Copyright © 2015 Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito Todos os direitos reservados e protegidos. Nenhuma parte deste livro, poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados sem prévia autorização dos editores. Produção Editorial: Equipe Conpedi Diagramação: Marcos Jundurian Capa: Elisa Medeiros e Marcos Jundurian Impressão: Nova Letra Gráfica e Editora Ltda. CNPJ. nº 83.061.234/0001-76 Editora: Ediciones Laborum, S.L – CIF B – 30585343 Deposito legal de la colección: MU 859-2015 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) E56p Encontro de Internacionalização do CONPEDI (1. : 2015 : Barcelona, ES) I Encontro de Internacionalização do CONPEDI / organizadores: Nestor Eduardo Araruna Santiago, Érika Mendes de Carvalho. – Barcelona : Ediciones Laborum, 2015. V. 15 Inclui bibliografia ISBN (Internacional): 978-84-92602-86-5 Depósito legal : MU 859-2015 Tema: Atores do desenvolvimento econômico, político e social diante do Direito do século XXI 1. Direito – Estudo e ensino (Pós-graduação) – Congressos. 2. Direito penal. 3. Criminologia 4. Seguridade pública I. Santiago, Nestor Eduardo Araruna. II. Carvalho, Érika Mendes de. III. Título. CDU: 34 Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071 1º Impressão – 2015 EDICIONES LABORUM, S. L. CIF B-30585343 Avda. Gutiérrez Mellado, 9 - 3º -21- Edif. Centrofama Teléfono 968 88 21 81 – Fax 968 88 70 40 e-mail: [email protected] Diretoria - Conpedi Presidente Prof. Dr. Raymundo Juliano Feitosa - UFRN Vice-presidente Sul Prof. Dr. José Alcebiades de Oliveira Junior - UFRGS Vice-presidente Sudeste Prof. Dr. João Marcelo de Lima Assafim - UCAM Vice-presidente Nordeste Profa. Dra. Gina Vidal Marcílio Pompeu - UNIFOR Vice-presidente Norte/Centro Profa. Dra. Julia Maurmann Ximenes - IDP Secretário Executivo Prof. Dr. Orides Mezzaroba - UFSC Secretário Adjunto Prof. Dr. Felipe Chiarello de Souza Pinto - Mackenzie Conselho Fiscal Prof. Dr. José Querino Tavares Neto - UFG /PUC PR Prof. Dr. Roberto Correia da Silva Gomes Caldas - PUC SP Profa. Dra. Samyra Haydêe Dal Farra Naspolini Sanches - UNINOVE Prof. Dr. Lucas Gonçalves da Silva - UFS (suplente) Prof. Dr. Paulo Roberto Lyrio Pimenta - UFBA (suplente) Representante Discente Mestrando Caio Augusto Souza Lara - UFMG (titular) Secretarias (Diretor de Informática) Prof. Dr. Aires José Rover - UFSC (Diretor de Relações com a Graduação) Prof. Dr. Alexandre Walmott Borgs - UFU 3 (Diretor de Relações Internacionais) Prof. Dr. Antonio Carlos Diniz Murta - FUMEC (Diretora de Apoio Institucional) Profa. Dra. Clerilei Aparecida Bier - UDESC (Diretor de Educação Jurídica) Prof. Dr. Eid Badr - UEA / ESBAM / OAB-AM (Diretoras de Eventos) Profa. Dra. Valesca Raizer Borges Moschen - UFES Profa. Dra. Viviane Coêlho de Séllos Knoerr - UNICURITIBA (Diretor de Apoio Interinstitucional) Prof. Dr. Vladmir Oliveira da Silveira - UNINOVE Rua Desembargador Vitor Lima, 260, sala 508 Cep.: 88040-400 Florianópolis – Santa Catarina - SC www.conpedi.org.br 4 Apresentação Este livro condensa os artigos aprovados, apresentados e debatidos no Iº ENCONTRO DE INTERNACIONALIZAÇÃO DO CONSELHO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO – CONPEDI, realizado entre os dias 08, 09 e 10 de outubro de 2014, em parceria com a Faculdade de Direito da Universidade de Barcelona – Espanha. O evento teve como tema os “Actores del Desarrollo económico, político y social frente al Derecho del siglo XXI”. Para o evento foram submetidos e avaliados mais de quinhentos artigos de pesquisadores do Brasil e da Europa. Após as avaliações foram aprovados em torno de trezentos artigos para apresentação e publicação. O principal objetivo do evento foi o de dar início ao processo de internacionalização e fundamentalmente, o de construir espaços para a inserção internacional e divulgação de pesquisas realizadas pelos Pesquisadores dos Programas de Pós-Graduação em Direito do Brasil, associados ao CONPEDI. A realização deste primeiro evento procurou estimular o debate e o diálogo sobre questões atuais do Direito envolvendo a realidade brasileira e espanhola. Os artigos apresentados analisaram o papel dos “Actores del Desarrollo económico, político y social frente al Derecho del siglo XXI” praticamente em todas as áreas do Direito. Considerando a amplitude do tema, as diversas abordagens e buscando uma aproximação entre as áreas de conhecimento optou-se pela organização de seis grupos de trabalhos (GTs), que foram constituídos da seguinte forma: a) Derecho Constitucional, Derechos Humanos e Derecho Internacional; b) Derecho Mercantil, Derecho Civil, Derecho do Consumidor e Nuevas Tecnologías; c) Derecho del Trabajo y de la Seguridad Social; d) Derecho Administrativo, Derecho Tributario e Derecho Ambiental; e) Teoría del Derecho, Filosofía del Derecho e História del Derecho; f) Derecho Penal, Criminología e Seguridad Pública. Além da promoção do intercambio entre as Instituições e profissionais da área do Direito do Brasil e Europa, a possiblidade de ampliar e difundir a produção cientifica no âmbito internacional e a melhoria dos indicadores dos Programas de Pós-graduação brasileiros, com a realização do primeiro evento internacional 5 a atual Diretoria do CONPEDI também cumpre com um de seus compromissos assumidos quando eleitos. A transcendência da realização deste primeiro evento internacional para os pesquisadores brasileiros da área do Direito se reflete no resultado final obtido. A publicação de 15 livros, através da Ediciones Laborum da Espanha em parceria com o CONPEDI, com todos os artigos apresentados e debatidos nos GTs representa uma expressiva conquista que trará importantes resultados para os programas de Pós-graduação brasileiros e, fundamentalmente, para a área do Direito. Barcelona/Florianópolis, março de 2015. Os Organizadores 6 i encontro de internacionalização do conpedi Sumário A (In) Constitucionalidade dos Tipos Penais Abertos: Crimes Omissivos Impróprios, Delitos Culposos e Normas Penais em Branco Analisados sob a Ótica do Princípio da Legalidade Penal Helvécio Damis de Oliveira Cunha........................................................9 A Constituição como Limite Positivo ao Direito Penal Geilza Fátima Cavalcanti Diniz e Raquel Tiveron................................27 A Criminalização da Homofobia e suas Contradições Marilia Montenegro Pessoa de Mello e João Paulo Allain Teixeira...........55 A Criminologia Positivista de Nina Rodrigues e sua Influência no Tratamento dos Portadores de Sofrimento Psíquico Submetidos ao Sistema de Justiça Criminal Brasileiro Thayara Castelo Branco e Álvaro Oxley da Rocha ..................................79 Controle Epistêmico Sobre a Interceptação das Comunicações Telefônicas e de Dados: Uma Subversão dos Papeis dos Atores do Sistema Penal Antonio Eduardo Ramires Santoro.........................................................113 Garantismo, Estado Democrático de Direito e Princípio da Legalidade Penal: Limitações ao Poder Regulamentar do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) Bruno Queiroz Oliveira e Nestor Eduardo Araruna Santiago..................137 Justiça Restaurativa como Via de Minimização do Processo de Vitimização Daniela Portugal e Geovane Peixoto.......................................................161 Liberalismo e Pena: Montesquieu, Beccaria, Marat, Romagnosi, Feuerbach e Carrara Ellen Rodrigues e Mara Conceição Vieira de Oliveira..............................193 volume 15 7 i encontro de internacionalização do conpedi Política No Criminal y Proceso Penal: La Intersección a Partir de las Falsas Memorias del Testigo y su Posible Impacto Carcelario Gustavo Noronha de Ávila e Érika Mendes de Carvalho.........................227 Psicopatia e Responsabilidade Penal: Novos Desafios Diante dos Avanços Neurocientíficos Mirentxu Corcoy Bidasolo e Denise Hammerschmidt..............................253 Regulação Econômica e Direito Penal Econômico: Eficácia e Desencontro no Crime de Evasão de Divisas Thiago Bottino......................................................................................275 8 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi a (in) constitucionalidade dos tipos penais abertos: crimes omissivos impróprios, delitos culposos e normas penais em br anco analisados sob a ótica do princípio da legalidade penal Helvécio Damis de Oliveira Cunha1 Resumo O princípio da legalidade, garantia fundamental do ser humano, vem sendo objeto de estudo pela ciência penal por mais de dois séculos. Porém, mesmo com todo este tempo de análise, o princípio por vezes é relativizado por importantes institutos aplicados concretamente no Direito Penal. Os denominados tipos penais abertos e seus desdobramentos são exemplos dessa relativização do princípio da legalidade, vez que ampliam a abrangência do tipo penal exigindo complementações por outras normas jurídicas de qualquer natureza (leis ordinárias ou normas de direito administrativo), mas, também, por indefinidos critérios de interpretação. Por esta razão, mister se faz uma análise ainda que perfunctória, a partir do ponto de vista do princípio da legalidade (taxatividade da norma penal), dos delitos omissivos impróprios, dos tipos culposos e das normas penais em branco, para, ao final, compreendermos que parte da doutrina penal os considera como violadores daquele princípio, sendo o presente artigo, apenas uma breve introdução a seu respeito. Palavras-chave Relativização do Princípio da Legalidade; Crime Omissivo Impróprio; Tipo Culposo; Normal Penal em Branco. 