O preço em controlar a inflação Semí Cavalcante de Oliveira Introdução O Brasil é um campeão em excentricidades, há coisas que só acontecem ou que só tem aqui, e são extremamente complicadas para explicar aos estrangeiros. Como explicar a jabuticaba a um estrangeiro? Ou como dizer a este mesmo visitante que nosso país acumulou em 15 anos, 3,7 trilhões por cento de inflação. E que nossa economia rodou em círculos inflacionários, transformando nossa terra e seu povo em uma gigantesca fábrica experimental de teorias, teses e fantasias. Este artigo pretende abordar um viés histórico e econômico das especificidades da economia brasileira e dos respectivos planos de estabilização que assumiram a árdua tarefa de tentar conter a inércia inflacionária que assolou o país de 1980 até a implantação do Plano Real. Antes, porém, o texto evidencia uma retrospectiva histórica de incursões malfadadas, que só trouxeram desastres econômicos e carga social para a população menos favorecidas. O controle dos preços ao longo da história Em 40 séculos de experiência humana, nunca houve, segundo pesquisas, um único caso em que o controle de preços tenha detido, ou sequer entravado por muito tempo, as forças inflacionárias. Pelo contrário, em cada exemplo encontrado, ele desestimulou a produção, criou déficits públicos e agravou os próprios males que deveria conter. Os controles dos preços que pesaram sobre a economia brasileira no período de 1980 a 1994, não diferiram materialmente dos que fracassaram através da história. Há quatro mil anos aproximadamente, o Código de Hamurábi impôs um rígido sistema de controle de salários, preços, produção e consumo, abrangendo toda a economia da Babilônia, asfixiando-a completamente. Em Atenas, no século IV a.C., o governo submeteu o comércio de cereais a um rigoroso sistema de controle de preços e enviou para o porto um pequeno exército de inspetores para fiscalizarem todas as transações (embrião dos fiscais do Sarney?). Se sob o olhar vigilante destes prepostos do governo, um comerciante conseguisse violar o preço máximo permitido e mais tarde fosse apanhado, tanto ele como o inspetor negligente eram punidos com a pena capital. Mas o sistema não funcionou, uma vez que, gerou desabastecimento e uma parcela significativa dos representantes do governo era sensível a corrupção, e em última instância foi abandonado. Entre as mais meticulosas e catastróficas tentativas feitas para regular os preços, encontra-se no Edito de Diocleciano, em 301 d.C., que empobreceu todo o Império Romano. Esse edito determinava a “restrição dos lucros e denunciava os negociantes com grandes fortunas que procurassem os lucros privados e percentuais ruinosos”. O Imperador estabeleceu um preço máximo, que registrou quase todos os objetos que eram vendidos na época em Roma, e fixou o salário exato de cada trabalhador individualmente, em qualquer gênero de comércio e profissão. Depois, de acordo com a praxe de seu tempo, decretou pena de morte para os infratores. O que aconteceu depois disso é bem conhecido. Os Vitrine da Conjuntura, Curitiba, v.2, n.8, outubro 2009 1 comerciantes negaram-se a vender por preços inferiores aos que tinham pago e simplesmente escondiam as suas mercadorias sob o balcão. Os habitantes das cidades sofreram uma penúria negra, as ruas estavam cheias de brigas e motins. E assim falhou mais uma nobre experiência. Diocleciano deixou o trono e foi passar o resto dos seus dias numa horta de couves, a fim de meditar sobre seu devaneio econômico e a perversidade dos homens. Essa não é uma linguagem familiar aos ouvidos modernos? A experiência nada nos ensina, pois, no fim do século XII, na Inglaterra, estabeleceu-se por ordens reais o preço do pão, do peixe e do vinho, e, durante os cindo séculos seguintes esta lei foi revista, emendada e desprezada. Finalmente o Parlamento revogou-a sob a alegação de que tal medida se fazia necessária “no interesse do bem público”, uma vez que, esses produtos eram a base da alimentação da população e as inúmeras emendas à lei proporcionaram interpretações diversas e tornaram-na confusa e ineficiente. Durante a Revolução Holandesa, quando Antuérpia foi sitiada pelo Duque de Parma, as autoridades da cidade decretaram, imediatamente, o controle dos preços de quase tudo que se encontrava no interior dos muros, o que veio a ser, à vista dos resultados, um erro fatal do ponto de vista da logística militar. Como os preços eram ínfimos, o povo de dentro da cidade consumiu suas reservas com rapidez e desperdício, e o povo de fora da cidade não se sentiu atraído a contrabandear para o interior dela provisões frescas por um preço tão insignificante. De modo que Antuérpia, por sua própria estupidez, apertou contra si mesma o cerco com muito mais eficiência do que jamais o poderia ter feito o Duque de Parma. Durante nove