrassé par la méchanceté de son âme
? P : c’est exact.”
10. Ver Santo Agostinho, Les Confessions précédées de Dialogues philosophiques, Œuvres I,
direção de Lucien Jerphagnon, Paris : Gallimard, 1998, L’irruption de la faute – Les “charnelles
corruptions”: “Du fracas de la chaîne de ma moralité, c’était le châtiment de l’orgueil de mon
âme.” p. 805. /Le pèche de L’esprit – Le vol des poires: “Le vol, en tout cas, est puni par la Loi
est par la Loi qui est écrite dans le cœur des hommes, et que leur inquiète n’abolit pas; car
existi-t-il un voleur qui supporte avec sérénité de se faire voler? Non, fût-il dans l’opulence et
son voleur traqua par l’indigence. » p. 809.
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Melina Duarte
e do agente. Nesta lógica, é preciso que um se coloque no lugar do outro.
Contudo, esta exigência de “se colocar no lugar do outro” estava já presente
na fórmula geral do imperativo categórico em Kant: “Age segundo a máxima
que pode ao mesmo tempo se transformar em lei universal”11. Qual é então
a diferença entre estas duas exigências de universalidade? Hegel considera
insuficiente a fórmula kantiana na medida em que esta lei é ligada a uma
ordem moral separada do direito, o que acarretaria consequências fatais à
justiça no que concerne à sua objetivação, a seu devir, quando partimos da
reflexão sobre o bem e o mal ao invés de partir do justo e do injusto.
A tortura admitida nos porões, a pena de morte, as prisões desumanas e outras penalidades impelidas ao extremo e hoje praticadas legalmente
são as provas da necessidade de se relançar sobre esta discussão. Mas, segundo a tese de equilíbrio sobre a qual repousamos até aqui a possibilidade
de justiça, nós podemos perguntar se um crime extremo não merece uma
punição extrema e, em consequência, afirmar a utilização destes tipos de
penas como instrumentos legítimos para se ter acesso à justiça e, assim, colocar em cheque a pertinência de retomar este debate. Nós devemos admitir
que, segundo este princípio geral de igualdade, um crime extremo é passível
de uma punição também extrema, da mesma maneira que o crime mediano
merece uma punição mediana e assim sucessivamente. Mas, desde que se
integre o critério de definição de ‘extremo’ nos limites racionais de nosso
tempo, i.e. desde que ele seja interpretado sob a perspectiva da finalidade
especulativa última da história mundial, que é “o desenvolvimento necessário [...] da consciência-de-si e da liberdade do espírito”12. Assim, se a racionalidade de nosso tempo está em acordo com a universalidade, o extremo
vai ser definido claramente e a pena aplicada segundo esta racionalidade vai
ser considerada de uma maneira justa.
Mas o problema não é assim tão simples e ele ainda não pode ser
declarado resolvido, pois, deste ponto de vista, se é o acordo da pena com
a racionalidade que nos mostra o justo, então a tortura, a pena de morte e
as prisões desumanas podem ser consideradas, segundo Hegel, como penas
apropriadas e mesmo justas, se o nível de racionalidade do povo que as
aplica lhe seja correspondente. Esta questão não coloca somente o pensamento de Hegel à prova, mas também o nosso olhar sobre a civilização da
11. Ver E. Kant, Fondation de la métaphysique des mœurs, In : Métaphysique des mœurs, I,
Fondation, Introduction, Tradução de Alain Renaut, 1994, p. 118.
12. G.W.F. Hegel, PD/Estado, Tradução de Marcos Lutz Müller, São Paulo: IFCH/UNICAMP, 1998,
§342, p. 144.
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REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
Se a Lei de Talião não pode estar baseada, ao menos não direta e
unicamente, na ideia do bem e do mal ao invés do justo e do injusto, ao
menos o elemento de igualdade contido nesta lei está ainda presente, mas
a partir daqui, ele deve fixar sua base no direito. Ele está ainda presente,
porque a negação da negação do direito, i.e., a anulação do crime é cumprida somente na medida em que esta segunda negação é de mesmo tipo e de
mesma intensidade que a primeira. Se o tipo ou intensidade da pena mudam
em relação ao crime, ela é já considerada injusta.
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
A Lei de Talião e o princípio de igualdade...
atualidade, uma vez que a pena deve ser equivalente ao nível de racionalidade. Assim, se nós definimos o extremo de uma maneira bárbara como
nesses gêneros de punições, nós temos de admitir também nossa barbárie.
É claro que antes de nos acusar efetivamente de bárbaros, nós deveríamos
demonstrar que as penas aqui citadas são mesmo bárbaras, visto que isto
ainda não é evidente para todas as pessoas, nem para todas as nações. Isso
quer dizer para nós que a sociedade contemporânea continua, de alguma
forma, seguindo regras mal fundadas que acabam por distanciar a justiça
de seu lugar apropriado, na medida em que esses tipos de punição não
ocasionam outra coisa além da perda total do sentido racional originário da
punição, a anulação do crime. E se nós já começamos a considerá-las como
penas bárbaras, e esta prova não é mais necessária para várias pessoas,
é porque nós estamos em um processo de racionalização que começa a se
estabelecer. Sobre isso diz Hegel:
Enquanto o espírito livre é o espírito efetivo, os mal-entendidos a seu respeito são de consequências práticas tão enormes, que nada há que tenha
essa força irresistível – uma vez que os indivíduos e os povos captaram em
sua representação o conceito abstrato da liberdade essente para si [...].13
Mas se nós admitimos um distanciamento entre o espírito livre e sua
efetividade14, como sugere à primeira vista essa passagem, nós justificamos, por consequência, através do direito ligado ao seu tempo, verdadeiras
atrocidades pertencentes à história mundial, tais como a escravidão, o terror
jacobino, entre outras, e colocamos o espírito livre como um ideal inalcançável. Para sair desta dificuldade, é preciso que busquemos elementos na necessidade de realização do espírito livre. E, por isso, antes de dar a sentença
a Hegel, é preciso buscar mais precisamente o que ele compreende por espírito livre. Sobre isso, encontramos uma formulação oportuna na seguinte
passagem do Direito Abstrato: “O espírito livre consiste precisamente em
não ser como o mero conceito ou em si, mas em suspender esse formalismo
de si mesmo e, com ele, a existência natural imediata, e, em dar-se a existência somente enquanto sua, enquanto existência livre”15. O espírito livre
não é, como vemos, o simples conceito [bloβe Begriff] no sentido corrente
de uma abstração do real para se obter uma classificação mais geral ou para
nomear as coisas. Mas ele é o conceito mesmo, o que indica que ele busca
constantemente ultrapassar a unilateralidade, a parcialidade, a determinação abstrata do entendimento, quando ele provém da unidade do espírito
teórico e do espírito prático. Esta unidade não é, no entanto, produzida, pois
se fosse, nós ainda poderíamos, por um lado, a partir da teoria de Hegel,
justificar as atrocidades enumeradas anteriormente, assim como as penas
que nós tomamos aqui como bárbaras. Ela não é produzida, porque para
Hegel ela é desde sempre já realizada pelo espírito. Segundo Hegel,
o teórico está essencialmente contido no prático: isso vai contra a repre13. G.W.F. Hegel, ECF, Tradução de Pe. Paulo Meneses, São Paulo: Edições Loyola, 1995, §482,
p. 275.
14. Termo utilizado no sentido de Wirklichkeit e não de Realität.
15. G.W.F. Hegel, PD/DA, Tradução de Marcos Lutz Müller, São Paulo: IFCH/UNICAMP, 2003,
§57, p.74.
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Melina Duarte
sentação de que ambos estão separados, pois não se pode ter vontade
alguma sem inteligência. Pelo contrário, a vontade mantém o [elemento]
teórico dentro de si: a vontade se determina; esta determinação é, inicialmente, algo interno: o que eu quero, eu me represento, é objeto para
mim16.
A possibilidade de existência desta separação é concebida sobre a
perspectiva natural do homem e da sociedade – que movidos por inclinações, pulsões e desejos – não devem ser passíveis de punição e, enquanto
tais, não podem alojar a justiça que buscamos. Eles não são passíveis de
punição, não porque ela não lhes seja necessária num estado natural, mas
porque o homem não é visto enquanto alguém que tem igualmente direito à
liberdade. Dessa forma, não há desde o início a possibilidade de igualdade.
Sem a racionalidade, a lei válida é a do mais forte e nesta lógica absurda,
junto à qual muitos pensam erroneamente se basear em Darwin, mesmo o
Estado somente poderia garantir a anterioridade do todo e evitar a luta de
todos contra todos através da linguagem comum entre homens naturais, a
violência. Assim, justificam-se as penas violentas. É preciso, contudo, que
a vontade natural se transforme e se reconheça como livre e, para isso, é
preciso partir da ideia de que ela contém o racional em si.
Hegel pressupõe um Estado racional baseado na ideia de liberdade
que deve conter todas as vontades particulares. Nesse sentido, assim que o
criminoso pressupõe seu reconhecimento como livre, a pena é considerada
16. G.W.F. Hegel, Introdução à Filosofia do Direito, Tradução e apresentação de Marcos Lutz
Müller, São Paulo: IFCH/UNICAMP, 2005, §4 Ad, p.48.
17. Aqui no sentido hegeliano, idéia significa o conceito mais sua efetivação.
18. G.W.F. Hegel, ESP (Encyclopédie des sciences philosophiques, Tome III – Philosophie de
l’Esprit) tradução e apresentação de Bernard Bourgeois, Paris : Vrin, 1988, §113 A., p.241242.
19. G.W.F. Hegel, Introdução à Filosofia do Direito, Tradução e apresentação de Marcos Lutz
Müller, São Paulo: IFCH/UNICAMP, 2005, §1 Ad, p.39.
20. G.W.F. Hegel, PD/DA, Tradução de Marcos Lutz Müller, São Paulo: IFCH/UNICAMP, 2003, §57
Ad – Hm. 124-125 – (II, 336-337), p.75.
21. G.W.F. Hegel, PD/DA, Tradução de Marcos Lutz Müller, São Paulo: IFCH/UNICAMP, 2003, §57
Ad – Hm. 124-125 – (II, 336-337), p.76.
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REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
Em outras palavras, há uma identidade necessária entre o pensar e a
vontade para Hegel, mesmo que os possamos analisar separadamente. Assim, o espírito, mesmo se ainda abstrato, quando ele ainda não é a idéia17, “na
medida em que ele existe como conceito diferenciado de sua objetividade”18,
dá-se sua própria efetividade, no sentido que ele mesmo busca sua realização, baseado na ideia de que “ o conceito e sua existência são dois lados,
separados e unidos, como o corpo e a alma”19. O espírito efetivo já tem
em si esta potência e ele deve ser segundo o conceito. Desse modo, nós
remarcamos que para Hegel a separação entre o conceito e sua efetivação
não existe quando o sujeito é o espírito livre. E, se isso se mostra diferentemente na realidade histórica, é porque o Estado está ainda à procura de seu
conceito. Isso implica que o Estado funciona ainda numa “situação anterior
ao direito que não deve existir”20. Assim, a existência histórica destes tipos
de penas e atrocidades “fazem parte de um mundo em que uma in-justiça
ainda é direito”21, que ainda não é universal.
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
A Lei de Talião e o princípio de igualdade...
como um direito do criminoso de anular seu crime. Isto significa que mesmo
enquanto criminoso, o homem deve ser respeitado como um ser racional.
Por conseguinte, é pela honra acordada ao criminoso enquanto ser racional
que nós honramos também o direito. Se permitirmos o inverso, ou em outros termos, se o criminoso é tratado como um ser natural, então a racionalidade do direito e do Estado desaparece também. Esta separação existe em
Hobbes, que afirma o Estado de direito como uma ruptura com o estado de
natureza que o origina. Com isso, Hobbes coloca o Estado sobre uma base
que, enquanto não-racional, tem somente uma força coercitiva, a partir da
qual o acordo formado entre os homens é frágil e em constante risco de se
desfazer. O Estado hobbesiano seria, então, contrário à realização da vontade individual e não, adequado a esta que o torna possível.
Ao não tomar o estado de natureza como ponto de partida, Hegel
enfatiza a afirmação de uma necessária igualdade presente já sobre a forma
racional da Lei de Talião, o que justifica nosso ponto de partida. Mas como
nós não concebemos da mesma forma a expressão “olho por olho, dente por
dente” e “vida por vida”, devemos ainda buscar esclarecer de que maneira
esta igualdade se mostra como necessária. Como estas duas fórmulas não
são de mesma natureza, ainda que tenham o mesmo ponto de partida, vemos que esta lei repousa sobre uma base frágil no que concerne ao fundamento da punição. Então, mesmo que a dissolução do crime dependa inclusive de um tipo de Lei de Talião, ela não é suficiente para garantir a justiça,
pois a determinação de igualdade presente nesta lei é uma determinação
geral que pendula ao acaso entre o justo e o injusto.
Assim, nós vemos que a exigência de igualdade não pode ser definida segundo o “caráter específico da lesão”, pois, mesmo que isso signifique
antes punir “roubo com roubo” como na forma figurativa “olho por olho”,
isso significa também cair na armadilha de uma generalização perigosa ao
assumir também, na mesma lógica, “vida por vida”. Esta igualdade não deve
então repousar sobre o caráter específico da pena, mas seguindo a exigência
da razão, sobre seu valor. É então a determinação do conceito que faz desta
igualdade uma igualdade de valor, que consiste precisamente em compreender racionalmente a exata punição pelo crime que deve diferir da simples
anulação de um mal por um outro mal, i.e., que deve distinguir a justiça da
vingança legal.
No plano racional, nós pudemos então estabelecer a igualdade de
valor como resposta à uma exigência da justiça. Contudo, assim que este
plano busca sua objetivação, nós vemos que esta igualdade de valor tem de
se manifestar no mundo. Mas neste plano, a manifestação é logo limitada.
Analisemos esse ponto mais profundamente:
O suprimir do crime é retaliação, na medida em que ela é, segundo o
[seu] conceito, lesão da lesão e, em que o crime, segundo o [seu] seraí22, tem uma certa amplitude qualitativa e quantitativa, na medida em
22. Segundo Timmermans, ser-aí (Dasein) significa « cet être saisi dans as différence, ou empreint d’une certaine détermination ». In : B. Timmermans, Hegel, Paris : Les Belles Lettres,
82
Melina Duarte
que, por conseguinte, a sua negação enquanto ser-aí, também tem uma
amplitude”23.
Desse modo, após pretender ter estabelecido, através da extração
do princípio de igualdade da Lei de Talião, aquilo que é a primeira condição
para justiça na relação entre crime e punição, resta-nos ainda esclarecer
o que isso significa. A partir deste princípio de igualdade, nós mostramos
como a igualdade deve ser compreendida, a fim de evitar punições bárbaras
em nome da lei, do direito e da justiça. Foi-nos preciso assumir que esta
igualdade (de valor) não pode ser afirmada no mundo senão pela quantidade e qualidade, i.e., por seu ser-aí, por sua contingência exterior, por sua
particularidade, a qual é variável segundo tempo e cultura. A solução que
encontramos para poder afirmar a justiça no mundo foi de a indicar, mesmo
na sua exterioridade, como uma exigência da razão segundo a autodeterminação do espírito livre que busca constantemente sua realização também no
plano efetivo.
2000, p. 22.
23. G.W.F. Hegel, PD/DA, Tradução de Marcos Lutz Müller, São Paulo: Paulo: IFCH/UNICAMP,
2003, §101, p.117. Sobre a tradução de Wiedervergeltung, encontramos várias sugestões: Derathé, R. em sua tradução da Filosofia do Direito publicada pela Vrin em 1975, traduziu o termo
pela expressão Loi du Talion, p. 144; Kérvegan J-F. em sua tradução da Filosofia do Direito
publicada pela PUF em 2003, escolheu o termo représaille (represália), p. 201; Müller em sua
tradução pela IFCH/UNICAMP utiliza a palavra retaliação, p.117; Rosenfield em Política e Liberdade em Hegel utiliza a expressão Lei do Talião para apresentar a crítica ao estado de natureza
hobbesiano, p. 103-104. Ainda é possível traduzir o termo por retribuição, mais isso confundiria
a tese hegeliana acerca da punição com o retributivismo. Para os fins deste trabalho, nos é suficiente considerar o termo Wiedervergeltung em sua formação etmológica, no sentido em que
wieder corresponde à novamente, de novo e Vergeltung à um tipo de vingança ou retaliação,
visto que nós utilizamos a figura da Lei de Talião independentemente de sua explícita citação
em Hegel. Além disso, nas anotações ao §101 , Hegel fala de “roubo por roubo, banditismo por
banditismo, olho por olho, dente por dente”, na tradução de Müller, p. 117.
24. G.W.F. Hegel, PD/DA, Tradução de Marcos Lutz Müller, São Paulo: IFCH/UNICAMP, 2003,
§101, p.117.
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REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
A partir da citação acima, nós vemos que, sobre o plano dos eventos,
um tipo de Lei de Talião mantém ainda em si uma exigência de igualdade
entre e o crime e a punição na medida em que, enquanto conceito, ele busca
sua realização efetiva. Mas assim que o crime enquanto ser-aí tem uma
“certa amplitude qualitativa e quantitativa”, i.e. que ele prova um efeito que
deve ser analisado segundo suas características e gradações, a punição que
lhe é apropriada deve ter também esta mesma amplitude. Mas, como reconhecer a mesma clareza do conceito no plano dos eventos? Para Hegel “é
a identidade interna que, no ser-aí exterior, se reflete para o entendimento
enquanto igualdade”24. Isso quer dizer que as determinações de qualidade
e quantidade devem se dar na esfera do entendimento como uma exigência
da razão, mesmo se elas se fazem presentes na exterioridade. Assim, é a
partir dessa igualdade de valor, produzida inicialmente na razão teórica, que
o efetivo deve se pôr, i.e. como um reflexo no qual a mesma igualdade da
esfera teórica apareceria também na esfera prática.
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
A Lei de Talião e o princípio de igualdade...
Para que este sistema funcione, no entanto, é preciso admitir como
dado a existência de um Estado racional entre os homens, mesmo que ele
esteja em constante processo de determinação. Mas, nesse sentido, seria
suficiente para um ser ou para uma civilização racional se reconhecer ou não
segundo o conceito? Não continuaríamos assim justificando a existência de
penas bárbaras como simplesmente pertencentes ao âmbito do não-racional
ou do que está em processo de racionalização? Basta-nos reconhecer o que
faz ou não faz parte do direito somente em civilizações estrangeiras e/ou
sempre no passado? É neste ponto que nós nos desprendemos, em certa
medida, da filosofia hegeliana para pretender que a coruja de Minerva alce
voo não apenas ao entardecer, i.e. que a filosofia não se volte apenas ao
passado, mas que ela permita um olhar sobre a condição atual de nossa
civilização. Afinal, somos ou não bárbaros? Se bárbaro é aquele que admite
punições grotescas em nome da justiça e que não respeita o criminoso como
um cidadão sendo que o crime, muitas vezes, é ocasionado pela insuficiência
do Estado, então temos de nos admitir também como bárbaros. Temos de
admitir que um Estado formado por bárbaros se aproxima mais do estado
de natureza hobbesiano do que do Estado racional que pretendemos fundar.
Nesse estado de bárbaros, assim como no estado de natureza, nenhuma
punição pode ser aplicada na forma da justiça, mas somente na forma de
uma vingança legal. O Estado se vinga ao agir com violência e, de volta à
Hegel, acaba por negar a sua própria racionalidade ao negar a racionalidade
ao criminoso.
Referências Bibliográficas
Obras de Hegel
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Marcos Lutz Müller, São Paulo: IFCH/UNICAMP, 2005.
___ PD/DA, Tradução de Marcos Lutz Müller, São Paulo: (IFCH/UNICAMP),
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___ PD, Tradução de J-F. Kérvegan, Paris: PUF, 2003.
___ PD/Estado, Tradução de Marcos Lutz Müller, São Paulo: IFCH/UNICAMP,
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___ ESP (Encyclopédie des sciences philosophiques, Tome III – Philosophie
de l’Esprit), Tradução e apresentação de Bernard Bourgeois, Paris : Vrin,
1988.
___ PD, Tradução de Robert Dérathé e J-P Frick, Paris : Vrin, 1975.
Outras Obras
Platão, Gorgias, Tradução de Alfred Croiset, Paris : Éditions du Passant,
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2004.
C. Beccaria, Dos delitos e das penas, Tradução de Nelson Jahr Garcia, Edição
Ridendo Castigat Mores, 2001.