1 Professor Adjunto nível II da Universidade Federal de Uberlândia. Professor de Direito Penal III no Curso de Graduação e Docente Colaborador do Curso de Mestrado em Direito Público da UFU. Mestre em Direito das Relações Sociais, subárea Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Doutor em Educação pela Universidad de la Empresa de Montevidéu - Uruguai (UDE/UY). Endereço Eletrônico: damishelvecio@yahoo. com.br volume 15 9 i encontro de internacionalização do conpedi Abstract The principle of the legality, human being’s fundamental guarantee, is an object that has been studied by Criminal Science for more than two centuries. However, throughout this period of analysis, that principle has been relativized by important institutes applied concretely by the Criminal Law. The penal norms and its ramifications are examples of this relativization of the Principle of the Legality, since they increase the range of the penal norm, asking complementation through other legal norms from any origin (ordinary laws or administrative law norms), but through undefined criteria of interpretation too. For this reason, an analysis is necessary, even if it is perfunctory, from the perspective of Principle of Legality (specifically of the penal norm), offenses by neglect, culpable penal norms and unregulated criminal norms. After this analysis it is clear that part of the penal doctrine considers these penal norms as violators of that principle. This present article is just a brief introduction to this argument. Key words Relativization of Principle of the Legality; Offenses by Neglect; Culpable Penal Norms; Unregulated Criminal Norms. 1.introdução O estudo do fato delituoso e sua estrutura alcançaram ares de cientificidade a partir do século XIX. Isto não significa, entretanto, que o crime e seus desdobramentos não foram objetos de estudo por vários pensadores desde o início das relações sociais humanas. A ciência penal como um sistema teórico-normativo e que tem como escopo a solução de conflitos sociais, passou por diversas fases até culminar na que vivemos no presente. No início ela foi utilizada como instrumento de vingança (privada, religiosa e pública); depois passou a ser estudada como um ramo efetivo da ciência jurídica e explicada por inúmeras correntes teórico-científicas (ex.: Escolas Clássica e Positivista e outras Escolas de naturezas híbridas). Encontramos, inclusive, teorias que defendem a substituição do Direito Penal por outros ramos da ciência jurídica 10 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi mais eficientes (ex.: Escola da Nova Defesa Social). Também existem teorias que propõem sua total dissolução, como é defendido pelas teorias definidas como abolicionistas (ex.: Louk Hulsman). Após este pequeno introito a respeito das fases da ciência jurídica penal, mister se faz abordar-se os fundamentos históricos do tema objeto do nosso texto. No ano de 1764, Cesare Bonesana (conhecido como o Marquês de Beccaria) escreve uma obra que consideramos ser o divisor de águas do Direito Penal não científico e científico. Esse importante texto denominado “Dos Delitos e das Penas” (Bonesana, 1993) foi elaborado por Beccaria e teve como inspiração os ideais e valores iluministas nascentes em seu tempo. Ele descreve de forma bastante lúcida os abusos e arbitrariedades que ocorreram na Itália, e de uma maneira geral, em toda Europa nos séculos XVIII e anteriores. Em uma das passagens deste relevante livro, Beccaria aborda sobre a necessidade e aplicação do princípio da legalidade, afirmando que somente as leis podem fixar penas, inclusive não se admitindo ao juiz interpretá-las ou aplicar sanções arbitrariamente. Ainda concernentemente ao aspecto da legalidade, ele afirma que as leis devem ser de conhecimento geral do povo e que suas elaborações necessitam ser claras e precisas, a fim de que todos possam conhecê-las e obedecê-las adequadamente. A partir das ideias apresentadas pelo filósofo italiano, os estudiosos da ciência penal passam a tratar da legalidade penal como uma condição obrigatória para a concretização do corolário do princípio da segurança jurídica e, proteção do cidadão frente ao arbítrio e abusos praticados pelo Estado. Posteriormente no século XIX, com P. J. A. von Fuerbach, autor do livro Tratado de Direito Penal (1801), nasce a moderna ciência do Direito Penal na Alemanha. Ele inicialmente se filia ao imperativo categórico kantiano, entendendo que a sanção era uma medida de caráter retributivo. Posteriormente, modifica seu pensamento, passando a tratar a pena como uma medida preventiva, elaborando a partir disso, a teoria da “coação psicológica” de concepção determinista. Fuerbach também defendia fervorosamente o princípio da legalidade, elaborando um brocardo latino que continua a ser utilizado na atualidade e que se tornou um símbolo para expressar o princípio: nullum crimen, nulla poena sine lege (Bitencourt, 2000, p. 53). Desde então o princípio da legalidade passa a ser adotado na maioria dos ordenamentos jurídicos ocidentais, aparecendo no ordenamento jurídico pátrio pela volume 15 11 i encontro de internacionalização do conpedi primeira vez no Código Criminal de 1830 (Pierangelli, 1980, p. 167). A atual Parte Geral do Código Penal brasileiro, vigente desde 1984, também prevê a exigência da legalidade no seu artigo primeiro. Nossa Constituição de 1988, no inciso XXXIX do art. 5°, elege o princípio como um direito fundamental do indivíduo. 2.o princípio da legalidade e os crimes omissivos impróprios: discussão acerca de sua (in) constitucionalidade O princípio da legalidade ou da reserva legal constitui, nos dias atuais, uma efetiva limitação ao poder punitivo estatal, servindo como um instrumento de proteção do princípio da segurança jurídica. A partir da universalização do corolário da legalidade, é possível afirmar que a descrição de normas penais incriminadoras e não incriminadoras torna-se função exclusiva da lei, isto é, nenhuma conduta poderá ser considerada crime e nenhuma pena deverá aplicada, sem que antes do fato a ser apreciado, exista uma lei em sentido estrito definindo-o como delito e cominando-lhe a correspondente sanção penal (reserva e anterioridade da lei penal). A principal justificativa para que o princípio da legalidade possua a força jurídica que contém, encontra-se no fato de que existem direitos inerentes às pessoas humanas que não são e nem precisam ser outorgados ou legislados pelo Estado. Ou seja, é completamente inviável a vida em sociedade se os cidadãos quedarem adstritos a um ilimitado poder ou arbítrio estatal. As leis penais criadas em face da exigência da legalidade são definidas como a principal fonte formal ou de exteriorização do Direito Penal, isto é, através da lei penal é possível dar ciência (publicidade) e exigir de toda a sociedade o seu devido cumprimento (caráter coativo). Ocorre que mesmo com a obrigatoriedade da observância do princípio da legalidade pelo Estado Democrático de Direito, algumas teorias e institutos elaborados e estudados pela ciência penal padecem de sérias dificuldades, sob o ponto de vista teórico-normativo para se enquadrarem no suprarreferido princípio. Essa situação ocorre, por exemplo, com os denominados tipos penais abertos. Estes tipos penais são aqueles em que a tipificação de um determinado 12 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi fato jurídico penalmente relevante, só ocorrerá com o auxílio de outro tipo penal de extensão (ou secundário) ou de um critério de extensão (ou hermenêutico). Podem ser indicadas como espécies normativas que se enquadram nesses tipos penais: as normas penais em branco, os crimes culposos e os delitos comissivos por omissão (também chamados de omissivos impróprios). Mas por que isso ocorre? Para elucidar nossa análise introdutória, apreciaremos algumas características e elementos teóricos dos crimes omissivos impróprios ou comissivos por omissão. As condutas humanas a partir do exame das formas de execução são definidas como comissivas ou omissivas. A conduta é comissiva quando for praticada por meio de uma ação (comportamento comissivo). Podemos citar como exemplos os verbos núcleo do tipo nos delitos de homicídio (matar), furto (subtrair) e bigamia (contrair). De outro lado, a conduta é definida como omissiva quando for realizada através de uma omissão (comportamento negativo). Doutrinariamente as condutas omissivas são classificadas como próprias ou impróprias (comissivas por omissão). Na omissão própria, o agente tem o dever legal de agir, isto é, nos tipos que descrevem condutas omissivas próprias, o legislador estabelece a obrigatoriedade de um dever de praticar o ato que o tipo penal em seu preceito interno determina. Por exemplo, no “delito de omissão de notificação de doença”, artigo 269 do Código Penal (Deixar o médico de denunciar à autoridade pública doença cuja notificação é compulsória)2, o legislador determina que dentro do prazo legal, o médico que tomar conhecimento por meio de sua atuação profissional de uma doença em que seja obrigatória a sua comunicação para as autoridades 2 O tipo penal do art. 269 do CPB é também classificado como uma norma penal em branco em sentido lato/estrito, ou seja, ele é complementado por leis ordinárias ou normas de mesma hierarquia jurídica (ex.: Lei n.