anos, desde a Segunda Guerra Mundial, a França tentou sustar a inflação impondo a regulamentação dos preços. No entanto, o franco (até 2002 com a adesão ao Euro) valia menos do que no início daquelas tentativas. Apenas na Índia, vislumbrou-se um confortador, porém efêmero espasmo de bom senso econômico. Em 1770, a província de Bengala foi atingida pela fome, então o governo prontamente regulamentou os preços. O arroz que restou da colheita anterior foi rapidamente consumido e mais de um terço da população pereceu de fome antes da época da próxima colheita. Entretanto, 16 anos depois, quando a fome bateu novamente às portas da região, o governo mudou a tática. Em vez de regulamentar os preços, estimulou deliberadamente a especulação, tornando público o preço dos cereais em cada departamento (estados) do país. Todas as pessoas sabiam onde era possível comprar produtos por preços mais acessíveis e vendê-los com lucro. Em conseqüência, os mantimentos afluíram com rapidez, escoando-se naturalmente, das zonas produtoras e mais abundantes para as regiões flageladas onde eram mais escassos, e com isso a catástrofe foi amenizada. Através de 40 séculos de experiência humana, a regulamentação dos preços tem sido, na melhor das hipóteses, um enorme fracasso. E, na pior, tem se mostrado o caminho mais curto para a fome e o desastre. O caso da inflação brasileira Voltando ao país das exóticas jabuticabas, doce e desconhecida no estrangeiro, que proporcionou ao mundo a mais extraordinária experiência inflacionária do pós II Guerra, 20.759.903.275.651% de inflação acumulada em 15 anos, de 1980 a 1995. Para esta nação abençoada por Deus, não havia explicação para tal fenômeno. Por certo, a ciência política e econômica ficou devendo uma teoria razoável e racional para aquela “jabuticaba amarga” que os governantes ofereciam ao povo. Segundo Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central, em entrevista ao documentário Laboratório Brasil da TV Câmara, “foi um recorde mundial de concentração de renda e de imposto indireto”. Vitrine da Conjuntura, Curitiba, v.2, n.8, outubro 2009 2 Numa rápida retrospectiva histórica, registram-se os diversos ciclos econômicos, as várias moedas de troca no sistema de escambo. Mas, foi no Cruzeiro da Era Vargas que se pode determinar a gênesis da inflação brasileira. Antes dele, o Brasil conheceu os Floris dos holandeses, o Real (réis de Portugal), e depois o Cruzeiro Novo, a volta do Cruzeiro, o Cruzado, o Cruzado Novo, o Cruzeiro novamente, o Cruzeiro Real e o Real. Nos anos de 1960 e 1970, os planos de estabilização e de desenvolvimento, principalmente o PAEG e o PED, respectivamente, Plano de Ação Econômica do Governo e Plano Econômico de Desenvolvimento, adotaram instrumentos entorpecedores para reprimir a inflação, tais como, a indexação e a correção monetária, mecanismos que permitiram a convivência de segmentos da população brasileira com a inflação, mas geraram sangria nas finanças públicas e criaram um alto grau de inflação reprimida. Na segunda metade da década de 1980, quando o país vivia a euforia da redemocratização e o presidente eleito Tancredo Neves foi impedido de assumir por grave doença, seguido de sua morte. Tomou posse o presidente José Sarney, com uma inflação que já atingia a casa dos três dígitos, 100% a.a., e no final de seu governo já ultrapassava os 80% ao mês. Todos os planos de estabilização econômica do período procuraram combater as consequências e não as causas da espiral inflacionária, que puderam ser expressas na crise fiscal do estado, como governo gastando mais do que arrecadava e financiando os déficits com a própria inflação. Não identificaram nem as origens nem os mecanismos propagadores da inflação brasileira. Os planos Cruzado I e II, Bresser e Verão, identificaram como origem apenas os mecanismos propagadores, e consequentemente receitaram o tratamento equivocado. Os principais pontos do Plano Cruzado foram a mudança da moeda de cruzeiro para cruzado, o congelamento de preços e salários, a extinção da correção monetária, a criação do reajuste automático de salários (gatilho), a decretação de uma moratória e a suspensão do pagamento da dívida externa. O Plano Cruzado não se preocupou em preparar a sociedade para as mudanças e nem com a cultura inflacionária que estava entranhada no consumidor brasileiro. Contudo, foi a primeira tentativa de controle de inflação depois de muito tempo, apesar dos complicadores como o congelamento de preços e salários. O desabastecimento foi a consequência imediata da obstinação do governo em não promover uma política de flexibilização dos preços num prazo razoável. Em 1987, foi implantado o Plano Bresser, que era provisório, mas sua base também era movediça, pois também não foi acompanhado dos ajustes fiscais, tão caros para a economia brasileira naquele