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mœurs, I, Fondation, Introduction, Tradução de Alain Renaut, 1994.
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REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
D.L.Rosenfield, Política e Liberdade em Hegel, 2ª Ed., São Paulo: Ática,
1995.
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos
Ano 6, nº10, Junho-2009: 87-108
Da “syn díkei” à lógica da Corporação – a superação
da Tragödie im sittlichen na filosofia de hegel
Sergio Portella1
Palavras-chave: tragédia; liberdade; Hegel; burguês e cidadão.
Abstract:The present work aims to examine the relations of the hegelian philosophy with classical greek tragic literature and also to examine the analogous character between the systematic
nature of the tragic narrative and the world view (Weltanschauung) of the modern secular finite reason immersed in a system of facts that exceeds and defies it. In such a way, this work
analyzes the interfaces of the antiquity´s cultural imaginary and the literature, over all in Aeschylus, and the relations that Hegel does between tragic literature and political philosophy understood in its real-sistematicity. This work also intends to apprehend the conceptual interfaces
which able us to confer the unity intended by modernity to the Greek culture as it was analyzed
in Hegel´s thought, that is, the well kown relecture of the classical greek antiquity in the light
of the challenges left by kantian philosophy. The itinerary of the freedom notion that, by the
observance of the divine law, goes through the human subjects as the men law as much as it
remains dissociated from the same law in the transgressive character of the tragic hero. This
itinerary has in the modern tradition of the Self the limits of the particular efficiency as much as
the finitude is surpassed by infinite subjectivity articulated with rationality of the ethical State.
And is yet the same itinerary that makes the negation of the narrow horizon of the subjectivism
in the passing from the Civil-society to the State and characterizes the failure of the paradigm
of conscience by the overcoming of the citizen on the bourgeois tragedy.
Keywords: tragedy; freedom; Hegel; bourgeois and citizen.
1. Mestrando, Bolsista PROSUP/CAPES, em Filosofia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos
– UNISINOS. Texto submetido em Junho de 2009 e aprovado para publicação em Setembro de
2009.
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REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
Resumo: Este trabalho se detém às relações da filosofia hegeliana com a literatura trágica
greco-clássica, ao caráter análogo da natureza sistemática da narrativa trágica à cosmovisão
da razão finita temporal moderna imersa num sistema de fatos que a excede e desafia. A tanto, analisa as interfaces do imaginário cultural da antiguidade e sua literatura, sobretudo com
Ésquilo, com a filosofia de Hegel, quanto à relação da literatura trágica com a filosofia política
compreendida em sua real-sistematicidade. Objetiva apreender as interfaces conceituais que
habilitam conferir a unidade pretendida pela modernidade à cultura helênica ao incidir no pensamento de Hegel como a releitura da antiguidade greco-clássica à luz dos desafios legados
pela filosofia kantiana. O itinerário da noção de liberdade que, da observância à lei divina, tanto
adentra os assuntos humanos como a lei dos homens quanto se mantém dissociada da mesma
no caráter transgressivo do herói trágico, tem na pretensão moderna do Eu os limites da eficiência particular, bem como a superação desta finitude pela subjetividade infinita articulada à
racionalidade do Estado ético. Tal itinerário nega o estreito horizonte do subjetivismo na passagem da Sociedade civil-burguesa ao Estado e caracteriza o fracasso do paradigma consciencial
pela superação do cidadão à tragédia burguesa.
Da “Syn díkei” à lógica da Corporação...
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
1 – Conflito e identidade na tragédia grega
Valéria Reis identifica na sociedade grega a coexistência de duas esferas opostas, ainda que necessariamente complementares, uma mediante
a qual a sociedade grega se mostra a totalidade orgânica orientada pela busca à verdade nos debates públicos, outra referente ao “agonístico processo
dos debates” (REIS apud RUBY, p. 32), onde alude à própria essência da
formação política grega enquanto sustentada pelos embates dos cidadãos
nos assuntos públicos. Identifica a historiadora que tal distinção jamais seria
própria à consciência dos indivíduos. Ao cidadão grego era unívoca a noção
de seu papel em excelência quanto à Pólis no tratante à participação nas decisões públicas mediante o uso da palavra a fins de superação das posições
que lhe fossem contrárias. Aliás, esta contrariedade de posições integraria
um mesmo anseio de permanência de algo coletivo que justamente subsiste
neste metabolismo complexo. Considerar tal distinção que hierarquiza em
esferas o que seria uma só estrutura, uma autópsia conceitual da hélade,
será algo próprio aos modernos, que tomam as relações políticas como algo
dado entre os homens, uma caracterização que distingue a práxis política da
natureza que, aos gregos, seria imprópria. A noção de cidadania grega deve
ser compreendida como atida à práxis política que requer tomada de posição
e conflito (stásis) pelos cidadãos, conceito este a ser entendido à Grécia do
século de Péricles. A presente seção visa oferecer conceitos que elucidem tal
elaboração processual e demonstrem seu desenvolvimento.
1.2 O conflito como elemento da identidade do homem grego
Conforme Loraux (REIS apud RUBY, p. 19), hipostasiar a identidade
política de um povo é igualmente assentir sua unidade e, por conseguinte,
finitude como fenômeno cultural cuja elucidação discursiva histórica pressupõe sua transcendência enquanto núcleo semântico. Tal, aos gregos, foi
elaborado a partir da noção de conflito (stásis). Esta remete à harmonia do
indivíduo ao grupo social pela construção particular da práxis política mediante tomada de posição e conflito, o ipso facto da alteridade antropológica
grega. Sua construção elaborou-se de modo escalar, contudo permanente,
trazendo elementos constitutivos cuja significação foi incorporada à essência
do espírito político grego.
Em Ésquilo, veja-se a coexistência no imaginário das noções de conflito e unidade nos versos: “(procurando) dentre os citadinos, não só os que
agiram justamente, mas os que agiram injustamente” e “Pesadas as palavras de maldição dos cidadãos que, retificadas pelo povo, cobram a dívida”
(Agam., vv. 456-457). No primeiro dá-se a sugestão pelo coro dos anciãos
ao rei que este distinga os cidadãos que permaneceram na cidade e agiram
justamente; o segundo denota a cólera e a maldição do povo. Ambos os versos denotam conflito, frente ao que a exposição segue denotando as noções
de unidade e segurança: “(os deuses) depositam na urna o voto sem vacilo”
(Agam., v. 815).
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Sergio Portella
1.3 O transcendente na efetivação dos negócios humanos
Pode-se aludir à unidade dentre os elementos sociais do imaginário
grego no período em que Eumênides foi encenada (458 a.C.), dadas a ocorrência da votação e a resultante expressão da maioria. Mas é a presença da
deusa que legitima o resultado face à neutralidade consensual dos juízes.
Percebe-se, assim, a visão de Ésquilo à tênue garantia da expressão da
maioria à representação da unidade, a necessidade da legitimação externa
à efetivação da identidade das partes. Logo, do necessário controle social
à legitimação do poder, bem como de locais próprios à ocorrência dos processos sociais, dada a alusão às figuras próprias a sua execução, os juízes
(isópsephos). Estes tomam a função do controle através da práxis da oratória, subjugando os indivíduos componentes da unidade pelo lógos. Mas, de
todo modo, importa a unidade expressa no processo da votação que, qual
na vitória de Orestes, deu-se mediante o sagrado, a intervenção da deusa.
Mesmo os juízes perdedores se calam face à sentença uma vez esta se dar
pela mão divina. Ilustra-se com isso o inquestionável senso de transcendência que aos gregos era própria aos processos de representatividade política.
A intervenção da deusa na elaboração da regra de desempate aos
votos e na contemporização das partes em conflito (Erínias) sugere a imanente oscilação da unidade expressa pela maioria. Equilíbrio e desequilíbrio
são engendrados pelo mesmo voto que contrapõe as partes em conflito e
ordena sua unidade. A práxis política não pode se isolar do sntido religioso,
sob risco da inefetividade. As potências divinas gregas integravam o cenário
humano compondo uma hierarquia que subordinava os mortais sob regras
propedêuticas à coesão social. Mediante a inserção dos homens à Themis, a
lei divina, o curso da natureza justifica-se como coerente à lei sagrada. Mas
ainda não será a lei dos homens que os guiará à elaboração de ‘algo comum’.
A ordem mostra-se em Ésquilo bem estabelecida sem requerer maiores aptidões humanas que a observância à Themis e o temor à cólera olímpica. As
leis eram aplicadas aos homens tanto nas relações entre si como aos seres
sobrenaturais, tornando as relações de poder e direito ações práticas. Tal
prevalece desde o mundo arcaico de Homero: “A lei divina não me permite
fazer mal aos que chegam” (Odisséia, XIV, v. 56); até três séculos depois
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Todavia, em Eumênides, Ésquilo alude à representação da unidade
pela voz da maioria como algo possibilitador de conflitos. Nos versos 674 e
675, a deusa Palas Atena ordena o início da votação do julgamento de Orestes: “Ordeno aos de reta razão que tragam o justo voto como tenho dito
insistentemente” (Eum., vv. 674-675), complementando que o empate dos
votos “será pela absolvição de Orestes” (Eum., vv. 733-735). Dada a igualdade dos votos dos juízes, a deusa proclama a vitória de Orestes. Seguidamente, dirige-se às vencidas (Erínias) visando acalentar as partes e profere:
“Não vos sentis vencidas, mas a justa igualdade dos votos sai verdadeira”
(Eum., vv. 795-796).
Da “Syn díkei” à lógica da Corporação...
com Ésquilo: “Primeiro saúde a primeira profetisa Gaia e depois a segunda
Themis” (Eum., vv. 1-2).
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1.4 Nómos, a lei dos homens enquanto costume
Referir à predominância da lei dos deuses (Themis) à lei dos homens
(nómos) no período arcaico grego não significa afirmar sua inexistência.
Esta estaria ainda no âmbito do costume, referindo a algo consagrado pelos
antepassados. Comporia já em Homero um significado relevante à elaboração da legislação como expressão da justiça e eqüidade pelo conceito de
eunomia. Em oposição, dá-se pela utilização do prefixo dys (dificuldade/
privação) a noção de disnomia que, em diferentes elaborações, identifica
que algo comum refere à má ordem ou legislação injusta. A disnomia em
ocorrências literárias é identificada ao conflito através da figura desmedida
do herói trágico. A ordem personificada da lei divina da Themis, quando assolada pela ação desequilibrada do herói, sucumbe facilmente. Em Persas,
Ésquilo propõe um rei Dário lamentoso pela derrota de seu exército devido
à desmedida de seu filho Xerxes: “ao mortal empenhado à própria perda, os
deuses apressam-se em ajudar” (Per., vv. 740-742). Veja-se que o termo
que significa “apressar-se” (speudei) denota intencionalidade ao ato. Uma
vez afrontada a ordem divina, os deuses corroboram pelo ato heróico como
algo destrutivo. A eunomia, ainda que coerente à ordem, não é algo que se
possa efetivar a menos que mantenha consigo uma noção que vislumbre
uma ordem ainda ideal, um caráter transcendente consigo.
Esta investigação assente o cunho essencialmente religioso da práxis
política grega, o sobrenatural como condição de efetivação da ordem social.
Note-se que a coletividade incorpora neste grau da mentalidade grega um
padrão que ultrapassa a expressão do cotidiano concreto dos indivíduos.
O coletivo perfaz algo que avança ao somatório das partes, ainda que pelo
caráter negativo do que se diria humano dentre o sistema de regras propostas. A desmedida hýbris do herói trágico ocorrerá como algo que interfere
à ordem desejada na Pólis. A esta importará dos cidadãos que se pensem
como partes dum todo, ao que lhe caberá compreendê-los neste todo pelo
estabelecimento de leis coerentes. Neste sentido a proposta da isonomia política dos cidadãos dita-os equânimes perante leis agora humanas, ainda que
dadas a fins dum modelo ideal pelo próprio princípio motor do estabelecimento prático da isonomia, a saber, a moderação (sophosyne). A idealidade
da ordem que rege a cidade e o caráter sagrado do seu desvelo pelo legislador põem-se às vezes do transcendente que não se desfaz, mas funde aos
assuntos humanos e torna divino o ato pré-político da fundação do direito.
1.5 A ascensão da coletividade isonômica à cidadania e o contraste à harmonia social pelo herói
A consideração do imaginário político grego pela noção de isonomia,
ainda que presente desde a Grécia arcaica, já faz relação ao conceito de
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Sergio Portella
igualdade aos cidadãos da Política de Aristóteles2. No calar da individualidade face à ordem idealmente admitida percebemos o elemento trágico
permanente ao pensamento grego contemporâneo a Péricles3. Pretendemos
identificá-lo aos debates públicos onde a liberdade se estabelece pela ação
e pelo discurso e dita o desprendimento às amarras essenciais da vida na
ascensão à boa vida.
O herói trágico e o cidadão da Pólis são livres à medida do desprendimento que mantém às respectivas estruturas convencionais do agir humano.
Ação e discurso são os termos próprios ao desprendimento à necessidade
imediata. Contudo, unicamente a participação nos negócios públicos, o abdicar pelo cidadão ao conforto pelas conflitivas negociações em assembléia,
confere à liberdade o reconhecimento público. Mas, mutatis mutandis, identificam-se a figura do cidadão inserido às instituições democráticas e a figura
do herói estranho às mesmas, dado o seu caráter pré-civilizatório, visto ambos superarem a expectativa da vida limítrofe à necessidade. A cidade pela
idealidade das suas razões significa a simples vida associativa ao tornar-se
o espaço a uma liberdade não transgressora. O transcendente move mãos
humanas e torna tão divina a participação do cidadão na assembléia quanto
vil o seu repouso doméstico. Não está em Ésquilo a noção da democracia
como ordem política institucional. Porquanto cabe aludir à expressão literária do avanço teórico do papel dos cidadãos no processo de coesão social. A
noção de isonomia será fator de importância maior ao desenvolvimento do
pensamento político grego que ainda requererá a elaboração institucional da
lei dos homens.
1.6 Díke, a lei institucional humana
O horizonte de Ésquilo não integra o conceito jurídico de fato social,
a tomada à tutela de algo ao interesse do corpo político. Distingue-se de
2. Dos cidadãos, “apesar de toda diversidade de suas tarefas, querem defender todos a segurança do Estado; o que os une em uma comunidade é a constituição” (Aristóteles, Pol. II, 1276
b 29).
3. Nas tragédias de Ésquilo o discurso em prol da moderação permeia a fala do coro e cala toda
individualidade. Veja-se Suplicantes v. 992, Coéforas v. 140 e Eumênides v. 44.
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A moderação é requerida aos cidadãos da Pólis. A compreensão de
Aristóteles de que o coro “imita menos” alude à pretensão formativa da significação universal à realidade histórica a ser identificada ao imaginário dos
cidadãos pela Tragédia. O elemento consensual lhes é identificado na figura
que não representa, não imita. Ainda que o conteúdo da Tragédia não trate
de qualidades humanas, mas dos acontecimentos aos homens relacionados,
suas ações e sua boa ou má sorte, a figura intangível e não universalizável
do herói só será revelada na imitação (mímesis) de seus atos. Somente pela
sua figura a Tragédia elabora-se como ação. Enquanto os elementos do coro
seriam harmônicos à proposta vigente e compreensíveis pelo contexto político, a presença do herói é dotada de ação (drama) e discurso (lógos). Sua
elaboração da própria história é uma busca particular à verdade (alethéia) e
uma fuga à isonomia própria ao cidadão comum.
Da “Syn díkei” à lógica da Corporação...
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nómos, referente à tradição e à ordem justa e sagrada. Tampouco seria
uma noção de justiça pública a ser efetivada na práxis dos tribunais. Sua
elaboração conceitual, expressa por díke, sequer ocorre em Persas (472
a.C.), ocorre quatro vezes em Sete contra Tebas (467 a.C.) e nove vezes em
Suplicantes (463 a.C.) (THELM, p. 44). Contudo, passa a ocorrer com maior
freqüência no decurso intermédio aos períodos arcaico e clássico.
Díke expressa a inserção dos cidadãos às tomadas de decisão nos assuntos públicos e ao cumprimento da lei estipulada em assembléia. Decorre
da oposição à nobreza fundiária pelo rol dos cidadãos comuns que ansiavam
por espaço de decisão. Nómos e díke não se opõem quanto à significação,
mas quanto à ocorrência: nómos é oriunda do imaginário cultural, algo que
estaticamente norteia posições sem permitir qualquer adequação circunstancial, uma vez assentada nos códigos de honra do período arcaico; díke se
elabora como processo discursivo imediato, dá a cada um o que é devido à
situação corrente (JAEGER, p. 73). Díke significa processo, decisão e pena.
Opera diferentes circunstâncias da trama e instancia a ação da qual obtém
sua verdade. Veja-se em Eumênides: “Como testemunha, expõe para mim,
Apolo, se estava comigo a justiça quando a matei” (Eum., vv. 609-610). Díke
como justiça dinâmica dirá própria a práxis dos tribunais através do prefixo
syn, indicando syn díkei. Referirá à elaboração humana da justiça, seu desempenho institucional e discursivo nos tribunais.
A noção de koinonia, igualmente central, é diversamente significada
na obra de Ésquilo. Sua apreciação semântica importa à compreensão do
mecanismo humano que efetiva díke. Leiam-se os versos: “Dá-se o crime!
Percebo os soluços do rei, unamo-nos e deliberemos” (Agam., v. 1374) e
“Não carecendo de amigos, não só nos reuniremos, mas deliberaremos o
acontecido” (Coef., vv. 717-718). O radical comum é diferentemente declinado no texto: koinosometha (voz médio-passiva), o unamo-nos no primeiro verso, e koinonéo (voz ativa), o reuniremos no segundo. São ambos
utilizados pelo coro para informar a emergência de reunir os cidadãos, na
primeira passagem para que deliberem acerca do assassinato do rei, na segunda para agregar um grupo baseado na noção de amizade (philia), para
que, deliberando, estendam sua relação à união política. Nesta passagem
encontramos o sentido de constituir a unidade política, quando naquela a
unidade já é suposta. Denota-se em Ésquilo a noção de koinonia associada
ao ato de deliberar (buléo) como o processo constitutivo de díke, bem como
resultante da mesma. O sentido expresso por koinonia, assim, não expressa
a união estática qual seria se pura koinosometha, mas sim um sentido forte
e emergencial, o caráter relacional aos cidadãos. Estes são compelidos por
necessidade a deliberadamente constituírem unidade (koinonéo) em prol
do fim maior coletivo, dinâmica dos tribunais que interage às necessidades
específicas.
Por conseguinte, dada a necessidade de deliberar sobre seus assuntos, ocorrerá que os cidadãos irão interagir entre si nos tribunais. Estabelecem o instrumental institucional dado pela noção de syn díkei que permi92
Sergio Portella
te de diferentes modos a ampliação da isonomia, noção esta que marca a
verdadeira transição de conceitos de origem arcaica (mediante nómos), aos
conceitos próprios ao século V a.C., que já tomam para si, a fins de justificação, o poder (kratós) como princípio (arché) determinado.
1.7 A Pólis como a imortalização das virtudes humanas no paradigma antropológico
O caráter trágico e necessário da ação, face à concepção arcaica do
pensamento político grego, revoluciona a concepção do cosmos. A ordem
mantém sua gênese transcendente, contudo, sendo agora instanciada na
realidade como o ethos decorrente da ação conflitiva dos homens. Se a Pólis
arcaica punha como obediência aos deuses a observância às leis, o caráter
transcendente agora cede lugar à necessidade imanente atendida pelo cidadão na retidão do seu agir face às leis. A efetividade expressa pela maioria
nos pleitos assevera ser a vontade humana livre e compassada à vontade
divina. A deusa se personifica no tribunal para ratificar a reta decisão da
instituição humana. O otimismo do cidadão da Atenas do século de Péricles
prevê sublime os cumprimentos institucionais como algo fundado no consentimento divino. Veja-se a Oração fúnebre de Péricles. Alude que “nossa
Constituição chama-se Democracia [...] porque o poder está nas mãos, não
da minoria, mas do maior número de cidadãos”, modelo este a ser levado
como “padrão de referência” às demais cidades, visto que “há igualdade
perante a lei”. A virtude no modelo político da Atenas do séc. V a.C. não
era oposta à consideração política do cidadão estar imbuída de elementos
fundados na poesia épica e na religiosidade. Dá-se o elogio à cidade pela
nobreza humana e elevação das instituições, o que se funda na consciência
do consentimento divino. “Mantém a ordem pública, asseguram autoridade
aos magistrados, protegem os fracos e dão a todos espetáculos e festas que
levam à educação da alma”. Sustentam a virtude dos guerreiros, uma vez
que “prefiram morrer heroicamente a deixar que lhes tirem a pátria”.