º 6.259/75), mas, também, por atos normativos ou normas de menor hierarquia ou que não são leis em sentido estrito (ex.: Portaria do Ministério de Estado da Saúde n.º 1.100/96). A administrativização demonstrada na segunda situação (norma penal em branco em sentido estrito) expõe o risco direto que o corolário da legalidade sofre, pois permite que parte do conteúdo do tipo penal esteja fora dos limites e taxatividade que a lei penal em sentido estrito e o princípio da segurança jurídica exigem. volume 15 13 i encontro de internacionalização do conpedi de saúde, o faça a fim de evitar a sua responsabilização penal em virtude da inatividade de comportamento. Fica nítido no presente tipo penal, o dever de agir daquele profissional da saúde com o escopo de permitir às autoridades sanitárias a possibilidade de se preparar para uma possível disseminação da doença diagnosticada. Os delitos omissivos próprios têm as seguintes características fundamentais: a) possuem tipologia própria, isto é, todos eles são descritos expressamente no Código Penal (ex.: arts. 135 e 269); b) inexigibilidade do resultado naturalístico, o que significa que são todos definidos como crimes de mera conduta; e, c) o dever legal de agir, ou seja, o sujeito ativo precisa praticar uma ação para impedir a tipificação de sua conduta. Deve-se observar que nos delitos em análise, o legislador exige o comportamento positivo, independentemente de impedir um possível ou provável resultado naturalístico que nem chega a ser previsto na modalidade típica. A outra modalidade de crimes omissivos é denominada de omissivos impróprios ou comissivos por omissão. Estes delitos para a doutrina majoritária (Masson, 2012, p. 195) não possuem tipologia própria3, por isso exigem uma norma penal de extensão ou complementar (§ 2° do artigo 13 do Código Penal brasileiro) aplicada em conjunto com o tipo de delito que o sujeito ativo visa praticar. Neste caso há uma adequação típica mediata (ex.: a mãe que mata o filho por inanição responde pelo art. 121 – homicídio – combinado com a alínea “a” do dispositivo supracitado – “tenha por lei obrigado de cuidado, proteção ou vigilância”). Os delitos omissivos impróprios, além da não previsão típica imediata ou direta, possuem os seguintes requisitos: 3 Em nosso entendimento (corrente minoritária) existem alguns crimes omissivos impróprios previstos no Código Penal e na legislação especial, que possuem tipologia própria não dependendo da aplicação do art. 13, § 2° do CPB (ex.: o art. 168 – apropriação indébita – pode ser realizado por “negativa de restituição”, em que o agente nega-se ou se abstém de restituir a coisa recebida de forma lícita ao seu legítimo proprietário ou possuidor). 14 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi a) exigibilidade do resultado naturalístico, isto é, são crimes que se consumam com a necessária ocorrência do resultado (materiais). Rogério Greco (2013, p. 875) ao tratar do tipo penal descrito no art. 288-A (“Constituição de Milícia Privada”), que é classificado quanto ao resultado naturalístico como um delito formal, também entende que ele pode ser comissivo por omissão. Conforme analisaremos no próximo requisito desta espécie de crime, eles não podem ser aplicados em delitos formais em face da inexistência da exigência do resultado naturalístico; b) o agente tem o dever de agir e evitar o resultado naturalístico, o que faz com que seja exigida uma obrigação por parte do sujeito ativo que não é extensível a qualquer pessoa. Zaffaroni e Pierangelli (2002, p. 537) afirmam que o agente não tem apenas uma obrigação jurídica de evitar o resultado, mas sim um dever especial de garantia do autor em face da vítima. O rol dos indivíduos que possuem o dever de agir ou o dever especial de garantia é trazido no Código Penal no § 2° do art. 13, que define a função do “garante” ou “garantidor”. Diz assim o dispositivo legal: § 2º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado. A crítica existente para uma corrente minoritária da doutrina, a qual nos filiamos, é que o tipo penal descrito padece do vício da inconstitucionalidade, pois viola o princípio da legalidade ou da reserva legal, por tratar-se de um tipo penal aberto, que traz a definição do que é “garantidor” de forma bastante ampla, permitindo um excessivo arbítrio judicial para o enquadramento típico do agente nessa condição jurídica. volume 15 15 i encontro de internacionalização do conpedi A respeito dessa amplitude não permitida e da aparente inconstitucionalidade da definição legal do “garante” comentam Zaffaroni e Pierangelli (2002, p. 541542): Cria-se, com isso, uma questão extremamente séria porque, por um lado, é verdade que é praticamente impossível prever todas as hipóteses em que o autor se encontre numa posição jurídica tal, que a realização de uma conduta distinta da devida seja equivalente à realização de uma conduta causadora do resultado típico; mas, por outro lado, também é verdade que a segurança jurídica sofre um sério menosprezo com a admissão dos tipos omissivos não expressos. Tem-se a impressão de que o princípio da legalidade passa a sofrer uma importante exceção, embora, de outra parte, também se tenha a impressão de que a admissão dos tipos omissivos impróprios não expressos não faz mais do que esgotar o conteúdo proibitivo do tipo ativo, que de modo algum quis deixar certas condutas fora da proibição. Nesse último sentido, parece quase óbvio que quando o CP comina com pena gravíssima a morte do pai, não quer deixar fora dessa tipicidade a conduta da mãe que, ao invés de estrangular seu bebê, o deixa morrer de inanição. De qualquer maneira, com isso não pretendemos que se tenha esgotado todas as dúvidas que a doutrina ainda tem a respeito desse problema, particularmente quanto à sua constitucionalidade. Cremos que essa é uma das matérias em que a dogmática jurídica penal tem ainda aberta uma série de interrogações que é necessário seguir investigando. Diante de tais explicações e, a partir do exemplo dos crimes omissivos impróprios, constata-se que a existência de tipos penais abertos cria uma insegurança jurídica que é inadmissível no âmbito da ciência penal moderna, em face do rigor requerido pelo princípio da legalidade, garantia fundamental do indivíduo perante o arbítrio/poder estatal. Desta feita, o estudo mais aprofundado das normas penais em branco, crimes omissivos impróprios e tipos penais culposos, que possuem como requisito essencial a “flexibilização” ou indeterminação do corolário da legalidade, é essencial para o desenvolvimento e aperfeiçoamento do Direito Penal como um todo, vez que eles permeiam vários de seus conceitos e institutos fundamentais. Por isso é importante analisarmos a (in) constitucionalidade dos tipos penais que englobam esses institutos jurídicos. 16 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi 3. consider ações teóricas a respeito da (in) constitucionalidade dos tipos penais abertos: análise dos tipos culposos e das normas penais em br anco em face do princípio da legalidade penal Para compreendermos como o princípio do nullum crimen, nulla poena sine lege (legalidade) desempenha suas principais funções (garantia da lei penal, segurança jurídica e individualização das penas), é mister compreender que parte da doutrina penal brasileira o desdobra em quatro sub-princípios que precisam ser aplicados concomitantemente (Toledo, 1994, p. 30): a) nullum crimen, nulla poena sine lege praevia; b) nullum crimen, nulla poena sine lege scripta; c) nullum crimen, nulla poena sine lege scricta; d) nullum crimen, nulla poena sine lege certa. A lex praevia diz respeito a necessidade da anterioridade da lei penal para a criação de delitos e penas. Além disso, ela também veda a edição de crimes e/ou penas por outras espécies normativas, sendo restrita à lei penal em sentido estrito. A lex scripta veda a fundamentação, agravamento ou punibilidade do fato concreto não previsto em um tipo penal, através do uso dos costumes contra legem. A lex scricta define a proibição da fundamentação, agravamento ou punição da situação fática não prevista tipicamente com o emprego de analogia in malam partem. A lex certa proíbe a edição de normas penais ou leis com o conteúdo indeterminado, impreciso ou contraditório. A aplicação concomitante de todos estes sub-princípios derivados, permite o conhecimento da integralidade do princípio da legalidade e a incidência plena de seus efeitos jurídicos na aplicação das normas penais. Devido à essencialidade do corolário da legalidade para a ciência penal, a doutrina penal de maneira uniforme, aponta a lei em sentido estrito, como a sua principal fonte de exteriorização. Destaca-se, porém, que