momento. Suas principais medidas foram a manutenção do congelamento dos preços e salários, o aumento das tarifas públicas, e em medida lúcida, decretou o fim do gatilho salarial, instrumento que realimentava a inflação. No ano de 1988, entrou um novo comandante na economia brasileira, o Sr. Maílson da Nóbrega, que, percebendo que choques numa economia com predomínio da cultura inflacionária, implantou a política feijão-com-arroz, ou seja, medidas ortodoxas. Mas, caiu logo em tentação e lançou imediatamente o Plano Verão, que cortou três zeros e trocou a moeda para Cruzado Novo. Tentou controlar o déficit público, congelou novamente preços e procurou também desindexar a economia sem sucesso. O Plano Verão não tinha apoio social, político e nem base fiscal para se sustentar. Na implantação do Plano Collor em 1990, a inflação já estava novamente em 80% ao mês. E a partir deste momento o Brasil passaria pela mais violenta experiência de combate à inflação, apesar de alguns pontos positivos. Este plano determinava a volta do Cruzeiro, confiscava 80% dos depósitos bancários e aplicações financeiras, congelava preços, tentava mais uma vez acabar com a desindexação, Vitrine da Conjuntura, Curitiba, v.2, n.8, outubro 2009 3 demitia funcionários públicos, privatizava estatais, fechava órgãos públicos e iniciava o processo de abertura da economia à competição internacional. Segundo Paulo Batista Nogueira Jr., em depoimento ao documentário Laboratório Brasil da TV Câmara, o plano Collor foi a mais traumática experiência econômica do Brasil contemporâneo, pois confiscou de forma generalizada os ativos monetários, demonstrava um despreparo absurdo dos homens que o elaboraram. Até então, havia sido implementado nos países socialistas mais radicais. Em 1991, a inflação brasileira estava na casa dos 20% ao mês e o novo ministro, Marcílio Marques Moreira, assumiu prometendo um enorme ajuste fiscal e arrocho monetário, além da renegociação da dívida externa com o Fundo Monetário Internacional. Após um ano, o resultado foi nulo e o custo social estava beirando o insuportável. Com o impedimento do presidente Fernando Collor, assumiu a presidência seu vice Itamar Franco, em 1992. Depois de duas trocas de ministros na fazenda, Fernando Henrique Cardoso tomou posse no cargo e remontou a equipe de economistas que se debruçaram a estudar as origens da inflação inercial – Pérsio Arida, André Lara Rezende, Edmar Bacha, Pedro Malan, Francisco Lopes, dentre outros. A lógica do plano por eles lançado em 1994, na opinião de Bresser Pereira era que “a inflação era um jogo de soma menor que zero”. A Primeira medida foi a implantação do PAI – Plano de Ação Imediata, que remetia ao feijão-com-arroz do Maílson, uma vez que pretendia equilibrar o orçamento federal e torná-lo mais realista. O momento da implementação do plano foi oportuno, pois o país vivia um vácuo de liderança e ideias. As medidas efetivadas pelo Plano Real foram: mudança da moeda para Real; fixação de taxa de cambio na paridade de R$ 1,00 para U$ 1,00; aceleração das privatizações; elevação da taxas de juros, facilidade para importações, previsão dos gastos públicos, manutenção do processo de abertura da economia, apoio à modernização do parque industrial e estancamento da emissão de moeda. Outro passo fundamental foi a criação do FSE – Fundo Social de Emergência, que de acordo com o secretário executivo do ministério do planejamento da época, o jornalista econômico Carlos Alberto Sardemberg, não era fundo, não era social nem de emergência, mas um mecanismo legal, aprovado pelo congresso para acumular reservas e um modo de controlar os gastos públicos, especialmente de Estados e Municípios. Considerações Finais A paridade fixa da nova moeda com o dólar, foi mantida no Brasil por um período demasiado longo. Só em 1999, o governo implantou o regime de câmbio flutuante e baixou efetivamente as taxas de juros. Foi um momento crítico, porém, a inflação não voltou, pois a economia estava desindexada. O sucesso do Plano Real se deveu, ao fato de não se preocupar em controlar os preços, mas apenas um, o do câmbio, entre 1994 e 1998, além, é lógico de uma disciplina fiscal rígida e seguir o regime de metas inflacionárias, a partir de 1999. Nas palavras do artífice político do Plano Real, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, “o legado do Real está na reconstrução das instituições financeira e econômicas do país e em arrancar das entranhas dos brasileiros a cultura inflacionária”. Vitrine da Conjuntura, Curitiba, v.2, n.8, outubro 2009 4 Referências DEZORDI, Lucas Lautert. Fundamentos de economia. Curitiba: IESDE Brasil, 2008. FRANCO JUNIOR, H.; CHACON, P. P. História econômica geral. São Paulo: Atlas, 1999. FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 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