Mediante díke a cosmovisão do cidadão grego transcende, sem rele93
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Nosso itinerário aliou o desenvolvimento institucional à constituição
do imaginário do cidadão grego. Percebemos ser a identidade particular
agente da coesão política, bem como o discurso trágico em Ésquilo permeado por uma tensão que reencontra seu padrão de ordem (eunomia) no
ato de reunir (koinonia) os cidadãos em sua tomada de posição mediante
conflito (stásis). O voto que estabelece a unidade, contudo, será legitimado
pela divindade (a Themis, lei divina transcendente, ou sua personificação
em Palas Atena). Uma vez assentidos os costumes e leis (nómos), os cidadãos sentem-se iguais face ao todo, e o caráter disto ser bom remete a algo
divino. A Pólis, lugar da isonomia dos cidadãos, não é indiferente à vontade
divina: qual o abalo da ordem pelo excesso do herói trágico, a omissão do
cidadão ao papel conflitivo terá pela ordem transcendente suas conseqüências.
Da “Syn díkei” à lógica da Corporação...
gar, considerações univocamente políticas. A atuação pública do indivíduo se
justifica não mais no código dos antepassados ou na tradição religiosa, mas
pelas instituições que afirma e que consigo constituem um universo integral.
A Pólis deveria ser amada pelas leis e instituições, pois os deuses também
as amam. O cidadão sacrifica a si em detrimento do todo não pelo critério
negativo do temerário à Themis ou enquanto existência alheia que busca a
imortalidade do seu nome, mas como detentor igualitário das instituições
que acredita e que lhe garantem a compreensão do mundo.
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2 – O fim da tragédia pela novela hegeliana
A ética qual concebida por Aristóteles goza do status de saber autônomo ao conferir ao indivíduo a condição de detentor das condições concretas de fundamentar o agir moral. A tanto, estabelece uma inflexão antropológica à metafísica platônica: o homem que ruma aos primeiros princípios
constrói um saber prático análogo à razão teórica. A busca pela felicidade
é, por assim dizer, a construção da própria realidade em acordo ao conhecimento obtido da ordem pela qual as coisas são postas. Cabe ater, portanto,
à necessária relativização da práxis ao bem humano. Mas a autoconsciência
moderna se vê impossibilitada de fundar o agir moral senão como o desempenho da razão que pelo conceito formal desvalidou a experiência no âmago
da razão prática. O bem agir performado segundo o princípio universal avesso a todo conteúdo desfaz o caráter análogo da razão prática à razão teórica ao justamente equivalê-las. A noção cartesiana da idéia cujo conteúdo
advém do objeto se torna pela revolução copernicana de Kant a apercepção
transcendental que absolutiza o conhecimento (Verstand) na razão (Vernunft). Logo, funda a objetividade pela subjetividade para então resolver o
discurso moral como um postulado da razão pura prática, a submersão da
práxis à poiésis que dita o agir moral como o desempenho do conceito.
A geração posterior assumiu a tarefa de repensar o veto kantiano à
tematização da coisa-em-si e a conseqüente indisposição desta como o télos
do discurso moral. Hegel propôs sua reincorporação ao discurso filosófico
sem romper à perspectiva crítica: uma lógica objetiva que toma por fundamento a essência resultante da “medida” (Mass) do objeto é conduzida de
modo a ampliar o conhecimento tido da coisa para ao cabo equivalê-la ao
conceito. Logo, a revitalização da noção de substância, pressuposta à lógica
subjetiva, vista como idêntica à objetividade. Nisto, Hegel inscreve-se à tradição filosófica neoplatônica ao conceber a dedução do real a partir de sua
lógica, uma espécie de emanação.
2.1 O trágico nos Escritos de juventude e na Fenomenologia do Espírito
Em O espírito do cristianismo e seu destino [Der Geist des Christentums und sei Schicksal] Hegel ataca o formalismo da filosofia de seu
tempo mediante a oposição entre cristianismo e judaísmo. Este é definido
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(...) foi criada somente uma lei, cuja dominação começa agora; esta lei é
a unificação – por intermédio do conceito de igualdade – da vida ferida,
aparentemente alheia, e da própria vida, cuja autonomia se perdera. Só
agora a vida ferida aparece como um poder inimigo, prejudicando-o do
mesmo modo que ele a prejudicou. O castigo quanto ao destino é a reação
idêntica ao ato do criminoso, reação de um poder que ele mesmo armou,
de um inimigo que ele tornou hostil. (HEGEL, 2003, p. 322)
O conflito ontológico é sempre fatal à certeza subjetiva. Mas consciência pode se reconciliar com seu destino no amor que é “a vida que se
reencontra a si mesma” (HEGEL, 2003, p. 324).
O que diferencia os EJ da PhG é a nítida percepção nesta de uma
compreensão sistemática de filosofia que, não obstante, atem-se à condição
reflexiva da subjetividade moderna. O itinerário da PhG adéqua a certeza
subjetiva à verdade objetiva no saber absoluto que é pressuposição subjetiva
à exposição do sistema. Somente suprassumido no lógico o fenomenológico
expressa o puramente inteligível, a forma do ético como ponto de partida ao
discurso sistemático. “Figuras históricas... encarnam atitudes éticas típicas
à lógica do processo de formação da consciência” (AQUINO, 2005, p. 315).
Somente no saber absoluto à autoconsciência cabe dizer a manifestação
conforme a necessidade sistemática. Mas previamente a consciência fará
a injunção dos distintos momentos histórico-dialéticos, estabelecendo sua
passagem à autoconsciência. Ao emergir da articulação destes momentos,
o ético designa figuras sucessivas da liberdade subjetiva. Ao cabo do experienciar das razões pressupostas à objetividade, a autoconsciência dispõe de
um saber pressuposto à totalidade do real.
A filosofia hegeliana na PhG supera os paradigmas sobre os quais se
constrói. A dialética do espírito na Moralidade da PhG efetiva o “Eu que é
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pelas mesmas críticas postas à filosofia kantiana, a rígida cisão do humano
ao divino, do particular ao universal. Jesus ao transpor esta cisão trazendo
o mandamento objetivo à mediação subjetiva mostra-se o universal singular. À consciência infeliz mundana restará elevar-se às falácias do Pastor
ao perfazer os passos da Phänomenologie des Geistes para atingir o saber
absoluto. Mas, nos marcadamente teológicos Escritos de juventude, Hegel
apresenta a superação do formalismo pelas figuras do amor [Liebe] e do
destino [Schicksal] como resultado da liberdade cristã que não encerra o
homem na dominação. Se mal utilizada, a liberdade converge no crime e no
pecado pelo indivíduo ignorante da necessária reconciliação da sua vida à
vida universal. “O criminoso pensava haver com uma vida alheia, mas a que
destruiu foi a própria, pois a vida não se diferencia da vida, já que descansa
na divindade unida em si” (HEGEL, 2003, p. 263). Quando assim tomada, a
culpa [Schuld] decorre da cisão da unidade da vida que pode, contudo, ser
refeita. Ao trazer tal perspectiva à origem do cristianismo, Hegel coincide-o
com a gênese da dialética. O destino em O espírito do cristianismo e seu
destino é ilustrado com uma tragédia: Macbeth. Após o assassinato de Banquo, Macbeth não vê diante de si uma lei que lhe seja alheia, mas tem no
espectro de Banquo a própria vida ferida.
Da “Syn díkei” à lógica da Corporação...
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nós, o nós que é eu” [Ich, das Wir, und Wir, das Ich ist] (PhG § 177) da “certeza de si mesmo” e se põe como preâmbulo teórico da Ciência da Lógica.
Ascende ao formalismo da filosofia kantiana sem negar sua universalidade:
constrói-se na experiência do espírito pela autoconsciência, o escrutínio de
razões pressupostas aos momentos histórico-dialéticos aos quais embateu.
Tais razões aferem a necessidade do real, são, portanto, universais. Ao fim
da PhG, a equivalência do conceito subjetivo das diversas autoconsciências
constata não ser tal empresa mero formalismo, mas o desvelo da coisa-emsi. O espírito é unidade das autoconsciências que existem como substância
absoluta. A PhG conclui no saber absoluto que reina na WL.
2.1.1 Cisão e reconciliação da consciência com o transcendente na PhG
O puro inteligível expresso pela PhG, ponto de partida ao sistema,
excluirá toda pretensão de absolutização da particularidade. “O verdadeiro
é delírio báquico, onde não há membro que não esteja ébrio; e porque cada
membro, ao separar-se, também imediatamente se dissolve, esse delírio
é repouso translúcido e simples” (PhG § 47). A subjetividade como infinita
reflexão condiz ao projeto racionalista da filosofia pós-kantiana onde a subjetividade põe [setzt] a objetividade mediante o conceito universal. Diferindo dos EJ, a PhG perceberá incidir o método dialético não mais somente ao
Espírito Absoluto, mas igualmente ao itinerário do espírito finito. O método
vale à construção gradual do conhecimento pela consciência e perpassa todos os âmbitos da vida. A condição moderna de superação do destino na
unidade da vida pelo amor perpassa a autodeterminação do indivíduo que
torna coesas as determinações outrora colidentes por ele mesmo postas. A
reconciliação ao destino pelos “heróis” modernos dificulta-se dado que “estão desde o início em meio à amplitude de relações contingentes no interior
das quais é possível agir dessa ou doutra maneira” (HEGEL, 2004, p. 264).
De toda forma, o palco da Tragédia é a eticidade (Sittlichkeit) cuja forma
originária foi concebida na antiguidade.
Veja-se o primeiro capítulo da seção O espírito da PhG, O mundo ético: a lei humana e a lei divina. Difere dos momentos anteriores, suas figuras são “espíritos reais, efetividades propriamente ditas; em vez de figuras
apenas da consciência, figuras de um mundo” (PhG § 441). O mundo ético
é então substância calma: seu devir é sua ulterior atualização das próprias
potências. Toda ação na eticidade imediata da bela vida substancial helênica
é regida pelo costume e dita o momento em que a singularidade se reconhece e realiza na universalidade. A substância é então “essência universal
e fim, contrapõe-se a si mesma como à efetividade singularizada”, pelo que
a consciência-de-si é “unidade de si e da substância” (PhG § 444). O “folclore feminino” (PhG § 451) que rege a atividade familiar encontra aporte em
Sófocles: “(...) não é de hoje / desde os tempos mais remotos elas vigem /
sem que ninguém possa dizer quando surgiram”. A família tem seu próprio
espírito, o Penates do mito, mas se encontra num contexto mais amplo enquanto determinante parcial do costume. Tal se expressa na equivalência do
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homem à comunidade e da mulher à família, cujo reconhecimento imediato
(casamento) dita o elemento ativo da comunidade.
A oposição do Estado, a vida ética na universalidade espiritual, à família como eticidade natural tem expressão acabada na colisão entre amor e
lei [Gesetz]. A superação do trágico na leitura hegeliana é dada pelo formalismo [Formalismus] de Creonte face ao sentimento [Gefühl] de Antígona. É
conhecida a trama do incesto de Édipo que, descoberta, resulta no exílio do
herói cego em Colona. Exilado pelos filhos Etéocles e Polinices, Édipo lhes
amaldiçoa a inimizade mortal. Para evitar os riscos predestinados, os irmãos
acordam revezar o poder. Mas Etéocles não passa a coroa a Polinices que,
fugitivo, pede auxílio a Adrastos, rei de Argos. Polinice conduz o exército de
Argos contra Tebas e é morto em combate pelo irmão. Tal traz Antígona a
Tebas para realizar os ritos fúnebres. Mas Creonte havia negado este direito
ao invasor morto. Eis o dilema de Antígona, a impossibilidade de bem agir.
Se coerente à cultura, descumpre as leis; as obedecendo, é omissa à ética e
religião. Afinal, onde se embatem anseios públicos e privados, nenhuma ética ou lei é verdadeira. A ordem do novo senhor da cidade, Creonte, é uma lei
humana que se quer realizar, mas também um crime ao mandamento divino
de honrar os mortos. Creonte é pai e marido, deveria respeitar a lei divina.
O herói trágico, cindido entre duas leis, difere do indivíduo vivo e pleno da obra de Homero. A substância não é mais o imanente a ser decriptado
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Mas a ação “(...) que só perturba a quietude da substância...” (PhG
§ 729) faz emergir o Si em sua potência negativa, tornando-se o próprio
destino. Pelo homem se instaura a prova de morte (guerra) que faz sentir
na lei humana a lei divina. A comunidade teme a perda dos seus e a família
sente sua dependência à comunidade. O sentimento ascende da família à
comunidade. Esta noção é lida à luz do capítulo A ação ética: o saber humano e o divino, a culpa e o destino, voltada ao como a “calma organização”
(PhG §§ 464) da bela vida substancial “desvanece” (PhG § 476) mediante
uma infindável sucessão de guerras. Elas teriam cindido o sentido até então convergente dos interesses do cidadão, a fruição da vida privada aos
ditames da lei divina, aos interesses do Estado, os deveres da vida pública
conforme a lei humana. Nela, o “Si se tornou algo em-si-e-para-si-essente.
Mas nisso, precisamente, a eticidade foi por terra” (PhG §§ 407). Este “universal fragmentado” repercute na afirmação pela pessoa do “Eu essencial”
(PhG §§ 478) que, contudo, será tido uma “efetividade abstrata” (PhG §§
479), deslocada da efetividade. O dever (sollen) era até então dado em meio
à realidade essencial, o que não condiz à condição da infinitude apreendida
pela particularidade finita. O “eu essencial” marca o conflito do indivíduo
com a divindade. Do fracasso da particularidade pretender abarcar o universal, uma relação crítica à lei se instaura. O conflito resultante converte-se
na violência (Gewalt) da oposição pelo indivíduo entre uma lei e outra. Ao
cabo, será um “puro pensar” (PhG §§ 483) qual a “consciência estóica” (PhG
§ 479), o recolhimento da subjetividade outrora harmônica ao real. Eis o
conflito entre lei divina e lei humana expresso por Antígona e Creonte.
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Da “Syn díkei” à lógica da Corporação...
pela autoconsciência heróica do cidadão cujo debate conflitivo se legitima
no interesse público, mas o transcendente cujo desvelo infindadamente remete à insuficiência do sujeito. Logo, ao sofrimento da “infinita separação
entre o Subjetivo e o Objetivo” (HEGEL, 2004, p. 252). Tal cisão se resolverá
pela mostração histórico-dialética do espírito no mundo cristão. A violência
[Gewalt] pelo herói resultante da fragmentação da unidade ética grega terá
seu veto no homem cindido com o mundo no cristianismo romano. Ainda,
terá sua reconstrução como poder [Macht] pelo homem que no trabalho
constrói sua realidade e efetiva sua subjetividade infinita. Percorrerá a necessária unificação destes momentos deflagrada pela Revolução Francesa
como a emersão da vontade particular no mundo construído sob a cisão da
subjetividade abstrata ao Absoluto.
No capítulo O Estado de Direito, que finda a Parte I intitulada O
Espírito Verdadeiro da seção O espírito da PhG, o “puro pensar” da consciência decorrente da cisão da “bela vida” helênica é lido à luz do itinerário
histórico-dialético. A pretensão de vontade da pessoa que se toma como “Eu
essencial” se torna uma escravidão: ela se pôs deslocada da efetividade,
ainda que permaneça dependente desta à realização da sua vontade. Isso
se converte num formalismo do direito semelhante à consciência cética. Pois
o direito é “vazio” neste deslocamento para com a vontade do cidadão. Não
é sua realização, mas condição externa. Toma por seu conteúdo a “posse”
da pessoa, então, como o “universal formal” [abstrakte Allgemeine] (PhG §
480) da propriedade. Ou seja, é posta a figura da pessoa de direitos em sua
liberdade negativa, limite externo às investidas de terceiros e demarcação
dum domínio natural próprio à fruição. Ainda, estabelece um reconhecimento
abstrato às pessoas particulares pelo Estado que não converge suas efetividades à unidade da “riqueza universal” (qual afirmada no capítulo posterior,
A liberdade absoluta e o terror). Este Estado não é o espírito. Mantém uma
relação negativa à pessoa ao arbitrariamente tomar seu conteúdo. Põe-se
como o “Senhor do Mundo” [Herr der Welt] (PhG § 481), potência universal
que contém o conteúdo da essência, pois estaria nele a superação do reconhecimento formal. Mas não a atualiza, mantém relação abstrata à pessoa
que então percebe que ser efetiva no Estado é ser sem essência. Julga sua
consciência algo desnecessário.
Esta apresentação da PhG alude à formação do pensamento jurídico
abstrato no Império Romano. A ela segue a seção A cultura e seu reino da
efetividade, quando a pessoa cria para si um “reino efetivo” (PhG § 488) pelo
trabalho, já que é pelo resultado deste que é reconhecida. Tal figura caracteriza as monarquias absolutas da Idade Moderna. A subseção do capítulo
conseguinte, A fé e a pura intelecção, aborda a crença [Glaube] do indivíduo
em sua pretensão ao conhecimento universal dada na confiança à relação
pessoal com o Absoluto. O indivíduo encerrado na consciência julga poder
tomar seu pensamento como universal. Mas tal figura é suprimida pelo “puro
pensar”, “a consciência do conceito de si próprio” (PhG § 529) que afirma
que nada vale pelo conteúdo particular, mas pelo valor universal. A figura da
“pura intelecção” [reine Bewußtsein] alude à filosofia de Descartes.
98
Sergio Portella
Mas veja-se: trata-se do indivíduo submisso cujo intelecto passivo
aceita por verdades meras impressões advindas do meio caótico no qual
crê. Contra tal pretensão de tomar o imediato inefetivo pelo Absoluto surge
a atividade do “puro pensar” cartesiano, a construção das próprias verdades
tendo por critério o Eu penso. No capítulo posterior, A ilustração, justamente
o “pensar” terá por critério o “útil” [nützliche] (PhG § 561) ao conferir forma
racional ao conteúdo antes afirmando no âmbito da crença. Sem pretender aprofundar estes argumentos, tenha-se que pelo “útil” Hegel refere ao
pensamento iluminista, à tomada da política pela racionalidade poiética ou,
tomando a expressão própria ao “pensar” cartesiano, à tomada da realidade
política pelo Eu como o objeto da idéia à qual é criadora. A política retorna
ao palco da razão que, como episteme demonstrativa, requer dos objetos
a gênese discursiva que encontra no assembleísmo de Rousseau sua mais
adequada formulação.
É o auge do pensar, mas, pela figura conseguinte, o “terror” [Schre99
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
Vimos o trânsito do formalismo das relações pessoais entre proprietários no Estado de Direito à auto-efetivação particular pelo agir poiético
em seu reino da efetividade; este pretende imediatamente pôr o próprio
pensamento como Absoluto, enquanto Eu “envaidecido” que já recebeu do
Estado o “benefício” (PhG § 525) na forma de “riqueza” [Vermögen] (PhG §
526), para então ser deflagrado irracional pelo “puro pensar”. Nisto lemos
a compreensão de Hegel dos efeitos da falência da unidade orgânica da
política clássica. Esta era dada sobre a noção de conflito pelos pares políticos que mediavam suas diferenças na esfera pública como condição ao
ganho privado. Sua falência permitiu a ascensão do Império Romano, cujas
conquistas resultam no acolhimento da religião e do pensamento cristão, a
idealização de um homem transcendente e desinteressado à política, de fácil
manejo e controle pelo Estado. Tramita-se do paganismo ao cristianismo,
do espírito de um tempo livre que voltava os homens ao Estado ao espírito
de um tempo que impunha sua submissão ao mesmo. Pois, se nas religiões
pagãs os deuses reinavam apensas sobre a natureza, deixando os homens
livres à política, a díke como processo da Themis, a religião cristã teria vindo
à Roma arruinada por um povo decadente, substituindo o querer pela prece.
O histórico das conquistas de Roma, suscitando que a entrega da liberdade
particular traria riqueza e segurança, resulta na morte da virtude e do apego
individual para com o todo. Na degradação do homem pela religião positiva
vê-se a relação com o poder despótico das monarquias modernas pelo indivíduo subserviente que desconhece a política como a efetivação da sua vontade. A religião cristã, promotora da despolitização, pondo-se aos préstimos
do poder despótico, imbuía no indivíduo a turva impressão de conduzi-lo da
particularidade à universalidade do reino transcendente. Cria quando julgava saber, não compreendia as relações que de fato definiam seu meio. Não
mediava, mas aceitava o que uma realidade inefetiva lhe trazia, pois julgava
tal a realização concreta do universal. Na ilusão de que pela “prece” rumaria
ao reino dos céus, o indivíduo é embusteiramente conduzido a enriquecer o
reino da terra pelo trabalho. Caberia mediar estes reinos.