apesar da lei ser uma volume 15 17 i encontro de internacionalização do conpedi fonte direta ou primária do Direito Penal outras fontes do Direito podem ser aplicadas a este, desde que tenham como função beneficiar a situação jurídica do autor do fato jurídico. Os costumes, os princípios gerais de Direito e a analogia (in bonam partem) são fontes indiretas ou secundárias aplicáveis apenas ao Direito Penal não incriminador, isto é, incidem nos casos de ausência de previsão legal (função de integração) e em benefício do sujeito ativo do fato. Temos como exemplo de aplicação integrativa dos princípios gerais de Direito na lacuna da norma penal não incriminadora, o consentimento do ofendido, que é admissível nos crimes em que o bem jurídico tutelado pode ser por ele disponibilizado4. A autonomia da vontade é um princípio geral de Direito derivado do princípio da dignidade da pessoa humana e, ela permite ao indivíduo dispor de bens jurídicos em face de determinadas condições especiais que possuem. A honra, a liberdade sexual e o patrimônio são bens jurídicos que a vítima pode dispor de interferência da tutela penal. A lei em sentido estrito é definida como a fonte originária da norma penal5. No estudo das normas penais encontramos três espécies que são classificadas da seguinte forma: normas penais incriminadoras, normas penais não incriminadoras ou permissivas e normas penais complementares ou explicativas. As normas penais incriminadoras estabelecem as condutas penalmente relevantes e suas respectivas sanções (ex.: art. 121 do CP – Homicídio). As normas penais não incriminadoras são aquelas que dispõem de algum benefício ao agente que pratica uma conduta “potencialmente” relevante (ex.: excludentes da tipicidade, ilicitude ou culpabilidade). Por fim, existem as normas penais complementares ou explicativas que esclarecem o conteúdo de outras normas jurídicas ou delimitam o âmbito de sua aplicação (ex.: art. 327 CP – conceito de funcionário público e equiparado). 4 Defendemos que o consentimento do ofendido é uma excludente supralegal da ilicitude. 5 É relevante destacar que o Código Penal não é a única fonte das normas penais, pois as encontramos em textos legais que contém conteúdo predominantemente vinculado a outros ramos do Direito. Cita-se, como exemplo, o Código de Defesa do Consumidor que possui um título dedicado à previsão dos crimes contra as relações de consumo. 18 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi Dentro das três modalidades de normas penais que acabamos de estudar é possível encontrarmos os tipos penais abertos6. Além do exame das normas penais é importante abordarmos a respeito do tipo penal e suas funções7. Podemos definir o tipo penal como a descrição abstrata de um comportamento proibido, permitido ou explicativo com todas as suas características subjetivas, objetivas/descritivas ou normativas. Conforme descreve Masson (2012, p. 254), o tipo penal possui cinco funções imprescindíveis para a tutela da dignidade humana perante ao arbítrio estatal. São elas: função de garantia; função fundamentadora; função indiciária da ilicitude; função diferenciadora do erro e; função seletiva. A função de garantia fundamenta-se na previsão constitucional e legal do princípio da legalidade ou da reserva legal, permitindo que apenas a lei em sentido estrito possa criar os tipos penais incriminadores. Por isso, a reserva legal e a anterioridade da lei penal garantem ao indivíduo o conhecimento prévio das condutas ilícitas e, afasta qualquer possibilidade de sanção para um comportamento que não esteja previamente estabelecido. A função fundamentadora significa que uma conduta somente será penalmente relevante se ela estiver fundamentada na lei e passível de sanção por parte do Estado. Ela se vincula a ideia do exercício do direito de punir no caso de violação da norma penal. A função indiciária da ilicitude estabelece que o tipo penal possua o condão de delimitar a norma penalmente ilícita. O fato de uma ação ser típica indica a probabilidade de sua antijuridicidade. Bitencourt (2000, p. 260) afirma que a tipicidade é a ratio cognoscendi da ilicitude, isto é, a adequação típica (fato-norma) faz surgir o indício de que a conduta também pode ser antijurídica. O fato típico não será ilícito se estiver presente uma excludente de antijuridicidade (ex.: estado de necessidade). Na análise da função indiciária encontramos uma das vicissitudes que os tipos penais abertos causam ao princípio da legalidade, isto é, em face da descrição incompleta ou 6 A seguir os tipos penais abertos serão confrontados com o princípio da legalidade. 7 Entendemos que as expressões “tipo penal” e “norma penal” são sinônimas, porém, em alguns momentos uma ou outra poderá ser utilizada em um contexto teórico diferente. volume 15 19 i encontro de internacionalização do conpedi excessivamente ampla dos elementos do tipo há uma dificuldade de verificação do caráter indiciário da ilicitude. A função diferenciadora do erro estabelece que o dolo do agente deva abranger no plano concreto todos os elementos descritos no tipo penal. Caso este pratique a conduta com o desconhecimento de alguma das circunstâncias fáticas que constitua o tipo, o delito será completamente afastado, em face do erro de tipo essencial que tem o condão de sempre excluir o dolo. A última função do tipo penal é a seletiva. Conforme descreve Masson (2012, p. 256): Cabe ao tipo penal a tarefa de selecionar as condutas que deverão ser proibidas (crimes comissivos) ou ordenadas (crimes omissivos) pela lei penal, levando em conta os princípios vetores do Direito Penal em um Estado Democrático de Direito (grifo no original). Após estabelecermos as funções do tipo cumpre-nos definir e estudar os tipos penais abertos, verificando suas características principais e desdobramentos teórico-práticos. Antes, porém, necessário se faz traçar uma diferenciação entre os tipos penais abertos e os tipos penais fechados, que são duas categorias que tratam a respeito da extensão e delimitação do conteúdo dos tipos penais. Os tipos penais abertos são aqueles em que a tipicidade só pode ser avaliada com o auxílio de outro tipo de extensão ou secundário (ex.: Parte Geral – art. 18, II – definição de crime culposo / Parte Especial: art. 155 – elementar “coisa alheia móvel” no delito de furto) ou através de um critério especial de extensão (ex.: no delito de difamação – art. 139 do CPB – o tipo penal trás a elementar “reputação” que depende necessariamente de valoração jurídica para a sua definição). Esta modalidade de tipo, portanto, padece sempre de uma indeterminação relativa quanto à delimitação ou à extensão de seu conteúdo. Em contrapartida, os tipos penais fechados são aqueles em que a norma descreve completamente a conduta proibida ou permitida, sendo desnecessária a utilização de uma norma ou critério especial de extensão (ex.: art. 121 do CPB – “matar alguém”). Como apontado acima, os delitos culposos são tipos penais abertos, pois dependem necessariamente de uma norma de extensão que está descrita no 20 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi inciso II do art. 18 do CPB8. Pode-se citar como exemplo o § 3º do art. 121 do Codex que tipifica a conduta do homicídio culposo (“Se o homicídio é culposo”). A redação do homicídio culposo é relativamente indeterminada, vez que não expressa claramente o seria “matar alguém culposamente”. Somente com a junção do art. 121, § 3º e o art. 18, II ambos do Código Penal é possível ocorrer a adequação típica e a punição do agente pela prática do homicídio culposo. Isto significa que o homicídio culposo é “matar alguém como consequência de uma conduta negligente, imprudente ou imperita”. Diante da imprescindibilidade de aplicação do art. 18, II do CPB como norma penal complementar ou de extensão, observa-se que os delitos culposos realmente se enquadram na categoria dos tipos penais abertos. As elementares típicas imprudência, negligência e imperícia expressam a indeterminação relativa que estes delitos possuem, visto que é extremamente difícil ao operador do Direito e ao indivíduo sujeito à persecução penal, defini-las de maneira segura. Entendemos, portanto, que a indeterminação de conteúdo apontada desrespeita frontalmente o princípio da legalidade (lex certa) e coloca em xeque o corolário da segurança jurídica. Por sua vez, as normas penais em branco são definidas como normas que possuem a sanção determinada, mas o conteúdo indeterminado. Em relação a elas também pairam dúvidas a respeito de sua constitucionalidade, por dependerem de uma complementação oriunda de uma norma de mesma fonte material e formal (norma penal em branco em sentido amplo) ou por uma norma ou ato normativo de diferente fonte material e formal (norma penal em branco em sentido estrito). As normas penais em branco também se enquadram na categoria dos tipos penais abertos, pois exigem necessária complementação de conteúdo, em virtude de sua indeterminação relativa. 