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
Da “Syn díkei” à lógica da Corporação...
cken] (PhG § 582), também sua falência. O “terror” decorre da reconciliação
da consciência com sua obra enquanto universal. A vontade particular se
pretende uma liberdade absoluta: tudo determinou para se igualar à vontade universal. Mas não resta qualquer objeto indeterminado ao qual recairia a vontade universal do Eu poiético que então se põe em amarras. Sem
mediação, resta a destruição, o “terror” pelo governo que fixa a vontade
universal. Este governo não resiste. Mas pelo “terror” a consciência denota
sua máxima positividade: destruída a substância ética, a efetividade substancial é mantida pelas consciências particulares. É o auge da eticidade, pois
a consciência nada mais requer da vontade universal (a segurança ao Estado
despótico, os céus à fé, etc.). Reconciliam-se os reinos, “o céu baixou e se
transplantou para a terra” (PhG § 581) e o ser encerrado na consciência-desi é agora completo.
Esta formulação remete à compreensão por Hegel da insuficiência do
critério do “útil” em fundamentar a realidade política. Atido ao referencial
cartesiano, seu critério de universalidade é limitado à forma da objetividade
dedutível pela razão particular, um universal formal que finda no horizonte
da própria fruição. A liberdade negativa, a limitação de terceiros à fruição
em primeira pessoa, quando afirmada, não saberia compor os próprios limites: a desnaturalização posta como uma segunda natureza ao objeto de
fruição veta toda vontade e, face a isso, negativizar a liberdade de terceiros
mediante quaisquer barreiras será empreendimento vão. O Estado deverá
diferir da sociedade civil. A condição burguesa construída na égide da liberdade negativa não eleva a vontade particular à “totalidade”, mas a torna
opositora do Estado. A Revolução Francesa bem o mostrou.
2.4 O retorno do espírito à unidade consigo e seu itinerário na tragédia burguesa
A reconciliação da vontade particular à vontade universal será o tema
da seção A sociedade civil-burguesa (SCB) da Philosophie des Rechts. A SCB
estabelece o desprendimento do indivíduo à substancialidade ética imediata
que lhe era própria enquanto membro da família. Enquanto pessoa concreta
e privada, insere-se no nexo social a fins estritos de prover a própria satisfação. É a indiferença recíproca e a apatia entre os particulares proprietários
que caracteriza a sociabilidade burguesa, o que Hegel tomará como a “eticidade perdida nos seus extremos” (PhR § 184). Mas a eticidade igualmente
orienta-se à “idealidade” de um Estado racional, não limitado à garantia
institucional de segurança e propriedade (jusnaturalismo contratualista),
mas comprometido com a participação dos indivíduos aos assuntos públicos
enquanto cidadãos. Na suspensão dialética da família pela SCB, o indivíduo
é isento de participação à imediata substancialidade ética à situação de ter
que “valer por si próprio” (PhR § 255). O fará integrando-se ao sistema
de mútua dependência entre particulares pelo qual suas necessidades serão condicionados pela mediação social. Se tal constitui a suspensão pelo
particular da eticidade imediata, natural, a uma reflexiva, universal formal
(“sistema de dependências omnilateral” - PhR § 183), significará igualmen100
Sergio Portella
te a determinação do querer e do saber singular em conformidade a essa
mediação. Ou seja, se ao particular é conferido o “direito de desenvolver-se
para todos os lados”, à universalidade é dado o “direito de demonstrar-se
como fundamento e forma necessária da particularidade” (PhR § 184), que a
conduz, assim, à mediação social dos seus próprios fins e à elevação de sua
subjetividade.
Em O sistema das necessidades [Das System der Bedürfnisse,§§
189-207], primeira subseção da SCB, o indivíduo articula-se ao “nexo social
abstrato [abstrahere]” (PhR §186) a fins estritos de atendimento às próprias
carências (esfera do mercado). A abstração do nexo social progride à medida da multiplicação das relações entre os homens na produção e consumo.
Seu reconhecimento recíproco, enquanto “pessoas proprietárias em suas
esferas de liberdade negativa” (MÜLLER, p. 16), igualmente abstrai-se no
caráter instrumental da mediação social em sua dinâmica própria. A personalidade burguesa constituída na esfera da propriedade pela noção da liberdade negativa não constitui por si própria condições de restabelecimento da
unidade ética cindida. A particularidade autônoma e a universalidade formal,
princípios da SCB, permanecem dissociadas e a sociabilidade burguesa não
ultrapassa o estágio conceitual da “eticidade perdida nos seus extremos”
(PhR § 184).
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
Tal é o mecanismo que estabelece o “entrelaçamento multilateral”
(PhR § 199) dos homens em suas atividades, que causa a conversão do
“egoísmo subjetivo” em “contribuição à satisfação das carências de todos”
e possibilita a cada um o acesso à “riqueza permanente, universal”. Igualmente, dada a divisão técnica e social do trabalho e a multiplicação das
necessidades, a satisfação das carências é levada ao “refinamento” (PhR
§ 191), um “ir além” (PhR § 190) às restrições à “libertação” (PhR § 194)
das necessidades naturais. Contudo, igualmente resultando da divisão do
trabalho e das necessidades, tem-se que as relações sociais dos indivíduos
se tornam mais abstratas. Pois, se a divisão do trabalho progride a fins de
atender o refinamento das carências, noção moderna de consumo pela qual
o homem consome “produções humanas” (PhR § 196), tal amplia a “dependência e relação recíproca” (PhR § 198) dos trabalhos dos indivíduos.
O trabalho é “mais mecânico” (PhR § 198). Os meios de satisfação às necessidades se multiplicam, ao passo que “não é tanto o carecimento, mas a
opinião a ser satisfeita” (PhR § 190 A). Socialmente mediadas, as carências
particularizam-se e dão-se mais abstratas.
O Estado, para Hegel, a partir da sociabilidade burguesa estabelecida
na liberdade negativa da propriedade, concatena as vontades particulares
à própria racionalidade, a “autoconsciência particular erguida à universalidade do Estado” (PhR § 258). Mas como estabelecer a liberdade positiva
do cidadão a partir da liberdade negativa do burguês sem suprimir esta
por aquela? Urge lembrar que a reconciliação da fruição burguesa ao dever
cidadão refere à reconstrução hegeliana da fragmentação da unidade ética
greco-clássica em sua organicidade e conflito, logo, ao término da violência
101
Da “Syn díkei” à lógica da Corporação...
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
(Gewalt) característica à SCB como o “resto do estado de natureza” (PhR §
200), ainda, à conciliação moderna entre lei divina e lei humana, liberdade
e necessidade. Ou seja, à cidadania heróica cuja auto-realização decripta as
razões pressupostas à trama ética e supera a peripatéia trágica do próprio
destino.
A resposta de Hegel consiste em situar o Estado no interior da SCB
(“Estado exterior” - PhR § 157), como espaço público-político da cidadania
avesso à “desorganização” (PhR § 255 A) imanente à estrita dinâmica social.
O Aufklärer que na PhG dispensou o Pastor não dispensa a graça na PhR na
dialética cristã da condição subjetiva à liberdade objetiva. A racionalidade
estratégica dos proprietários terá concomitante a si um espaço não mais
meramente privado, mas público e cuja racionalidade supera a lógica de
mercado. O Estado atua na SCB a fim de universalizar a liberdade negativa
que, como direito de todos, é condição à autonomia subjetiva do cidadão. As
seções seguintes, A Administração do Direito [Die Rechtspflege, B §§ 20828] e A Polícia e a Corporação [Die Polizei und Korporation, C §§ 231-256),
situam as medidas administrativas do Estado auto-pressuposto na sociedade civil a fins da “regulação” (PhR § 236) da emancipação da particularidade
autônoma e da decorrente dinâmica social antagônica. Cabe à Administração do Direito garantir a propriedade, pois o “homem trabalha” e “os meios
para tanto têm de lhe ser assegurados” (PhR 208 Z). Torna inexistente a
contingência à atribuição do que é devido a cada indivíduo ao anular a lesão
cometida à personalidade. A tanto, confere-a do “reconhecimento legal”, a
importância de “coisa universal” (PhR § 218) que conduz o direito da pessoa
ao reconhecimento pelos demais enquanto fundado na racionalidade universal que lhe condiz como Estado exterior. Promotora da ordem social, a Polícia
desempenha o que Hegel tratou por “tarefas universais” (PhR § 235), o controle à educação, iluminação pública, à criminalidade, a “regulação do mercado” (pois a “liberdade de empreendimento não deve ser tal que ponha em
perigo o bem geral”), etc. A Polícia indistintamente estabelece aos indivíduos
certa participação à riqueza social para além das “contingências de habilidade, saúde e capital” (PhR § 236). Nisto, instaura grau de racionalidade que
supera a dinâmica social-burguesa, pela qual o indivíduo é “abandonado”
(MÜLLER, p. 31) às engrenagens do sistema de trabalho e consumo que ele
próprio produz. Ou seja, eleva-se a condição social do indivíduo pelo Estado
auto-pressuposto na SCB à consideração de “indivíduo universal” (PhR §
236).
Contudo, mesmo que tais medidas administrativas do Estado sejam
amplamente referidas a todos os indivíduos, não significarão senão numa
“união relativa” entre a universalidade formal e a particularidade autônoma,
dado o caráter de “ordem externa” [äußerliche Ordnung - PhR § 229) que
comportam. A capacidade administrativa do “Estado exterior” é insuficiente
à eticização da SCB. Hegel apresenta, assim, na segunda subseção da terceira seção (C) da sociedade civil-burguesa, A Corporação (§§ 250-54), as
organizações sociais próprias ao estamento [Stand] industrial. Elas têm por
função aglutinar o elemento comum dos interesses particulares em “siste102
Sergio Portella
2.5 Entre o bourgeois e o citoyen: a dura passagem à universalidade singular do cidadão
A filosofia hegeliana como o projeto de superação da cisão kantiana entre coisa e coisa-em-si que não cinde ao propósito crítico afirmado
por Descartes, Kant e Fichte, tem na elaboração sistemática suas condições de realização. Cabe ater à exposição sistemática a partir da “divisão”
[Einteilung] proposta por Hegel que cada momento não traz mais do que
uma “antecipação” [Antizipiertes], algo de “incorreto” [Unrichtige - Enz. I
§ 18] que só se resolve no fechamento do sistema. À afirmação do sistema
como o “círculo dos círculos” [Kreis von Kreisen - Enz. I § 15] subjaz a noção dos momentos se construírem como desenvolvimentos que resguardam
resultados intrínsecos a serem integrados somente ao cabo do sistema. À
elevação dos momentos parciais que integram o “círculo de objetos” [Kreis
von Gegenständen] a cada um pertinente à unidade condiz a “satisfação”
[Befriedigung - Enz. I § 8] do espírito que “ganha o pensar por seu objeto”
[das Denken zu seinem Gegenstande gewinne - Enz. I § 11]. O que equivale
à mostração de toda necessidade exterior [Notwendigkeit] como necessidade imanente [Bedürfnis], a conversão do ser ao pensar mediante sua
articulação junto ao fundamento comum pressuposto. Mas o “começo da
filosofia” [Anfang der Philosophie], atido aos referenciais das “ciências empíricas” [empirische Wissenschaften - Enz. I § 7], tem-nos como momentos
extrínsecos. Cada um, em sua pretensão epistêmica, não é mais do que um
“pensar abstrato”, o “pensar fixo na universalidade das idéias” [das Denken
bei der Allgemeinheit der Ideen stehenbleibt] e a “imediatez própria, refletida sobre si e, portanto, dentro de si mediatizada, do pensar (o a priori) a
universalidade” [eigene aber, in sich reflektierte, daher in sich vermittelte
Unmittelbarkeit des Denkens (das Apriorische) ist die Allgemeinheit - Enz. I
§ 12 Z].
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mas particulares de carências” (PhR § 201). São responsáveis pelo estabelecimento de uma eticização “concreta” da sociedade por partirem de uma
“universalidade ínsita” (PhR § 229), comum a certa parcela da sociedade,
permitindo que “a singularidade do interesse se organize” (PhR § 251 A). Ou
seja, tiram o indivíduo do estrito horizonte dos fins egoístas, promovendo
sua defesa pelo socorro mútuo, dignidade profissional e certa estabilidade
aos azares do mercado. Estabelecem que a importância à providência às
necessidades do particular não relevará mais somente a si, mas a todos os
demais que em reconhecimento de igualdade social consigo se organizem
corporativamente. Em Corporação, o indivíduo assume seu lugar no Estado,
pois o indivíduo “particular necessário é o particular enquanto universalmente válido” (PhR § 201 A). Tal é o que permite ao Estado organizar-se enquanto “todo articulado nos seus círculos particulares” (PhR § 308 A 2). Contará
com indivíduos reconhecidos nos seus meios particulares, cônscios de que
seus interesses próprios são promovidos e garantidos pelo Estado. Assim, a
vontade egoísta burguesa em Corporação eleva-se à “disposição de ânimo
comunitária” (MÜLLER, p. 34), a reintegração do indivíduo ao todo ético.
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Da “Syn díkei” à lógica da Corporação...
“Imediatez” e “mediação na consciência”, “princípios” [Prinzipien],
respectivamente, da “revelação no exterior” [Offenbarung im Äußeren] da
imediatez e do pensar universal, terão pelo “conceito” [Begriff] no “sentido
especulativo” a “resolução de suas próprias contradições” [Widersprüche Enz. I § 11]. “A Lógica especulativa contém a Lógica e a Metafísica de outrora” [Die spekulative Logik enthält die vorige Logik und Metaphysik - Enz. I §
9]. Esta “resolução”, que só será levada a cabo na Filosofia do Espírito pela
passagem da SCB ao Estado, a partir dos momentos cindidos, elucida seus
papeis sistemáticos como Ciência da Lógica e Filosofia da Natureza. Os densos dezoito parágrafos da Einleitung da Enciclopédia justificam estas afirmações. Neles Hegel antecipa a gênese do “conceito” ao afirmar a admissão
do conteúdo empírico como co-originário à subjetividade (Enz. I §§ 10-12),
lançando luz aos conceitos lógico e real-sistemático do espírito que ditarão,
respectivamente, a Lógica do Conceito e a Filosofia do Espírito Subjetivo.
Igualmente, desautoriza a pretensão de verdade à filosofia não sistemática
(Enz. I § 14), elucidando-a como a “totalidade” avessa à cisão da imediatez
à mediação que será expressa na resolução entre corpo e alma que traz a
natureza ao pensar como condição da conceptualidade fenomenológica que
anuncia o “conhecimento conceituante” [begreifenden Erkennen - Enz. III §
465 Z] da Psicologia da Filosofia do Espírito Subjetivo.
Neste sentido, à Ciência da Lógica incide a afirmação do subjetivismo que lhe é própria. Subjaz à equivalência da pressuposição do todo
indeterminado ao nada determinado a atribuição de um papel sistemático à
perspectiva subjetiva. Pois, qual o meditador cartesiano libera seus pensamentos no intuito de uma primeira verdade relativa estando ciente de que a
suspensão da dúvida requererá uma propedêutica intrínseca à dinâmica do
real, o “sujeito filosofante” hegeliano a terá na passagem da logificação da
natureza à naturalização da lógica operada em foro subjetivo que, portanto,
ainda requererá seu empenho real-sistemático. À luz da primeira certeza
metafísica, a filosofia hegeliana dispõe sua primeira determinidade, que, às
vezes da primeira verdade ao sujeito, advém como uma liberdade no mundo. Como a pedra de toque da objetividade espiritual pela subjetividade autoconsciente, a elevação do fenomenológico ao lógico mediante a passagem
do lógico ao noológico, no Espírito Subjetivo o limite do conteúdo do saber
é o da objetividade fenomenológica afirmada na relação sujeito-objeto. “A
enérgeia do espírito prático é finita porque ainda não tem como seu conteúdo a razão plenamente desenvolvida, aquela que cumpre a unidade de
espírito subjetivo e espírito objetivo” (AQUINO, 2007, p. 33). A pretensão
do espírito livre de dispor do real como autoconsciência que pressupõe seu
pensar à coisa, às vezes da essência desta, é algo ainda subjetivo. Logicamente, tal perfaz a afirmação de um fundamento real pressuposto a ambos,
ao pensar e à coisa, condição da sua comunicabilidade própria ao método
dialético. Mas, fenomenologicamente, a afirmação desta condição anterior
à relação epistêmica alocada ser o suporte à pretensão do salto [Sprung]
do subjetivismo elucida o limite do pensar no Espírito Subjetivo como mera
unidade originária da subjetividade absoluta.
104
Sergio Portella
Tal rejeição à absolutização do Entendimento dará mote aos momentos da Filosofia do Espírito Objetivo. Percorridos como a Bilgung que na
real-sistematicidade supera as etapas da epistemologia hipotético-dedutiva
moderna, expressam a articulação entre ética e direito desenhada à luz do
idealismo absoluto hegeliano: o Direito Abstrato como um modelo hipotético
formal elaborado pelo indivíduo na égide da sua primazia ao todo dita o consentimento à alienação dos direitos naturais proposto pelo Direito Natural
moderno. Como momento essencial, a Moralidade, segundo a perspectiva
subjetiva do Eu transcendental kantiano, instaura a tomada pelo indivíduo
das causas pressupostas à ordem externa que lhe é trazida, contudo, como
a dedutiva particularização do universal própria ao entendimento diferenciador [Verstand] que a ela corresponde. Por sua vez, a Eticidade une ambos os
princípios dos quais parte, objetivo e subjetivo, nómos e ethos, lei e moral: o
burguês que tornou subjetiva a ordem externa que lhe foi imposta, contudo,
enquanto causa eficiente estrita à realidade particular, ressignifica a objetividade segundo os referenciais extrínsecos do Estado exterior que então
percebe e quer. Supera a Tragödie im sittlichen ao tornar suas as razões que
fundamentam a realidade social e conferem ao seu destino um caráter ético.
Noutros termos, a intencionalidade fenomenológica do fim burguês se eleva
à racionalidade do Estado para condizer à passagem da subjetividade particular à realidade ética. A realização teleológica da subjetividade particular
remonta à mediação reflexiva pelo Conceito do conteúdo da Objetividade a
qual tem como seu para-si, logo, sua passagem à Idéia, terceiro momento
da lógica subjetiva na WL. A adoção da racionalidade do Estado como a essencialidade da mediação reflexiva torna a livre volição do burguês um ato
de querer conforme o dever, a reta razão que atribui à universalização dos
direitos humanos moderna a própria excelência conferida ao Ich will do monarca.
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
Na Ciência da Lógica, a Existência como primeira imediateidade-mediada trouxe à luz o Fenômeno como “coisa” [Sache] que pela Exposição do
Absoluto teve, sem qualquer acréscimo de conteúdo, sua resolução como
Substância causa sui, unidade autocausada. No Espírito Subjetivo, a objetividade fenomenológica no Espírito teórico da Psicologia terá pressuposto ao
seu conteúdo o pensar, quando será “coisa” [Sache], produto da inteligência
que conjuga seu outro, então, enquanto Espírito livre que sabe a si mesmo
ao ter por objetividade o “sentimento prático”, querer cujo conteúdo é idêntico ao da razão. Em ambos os casos, essência e aparência ou pensamento e realidade, o Entendimento [Verstand] é categorialmente conduzido ao
status de conteúdo co-originário à Razão [Vernunft], o ser como idêntico ao
pensar.
Conclusão
O presente itinerário teórico procurou equacionar a cosmovisão sistemática da filosofia hegeliana e suas implicações ético-políticas ao imaginário
cultural trágico greco-clássico. O ideário clássico da virtude que, da tragicidade do sistema de fatos pré-civilizatório adentra os negócios humanos,
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REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
joga luz ao dignificar do burguês pelo status do cidadão cuja subjetividade
infinita nas Corporações profissionais superou a insuficiência particular à
necessidade imanente do conceito. Nesta ótica, a filosofia hegeliana afirma
a vitória do herói institucionalizado no âmago das Corporações, a syn díkei
da modernidade.