8 No estudo dos crimes culposos verifica-se que este é composto por alguns elementos objetivos, subjetivos e normativos que são necessários para a sua configuração São elementos dos crimes culposos: comportamento humano voluntário (positivo ou negativo); descumprimento do dever objetivo de cuidado manifestado através da imprudência, negligência e imperícia; previsibilidade objetiva do resultado naturalístico; inexistência de previsão subjetiva do resultado; resultado naturalístico involuntário; e, tipicidade da conduta. volume 15 21 i encontro de internacionalização do conpedi Apenas a título de exemplificação, podemos indicar o art. 33 da Lei n. 11.343/2006 que trata do crime de tráfico de drogas, em que se afirma que o objeto material (droga) envolvido em qualquer das condutas típicas “não é autorizado ou está em desacordo com determinação legal ou regulamentar”. O tipo em destaque não trás em seu bojo o rol dessas substâncias proibidas, exigindo a utilização de uma ou mais normas complementares oriundas de normativas do Ministério da Saúde para a sua efetiva incidência (Portaria SVS-MS n. 344/1998 c/c Resolução – RDC n. 6/2014). Juarez Cirino dos Santos (2007, p. 50-51) analisando as normas penais em branco, assim se expressa sobre as consequências trazidas por elas no ordenamento jurídico penal: As leis penais em branco exprimem a tendência moderna de administrativização do Direito Penal, com transferência de poderes punitivos a funcionários do Poder Executivo, ou a modalidades inferiores de atos normativos (Decreto, Resolução etc.), com os seguintes problemas: a) primeiro, um problema político: a transferência da competência legislativa para definir a conduta proibida para o Poder Executivo, ou para níveis inferiores de atos legislativos, infringe o princípio da legalidade, como afirma um setor avançado da literatura penal – afinal, o emprego instrumental do Direito Penal para realizar políticas públicas emergenciais é inconstitucional. b) segundo, um problema prático – porque a inconstitucionalidade da lei penal em branco não exclui sua eficácia concreta enquanto integrar a legislação penal: definir se o complemento posterior favorável ao autor (por exemplo, a doença foi excluída do catálogo) é retroativo ao fato realizado na vigência de complemento anterior prejudicial ao autor (na época do fato, a doença constava do catálogo). A partir do posicionamento de Juarez Cirino, entendemos que as normas penais em branco também são submetidas aos questionamentos concernentes à sua inconstitucionalidade, visto que se caracterizam pela indeterminação relativa do tipo penal potencialmente violadora dos corolários da legalidade e da segurança jurídica. 22 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi 4.conclusões O princípio da legalidade penal é uma das grandes conquistas do ser humano no Estado Democrático de Direito. Ele tutela o direito subjetivo de liberdade dos indivíduos frente ao arbítrio e o excesso de poder estatal. Ocorre que a dogmática penal dentro das várias temáticas que discute na aplicação da teoria do crime, faz uso de institutos e modelos teóricos que trazem desdobramentos que flexibilizam ou relativizam o princípio da legalidade penal, e que também refletem sobre o corolário da segurança jurídica. No estudo dos tipos abertos encontramos outros institutos de importância fundamental no Direito Penal e, que os utilizam como instrumento para tipificação de condutas penalmente relevantes. Verificamos que os crimes omissivos impróprios, os delitos culposos e as normas penais em branco têm como característica comum a indeterminação relativa de seus conteúdos e elementares típicas. O presente aspecto exposto demonstra um enfraquecimento perigoso e também uma violação do corolário da legalidade, por apresentar elementares típicas com os conteúdos excessivamente genéricos. Eles também provocam uma administrativização dos conteúdos das normas penais e permitem um amplo espaço para interpretação e o arbítrio judicial. Todos esses vícios apontados trazem à tona o questionamento de tais institutos sob os prismas da legalidade penal e da segurança jurídica, admitindo-se o posicionamento favorável acerca de suas inconstitucionalidades. Resta-nos dizer que não tivemos neste trabalho o intuito de esgotar o tema, mas tão somente promover uma breve discussão, considerando-se o fato de que todos os institutos destacados comportam, a partir dos aspectos examinados, um longo, pormenorizado e individualizado estudo. 5.referências ANVISA. Portaria 344, de 12 de maio de 1998. Aprova o Regulamento Técnico sobre substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 dez. 1940. Disponível em: <http://www. anvisa.gov.br/hotsite/talidomida/legis/Portaria_344_98.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2014. volume 15 23 i encontro de internacionalização do conpedi BIERRENBACH, S. Crimes omissivos impróprios: uma análise à luz do Código Penal Brasileiro. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. BITENCOURT, C. R. Manual de Direito Penal: parte geral. 6. ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2000. v.1 BONESANA, C. Dos delitos e das penas. Trad. Flórido de Angelis. Bauru-SP: Edipro, 1993. BRASIL. 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São Paulo: RT, 2002. volume 15 25 i encontro de internacionalização do conpedi a constituição como limite positivo ao direito penal Geilza Fátima Cavalcanti Diniz1 Raquel Tiveron2 Resumo As relações entre o Direito Penal e a Constituição são delineadas especialmente pela forma por meio da qual o Estado explicita seu sistema de proteção aos direitos humanos. Diversas são as teorias que se propõem a explicar essa relação. No presente artigo, busca-se enfrentar a realidade brasileira, para verificar qual teoria melhor explica a relação entre o Direito Penal e a Constituição. A partir disso, são analisados os princípios penais constitucionais, as velocidades do Direito Penal e a postura da Constituição brasileira como uma Constituição de Terceira Geração. Palavras-chave Direito Penal; Constituição; Garantismo; Direitos Fundamentais; Princípios constitucionais do Direito Penal. Abstract The relationship between the Criminal Law and the Constitution are outlined by particular means by which the state explicitly its system of human rights protection. There are several theories that purport to explain this relationship. In this article, we seek to meet the Brazilian reality, to see which theory best explains the relationship between the criminal law and the Constitution. From this, we analyze the criminal constitutional principles, the velocities of the Criminal Law and the posture of the Brazilian Constitution as a Constitution Third Generation. Key words Criminal Law; Constitution; Guaranteeism; Fundamental Rights; Constitutional principles of criminal law. 1 Doutora em Direito (UniCeub), Mestra em Direito (UFPE), Professora Universitária (UniCeub), Juíza de Direito (TJDFT). 2 Doutora em Direito (UniCeub), Mestra em Direito (UniCeub), Professora Universitária (UniCeub), Promotora de Justiça (MPDFT). volume 15 27 i encontro de internacionalização do conpedi 1.introdução As relações entre o Direito Penal e a Constituição são delineadas especialmente pela forma pela qual o Estado de Direito explicita seu sistema de proteção aos direitos fundamentais. Duas especiais formas de relações são apontadas: da Constituição como limite negativo ao Direito Penal e da Constituição como limite positivo ao Direito Penal. A depender da teoria prevalente na ordem jurídica constitucional de um país, pode a Constituição servir como base, como fundamento ao poder de punir do Estado ou pode ela ser o principal limite ao legislador infraconstitucional na tutela dos bens jurídico-penais, por intermédio da tipificação. No presente artigo, pretende-se, portanto, analisar as relações entre Direito Penal e Constituição à luz da teoria dos Direitos Fundamentais. Para tanto, serão analisadas as gerações de constitucionalismo existentes, a fim de verificar em qual delas se enquadra a atual Constituição Brasileira e qual o modelo teórico respectivo que se pode verificar na atividade legiferante penal. Serão ainda abordadas velocidades do Direito Penal e o modelo constitucional adotado, pois se trata de uma relação necessária, especialmente para se constatar como tem sido previstas as penas atualmente existentes no Brasil, especialmente no que tange à pena privativa de liberdade e as penas restritivas de direito, que denotam uma opção do legislador e demonstra a velocidade do Direito Penal do país respectivo. Abordar-se-ão os princípios penais esposados pela Constituição Brasileira, a partir da previsão expressa da Carta atual e de uma análise histórica e da influência filosófica. Por fim, será analisada a teoria do Direito Penal mínimo como anseio constitucional, concluindo-se com os principais aspectos que delineiam a relação entre Direito Penal e Constituição. 