Uma questão permanece: a realização pelo espírito do seu conceito
no tempo terá acabamento no Espírito absoluto (EA) como a suprassunção
da Natureza. O trânsito do EO ao EA prevê o passar [übergehen] dos momentos enquanto salto à unidade das razões. O que permanece é o próprio
conceito no espírito enquanto subjetividade absoluta, “a inteligência, em-si
livre... liberada em sua realidade efetiva para o seu conceito” (AQUINO,
2005, p. 333). O sujeito protagoniza o lógico e efetiva o conceito subjetivo. Ao cabo, sua inteligência equivale à idéia absoluta. Nisto subjaz que as
configurações do ES e EO são meta-históricas, pressupostas ao agir ético
se manifestar. A filosofia como um “projeto do passado” tem sua resolução
quando este é igualmente resoluto. O sujeito é subjetivamente livre no ES,
condicionadamente livre no EO para no EA ter seu agir propriamente livre
na suprassunção da necessidade material, na idéia absoluta tendo face a si
a realidade efetiva. O agir finito do EO no EA manifestará sua verdade na
intuição da arte, na representação da religião e no pensamento da filosofia.
Como síntese da síntese da materialidade, o EA é o triunfo da razão teórica.
Ao cabo, a vontade livre que é consciência universal suspende sua intuição
ao reencontrar na forma filosófica, artística ou religiosa o que outrora lhe era
imediato. A “elevação do espírito a Deus está contida no conteúdo da razão
prática” (AQUINO, 2005, p. 333) e Hegel louva a Kant por tê-lo afirmado
(Enz. § 522).
Mas o modo sistemático pelo qual Hegel deriva da lógica sua compreensão ético-política permitiu que lhe recaíssem diversas críticas de necessitarismo. Uma sistematicidade que põe o real num ordenamento necessário
enquanto fluxo de mediação que assevera a vivacidade do todo dispõe a parte mediante argumentos que pretensamente lhe excedem a compreensão. O
objeto posto à razão constitui à mesma um bem, o fundamento do discurso
moral dado na justaposição do objeto à razão particular com vistas à equalização desta relação à dinâmica do todo. A constituição da objetividade pela
lógica, sua anteposição ao real, tanto torna o caráter mediativo da positividade conferidor da idéia de bem, quanto aporta aquilo avesso à mediação
como o mal positivo. De outra forma, a resolução do particular (objeto) pelo
universal (logicidade) tem desfecho no singular concreto (bem), relação esta
cujo rompimento caracteriza um mal a ser extirpado do sistema.
As gerações posteriores a Hegel viram muitas de suas idéias serem
integradas ao horizonte político alemão (quais as reformas trabalhistas e
econômicas de Bismarck). A ascensão da quase medieva Alemanha, então
potência européia, é assimilada à idéia de um Estado forte e presente. A
culminância deste processo e seu fracassar pelo totalitarismo permanecerão
na esteira de um mesmo prisma para pensadores que sofreram o holocausto
106
Sergio Portella
e que no antisemitismo perceberam as tristes conseqüências da afirmação
sistemática de um mal positivo. A crítica à logicização do real proposta por
Adorno e Benjamin, seu caráter falacioso, e as conseqüências sociais e políticas deste necessitarismo que ao cabo não convergiria à liberdade, hoje desafiam o filósofo. Em suma, haveria dimensão libertária nas instituições que
convergem a emersão da filosofia, religião e arte na imersão sistemática?
Pois então seria a práxis cidadã a forma aparente de uma definitória poíesis
burguesa? E, seguindo Brecht, o que resta quando a pretensão heróica foi
assimilada como uma ferramenta de atualização do sistema?
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THELM, Neyde. O público e o privado na Grécia: o modelo ateniense. Rio de
Janeiro: Sete Letras, 1998.
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Revista Eletrônica Estudos Hegelianos
Ano 6, nº10, Junho-2009: 109-121
Estética e Consciência infeliz na filosofia hegeliana
Lincoln Menezes de França1
Palavras-chave: Consciência Infeliz; Arte; História.
Abstract: The opposition between man’s finite and the thinking of the infinite is essential for the
characterization of the Hegel’s unhappy conscience, because the thinking of the infinite only
takes place through the finite human. The accomplishment of the truth is only possible in the
History where the Spirit manifests himself. According to Hegel, art, religion and science reconcile the infinite and the finite in the History in agreement with the characteristics of each universal
historical people. In this way, for example, the art gets to accomplish that immediate conciliation in Old Greece, happy moment of History. However, art doesn’t have that accomplishment
possibility in the modernity, because the needs of the spirit are another, they aren’t in the sensibility, but in the reason, in this way, only the reason would have the condition of accomplishing
that reconciliation of the spirit. Art continued looking for that reconciliation in vain, being the
romantism fragmented modern expression of that impossibility, because it manifests in the own
art the need of the philosophy. The unhappy conscience of the infinite accomplishment of the
thinking in the human finite manifests historically, being art romantic expression of that.
Key-words: Unhappy conscience; Art; History.
Introdução
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Resumo: A oposição entre a finitude do homem e o pensamento do infinito é essencial para
a caracterização da consciência infeliz hegeliana, pois o pensamento do infinito só se realiza
através da finitude humana. A realização da verdade só é possível, assim, na História onde
o Espírito se manifesta. Segundo Hegel, arte, religião e ciência conciliam Idéia e Forma na
História de acordo com as características de cada povo histórico universal. Nesse sentido, por
exemplo, a arte consegue realizar essa conciliação imediata na Grécia Antiga, momento feliz da
História. Entretanto, a arte não tem essa possibilidade de realização na modernidade, pois as
necessidades do espírito são outras, não se encontram na sensibilidade, mas na razão, assim,
somente a razão teria a condição de realizar essa reconciliação do espírito. A arte continuou
buscando em vão essa reconciliação, sendo o romantismo expressão moderna fragmentada
dessa impossibilidade, pois manifesta na própria arte a necessidade da filosofia. A consciência
infeliz da realização infinita do pensamento na finitude humana se manifesta historicamente,
sendo a arte romântica expressão disso.
Neste trabalho trataremos de alguns elementos da consciência infeliz
na filosofia da arte hegeliana. A consciência infeliz é uma característica central do pensamento hegeliano, pois fundamenta a tarefa central de Hegel,
qual seja, unir o que foi separado na história, finito e infinito, essa cisão
entre finito e infinito, sensível e supra-sensível se evidencia na filosofia hegeliana por meio da consciência infeliz que propicia uma busca árdua do espírito no reconhecimento histórico racional de si mesmo em sua liberdade.
1. Mestrando em Filosofia na Unesp / Marília. Texto submetido em Julho de 2008 e aprovado
para a publicação em Maio de 2009.
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A arte, na filosofia hegeliana, apresenta papel fundamental no percurso do espírito em seu reconhecimento, pois é uma primeira etapa do
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Absoluto, que embora ligada às sensações e à intuição se diferencia da natureza, se coloca acima dela e se apresenta como elemento fundamental
da vida do espírito que se realiza na História Universal. Uma característica
fundamental da arte é sua ligação com a sensibilidade, sua imediaticidade.
Para verificarmos qual o estatuto da arte na filosofia hegeliana é
preciso primeiramente considerar como Hegel concebe a arte bela em suas
Lições de Estética (Filosofia da Arte) em sua avaliação da arte bela enquanto objeto científico em suas diferenças em relação à natureza, enquanto
manifestação do espírito. Assim, poderemos seguir nossas considerações
enfocando a questão da consciência infeliz.
A arte enquanto manifestação do espírito
Nos Cursos de Estética, Hegel (1990, p. 28) já exclui de imediato o
belo natural como objeto de investigação, não que não se possa referir a
qualquer coisa natural como bela, mas Hegel justifica sua posição afirmando
que o belo natural não é produção do espírito e a beleza do espírito se torna
mais bela quanto mais distante está do belo natural. Pois o que é do espírito
se relaciona com a liberdade e o que é natural não é livre por não ser por si
mesmo, por não ser consciente de si.
Ainda no que se refere à superioridade do espírito Hegel mostra que
só o espírito é o verdadeiro, pois é absoluto por abranger tudo em si mesmo.
Assim, logo de início, temos uma concepção do belo referente a um belo enquanto expressão do espírito. O filósofo insiste em mostrar que essa postura
não é arbitrária, pois o belo artístico, enquanto manifestação do espírito,
é distinto do belo natural, pois o primeiro tem relação fundamental com a
liberdade.
Num debate com seus contemporâneos, Hegel busca analisar a natureza da arte para verificar a seriedade da mesma enquanto objeto científico.
Numa primeira hipótese, o filósofo indica que aparentemente a arte não traria nada de interessante à ciência, pois relacionar-se-ia com o entretenimento e com a ilusão, não tendo qualquer relação com a verdade da vida. Nesse
sentido, considerando a arte numa relação com os fins sérios da vida, sendo
mediadora entre razão e sensibilidade, Hegel questiona se a razão ganharia
algo com essa mediação, já que entraria em contradição com os fins sérios,
fazendo com que a arte possa não ser digna de tratamento científico, já que
o belo artístico, por ser produção da imaginação se apresenta às intuições,
sensações, à imaginação o que o diferencia do saber científico, estritamente
racional.
Entretanto, essas características não dizem respeito à arte livre. Aqui
temos uma característica interessante da arte enquanto espaço autônomo
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Lincoln Menezes
de realização do espírito, essa autonomia da arte já se colocava em Kant,
entretanto, com o filósofo de Königsberg verificamos uma crítica da razão
na analítica do belo, ou seja, a preocupação kantiana é verificar a faculdade
de julgar enquanto característica racional, que todo ser racional teria potencialmente e isso possibilitaria o exercício da liberdade. Mas, do ponto de
vista hegeliano a filosofia kantiana embora considere a arte como espaço
de reconciliação entre liberdade e natureza, sensibilidade e conceito, ainda
permanece subjetiva, portanto, unilateral.
Assim, a arte como espaço autônomo de realização do espírito num
primeiro momento, por expressar o que é do espírito não é tratada secundariamente na filosofia hegeliana, sendo que um aspecto fundamental dessa filosofia, a consciência infeliz é evidenciada nas lições de estética hegelianas.
Mas, Hegel, antes disso, faz uma importante distinção da bela arte da arte
fugaz, que se coloca como meio e não como uma finalidade em si mesma.
Assim, a arte digna de ser tratada é a arte livre em seus meios e fins. Essa
dupla característica da arte faz Hegel apreciar uma analogia com o pensamento, que pode ser livre, mas também servir como meio a determinados
fins. Vejamos como Hegel em suas palavras caracteriza a arte livre, ou seja,
enquanto expressão autônoma e faz essa analogia com o pensamento:
[...] o que nós pretendemos examinar é a arte livre tanto em seus fins
quanto em seus meios. Que a arte em geral também atenda a outros fins
e com isso possa ser apenas um jogo passageiro, esse aspecto ela possui
em comum com o pensamento. Pois, por um lado, a ciência pode ser empregada como atendimento servil para fins finitos e meios casuais e assim
não adquire sua determinação a partir de si mesma, mas a partir de outros
objeto e relações; por outro lado, ela também se liberta dessa servidão
para se elevar à verdade numa autonomia livre, na qual ela se realiza independentemente apenas com seus próprios fins. (HEGEL, 1990, p. 32)
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Diante do que se coloca para ele, Hegel mostra as seguintes características da arte, agora já enquanto objeto científico. Como já observamos,
a arte não é um produto da natureza, é produto da atividade humana e se
liga aos seus sentidos, tendo uma finalidade em si mesma. A arte é produto
da atividade humana que expressa o espiritual, o divino, para o homem, aos
seus sentidos, atividade que não é uma mimese da natureza, mas expressão
espiritual que a ultrapassa, que tecnicamente e por inspiração do gênio se
configura na forma artística, expressando a particularidade de um povo na
universalidade, expressando uma necessidade racional, da exteriorização
da individualidade para a universalidade, levando-a a intuição do outro, porém, é preciso considerar que embora seja correto afirmar que a arte seja
expressão da livre racionalidade humana ela apresenta limitações diante de
outras formas de manifestação do espírito na história. A arte, desse modo,
concilia o pensamento do infinito e a finitude humana de maneira sensível,
imediata.
E chegamos a um ponto fundamental das considerações hegelianas
acerca da arte. Com Hegel a arte ganha um estatuto sem precedentes na
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filosofia, pois considerada autonomamente, ou seja, livre, ela se situa no
mesmo patamar da religião e da filosofia, por ser uma expressão da consciência e do divino, dos mais importantes anseios da humanidade e do espírito, ou seja, a arte manifesta verdades do espírito, sendo a arte uma chave
fundamental para a compreensão do espírito de determinados povos, sendo
às vezes a única chave compreensiva, pois a arte expressa, para Hegel, as
intuições interiores e representações substanciais dos povos2.
Frente à filosofia e à religião a arte apresenta uma característica peculiar, já que apresenta o espiritual de forma intuitiva, sensível, aproximando-se, desse modo, da natureza, sendo que isso propiciará a reconciliação
imediata para um determinado povo (o povo grego) entre Forma e Idéia.
Hegel mostra que essa característica da arte expressa a profundidade do
mundo supra-sensível, que tem relação com o pensamento, que é encarada
pela consciência e pela sensação imediatamente como algo que está além,
que não vê necessidade na finitude, assim, configura-se o corte da consciência em relação a si mesma, ou seja, a consciência se vê diante de si com
uma liberdade infinita, mas que não se realiza sem a finitude, sendo a arte
um primeiro elo de ligação, uma primeira maneira de cura do corte entre a
sensibilidade finita e o puro pensar. Vejamos como o nosso filósofo configura
esse processo na Estética:
Trata-se da profundidade de um mundo supra-sensível no qual penetra o
pensamento e o apresenta primeiramente como além para a consciência
imediata e para a sensação presente; trata-se da liberdade do conhecimento pensante, que se desobriga do aquém, ou seja, da efetividade
sensível e da finitude. Este corte, porém, para o qual o espírito se dirige,
ele próprio sabe o modo de curá-lo; ele gera a partir de si mesmo as obras
de arte bela como o primeiro elo intermediário entre o que é meramente
exterior, sensível e passageiro e o puro pensar, entre a natureza e a Efetividade finita e a liberdade infinita do pensamento conceitual. (HEGEL,
Cursos de Estética, p. 32-33)
Assim, a arte seria o elo imediato entre o sensível e o supra-sensível
e, por isso, é também expressão de um momento do espírito, de um estágio
da verdade na história universal, pois sua forma se limita a um determinado
conteúdo. Aliás, no que se refere à oposição entre forma e conteúdo, Hegel
mostra que a aparência se caracteriza por expressar algo da essência, nesse sentido, a forma e a aparência não podem ser desconsideradas, já que
é por meio da forma que a coisa se apresenta para nós. Nesse sentido, a
arte embora tenha como fundamento o que aparenta, ela apresenta algo da
2. A idéia de espírito de um povo é um fundamento importante da Filosofia da História hegeliana, pois considera os costumes de um povo, suas características peculiares enquanto expressão do espírito, sendo que isso pode ser uma chave importante para o entendimento da
concepção hegeliana da filosofia da arte, pois a história também é um fundamento importante
do sistema hegeliano, já que é efetividade, frente à concepção formalista – do ponto de vista
hegeliano – da filosofia kantiana, já que a vida de um povo é um conteúdo do qual Hegel não
prescinde, além disso, cabe mencionarmos aqui nesse parêntese a concepção filosófica hegeliana enquanto sistema, isso tem fundamental importância, pois expressa essa necessidade
hegeliana do absoluto, que abarque a totalidade, pois nada unilateral, do ponto de vista hegeliano, é totalmente verdadeiro.
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Lincoln Menezes
A Filosofia da Arte hegeliana e a consciência infeliz
Vejamos agora como Hegel encara o desenvolvimento da arte na
história e como a consciência infeliz se constitui. Para isso devemos ter em
mente que, para Hegel, a arte é manifestação do espírito, sendo a história o
palco dessa manifestação. A liberdade do espírito está em sua autoconsciência que vai se constituindo na história universal em sua manifestação racional no espírito dos povos. Em cada estágio do desenvolvimento do espírito,
este se manifesta de maneira mais completa até chegar à consciência de si.
A arte é expressão do primeiro momento de reconciliação do espírito numa
determinação imediata. Ou melhor, o homem, em diversos momentos da
história, apresenta uma dualidade, em que se vê cindido, pois a realização
de si mesmo pode se apresentar num além da vida sensível, o que expressa
uma consciência que se vê infeliz por ser finita e infinita. Assim, o homem
tem consciência de sua condição na qual se vê numa razão infinita, que só
pode vivenciar a finitude.
A arte é uma manifestação do espírito que tem uma finalidade em si
mesma, suaviza a arbitrariedade, ao mesmo tempo em que expressa uma
moralidade, sendo que essas duas últimas implicações não são finalidades
mesmas da arte, pois ela não é um meio para outros fins, mas um fim em
si mesmo. Assim, a arte, para Hegel, é uma expressão do espírito que tem
a condição de unir o sensível e o supra-sensível de forma imediata, para a
intuição sensível.
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verdade, aliás, um estágio da verdade, por isso, a arte deve ser considerada
cientificamente como expressão fundamental de um momento da história
universal, no qual o absoluto torna-se consciente de si mesmo, esse momento é o mundo grego.
Assim, no mundo grego, a arte enquanto elo entre o sensível e o supra-sensível, com sua característica intuitiva é a consciência de si do absoluto na sensibilidade, mas não a expressão mais alta dessa consciência, pois
a forma artística não penetra no puro pensar, o que limita esse determinado
momento do espírito. Como Hegel apresenta uma concepção universal de
história na qual há estágios de desenvolvimento da idéia de liberdade (que é
racional) e o mundo grego não é o momento mais alto desse reconhecimento do espírito na História até então, a arte, por expressar a consciência de si
do mundo grego não expressa o momento mais alto do reconhecimento de
si do espírito, mas a arte é a expressão mais alta do espírito de um momento fundamental da história universal, do ponto de vista hegeliano, que é o
mundo grego.
Há um povo específico na História Universal que se satisfaz com a
plenitude da condição da arte de unir o sensível e o supra-sensível imediatamente, o povo do qual falamos é o povo grego. E no decorrer do desenvolvimento do espírito, a verdade se configura de outras maneiras, sendo que
o momento subseqüente ao grego já expressava uma versão mais profunda
de verdade, é a concepção cristã da verdade, que separa o mundo sensível
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Estética e Consciência infeliz na filosofia hegeliana
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do supra-sensível e a arte não consegue mais ser esse elo, não podendo
mais satisfazer as necessidades do espírito, pois a modernidade não é mais
capaz de “venerar as obras de arte como divinas” (HEGEL, 1999, p. 34).
A arte, por ser espiritual expressa na forma sensível o conteúdo da Idéia
universal que se configura no mundo, efetivando o que é divino, natural e
humano.
Assim, é importante mostrar que a arte é uma manifestação do espírito que é por si mesma, mas não é suficiente para a satisfação de todos
os povos na história, a arte consegue essa satisfação plena num momento
específico da história na qual ela consegue a reconciliação intuitiva do sensível e do supra-sensível. As outras manifestações de reconciliação do espírito seriam a religião e a filosofia, esta seria o estágio, para Hegel, no qual
a modernidade estaria e encontraria satisfação quando da reconciliação da
subjetividade com a objetividade, sendo, por isso, que Hegel pratica uma
filosofia da arte e por meio da filosofia a reconhece como manifestação do
auto-reconhecimento da liberdade do espírito.
Reiteramos que o belo artístico, para Hegel, tem caráter imediato, no
sentido de não ser a Idéia enquanto tal, pois por ser imediata não é em si e
para si mesmo, mas expressa universalidade que ainda não foi objetivada,
por isso, se configura enquanto efetividade individual, pois o belo artístico
configura a Idéia concretamente na efetividade em si mesma, determinando-se nesse momento como ideal.
Há circunstâncias históricas nas quais a arte apareceria deficiente,
pois não há correspondência entre a Idéia e a Forma. A arte suprema conseguiria exprimir essa correspondência na imediaticidade sensível sendo
verdadeira em si e para si mesma numa totalidade, que se particulariza na
concretude, evidenciando-se, assim, nessa correspondência o ideal. Há diversas formas de se conceber essa relação entre Forma e Idéia na arte, que
se configuram no desenvolvimento das fases das formas particulares. Nesse
sentido, Hegel faz uma divisão que expressa três diferentes expressões dessa relação entre Idéia e Forma na arte. A primeira é a Forma de Arte simbólica, a segunda é a Forma de Arte Clássica e a terceira é a Forma de Arte
Romântica. Vejamos como Hegel concebe essa relação em cada um desses
momentos e como a consciência infeliz aparece em um desses momentos.
Encarando a História da Idéia como teodicéia na qual o espírito vai
se reconhecendo através dos povos, sendo a arte a expressão da relação do
Conteúdo da Idéia com a concretude da Forma para imediaticidade sensível,
o belo artístico só pode se revelar no desenvolvimento do espírito na História.
[...]Reconocer que la historia universal es este curso evolutivo y la realización del espíritu, bajo el cambiante espectáculo de sus acontecimientos,
tal es la verdadera teodicea3, la justificación de Dios en la historia. Desarrollar ante ustedes esta marcha del espíritu universal ha sido mi aspiraci3. Grifo nosso, para ressaltar que Hegel encara a História universal como teodicéia.
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ón. (HEGEL, 1989, p. 701)
A Idéia, em sua trajetória de reconhecimento, num primeiro momento é indeterminada e ao se configurar na concretude aparece numa determinidade abstrata, ou melhor, numa má determinidade, pois a Idéia é tão
absurda em seu volume, que não é possível ser reconhecida. O Absoluto se
apresenta nesse início enquanto abstração em relação à natureza, além de
não se enquadrar à forma e acontecimento humanos, o que configura uma
sublimidade, que expressa uma inadequação entre Idéia e Forma.
Na inadequação de uma contra a outra, a relação da Idéia com a objetividade torna-se, por conseguinte, negativa, pois ela mesma, enquanto interioridade, permanece propriamente insatisfeita com tal exterioridadee se
estabelece de modo sublime sobre toda esta plenitude de configurações,
que não lhe correspondem como a sua substância interior e universal.
Nesta sublimidade, tanto o fenômeno natural quanto a forma e o acontecimento humanos são decerto tomados e deixados como são, para logo
serem reconhecidos como inadequados no que diz respeito a seu significado, que se ergue muito acima de qualquer conteúdo mundano. (HEGEL,
1999, p. 92)
A reconciliação do Ideal que se expressa na concatenação entre Idéia
e Forma se dá na segunda forma de arte, a arte clássica da Grécia Antiga.
É preciso, atentarmos, no entanto, que a arte enquanto a expressão da relação do Conteúdo da Idéia com a concretude da Forma para imediaticidade
sensível, não é a expressão mais alta do Espírito, mas consegue a reconciliação no mundo grego.
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É importante encararmos a História como teodicéia, pois dessa maneira podemos compreender como se desenrola a divisão da arte hegeliana. Assim, pensemos Deus num primeiro momento, enquanto totalidade e
que por ser a totalidade não é possível ser reconhecida, pois a totalidade
enquanto tal é inexprimível. Nesse sentido, a configuração artística dos primeiros povos expressa um panteísmo que se verifica na arquitetura, nos
monumentos absurdamente grandiosos, que apresentam uma sublimidade
na qual é impossível o reconhecimento, e por isso, a consciência ainda está
num mero tatear da Idéia, que só vai se reconhecer quando da particularização. Nesse sentido, a Idéia, por não se particularizar, aparece de forma
sublime na arte, expressando uma total impossibilidade da realização do
ideal, pois a concretude da Forma não corresponde à Idéia, o que configuraria a primeira Forma de Arte, a arte simbólica, que se exprime por meio
da arquitetura em grandes figurações tais como as pirâmides egípcias. Na
forma de arte simbólica, a arquitetura é a expressão artística que expressa
esse momento do espírito.
A antropomorfização dos deuses gregos expressa a particularização
do Absoluto, sendo que a arte, na forma humana da escultura consegue a
satisfação do espírito na individualidade imediata grega na sensibilidade.
Aqui temos o primeiro momento do reconhecimento do espírito no qual se
expressa a felicidade grega, pois a arte como expressão do divino no hu115
Estética e Consciência infeliz na filosofia hegeliana
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mano e no natural , em sua configuração sensível possibilitou uma harmonização da vida grega na relação harmoniosa entre Idéia e Forma. O grego
encontrava em sua imediaticidade sua satisfação no belo artístico, sendo a
escultura a expressão artística desse momento, no qual o templo, o edifício
arquitetônico tinha como objetivo abrigar as esculturas do divino corporificado na escultura.
Entretanto, os limites do sensível humano começam a se evidenciar
mediante a eternidade do Absoluto, e eis que a arte por se relacionar diretamente com a sensibilidade não tem condições de satisfazer plenamente o
que é do espírito. A reconciliação possível pela arte foi conseguida no mundo
grego, a reconciliação possível da arte se relaciona imediatamente com o
sensível, o que significa dizer que a arte a partir de então não conseguirá
por si só satisfazer aos anseios do espírito em sua trajetória para o reconhecimento de si. Vejamos como Hegel, em suas palavras concebe essa relação
da Idéia e da Forma na arte grega e como a arte se constitui enquanto insuficiente para os fins ainda mais altos do espírito:
A Forma de arte clássica, de fato, alcançou o ponto mais alto que a sensibilização da arte foi capaz de alcançar , e se nela há algo de deficiente,
tal coisa reside na arte mesma e na limitação da esfera artística. Esta
limitação deve ser identificada no fato de que a arte em geral transforma
em objeto, numa forma concreta e sensível, o espírito que, segundo o seu
conceito é a universalidade infinita e concreta, e apresenta no clássico a
consumada formação unificadora [Ineinsbildung] da existência espiritual e
sensível como correspondência de ambos. Mas, nesta fusão, o espírito não
chega de fato à exposição segundo seu verdadeiro conceito. Pois o espírito
é a subjetividade infinita da Idéia que, enquanto interioridade absoluta,
não se pode configurar livremente para si quando necessita permanecer
fundida ao corpóreo como sua existência adequada. (HEGEL, 1999, p.
93-94)
Por ser em-si imediata, a arte grega se liga à sensibilidade e enquanto em-si não vai além desse si, mas o espírito não se contenta com esse
em-si e, na arte expressa outra configuração que ultrapasse essa imediatez
da sensibilidade e se dirija a uma interioridade autoconsciente. Nesse sentido, o cristianismo tem profunda importância, pois os deuses gregos que se
revelavam numa corporeidade humana expressavam apenas o espírito como
individual e particular.
O cristianismo supera essa imediatez, pois representa Deus como
espírito absoluto, que vai além da corporeidade humana, passando de uma
sensibilidade da representação para uma interioridade espiritual. A forma
de arte Romântica expressa esse momento do espírito artisticamente, arte
essa que supera a si mesma nesse movimento, pois a arte tem relação com
a imediatez da sensibilidade, mas na interioridade do espírito o romântico
vai além do sensível e aqui se constitui uma espiritualidade livre que busca
a reconciliação no interior, deixando o exterior inessencial. Isto é, a interioridade superou a exterioridade, sendo essa superação expressa na própria
exterioridade, fazendo com que o fenômeno sensível perca seu valor. Entretanto, a exterioridade é necessária para a manifestação artística. Essa
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inessencialidade da exterioridade é um problema, pois nessa contingência
individual da interioridade abre-se espaço para a arbitrariedade, o infortúnio
e o crime. A ironia enquanto expressão do romantismo revela esse caráter
da cisão e da inadequação da Forma e da Idéia. Assim, nessa configuração
a inadequação entre Forma e Idéia ressurge, mas de maneira mais profunda
que na forma de arte simbólica pois não expressa na exterioridade o que
vem a ela na interioridade. Aqui surge claramente a consciência infeliz na
Estética hegeliana.
A interioridade romântica é expressão de um momento importante
do espírito no qual o Absoluto se singulariza em Cristo, vive a humanidade
às últimas conseqüências chegando à morte. A morte de Cristo tem profundas implicações na História universal que se revela no Romantismo alemão,
entretanto, é importante atentarmos para essa singularização do espírito,
que expressa essa interdependência de Deus em relação ao homem e viceversa, sendo que essa relação de interdependência se configura na relação
senhor-escravo na Fenomenologia, em que a consciência do Espírito busca a
si mesma mas vê a necessidade do outro para a sua efetivação na realidade,
chegando à infelicidade da consciência diante de sua cisão. As expressões
artísticas da forma de arte romântica são a pintura, que se aproxima ainda
da escultura; a música, que já dá um passo adiante e a poesia, estágio final
da forma de arte romântica.
A relação senhor-escravo, em Hegel, expressa uma relação de interdependência do sujeito e do objeto, do homem (enquanto indivíduo) e
a objetividade. É uma relação na qual a consciência toma consciência de si
mesma no Espírito enquanto eu, ou indivíduo, mas que vê essa dependência
no seu outro, no objeto. Isso porque o reconhecimento só é possível, para
Hegel, no outro. É no outro que o em-si se reconhece enquanto ele mesmo.
Sem o outro ele não é para si.
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Por meio disso [o processo da configuração da forma de arte romântica]
surge novamente a indiferença, a inadequação e separação entre a Idéia e
a forma – como no simbólico -, mas com a diferença essencial de que no
romântico a Idéia, cuja deficiência junto ao simbólico apresenta as deficiências do configurar, deve aparecer em si mesma completa como espírito e
ânimo. Por esta razão, esta perfeição superior se priva da correspondente
união com a exterioridade, sendo que somente pode buscar e completar
sua verdadeira realidae e aparição [Erscheinung] em si mesma. (HEGEL,
1999, p. 96)
A separação das figuras (sujeito e objeto) é uma fatalidade da modernidade, já que não é possível um mundo sem sujeito, sendo que sem a
diferença não há reconhecimento. Entretanto, a permanência isolada das
figuras não permite o reconhecimento das mesmas, pois necessita do outro
e é isso que ocorre na forma de arte romântica.
Esse é um ponto central na configuração da filosofia hegeliana, pois,
como veremos, é a partir da cisão que a filosofia hegeliana se impõe uma tarefa, qual seja, a de unir o que foi separado, sensível e supra-sensível, finito
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e infinito, sujeito e objeto, já que a filosofia kantiana apresentou essa cisão,
por conta da separação de númeno e fenômeno, mundo sensível e mundo
inteligível, que fez abrir uma lacuna na história da filosofia, da qual Fichte e
os românticos alemães tomaram consciência, buscando essa reconciliação.
Schiller é o primeiro a tomar consciência dessa cisão. Schlegel, com seus
fragmentos e sua ironia expressa a necessidade da reconciliação. Com Fichte, do ponto de vista hegeliano, a solução foi unilateral, pois se deu num
processo dialético de caráter parcial, pois se configurou numa filosofia que
considera a relação sujeito objeto de modo subjetivo e com Schelling isso
se configurou no sentido inverso numa relação sujeito objeto de caráter
objetivo.
Quando da transição histórica da Antigüidade para a Modernidade
essa consciência visa-se separada de seu outro, o que a faz perder-se de si
mesma, constituindo uma má consciência, pois está cindida de seu outro,
portanto, cindida de si mesma, já que não se reconhece, sendo a morte do
Cristo histórico, segundo Hyppolite (1999), um fato fundamental, pois o romantismo teria consciência do supra-sensível como fundamental à sensibilidade, mas que se vê cindido do supra-sensível por conta da morte do Cristo
histórico. Assim, na interioridade se prendem à singularidade que já não
mais vive. Essa reconciliação já não é mais possível na arte, pois é necessário saber essa condição, sendo a filosofia o caminho para tal reconciliação.
O cristianismo, do qual o romantismo alemão pretende ser uma interpretação, é o sentimento – embora não seja ainda o pensamento – do infinito
valor da existência singular. “Amai aquilo que nunca será visto duas vezes.” O que paradoxalmente se conjuga é esta situação particular da vida
e esse termo transcendente que a consciência infeliz pusera inicialmente
fora de si mesma. No entanto, a transição do “Uno além do ser” ao “Uno
unido ao ser” efetuou-se. Com efeito, a consciência infeliz não está fixada em um dos pólos da contradição; descobre-se como movimento para
transpor tal dualidade. (HYPPOLITE, 1999, p. 215)
Nesse sentido, Hegel capta uma cisão no mundo moderno, qual seja,
a cisão entre sujeito e objeto, isto é, a cisão do sujeito em relação a si mesmo, que se expressa na consciência infeliz, pois a consciência conscientizase de si mesma enquanto cindida do que lhe configura enquanto tal, o seu
outro. A filosofia hegeliana ao captar essa cisão na história da filosofia que
se revela de forma culminante nas filosofias de Fichte (sujeito-objeto subjetivo) e Schelling (sujeito-objeto objetivo) se imporá uma tarefa, qual seja
a união do que foi separado, sujeito e objeto, na figura do espírito (santo)
dialeticamente.
Hegel, na Fenomenologia do Espírito, descreve o processo de reconhecimento de si da consciência, na realização de sua liberdade. O reconhecimento da consciência se dá de forma mais completa quando não se vê cindida por si mesma e se reconhece no seu outro, numa completude absoluta,
que, entretanto, necessita da diferença para se reconhecer e se reconhece
na diferença.
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É uma consciência-de-si para uma consciência-de-si. E somente assim ela
é, de fato: pois só assim vem-a-ser para ela a unidade de si mesma em
seu ser-outro. O Eu, que é objeto de seu conceito, não é de fato objeto.
Porém, o objeto do desejo4 é só independente por sua substância universal
indestrutível, a fluida essência igual-a-si-mesma. Quando a consciênciade-si é objeto, é tanto Eu quanto objeto. (HEGEL, 2001, p. 125)
O projeto hegeliano se desenvolve a partir das questões levantadas
por Kant, filósofo este responsável por um importante movimento do espírito no qual, com a separação entre númeno e fenômeno, provocou uma cisão
profunda entre ser e dever ser, entre finito e infinito. O romantismo alemão
que sucedeu Kant promoveu a busca dessa unificação que se completou na
filosofia hegeliana.
Hyppolite vê a cisão como característica romântica na filosofia hegeliana e aponta essa tarefa de unificação enquanto traço característico de sua
filosofia e vai mais além nas origens da consciência infeliz, mostrando que
no judaísmo e em parte da idade média a separação entre finito e infinito é
evidente, há uma infelicidade na vida terrena pois aqui na Terra não é possível a realização efetiva da própria vida.
[...] A consciência infeliz, que na Fenomenologia encontra sua encarnação
histórica no judaísmo e em uma parte da idade média cristã, é com efeito,
a consciência da vida como infelicidade da vida. O homem elevou-se acima
de sua condição terrestre e mortal; ele não é mais que o conflito do infinito
e do finito, do absoluto que ele colocou fora da vida, e de sua vida reduzida
à finitude. Este conflito é a expressão do romantismo e da própria filosofia
hegeliana, aquele que corresponde ao dilaceramento e à cisão e que precede toda unificação e toda a reconciliação. (HYPPOLITE, 1971, p. 24)
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
Nisso, vemos uma profunda diferença em relação a Kant, o filósofo
de Königsberg constitui uma filosofia crítica que do ponto de vista hegeliano
tem fundamental importância na história da consciência, mas que faz com
que permaneça a cisão entre sujeito e objeto, entre mundo sensível e mundo inteligível, que em Hegel não é possível, pois o reconhecimento do sujeito
só é possível no objeto e vice-versa. Nas palavras de Hegel (2001, p. 126):
“A consciência tem primeiro na consciência de si, como conceito do espírito,
seu ponto de inflexão, a partir do qual se afasta da aparência colorida do
aquém sensível, e da noite vazia do além supra-sensível, para entrar no dia
espiritual da presença.”
Essa cisão, na filosofia hegeliana, expressa uma necessidade e será
o fundamento da característica central da filosofia hegeliana, qual seja, a
dialética e o desenvolvimento do espírito na história na busca do reconhecimento de si e sua liberdade que é atingida na reconciliação de si na sua
consciência, na razão.
4. A consciência de si, para Hegel, é desejo, pois, num primeiro momento, a consciência-desi, em sua independência, busca a nulidade de seu outro, mas, logo percebe que a satisfação
desse desejo só se coloca por conta do outro.
119
Estética e Consciência infeliz na filosofia hegeliana
No que se refere à consciência infeliz na Filosofia da arte hegeliana a
inadequação entre Forma e Idéia expressa no romantismo expressa o caráter sensível da arte, que por si mesma não consegue nesse momento
histórico fazer a reconciliação para a satisfação do espírito tal qual tinha
conseguido na forma de arte clássica grega. Hegel sintetiza esse movimento
nos Cursos de Estética (1999, p. 96) com as seguintes palavras:
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
Em termos gerais, este é o caráter da Forma de arte simbólica, clássica e
romântica que implica os três tipos de relações da Idéia com sua forma no
âmbito da arte. As três Formas consistem na aspiração, na conquista e na
ultrapassagem do ideal como a verdadeira Idéia de beleza.
Considerações finais
Nos Cursos de Estética (Filosofia da Arte), Hegel demonstra a importância da Arte na configuração do Espírito enquanto expressão do Absoluto,
em que este se apresenta numa imediaticidade sensível, reconciliando Idéia
e Forma na concretude histórica. Nesse sentido, a arte vai tomando diversas
formas no decorrer do desenvolvimento do espírito, tendo como fundamento
a relação Forma e Idéia. Num primeiro momento, na Forma de arte simbólica, o Absoluto se apresenta por meio da arquitetura como sublimidade, sublimidade que expressa a inadequação do Absoluto à forma nas expressões
artísticas dos primeiros povos, exemplificado pelo panteísmo oriental.
O segundo momento da expressão artística é a forma de arte clássica, na qual a arte reconcilia Idéia e Forma na intuição sensível.A arte chega
a essa concatenação, mas a imediaticidade do sensível torna-se insuficiente
para o espírito, que busca a reconciliação além dessa imediaticidade, na interioridade do romantismo. A interioridade romântica torna o exterior inessencial, o que configura a cisão em relação à unidade da arte clássica. Mas
a arte, por se relacionar à imediaticidade do sensível não permite uma nova
reconciliação. Assim, a arte romântica, ultrapassa o ideal pela própria forma
artística, mas nisso se expressa a consciência infeliz, pois a exterioridade
também é necessária para o seu reconhecimento. Essa impossibilidade de
reconciliação é expressão da consciência infeliz na estética hegeliana.
120
Lincoln Menezes
Referências
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Cursos de Estética. Tradução: Marco Aurélio Werle. Edusp: São Paulo, 1999.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Lecciones sobre la filosofía de la historia
universal. Tradução: José Gaos. Alianza Editorial, S.A.: Madrid, 1989.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em
Epítome. Volume I. Tradução: Artur Mourão. Edições 70: Lisboa, 1988.
HYPPOLITE, Jean. Introdução à Filosofia da História. Civilização Brasileira:
Rio de Janeiro, 1971.
HYPPOLITE, Jean. Gênese e Estrutura da fenomenologia do Espírito. Discurso Editorial: São Paulo, 1999
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do Espírito. Tradução: Paulo Meneses com a colaboração de Karl-Heinz Efken. Editora Vozes Ltda.:
Petrópolis, 1992.
121
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos
Ano 6, nº10, Junho-2009: 123-135
Hegel e Hamann: alguns diálogos
Ilana Viana do Amaral
1
Palavras-chave: Hegel, Hamann, Metacrítica, Linguagem, História, Estado.
ABSTRACT: This article intends to make explicit Hegel”s dialogue with H.G Hamann. Taking as a
point of depart the opposition made by the latest of an idea of reason mediated by language which he calls, in humoristic terms, a “purified” reason, as a result of Kant’s critical effort – it is
intended here to show how Hegel incorporates, in the speculative development of the concept of
spirit, the hamannian reflection about language as the main historical objectivation. For Hegel,
this reflexion in insufficiently determined to express the connection between reason and history,
what leads him to the concept of State to unveil the objectivity of spirit. To achieve our purposes, Hamann’s reflexions and his dialogue with Kant in Metacritics are presented throughout
Hegel’s interpretation. We start with a Hegel’s quotation of Hamann - found in The Philosophy of
Nature – to refer to the Writings of Hegel about Hamann. This Writings will be articulated to the
Encyclopedia and a brief reference of the Aesthetics. It is sought here to show in what sense
the hamannian reflexion on language as the main objectivation of human’s experience appears
to Hegel as the exposition of the subjective idea. Such exposition, according to Hegel’s Writings
about Hamann, allows to present a critique on what he calls a “dry understanding” in order to
express its truthiness and limits facing the speculative exposition of the State mediation.