2.as relações entre constituição, direito penal e direitos fundamentais Pode-se conceituar direitos humanos, a partir de uma visão histórica de seu conteúdo, como um núcleo mínimo de direitos que devem ser tutelados pelo Estado e que podem servir, ao mesmo tempo, como limites ao poder estatal 28 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi e como norte a ser seguido para implementação de garantias que devem ser efetivadas pelo Estado. São direitos, segundo a doutrina clássica, inerentes ao ser humano, inalienáveis, imprescritíveis, que devem ser necessariamente previstos na Lei Maior de um país, para que esse possa vir a ser caracterizado como verdadeiro Estado Democrático de Direito. Na medida em que tais direitos humanos passam a ser previstos na Constituição, portanto dotados de um status diferenciado em relação aos demais direitos, fala-se que passam a possuir a característica da fundamentalidade, e então se fala de direitos fundamentais. Além da previsão constitucional, grande parte dos direitos humanos é prevista nos principais instrumentos internacionais, formando um sistema internacional de proteção aos direitos humanos. Citese, como um dos principais exemplos, o Pacto de São José da Costa Rica1, do qual o Brasil é signatário3. Costuma-se classificar os direitos humanos em gerações ou dimensões, que se referem ao modelo de Estado, à titularidade e à forma pela qual tais direitos serão exercidos. Norberto Bobbio4, em sua obra “A era dos Direitos”, faz a classificação, nesse passo em três gerações de direitos humanos5. Em relação aos direitos humanos de primeira geração, têm-se os direitos humanos relativos às liberdades individuais, são direitos negativos, oponíveis ao Estado, e que se caracterizam, pois, por serem direitos de resistência e de titularidade individual. Nesse conceito, encontram-se os direitos à liberdade, 3 Quando os direitos humanos são previstos em normas internacionais, sua violação pelo direito interno poderia ensejar o controle de convencionalidade, mencionado, dentre outros, por Luiz Flávio Gomes. De se recordar que a Constituição Federal de 1988 trouxe uma cláusula aberta de previsão dos direitos humanos no art. 5º, §2º. Cf. GOMES, Luiz Flávio. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Valor dos Tratados Internacionais: Do Plano Legal ao Ápice Supraconstitucional? (Parte II). Disponível em: http://www.lfg.com.br. Acesso em: 12 jun. 2014. 4 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. Disponível em: http:// direitoufma2010.files.wordpress.com/2010/05/norberto-bobbio-a-era-dos-direitos.pdf. Acesso em: 12 jun. 2014. 5 Há quem fale ainda em quarta e quinta geração de direitos humanos. Cite-se, nesse sentido, Paulo Bonavides, que se refere a direitos ligados à informática e à bioética. Para os fins do presente artigo, trabalharemos com a classificação tradicional de Norberto Bobbio. Cf: BONAVIDES, Paulo. A quinta geração de direitos fundamentais. In: Direitos Fundamentais e Justiça, n. 3, abr/jun 2008, pp. 82-93. Disponível em: http://www.dfj.inf.br/Arquivos/ PDF_Livre/3_Doutrina_5.pdf. Acesso em 12 jun. 2014. volume 15 29 i encontro de internacionalização do conpedi à propriedade, à vida privada, dentre outros e se referem ao modelo de estado liberal, pois para o exercício de tal geração de direitos é suficiente o non facere estatal. Na segunda geração dos direitos humanos, encontram-se os direitos sociais. A titularidade já não é mais individual, mas pertencente a grupos sociais determinados. Relacionam-se tais direitos humanos ao modelo de estado de bemestar social, o chamado welfare state. Para serem concretizados, não basta uma abstenção do Estado. Pelo contrário, é necessário um agir estatal, o que deve ser feito não somente por intermédio da previsão normativa de tais direitos6, mas também por meio de uma prestação material. São exemplos de direitos humanos de segunda geração o direito à saúde e o direito à educação. Com relação à terceira geração dos direitos humanos, fala-se em direitos transindividuais, de titularidade difusa, relativo a bens cuja titularidade não é apenas de um grupo social determinado, mas à coletividade. Relaciona-se ao estado neoliberal e como exemplo pode ser citado o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Analisando o modelo normativo penal brasileiro7, seja pela ampla diversidade dos bens tutelados, seja pela variedade de medidas sancionatórias e de garantias adotadas, é possível afirmar-se que há um padrão eclético, preocupando-se o sistema penal em garantir e tutelar direitos de primeira, segunda e terceira geração, não sendo, pois, um modelo puramente liberal-individualista e nem somente social-coletivista. A Constituição Federal de 1988, ao dispor sobre o Direito Penal, dessa maneira, e diferentemente de outros modelos constitucionais possíveis, não buscou lidar apenas com direitos de primeira dimensão, atuando na previsão de possíveis formas de restrição à liberdade e ao mesmo tempo à tutela da garantia do direito à liberdade, mas também houve uma preocupação constitucional de atuação do estado como agente normativo e regulador da atividade penal. 6 A prestação material se refere à efetiva concretização desses direitos. No exemplo do direito à assistência pré-escolar seria a real construção de escolas, no direito à saúde a construção de hospitais etc. 7 Refiro-me, neste ponto, não somente à Constituição Federal, mas ao sistema jurídico-penal como um todo. 30 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi Houve, portanto, quando da redação da chamada Constituição cidadã8, uma opção político-filosófica tanto em privilegiar a tutela aos direitos e interesses individuais, como em proteger coletividade. Aponta-se, portanto, um distanciamento do padrão meramente negativo ou de non facere estatal no que tange à tutela de bens jurídicos, com a ampliação do foco de tutela tanto para os bens coletivos como transindividuais. Como exemplo desse último, é possível citar a previsão constitucional de ampliação da responsabilidade penal além da pessoa física. Nesse passo, previuse a possibilidade de lei ordinária criminalizar condutas da pessoa jurídica em relação aos crimes contra o meio ambiente9. Portanto, tem-se que o sistema penal, à luz do modelo constitucional adotado no país, foi além das funções de garantia individual contra o poder punitivo estatal, buscando uma função social e transformadora do Direito Penal, mas sem abandonar o perfil liberal, ou seja, em uma postura eclética. Segundo a teoria da Constituição Dirigente Aplicada a Países de Modernidade Tardia (TCDAPMT), lecionada por Lenio Luiz Streck e André Copetti10, a concretização das atribuições penais interventivas constituem uma das formas de efetivação da teoria da Constituição Dirigente. Demonstra nosso sistema constitucional, portanto, enquadrar-se no constitucionalismo de terceira geração, a seguir melhor explicitado. 3. constitucionalismo de ger ações Em palestra proferida em Brasília, em 15 de outubro de 2013, Luigi Ferrajoli trouxe importante lição sobre os aspectos relacionais entre Direito Penal e 8 Expressão utilizada pelo Deputado Ulysses Guimarães quando da promulgação do texto constitucional. Discurso disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=bytTuigty9g. Acesso em: 13 jun. 2014. 9 Cabe salientar a interpretação que o Superior Tribunal de Justiça deu ao tema, aplicando a teoria da dupla imputação, prescrevendo, portanto, que além da imputação feita à pessoa jurídica, faz-se necessária a individualização da conduta à pessoa física responsável pelo ato. 10 COPETTI, André; STRECK, Lenio Luiz. O Direito Penal e os influxos legislativos pósConstituição de 1988: um modelo normativo eclético consolidado ou em fase de transição. Disponível em: http://www.andrecopetti.net/news/o%20direito%20penal%20e%20os%20 influxos%20legislativos%20pos-constitui%c3%a7%c3%a3o%20de%201988%3a%20 um%20modelo%20normativo%20ecletico%20consolidado%20ou%20em%20fase%20 de%20transi%c3%a7%c3%a3o-/. Acesso em: 13 jun.14. volume 15 31 i encontro de internacionalização do conpedi Constituição, como acima delineado11. Asseverou que as Constituições dos diversos países, no Século XIX, caracterizaram-se como um freio ao jus puniendi do poder estatal, referindo-se o professor italiano, portanto, ao modelo de prescrição relativo aos direitos de primeira geração, já explanados no tópico precedente. Essas constituições seriam, em um paralelo com os direitos de primeira geração, no que se refere ao direito penal, Constituições de primeira geração, preocupadas, pois, em limitar o poder estatal contra eventuais arbitrariedades ou possíveis abusos. A partir da segunda metade do Século XIX, como fenômeno observável na maioria dos países ocidentais, houve uma maior preocupação em garantir os direitos relacionados ao Direito Penal, mas a maioria dessas garantias foi prevista por meio de leis penais e não na própria Constituição, motivo pelo qual Ferrajoli caracterizou esse período como sendo a época do poder dos parlamentos e convencionou chamar as Constituições respectivas de Constituições de Segunda Geração. Já as Constituições do Século XX, diversamente, preocuparam-se em ir além da criação de limites e freios ao poder estatal, ocupando-se também em criar obrigações políticas respectivas em relação aos cidadãos. Os direitos fundamentais relacionados à área penal foram elevados ao patamar de direitos constitucionais, passando assim as Constituições em funcionar como verdadeiras “réguas”12 para a atuação dos Estados, sendo assim um passo a frente em relação às Constituições de primeira e segunda geração. É o que Ferrajoli chamou de Constituição de Terceira Geração, afirmando, em seguida, que a Constituição Brasileira estaria inserida nesse conceito, sendo uma das mais desenvolvidas da América Latina. De fato, verifica-se que a Constituição preocupou-se, já em seu art. 1º, inciso III, em preceituar o princípio da dignidade da pessoa humana, que tem profunda relação como o direito penal, como fundamento da República Federativa do Brasil. Em seguida, no art. 5º, ao preceituar os direitos e garantias fundamentais, preocupou-se em elencar diversos princípios penais, erigindo-os à categoria de fundamentalidade. Com relação às penas, também se preocupou a Constituição 11Palestra disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-out-16/constituicao-brasileiraavancadas-mundo-luigi-ferrajoli. Acesso em: 13 de jun. 14. 12 Expressão utilizada pro Luigi Ferrajoli na palestra mencionada. 32 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi brasileira em dar um tratamento de fundamentalidade às mesmas, seguindo o padrão das velocidades do Direito Penal assinalado por Silva Sanches13. 4.as velocidades do direito penal e o modelo constitucional adotado: uma relação necessária Ao analisar a sistemática pela qual a Constituição brasileira tratou a temática das penas, pode-se verificar que há uma profunda relação entre a realidade social que se reflete no texto legislativo e o momento do Direito Penal esposado pela Lei Maior. Analisando sociologicamente essa relação, Silva Sanches traz importante lição ao classificar o direito penal em três velocidades, a partir da forma pela qual é tratado o assunto da segregação cautelar. Nessa seara, na primeira velocidade do Direito Penal, tem-se uma aplicação predominante da aplicação de penas privativas de liberdade, no que já se chamou de obsessão pelo cárcere14, mas com respeito às garantias individuais. Muitas políticas criminais do nosso tempo (em verdade, “políticas penais” ou “políticas eleitoreiras”) identificam-se com este modelo, pretendendo dissuadir a prática criminosa mediante a intimidação causada pela imposição de penas severas. Há uma crença no full enforcement, ou seja, uma convicção de que o aumento da pena de um crime seja efetivo para evitá-lo. Esta foi a tônica de reformas algumas penais no Brasil (como a Lei nº 10.972, de 2004, que instituiu o regime disciplinar diferenciado; a Lei nº 8.072, de 1990, conhecida lei dos crimes hediondos), que, inspirados no movimento norte-americano law and order, predica o agravamento das penas, criação de novos tipos penais e uma execução penal rígida, com respeito aos direitos e garantias fundamentais15. Na segunda velocidade do Direito Penal, faz-se um escalonamento dos crimes e, para os chamados crimes de menor gravidade, cria-se a possibilidade 13 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luíz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: RT, 2002. 14 Expressão utilizada por Denival Silva, em Dissertação de Mestrado homônima apresentada à Universidade Federal de Pernambuco (SILVA, Denival Francisco. Obsessão pelo cárcere: A renitência dos juízes às penas não privativas de liberdade. Brasilia, 2002). 15GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antônio, GOMES, Luiz Flávio. Criminologia: introdução a seus fundamentos teóricos: introdução às bases criminológicas da Lei 9.099/95, lei dos juizados especiais criminais. 3ª ed., São Paulo: RT, 2012, p. 489 e 495. volume 15 33 i encontro de internacionalização do conpedi de aplicação de penas restritivas de direito em substituição às penas privativas de liberdade ou mesmo de forma autônoma, flexibilizando-se, para tanto, algumas garantias penais. No Brasil, é possível destacar, como exemplo, a previsão dos crimes de menor potencial ofensivo pela Lei nº 9.099/95 – Lei dos Juizados Especiais Criminais. Esse mesmo diploma normativo criou a possibilidade de aplicação, atendidos os requisitos ali previstos, do instituto da transação penal, pelo qual há imediata aplicação de pena não privativa de liberdade, mas há a consequente relativização do princípio da presunção de inocência. Com a edição da referida lei, o ordenamento jurídico brasileiro passou a prever reações quantitativa e qualitativamente distintas para cada espécie de crime, estabelecendo espaços de conflito e de consenso. Para o que designou “delitos de menor potencial ofensivo” – atualmente compreendidos aqueles cuja pena privativa de liberdade máxima seja de dois anos – a lei reservou o procedimento e institutos despenalizadores da Lei nº 9.099/95 (espaço de consenso), nos quais é possível autor, vítima e Ministério Público transigirem acerca das consequências para o crime16. Luiz Flávio Gomes17 destaca que foi fundamental para esse giro políticocriminal em direção ao consenso, o reconhecimento pelo próprio Estado da insuficiência (ou mesmo da falência) do modelo clássico de justiça criminal, que não reúne condições para fazer frente, com sua atual estrutura e organização, a todas as infrações cometidas e noticiadas18. Ainda segundo o criminologista brasileiro, o modelo consensual instituído pela Lei nº 9.099/95 tem por fundamento três princípios: oportunidade regrada (o que não é consenso entre os autores), autonomia da vontade do imputado e desnecessidade da pena de prisão. Isso quer dizer que, para que haja concordância 16GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antônio, GOMES, Luiz Flávio. Criminologia: introdução a seus fundamentos teóricos: introdução às bases criminológicas da Lei 9.099/95, lei dos juizados especiais criminais. 3ª ed., São Paulo: RT, 2012, p. 486 e 489. 17 GOMES, Luiz Flávio. A impunidade no Brasil: de quem é a culpa? (esboço de um decálogo dos filtros da impunidade). Revista do Centro de Estudos Judiciários. Brasília, nº 15, p. 3550, set./dez. 2001. 18GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antônio, GOMES, Luiz Flávio. Criminologia: introdução a seus fundamentos teóricos: introdução às bases criminológicas da Lei 9.099/95, lei dos juizados especiais criminais. 3ª ed., São Paulo: RT, 2012, p. 489 e 497-498. 34 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi e se possa aplicá-lo, é necessário que cada um dos envolvidos na persecução penal abdique de uma parcela dos seus direitos ou poderes tradicionalmente contemplados no devido processo legal. Por exemplo, o Ministério Público deve abrir mão da via processual habitual (propositura da ação penal), o acusado deve abrir mão das suas garantias processuais clássicas (contraditório, provas, recursos etc.) em troca de alguns benefícios, como evitar a pena e o processo e o Estado obriga-se a retirar sua forma de reação clássica ao delito que é a prisão de curta duração, pois executá-la pode trazer a consequência nefasta de desencadear a “carreira criminal” do ofensor de menor periculosidade19. Trata-se de um arquétipo que desburocratiza a justiça criminal, já que as contravenções e crimes menores, que antes ocupavam os juízos e tribunais, passaram para os juizados onde vigora a oralidade, celeridade, informalidade, limitações recursais etc20. Na terceira velocidade do Direito Penal, tem-se um recrudescimento do regime relativo à aplicação das penas, com a aplicação de pena privativa de liberdade, mas, ao mesmo tempo, com a redução de garantias. Essa velocidade do direito penal se relaciona com a teoria do direito penal do inimigo, de Günther Jackobs21. O inimigo seria autor de “crimes de alta traição”, que assume uma atitude de insubordinação jurídica intrínseca, capaz de produzir um estado de guerra contra a sociedade e perderia a qualidade de pessoa portadora de direitos, 19GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antônio, GOMES, Luiz Flávio. Criminologia: introdução a seus fundamentos teóricos: introdução às bases criminológicas da Lei 9.099/95, lei dos juizados especiais criminais. 3ª ed., São Paulo: RT, 2012,p. 489. 20 BOCHENEK, Antônio César. Princípios orientadores dos juizados especiais. 2004, p. 43. Disponível em: http://www.fdv.br/publicacoes/periodicos/revistadepoimentos/n11/5.pdf. Acesso em: 16 jun. 14. 21 O penalista alemão apresentou esta teoria em 2004, no clássico artigo Bürgerstrafrecht und Feindstrafrecht (direito penal do cidadão e direito penal do inimigo), que distingue cidadãos e inimigos, de acordo com a determinação dos agentes de controle social. O infrator é visto como um inimigo, ou seja, perigoso, anormal, subversivo, pertencente a grupos ou classes tidos como intoleráveis (PASSETTI, Edson (org). Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 21). Isso não significa que os cidadãos comuns não cometam crimes. Entretanto, explica Juarez Cirino dos Santos, o cidadão seria autor de crimes “normais” e preservariam uma atitude de fidelidade jurídica intrínseca, sendo capazes de manter as expectativas normativas da comunidade sem desafiar o sistema social (CIRINO DOS SANTOS, Juarez. O direito penal do inimigo – ou o discurso do direito penal desigual. 