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
RESUMO: O presente texto busca explicitar o diálogo de Hegel com H. G. Hamann a partir da
oposição, por este último, de uma idéia de razão mediada pela linguagem ao que ele nomeia,
sob forma humorística, como a razão “purificada” resultante do esforço crítico kantiano. Hegel
incorpora, no desenvolvimento especulativo do conceito de espírito, essa reflexão hamanniana
sobre a linguagem como objetivação histórica fundamental. A pensa, entretanto, como insuficientemente determinada para expor a conexão entre razão e história, avançando especulativamente até o conceito de Estado para expor a objetividade do espírito. Aqui, apresentaremos as
reflexões de Hamann em seu diálogo com Kant diretamente remetidas à Metacrítica hamanniana, embora seu conteúdo seja pensado já sob a mediação da sua recepção por Hegel. Partiremos de uma citação de Hamann por Hegel na Filosofia da Natureza e dela nos remetermos aos
Escritos de Hegel sobre Hamann. Articularemos, em seguida, estes Escritos a alguns momentos
da Enciclopédia para daí, finalmente, nos remetermos a uma breve referência ao texto da Estética. A exposição tem o sentido de explicitar os termos nos quais a reflexão hamanniana sobre
a linguagem como objetivação fundamental da experiência humana aparece a Hegel como
exposição da idéia subjetiva, exposição capaz, nos termos de seus Escritos sobre Hamann, de
apresentar a crítica ao que Hegel chama de “entendimento seco”, para evidenciar tanto a sua
verdade quanto o seu limite diante da exposição especulativa da mediação do Estado.
Keywords: Hegel, Hamann, Metacritics, Language, History, State.
Este texto constitui a primeira parte de uma exposição mais longa –
composta também de uma segunda parte, ainda inédita – que visa apresentar e problematizar certo diálogo entre as reflexões de Hans Georg Hamann e
a filosofia especulativa de Hegel. Faremos uma breve exposição introdutória
do conjunto da problematização, apenas para tornar possível a compreensão
do conjunto da proposta de articulação, sem perda de uma visão de totalida1. Professora da UECE. Texto submetido em Outubro de 2009 e aprovado para publicação em
Novembro de 2009.
123
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
Hegel e Hamann: alguns diálogos
de. O conjunto do diálogo tem em seu centro a crítica hamanniana à Kant,
mediada pela apropriação por Hegel desta crítica. Tal apropriação, se, de
um lado, é positiva, de outro, demarca a insuficiência, segundo o ponto de
vista especulativo, da reflexão hamanniana. Interessa-nos, nesse momento, evidenciar o problema fundamental: o limite, do ponto de vista Hegel,
da crítica apresentada por Hamann – através da mediação da linguagem,
exposta como única mediação capaz de apreender a razão humana em sua
historicidade – à razão “purificada” ou abstrata em Kant. Essa insuficiência
da crítica hamanniana é apresentada por Hegel pela exposição da mediação
do Estado como mais determinada para a apreensão do desenvolvimento
objetivo do espírito, mediação que assim se apresenta como condição para a
apreensão conceitual da história. Tal problema nos leva a algumas das grandes questões relativas ao sistema e particularmente à discussão da resposta
conceitual de Hegel às relações entre razão, história e liberdade, constituída
a partir de sua apropriação do estatuto da liberdade na modernidade. Nos
parágrafos seguintes faremos uma breve exposição sintética do conjunto da
articulação. Em seguida procederemos à exposição mais demorada do nosso
objeto neste texto, o desenvolvimento da primeira parte deste percurso.
Na primeira parte – que está desenvolvida no presente texto – tratase de explicitar que o diálogo de Hegel com Hamann parte da oposição, por
este último, de uma idéia de razão mediada pela linguagem, oposição ao
que Hamann nomeia, sob forma humorística, como a razão “purificada”,
resultante do esforço crítico kantiano. Hegel incorpora no desenvolvimento
especulativo do conceito de espírito esta reflexão sobre a linguagem como
objetivação histórica fundamental. A pensa, entretanto, como insuficientemente determinada para expor a conexão entre razão e história, avançando
assim até o conceito de Estado em sua exposição da objetividade do espírito. Nesta primeira parte apresentaremos as reflexões de Hamann em seu
diálogo com Kant centradas na Metacrítica2 hamanniana sobre o purismo da
razão. Tal crítica será tomada, do ponto de vista do conteúdo, com base em
sua mediação pela recepção de Hegel. Partiremos assim, de uma citação
de Hamann por Hegel na Filosofia da Natureza3 para dela nos remetermos
aos Escritos4 de Hegel sobre Hamann, do período Berlinense. Articularemos
em seguida tais Escritos sobre Hamann a alguns momentos da Enciclopédia
(particularmente ao seu terceiro prefácio e à seção introdutória da pequena
Lógica5, à discussão sobre a linguagem na seção do Espírito subjetivo6 e
ainda ao mesmo §246, da Filosofia da Natureza), para daí, finalmente, nos
2. Hamann, J. G. Metacrítica do purismo da razão, in: Justo, J. M. (org.). Ergon ou energuéia.
Tr. J. M. Justo. – Lisboa: Apáginastantas, 1986
3. Hegel, G. W. F. Enciclopédia das ciências filosóficas. V. II. Filosofia da Natureza. Tr. Pe. José
Nogueira Machado. – São Paulo: Loyola, 1997, § 246.[no que segue: FN]
4. Hegel, G.W.F. Les écrits de Hamann. Tr. fr. Jacques Colette. Paris: Aubier Montaigne. [no que
segue, EH].
5. Hegel, G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio, v. I – A ciência da lógica.
Tr. br. Paulo Meneses com a colaboração de José Machado. São Paulo: Loyola, [no que segue,
Pequena Lógica], 1995; Prefácio à terceira edição.
6. Hegel, G. W. F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas, III – Filosofia do Espírito. Tr. br. Paulo
Meneses.São Paulo: Loyola, [no que segue, FE] 1995, (§ 456-460)
124
Ilana Viana do Amaral
remetermos a uma breve referência ao texto Estética7. Os passos desta
primeira parte da exposição têm o sentido de explicitar os termos nos quais
a reflexão hamanniana sobre a linguagem como objetivação fundamental
da experiência humana aparece a Hegel como exposição da idéia subjetiva,
exposição capaz, nos termos da sua resenha sobre Hamann, de apresentar
a crítica ao que Hegel chama aí de “entendimento seco (trocken Verstand)”,
para evidenciar tanto a sua verdade quanto o seu limite, diante da exposição
da mediação do Estado.
Concluímos esses diálogos retomando, ainda uma vez, a Estética e a
Filosofia do Direito, agora para articular, afinal, um problema e uma hipótese.
O problema: a ausência da referência de Hegel a Hamann na seção dedicada
ao humor subjetivo na Estética. A hipótese: de que a apreensão por Hegel
do esforço de Hamann como marcado pela forma humorística justificaria a
sua inclusão na seção do humor subjetivo das Lições de Estética, mas que
a sua ausência nesta articulação conceitual do humor na modernidade por
Hegel aponta certo embaraço especulativo diante da exposição subjetiva da
idéia efetivada por Hamann sob a forma do humor. Esta apresenta, afinal,
uma unidade negativa – porque subjetiva – de forma e conteúdo, aquela
mesma que a crítica de Hamann a Kant requer como central à razão que se
pensa mediada pela linguagem. Esta unidade negativa parece embaraçar a
crítica hegeliana acerca do limite da negatividade da subjetividade na modernidade. Para explicitar a questão, retomamos as reflexões apresentadas
em torno das distinções hegelianas sobre o humor e a ironia, agora para
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
O segundo movimento da articulação – a parte ainda inédita – busca
evidenciar, a partir da explicitação do diálogo feita nesta primeira parte – e
agora “por fora” da apropriação especulativa da obra de Hamann, embora
ainda em permanente diálogo com ela – certos elementos que nos permitem
pensar de modo problemático as questões centrais às quais a apropriação de
Hamann por Hegel nos remete. Para esse segundo momento tomamos como
ponto de partida uma questão da Estética8, presente na distinção hegeliana
entre o humor subjetivo e a ironia, apresentadas como diferentes formas de
aparição da negatividade da subjetividade na experiência moderna. Articulamos tal distinção à Filosofia do Direito9 no sentido de melhor delimitar os
termos da relação entre a especulação hegeliana e a apreensão da linguagem por Hamann, para o que procedemos a certa explicitação mais específica do conceito de razão neste último. Neste momento, voltamos também,
pelo lado de Hegel, à Filosofia do Espírito, agora para nos reportar às relações entre o cômico, o humor e o sentir (exposição apresentada por Hegel
no adendo ao § 401), relações que nos ajudam, ainda que em negativo, a
ressaltar a especificidade da reflexão de Hamann bem como o seu ‘lugar’ do
ponto de vista especulativo.
7. Hegel, G. W. F. Cursos de Estética, v. II. Tr. br. Marco Aurélio Werle. São Paulo: EDUSP, [no
que segue Estética, v. II], 2000.
8. Hegel, G. W. F. Cursos de Estética, v. I. Tr. br. Marco Aurélio Werle. São Paulo: EDUSP, [no
que segue Estética v.I] p.81 et seq e Estética, v.II, p. 336 et seq..
9. Hegel, G. W. F. Princípios da Filosofia do Direito. Tr. port. Orlando Vitorino. Lisboa: Guimarães,
[no que segue FD], 1990, especialmente o §140..
125
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
Hegel e Hamann: alguns diálogos
evidenciar que tal “embaraço”, provocado pela especificidade da negatividade exposta na “forma Hamann”, na verdade expõe também as razões últimas da necessidade da crítica hegeliana ao limite especulativo da reflexão
de Hamann sobre a objetividade da linguagem. Elas nos permitem situar a
oposição por Hegel da mediação conceitual do Estado ao limite da mediação
da linguagem a partir da necessidade, presente ao esforço especulativo,
de concepção do Estado moderno como efetividade (Wirlichkeit) capaz de
conter e suspender a subjetividade na sua particularidade. O problema – e
o “embaraço” que afinal se apresenta – é que a negatividade da linguagem
em Hamann, o humor, apresenta a subjetividade em conexão com uma recusa do Estado que se desdobra como ação e por isso requer a efetividade
que ela nega, ao contrário da recusa à efetividade presente no ideal próprio
à ironia romântica, que dela se exila. Esta implicação da efetividade, ainda
que negativamente, re-posiciona o humor de Hamann diante da recusa por
Hegel da negatividade irônica e também do limite do humor subjetivo. Essas
considerações, afinal, permitem explicitar o não-lugar do humor hamanniano na exposição sistemática de Hegel e dar as suas razões, pois se ele já não
é arte e ainda não é conceito, e se Hamann é um “autor religioso”10, como
pensa Hegel, nada neste humor autoriza a pensar o cristianismo, que é o seu
leitmotiv, na correlação com o desenvolvimento da liberdade na esfera do
Estado que o próprio Hegel estabelece, ao pensar a religião em sua relação
com o desenvolvimento objetivo do espírito a partir da forma do Estado. Isso
nos explica, afinal, por que a negatividade do humor de Hamann não pode
se situar, como subjetividade determinada, em parte alguma da exposição
sistemática. O não-lugar especulativo da forma-Hamann sugere, assim, certas aporias do conceito (de sua apropriação da realidade como Wirklichkeit)
diante da negatividade do humor hamanniano frente ao Estado. Este antes o
toma como mera Realität, para usar a expressão hegeliana, mas não a partir
de um ideal apartado da experiência, como ocorre com o ideal romântico,
mas com base na negatividade imanente ã própria subjetividade inserida na
concretude histórica e com ela confrontada a partir do logos cristão. Essas
considerações permitem caracterizar, finalmente, desde o ponto de vista da
negatividade apresentada por Hamann, certa retomada por Hegel, no conceito (e ainda que mediada pela ‘suspensão’ da particularidade operada na
Wirklichkeit), de certa abstração “purificadora” da razão que exige a exclusão (a priori e a posteriori) pela exposição especulativa de tal forma autocontraditória da subjetividade, na qual esta se identifica inteiramente com a
linguagem e a palavra, forma da qual o conceito não pode, afinal, suspender
o caráter contraditório e sobre a qual, por isso mesmo, não pode construir
uma narrativa sintética.
Partirei de uma citação de Hamann feita por Hegel no §246 da En-
10. A expressão “autor religioso” é utilizada por Kierkegaard para apresentar a sua própria
atividade como escritor. Estas reflexões sobre Hamann e Hegel se situam numa pesquisa mais
ampla, desenvolvida em nossa tese de doutoramento, sobre Kierkegaard. Nela tomamos Hamann precisamente para pensar a especificidade da escrita do “autor religioso” como unidade
de forma e conteúdo que permite explicitar a oposição de Kierkegaard a Hegel como uma
reivindicação da fé em sua distinção do imediato ou da intuição. Cf. Amaral, Ilana. O conceito
de paradoxo (constantemente referido a Hegel) Fé, História e Linguagem em S. Kierkegaard.
Mimeo, PUC, 2008.
126
Ilana Viana do Amaral
Em seus Escritos sobre Hamann, composto de dois artigos, apresentados em 1928 nos “Anais para a crítica científica” a título de resenha dos
Escritos de Hamann – publicados em VII volumes entre os anos de 1821-25,
reunião de textos e correspondências daquele autor –, Hegel apresenta um
perfil deste pensador. Hamann foi um autor cuja influência em seu tempo,
na Alemanha do final do século XVIII, alcançou pensadores como Goethe,
Jacobi ou Herder, que a ele se referiam como a um mestre, bem como interlocutor de outros, como Kant, de quem foi amigo em Königsberg, cidade
natal também de Hamann. Naturalmente, em sua resenha, Hegel não trata
de apenas apontar curiosidades histórico-biográficas acerca de Hamann e do
alcance e das especificidades das suas relações com a intelectualidade alemã
de seu tempo (embora também apresente estas curiosidades), mas trata,
fundamentalmente, de pensar o lugar e a contribuição intelectual deste pensador com base nos critérios impostos por seu próprio esforço especulativo.
Assim Hegel, situando Hamann no contexto da ilustração berlinense, que
ele vê caracterizada por uma secura do entendimento, apresenta Hamann
como um autor capaz de, sob uma forma que se move entre a “máxima
concentração e o “esfacelamento”, opor a idéia, ainda que sob um ponto de
vista subjetivo, a isso que ele chama de “entendimento seco”11. Com essa
designação Hegel visa muito particularmente àquelas “oposições do entendimento” próprias à filosofia kantiana que se expressam na cisão entre a
universalidade da forma e a multiplicidade em si amorfa do conteúdo, que
atinge de cheio a possibilidade de uma inteligibilidade do histórico. Hegel vê
Hamann, como pensador movido pela crítica de inspiração religiosa à esta
secura do entendimento, como uma expressão da “energia viva do presente
espiritual”12.
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
ciclopédia. Diz Hegel, citando Hamann, que: “a natureza é palavra hebraica, que se escreve só com as consoantes, à qual o intelecto deve apor os
pontos”. No contexto desta citação Hegel prepara a exposição do conceito
de natureza, que fará no § 247. A citação conclui o movimento que se inicia pela crítica, de um lado, da filosofia da natureza de Schelling – de sua
apreensão da relação entre o pensamento e a natureza sob a determinação
da intuição, que assim reenvia à esfera do mito tal conexão – e de outro,
o entendimento kantiano, que por meio da oposição noumeno-fenômeno,
opõe a racionalidade da forma – da subjetividade – à opacidade imanente do
conteúdo – da coisa mesma –, reduzindo o conteúdo à pura fenomenalidade
e a razão à simples forma. Hegel aponta, por meio desta citação e de modo
aí não explicitado, aquilo que Hamann e sua reflexão podem significar em
termos de uma prefiguração subjetiva do Espírito, capaz de superar estas
duas unilateralidades do pensamento, conceito este – de Espírito – que só a
própria especulação hegeliana desenvolverá em sua inteireza.
O que significa, para Hegel, o reconhecimento de que Hamann alcança em sua obra, que aqui apresentaremos a partir da crítica ao “purismo
da razão” kantiano, a própria “ideia”, ainda que apenas do ponto de vista
11. Hegel, EH, p. 62 et seq.
12. Ibid, p. 63.
127
Hegel e Hamann: alguns diálogos
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
subjetivo”?13 Qual o alcance e qual o limite, segundo o ponto de vista especulativo, desta crítica hamanniana e o que ela nos pode dizer acerca da
própria especulação, ou seja, sobre Hegel? Para melhor responder a estas
questões, ainda que brevemente, acompanhemos o esforço hamanniano de
crítica a Kant com o qual Hegel também dialoga na resenha.
Podemos apanhar o centro da crítica hamanniana a Kant na sua Metacrítica sobre o purismo da razão, crítica que aí aparece sob aquela “forma
concentrada” que se limita com o “esfacelamento”, à qual Hegel se refere.
Trata-se, afinal, de opor um pequeno texto de apenas sete páginas, escrito sob uma forma humorística, ao esforço monumental da Crítica da razão
pura. O centro ou o núcleo duro da crítica hamanniana a Kant está dado na
objeção apresentada ao esforço kantiano de “purificação” da razão, isto é,
na objeção àquilo que este esforço significaria aos seus olhos. Para Hamann
o projeto crítico da filosofia transcendental consiste numa violenta abstração
da razão e da subjetividade, pois nela a crítica do imediato – da qual o próprio Hamann, como depois Hegel, sem dúvida compartilha, pois é também
da crítica do imediato que se trata, afinal, no esforço de apresentar a linguagem como mediação fundamental da razão – significa, ao mesmo tempo
e necessariamente, a supressão da mediação significada pela linguagem
(e assim pela história), em nome da completa abstração da subjetividade,
agora apartada de tudo o que é lingüístico e histórico. Nos termos do próprio
Hamann, como lemos na Metacrítica:
Depois de durante mais de dois mil anos se ter andado a procurar a razão do lado de lá da experiência, eis que a Filosofia não apenas prescinde duma assentada da via progressiva de seus precursores, mas, com a
mesma insolência, promete também aos impacientes contemporâneos, e
ainda por cima, para breve, a universal Pedra dos sábios, tão necessária
ao catolicismo e imprescindível ao despotismo, à qual, de pronto, a Religião submete a sua sacralidade e o poder legislativo a sua majestade,
muito em especial nos últimos momentos de declínio de um século crítico,
quando o empirismo dessas duas instâncias, atacado de cegueira, de dia
para dia torna mais suspeita a sua própria nudez.14
A Crítica da Razão Pura visaria a uma purificação da razão humana,
diz Hamann, “de toda transmissão (Uberlieferung), tradição (Tradition) e Fé
(Glaube)”15, purificação que resulta na inteira perda do sentido da experiência antes que na sua pretendida fundamentação, pois que ela apenas subtrai
a subjetividade desta totalidade histórica e lingüística, da qual toda subjetividade efetivamente provém, subtração que não pode se legitimar senão
na medida em que se diz. Ora, este dizer-se da subjetividade em que consiste a Crítica da Razão Pura já consiste numa recaída na linguagem – isto
é, na história - que a filosofia crítica justamente pretendia justificar. A este
procedimento, que Hamann denuncia na Metacrítica como um “hysteronproteron”16, fazendo uma denúncia-piada “lógica” da auto-pressuposição
não criticada da linguagem na Crítica da razão pura, ele justamente oporá
13.
14.
15.
16.
Cf. Ibid, p.92 et seq, especialmente p.102-3.
Hamann, op. cit. p.52.
Id, ibd.
Id. p. 53
128
Ilana Viana do Amaral
Para tornar mais claro aquilo que é objeto desta crítica hamanniana
ao esforço transcendental, diga-mo-lo numa proposição: para Hamann a
filosofia crítica, no esforço de apresentar uma legitimação universal da razão – que se apresenta como crítica da experiência enquanto experiência
imediata – apresenta-se como uma suspensão não apenas da experiência
enquanto esta é identificada com o simples imediato, mas tal suspensão – é
ao mesmo tempo a abolição de toda a experiência (Erfahrung) já não apenas
da imediata, mas também daquela experiência já mediatizada na história
pela linguagem, por meio da qual precisamente a subjetividade e a razão
humanas se constituem concretamente.
Aqui é possível já divisar o movimento que encontraremos, sob a
forma sintética do conceito, nos § iniciais da Enciclopédia da Ciências Filosóficas quando acompanhamos a mesma crítica à filosofia transcendental
apresentada por Hegel, que a apresenta nos termos de um equívoco que
consistiria em pretender “aprender a nadar sem entrar na água”. O que Hegel aponta neste §10 da Enciclopédia é aquilo mesmo que na Metacrítica, se
apresenta para Hamann como a brutal abstração ou abolição da experiência
histórica operada pela filosofia transcendental, abolição das mediações lingüísticas como mediações históricas, que é, afinal, a abstração da história
ela mesma como automediação fundamental do processo de constituição da
subjetividade. É exatamente a possibilidade apresentada por Kant de tematizar a subjetividade abstraindo-a do processo histórico por meio do qual em
cada tempo esta mesma subjetividade se constitui concretamente (o que
equivale, nos termos de Hegel a pretender “aprender a nadar sem entrar na
água”), aquilo que no fundo determina para Hamann que o esforço kantiano
de “purificação” da razão seja por ele apresentado (sob uma forma cômica),
como um esforço destinado “a priori e a posteriori”18 a nada dizer de efetivo
sobre a razão humana. A impossibilidade de um tal conceito, assim “purifi-
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
a argumentação da implicação da constituição histórica da subjetividade
por meio da linguagem – o pressuposto que é denegado na primeira Crítica
kantiana – como aquele que determina um retorno pela porta de trás do que
é expulso pela porta da frente. Como a linguagem, no seu uso histórico, é
pressuposto de toda fala filosófica – uma vez não cumprida a fábula da simbolização universal da linguagem desejada por Leibniz –, a própria filosofia
crítica deve introduzir a linguagem como âmbito pré-crítico, suspendendo
a sua validade como idêntico ao imediato – em seu esforço de purificar a
razão. Mas isso significa concretamente, para Hamann, o desmoronar da
pretensão crítica na medida em que sua suspensão formal não elimina, mas
apenas elide o caráter a-priorístico da linguagem. É por isso, que uma radicalização do esforço crítico deve ajustar contas – o que pretende a reflexão
Metacrítica hamanniana sobre a linguagem – com a necessidade do exame
da linguagem, esta sim pensada como “primeiro e único critério da razão
humana”17, associada por Hamann à experiência histórica, como adiante
veremos.
17. Id. p.52
18. Id.p.55
129
Hegel e Hamann: alguns diálogos
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 9, JUN-2009
cado” não só da experiência imediata, mas de toda experiência, em dizer da
razão humana não reside, assim, senão no profundo equívoco que permite
a este esforço separador da filosofia transcendental quebrar a totalidade
espiritual para apresentar o caráter constituidor da subjetividade apartado
dos seus nexos com a linguagem e a experiência histórica, abolição que assim as desconhece como ‘automediações do espírito’, nos termos de Hegel,
pelas quais, apenas, a própria subjetividade é sempre constituída e partir
das quais apenas esta mesma subjetividade se forma como potência formadora.
Aqui é possível identificarmos a razão fundamental pela qual Hegel
vê em Hamann um pensador capaz, nos termos da sua resenha, de opor ao
“entendimento seco kantiano” a razão – ou a idéia. É que Hamann apresenta
uma identidade entre espírito e verdade que será central também ao próprio
Hegel. Diz Hegel nos Escritos, que é a “fé firme de Hamann na trindade”
o que permite a este pensador opor a idéia (ou a razão entendida como
experiência lingüística e histórica, isto é, como espírito), ao universalismo
abstrato da filosofia crítica19. Hegel explicita na resenha algo que também
é apresentado, em conexão com o desenvolvimento sistemático – e aí sem
mencionar Hamann – no prefácio de 1830 à terceira edição da Enciclopédia20. No Prefácio, Hegel apresenta a filosofia especulativa como resposta
de um lado, às oposições kantianas – as mesmas que ele pensa a partir da
secura do entendimento – e de outro lado, à posição fideísta, que opõe a fé
à razão. A fé de Hamann, ao contrário do fideísmo que opõe a fé entendida
como um imediato à razão, compreende a fé em sua relação com a história
e por isso mesmo pode por o Espírito –concretamente vivente na história –
à secura do entendimento kantiano. Neste contexto da Enciclopédia, Hegel
cita o evangelho de João 7, 38-39 sobre a verdade como espírito em oposição à fé como imediato.
É esta apropriação da relação entre verdade e espírito – ainda que
em Hamann tal apropriação se dê de modo estritamente subjetivo, como
acrescenta Hegel – a razão pela qual Hamann pode apresentar uma formulação como aquela citada por Hegel na sua Filosofia da Natureza, sobre o
intelecto ter de apor os pontos à natureza como palavra hebraica. Naquela
citação o que vemos é precisamente a formulação, concentrada do ponto
de vista da forma, da apropriação de algumas das determinações que serão
desenvolvidas especulativamente no conceito hegeliano de espírito.
Quando, partindo daquela citação de Hamann por Hegel na Filosofia
da natureza, nos voltamos para as conexões estabelecidas por Hegel no
volume II da sua Estética21 entre as formas de arte simbólica, clássica e romântica, conexões que são precisamente articuladas com base na construção especulativa do espírito e entendemos que estas conexões são também
e primariamente, assim como também o são e de modo mais determinado,
as formas de liberdade apresentadas na formalização do Estado em cada
19. Hegel, EH, p.93-4
20. Hegel, Pequena Lógica, p.33 et seq
21. Estética II.
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Ilana Viana do Amaral
época, articulações entre a experiência histórica e a experiência humana
com a linguagem em cada tempo histórico, compreendemos que é a articulação hamanniana entre linguagem e história aquela que também subjaz às
distinções aí apresentadas por Hegel, embora estas sejam por ele também
ampliadas, em razão da introdução da forma Estado como forma mais alta
da objetivação histórica porque mais determinada.
É possível que o muro de separação entre judeus e pagãos seja de um
idealismo semelhante. O judeu tinha a palavra e o sinal, o pagão tinha a
razão e a sua sabedoria (a conseqüência foi uma metabasiseis allo genos,
dessa nova espécie, o melhor representante foi plantado num pequeno
monte chamado Gólgota)23.
Aqui, precisamente sob aquela “máxima concentração da forma” que
segundo Hegel é característica da escrita de Hamann, é do próprio espírito
que se trata, concebido como percurso histórico e lingüístico, isto é, como o
percurso de uma razão encarnada sob a mediação da linguagem, percurso
do qual a “verdade” é o logos cristão. Atentemos bem para o que diz Hamann: a unidade entre a palavra e o sinal judaico, o simbólico que Hegel
apontará na Estética sob a conceito de simbolismo do sublime24, e o logos
separador grego, com sua sabedoria – a razão e a sabedoria dos “pagãos”,
na qual Hamann retoma os termos de Paulo para falar do logos cristão – ,
aquele que na Estética Hegel articula à arte clássica e à liberdade autoconsciente, mas ainda unilateral dos gregos25, que retifica o simbolismo e sua
conexão com a natureza, ao apor-lhe, pelo intelecto, os pontos, é dada no
logos cristão, que na Estética precisamente aponta para a superação da forma artística pela religião, expressa artisticamente na arte romântica26. Este
é, assim, apresentado por Hamann como a verdade ou a superação do muro
que os separa porque é o espírito – o logos vivo – que realiza a unidade da
materialidade, fundamental no símbolo, e da idealidade, central ao intelecto.
O logos cristão unifica estes dois lados e é assim que ele é o próprio espírito
em sua verdade.
22.
23.
24.
25.
26.
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
O que reencontramos naquelas três formas da arte apresentada especulativamente, é o desenvolvimento do percurso do espírito – da razão e
da história humanas – pensado com base em certa relação entre as formas
da linguagem e as formas da liberdade, percurso que precisamente é apresentado por Hamann em seu silogismo que encerra a Metacrítica. Este, aliás,
nos ajuda a entender aquela identidade entre a natureza, a palavra hebraica e as consoantes, de um lado e as vogais e o intelecto que lhe deve (à
natureza) apor os pontos, de outro. Diz Hamann, denunciando o idealismo
transcendental como manifestação de “um ódio gnóstico à matéria”22 que a
Metacrítica deve superar que:
É exatamente porque concebe a verdade do logos cristão como uniHamann, op.cit. p.53
Id. p. 57
Estética II, p.97 et seq.
Idem, p.157 et seq.
Idem, p.251 et seq.
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Hegel e Hamann: alguns diálogos
dade capaz de romper a separação entre a materialidade da palavra simbólica hebraica e a idealidade da verdade exposta no logos grego, que Hamann
a expõe – ao apresentar a unidade ou a quebra destas separações entre
materialidade e idealidade – como verdade expressa pela “semente plantada
no gólgota”. Esta apresentação de Cristo em identidade com a superação da
separação entre matéria e intelecto, que se apresenta como uma Metabasis
eis allo genos, (que, lembremos, é justamente “proibida” por Kant à razão
como uma passagem não justificada de um gênero a outro nas suas observações à tese da quarta antinomia)27 aponta o caminho de superação destas
separações por meio da linguagem como expressão da mediação da história.
É em razão desta apreensão da verdade como unidade ou como espírito,
que Hamann é apresentado por Hegel como um verdadeiro oásis da razão
no deserto do “entendimento seco” configurado na ilustração alemã. Esta
identificação por Hamann entre o logos cristão e a verdade da experiência
humana, concebida como experiência lingüisticamente mediada, afirma o
cerne mesmo do conceito de espírito como verdade, pois apanha o processo
da verdade como idêntico ao devir humano ou ao histórico, apreendendo-a,
assim, como inseparável da negatividade que lhe é imanente.
No âmbito da reflexão hamanniana é a linguagem, como vimos, a
mediação que determina a relação entre razão humana e história e permite a ruptura daquelas separações que caracterizam o entendimento. Tais
mediações linguísticas, como brevemente referimos, são apresentadas por
Hamann na Metacrítica em estrita correlação com a própria experiência histórica – aquelas que Hegel identifica especulativamente ao espírito –, entendido, por sua vez, como um devir do homem. Se Hamann apresenta, como
ponto de partida para a sua crítica dos “purismos kantianos”, esta conexão
entre linguagem e história, é exatamente nisso, e na prefiguração subjetiva
que tal identidade significa quanto ao conceito de espírito, cujo desenvolvimento especulativo o próprio Hegel expõe, que Hegel identifica toda a vitalidade da reflexão hamanniana frente ao entendimento separador. O acolhimento da reflexão hamanniana sobre a linguagem como mediação em sua
própria tematização do Espírito, se expõe tanto na Estética, pela apropriação
das distinções entre o simbólico, o clássico e romântico, quanto na seção da
Psicologia do Espírito subjetivo (§ 456-460). Nesta, Hegel apresenta a linguagem como automediação necessária à constituição do pensar subjetivo,
momento no qual ele retoma passo a passo e desenvolve especulativamente
a objeção hamanniana à purificação da razão, que consistiria em apresentar
uma linguagem universal simbólica que apenas abstrai da concreticidade
histórica e, portanto, da riqueza espiritual apresentada no signo lingüístico
em geral e na multiplicidade das línguas às quais o signo remete. A riqueza
da automediação pela linguagem consiste, para Hegel, no reconhecimento
devido à subjetividade da linguagem como um desdobramento de si que já
é histórico, já é experiência humana do tempo. Para além dos outros nexos
que aqui buscamos apontar, esta retomada por Hegel, realizada nos parágrafos mencionados da Enciclopédia, é uma eloquente exposição desse
27. Kant, I. Crítica da razão pura. Tr. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989, p. 415-6.
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Ilana Viana do Amaral
acolhimento da reflexão hamanniana.
O que aqui se encontra em questão para Hegel, atentemos, é a esfera de alcance ou a validade desta apropriação da verdade apenas subjetiva,
pensada a partir da exposição da totalidade aspirada por ele e desenvolvida
na especulação conceitual. É claro que como apropriação da idéia, ainda que
subjetiva, a perspectiva hamanniana inclui o ponto de vista da unidade ou
da totalidade. É isso que lhe dá a possibilidade de apresentar uma crítica da
razão purificada do idealismo transcendental. Ela não avança, entretanto, do
ponto de vista da exposição desta mesma totalidade (e nem quer avançar),
até o saber absoluto, pois resta aprisionada na dimensão propriamente subjetiva – ainda meramente negativa – pela qual a verdade se lhe apresenta.
Mas o que exatamente isso significa?
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009
Tal acolhimento por Hegel da linguagem enquanto mediação não
deve ocultar, entretanto, a completa ressignificação que esta mediação sofre
por meio da sua incorporação ao desenvolvimento especulativo. Do ponto
de vista da exposição categorial ou do desenvolvimento especulativo do
conceito de espírito, o que Hamann alcança em sua crítica a Kant é apenas
a exposição de uma mediação, que sem dúvida será acolhida como central
por Hegel. Embora central, entretanto, a exposição hamanniana permanece,
quando pensada a partir do ponto de vista especulativo, presa a um momento simplesmente subjetivo da experiência humana ou ela é, em outras
palavras, apenas uma das muitas mediações que o espírito experimenta,
mediação insuficientemente positiva para expor a liberdade do espírito em
sua verdade. Para Hegel a linguagem, quando apresentada como mediação
fundamental – como ocorre com Hamann – articula um conceito de razão
ainda insuficiente, pois parte de uma exteriorização que não apresenta inteira a exposição ou a objetivação da liberdade humana, isto é, apreende a
liberdade sob uma forma insuficientemente positiva. É isso o que significa
a limitação subjetiva do ponto de vista de Hamann, e o lugar de seu objeto
na exposição enciclopédica bem o diz. Esta insuficiência da linguagem é que
determina a sua sucessão, na exposição especulativa, pelo Estado como forma por excelência de objetivação do histórico, como formalização da idéia
ética que Hamann apenas apreende na vivacidade da linguagem28. O limite
fundamental da apropriação hamanniana – e assim também do alcance da
sua crítica à filosofia transcendental – consiste, para Hegel, na subjetividade
desta mediação da linguagem, na insuficiência da objetivação lingüística que
só o trabalho, como objetivação que perdura, e o Estado, como seu desenvolvimento na esfera da vida autoconsciente do espírito, podem adequadamente expor.
Se olharmos daqui para a resenha sobre Hamann, encontraremos
Hegel buscando explicitar as posições de confronto de Hamann diante do Estado alemão29. Ela nos explica mais claramente este imbróglio especulativo
entre a negatividade da linguagem e a positividade da forma Estado que
28. Hegel, EH, p.103.
29. Idem, p 98.
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Hegel e Hamann: alguns diálogos
estamos tentando evidenciar. Para Hegel, Hamann denuncia e tem que denunciar “o rei alemão” como um “Salomão do Norte” porque seu coração
admite um só Rei, que pregava no mercado...”. Para a perspectiva hegeliana, esta posição de Hamann diante do Estado se explica do ponto de vista
subjetivo, que é precisamente o de Hamann. Este, não busca fazer ciência,
apenas mede o seu presente de modo absoluto a partir da apropriação subjetiva da verdade do logos cristão e o faz com base na mesma energia viva
do presente que ele deve medir30. Se a crítica de Hamann pode ter validade
nessa esfera subjetiva (e mesmo essa é contestada por Hegel), do ponto de
vista da exposição especulativa ela deverá sofrer uma série de determinações apenas possíveis sob a forma do conceito que Hamann, não quis e nem
pode alcançar. Tal insuficiência da apropriação do espírito guarda profunda
conexão com a ausência de uma relação positiva com a forma Estado como
mediação mais objetiva e portanto mais positiva que a pura negatividade da
mediação da linguagem. É ela que demarca a insuficIência da apropriação
do histórico por Hamann em razão do aprisionamento à verdade de Cristo –e
do espírito –como idêntica à linguagem. Seria preciso avançar até as formas
mais altas do espírito – ou até as significações mais concretas da liberdade, aquelas dadas no Estado31, que Hamann não reconhece, para tornar-se
capaz de apreender a realização da verdade como espírito – como história
– em sua totalidade e não sob a simples identidade com a experiência da linguagem. Ir às últimas conseqüências na objetividade da mediação histórica,
apresentando o Estado com esta mediação, é claro, é precisamente o que
ressignifica inteiramente o lugar da história em relação à linguagem.
Em termos gerais, para Hegel, o limite da crítica hamanniana da filosofia transcendental consiste, assim, em que ela só tem validade do ponto
de vista estritamente subjetivo, na medida em que lhe falta precisamente
a positividade capaz de sustentar a forma do conceito, para aqui utilizar
uma expressão cara a Hegel. Esta positividade é aquela que o próprio Hegel
apenas encontra, no que se refere à história, na forma Estado. Para explicitar melhor isso, entendamos brevemente o seguinte: a linguagem é uma
forma de exteriorização da liberdade humana e é por isso que as línguas
expressam, em suas variações, as distintas apropriações que o homem faz,
por meio da linguagem que assim é índice da mediação social e histórica
pela qual a subjetividade se constitui na sua liberdade. É exatamente esta
conexão que é alcançada pela apropriação hamanniana da linguagem. Para
Hegel, entretanto, não é ainda a linguagem – insuficientemente objetiva
porque exige sempre a particularidade dos falantes em ato, porque é inseparável desta particularidade (e, portanto, também da negatividade que
a expõe do ponto de vista lógico) que pode adequadamente se apresentar
como o modo mais próprio pelo qual o homem experimenta, se dá consciência e, numa palavra, objetiva a própria liberdade. Esta forma é, para Hegel,
antes o Estado, pois o universal, que na linguagem só se apresenta por meio
dos falantes particulares, nele subsiste mesmo ali onde a particularidade
não está imediatamente presente. Aliás, para Hegel, quanto mais mediada
30. Idem, p. 118
31. Idem, p.102 et seq.
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for esta aparição da particularidade no Estado, mais rica ela será, porque
tanto mais mediada com o universal.
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É essa determinação, o fato de que o Estado se constitui numa forma
objetiva ou positiva, embora também histórica e nisso ainda finita ou transitória, que permite pensar especulativamente a diversidade das experiências
da liberdade ao longo da história a partir da pergunta por esta relação interior ou imanente a cada forma particular de Estado entre a subjetividade
como o particular e o universal. É a subsistência universal da forma Estado
(e, portanto, sua subsistência fora da conexão imediata com a particularidade), que não se apresenta e não pode se apresentar na linguagem porque
nesta a relação com o universal é a cada vez apenas possível por meio da
particularidade (do falante, do ouvinte, do leitor, ou seja, é sempre por meio
de um sujeito particular que o universal pode aparecer, o que determinaria
certo limite estético da palavra) aquilo que torna possível que o Estado venha
a ser este “universal concreto” capaz de ser o ponto firme que se apresenta
ao pensamento para pensar a história e entendê-la do ponto de vista da
razão. É fácil entender agora porque a crítica hamanniana do “entendimento
seco” se apresenta a Hegel como ainda limitada, pois ela apenas é capaz de
fornecer uma apreensão da idéia capaz de orientar a subjetividade na crítica
da apreensão a-histórica e mesmo anti-histórica da verdade apresentada
por Kant. Ela não é, entretanto, capaz de se elevar completamente desta
esfera simplesmente subjetiva e de alcançar a esfera universal da ciência
(Wissenschaft), de um saber que positivamente apanhe a história do ponto
de vista da sua racionalidade e isso precisamente porque ela se prende à
mais negativa das determinidades do histórico, parando antes de alcançar a
objetividade própria à forma Estado, razão pela qual a forma da escrita de
Hamann, aquela que segundo Hegel se move entre a máxima concentração
e o “esfacelamento”, não pode tampouco avançar até a unidade entre subjetividade e objetividade própria à forma do conceito.
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7. Citações de obras de Hegel (numeradas por parágrafos e já vertidas para
a Língua portuguesa), no corpo do texto, deverão ser referenciadas [de
acordo com suas características próprias] – sem acréscimos adicionais –
conforme o exemplo: (FE, § 394), onde: (a) “FE” é a abreviatura para a
Fenomenologia do Espírito; (b) “§ 394” refere-se ao parágrafo; quando for o
caso, sugere-se o acréscimo da página, de onde, em “FE, § 394, p. 276”, (c)
“p. 276” dizer respeito à página à qual a citação ou referência está vinculada
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(no caso, a segunda edição da versão de Paulo Meneses);
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8. No caso de obras como as Linhas fundamentais da Filosofia do Direito
(FD) e a Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio de 1830 (E.),
sugere-se ainda o uso de ‘A’ para as anotações de Hegel e ‘Ad’ para os adendos de seus discípulos;
9. No caso das obras de Hegel (em alemão) ainda não vertidas ao Português
(sejam paragrafadas ou não), mesmo quando também se faça uso das versões portuguesas ou em outras línguas, sugere-se a manutenção das iniciais
do título no original [por exemplo, ‘WdL’ para a Wissenschaft der Logik],
seguidas das páginas da edição (ou das edições) utilizada(s);
10. Citações de obras clássicas sem tradução brasileira ou citadas preferencialmente conforme o original ou tradução em língua diversa do português
do Brasil, deverão estar de acordo com as convenções internacionais de praxe na área [exemplo: ‘PhdE’ para Phénoménologie de l’Esprit) ou indicadas
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11. Citações no corpo do texto deverão ser indicadas apenas com (SOBRENOME DO AUTOR, data e página) ou (SIGLA DA OBRA, parágrafo – se paragrafada – e página); qualquer acréscimo deverá ser feito em nota, conforme
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