2012, p. 5. Disponível em: http://icpc.org.br/wp-content/uploads/2012/05/direito_penal_ do_inimigo.pdf. Acesso em: 16 jun. 14.) volume 15 35 i encontro de internacionalização do conpedi porque desafia o sistema social. Essa distinção, anota Maria Lúcia Karam22, assenta-se no maniqueísmo simplista que divide as pessoas entre boas e más. Aos bons cidadãos, aplica-se o respeito a todos os direitos. Aos inimigos, esses direitos costumam ser negados, o que vulnera o princípio de igualdade perante a lei23. Isso ocorre porque, segundo Louk Hulsman24, somos levados a considerar os “eventos criminosos” como fatos excepcionais, ou seja, fatos que diferem substancialmente de outros eventos não definidos como crimes. Assim, sob tal ponto de vista, os ofensores tornam-se uma categoria especial de pessoas e a natureza excepcional da conduta criminosa justifica a natureza especial da reação feita contra eles25. Fala-se ainda em uma quarta velocidade do Direito Penal, que no entanto não é criação de Silva Sanches. Tem seu berço na Itália e prega tratamento penal diferenciado a quem já é ou foi chefe de Estado. Essa velocidade estaria relacionada ao direito penal internacional26, mas especificamente a regras de extraterritorialidade. Analisando o sistema constitucional penal brasileiro, é possível se identificar, embora sem exclusão completa das demais velocidades do direito penal, uma 22 KARAM, Maria Lúcia. Pela abolição do sistema penal. In: PASSETTI, Edson (org). Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 89. 23 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. O direito penal do inimigo – ou o discurso do direito penal desigual. 2012, p. 12. Disponível em: http://icpc.org.br/wp-content/uploads/2012/05/ direito_penal_do_inimigo.pdf. Acesso em: 16 jun. 14. 24 HULSMAN, Louk. Alternativas à justiça criminal. In: PASSETTI, Edson (org). Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 43. 25 Alessandro Baratta lembra que, a despeito do “sacrifício simbólico do condenado considerado como bode expiatório”, a maior parte dos infratores da lei penal, em especial dos crimes mais graves, permanece impune (BARATTA, Alessandro. Principios del derecho penal mínimo - para uma teoría de los derechos humanos como objeto y limite de la ley penal – trad. Francisco Bissoli Filho. Doutrina Penal n. 10-40, Buenos Aires, Argentina: Depalma, 1987, p. 634. Disponível em: http://danielafeli.dominiotemporario.com/doc/ALESSANDRO%20 BARATTA%20Principios%20de%20direito%20penal%20minimo.pdf. Acesso em: 16 jun. 14). Os reveses desta incongruência são ressaltados por Juarez Cirino dos Santos (2013, p. 4), o qual lembra que, se a punição do “criminoso” reforça a fidelidade jurídica do povo e reduz a criminalidade, a não punição do “infrator” reduz a confiança da população na austeridade do Direito, ampliando a criminalidade (CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Novas hipóteses de criminalização. 2013. Disponível em: http://icpc.org.br/wp-content/uploads/2013/01/novas_ hipoteses_criminalizacao.pdf. Acesso em: 16 jun. 14). 26 De se ressaltar que, no Brasil, a Emenda Constitucional nº 45/2004 acrescentou o §4º ao art. 5º da CF, dispondo que o Brasil se submete a jurisdição do Tribunal Penal Internacional – TPI/ Haia. 36 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi maior preocupação do legislador em aproximar-se da segunda velocidade do Direito Penal. Com efeito, já se proibiu, no próprio texto constitucional, as penas de morte27, perpétua, de banimento, cruel e de trabalho forçado, nos termos do art. 5º, inciso XLVII. Previu-se ainda expressamente a possibilidade de aplicação de penas restritivas de direitos, cabendo ao legislador infraconstitucional a individualização das penas (art. 5º, inciso XLVI). O legislador infraconstitucional, nesse passo, tem escalonado os crimes e as penas respectivas a partir da gravidade da infração, sendo a pena privativa de liberdade, na atualidade, restrita à aplicação aos crimes menos ofensivos. Assim, é possível afirmar que o sistema constitucional penal brasileiro reflete uma segunda velocidade. Além dessa previsão relativa à forma de segregação, o legislador constituinte se preocupou em prever, dotar de fundamentalidade, os princípios penais mais importantes àquele momento histórico e social, o que se passará a abordar. 5.a adoção dos princípios penais pela constituição br asileir a: uma análise histórica Uma característica que se pode observar em diversas Constituições de distintos países, e que no Brasil não foi diferente, é a previsão expressa de princípios penais consagrados. Nota-se, nessa característica, forte influência do pensamento de Cesare Beccaria, na obra “Dos Delitos e das Penas”, originalmente publicada em 1764. Para chegar ao momento atual do sistema penal constitucional brasileiro, pode-se ver que um longo caminho foi percorrido. Afirma-se que a maioria das Constituições tem como base a Magna Carta de João Sem Terra de 1215, mas o pensamento sobre os direitos fundamentais relacionados ao direito penal e o respeito à pessoa do criminoso parecem ter grandes reflexos da mencionada obra de Beccaria. Nesse sentido, a Constituição brasileira de 1824 preceituou as primeiras regras sobre direito penitenciário, já se podendo assim fazer relação com os pensamentos 27Salvo hipótese também preceituada no texto, de guerra declarada pelo Presidente da República. volume 15 37 i encontro de internacionalização do conpedi do Iluminismo e da obra de Beccaria, muito embora ainda se tenha permitido a aplicação das penas de morte, de banimento e penas de galés28. Previu-se, por outro lado, o princípio da legalidade, tão propalado por Beccaria e também o do devido processo legal. Segundo o marquês, “para não ser um ato de violência contra o cidadão, a pena deve ser essencialmente pública, pronta, necessária, a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias dadas, proporcionada ao delito e determinada pela lei”29. Na Constituição de 1891 foram abolidas as penas acima, havendo pois um grande avanço no que tange à segregação e seus mecanismo, mas não inovações mais importantes em relação aos princípios penais constitucionais. Na Constituição de 1934 foram preceituadas as garantias do processo criminal, pode-se ainda destacar o surgimento da fiança, o estabelecimento do princípio da presunção de inocência, entre outros, o que configurou importante avanço. Em um retrocesso histórico, a Constituição de 1937 efetivou a redução de garantias processuais, mas a de 1946 consagrou o Estado Liberal, retornando à previsão de importantes princípios constitucionais penais. Preceituou-se os princípios da ampla defesa, do contraditório e do duplo grau de jurisdição30. Estabeleceu-se ainda o júri popular e o princípio da individualização da pena. A Constituição de 1967 manteve o respeito às garantias anteriores, assim como a de 1969 também o fez, mas com viés mais severo da censura e cassação de direitos políticos, face ao momento histórico então vivido. 28 A respeito deste tipo de pena, explica Emanuel Luiz Souza e Silva: “As galés estavam entre as principais embarcações de guerra europeias até o desenvolvimento da navegação, a partir do século XVI. Elas possuíam velas que, apesar de serem muito rudimentares, auxiliavam em sua movimentação. Mas, para que ganhassem os mares, era necessário recorrer à força de cerca de 250 homens, recrutados de diversas formas. Eles podiam ser escravos condenados pela Justiça, que trocavam suas penas por trabalhos temporários nas galés, ou voluntários em busca de salário. Com o passar do tempo, esse recrutamento passou a priorizar os cativos e aqueles que cumpriam pena, pois não era necessário pagar pelos seus serviços”. SOUZA E SILVA, Emanuel Luiz. Condenados às galés. In: Revista de história. Disponível em: http:// www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/condenados-as-gales. Acesso em: 14 jun. 14. 29 Beccaria (1764, p. 201) 30 Com relação a tal princípio, de se destacar a atual posição do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que o mesmo não possui previsão constitucional como garantia, embora tenha previsão expressa no Pacto de São José da Costa Rica. 38 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi Finalmente, a Constituição de 1988 sistematizou e previu de forma mais completa os princípios penais, como adiante se analisará, e trouxe grande novidade ao prever os direitos fundamentais como cláusulas pétreas, em seu art. 5º, §4º. Previu, dentre os princípios já afirmados por Cesare Beccaria, os seguintes princípios: a. anterioridade, b. legalidade, c. responsabilidade pessoal, d. irretroatividade da lei penal mais maléfica, e. proporcionalidade das penas, f. publicidade e g. presunção de inocência Dessa forma, as penas seriam aplicadas tendo em conta tais garantias constitucionais, de modo que o autor de um crime não é despejado da condição de cidadão, a despeito do erro cometido. 6. princípios constitucionais do direito penal Inicialmente, faz-se necessário afirmar o caráter principiológico dos direitos humanos31. Podendo as normas jurídicas se apresentar como regras ou princípios32, e tendo estes um maior grau de abstração, caráter normogenético, menor densidade na aplicação e não se submetendo às regras de revogação, mas sim convivendo harmonicamente no sistema jurídico, ainda que em 31 Cf., a respeito, Norberto Bobbio, “A era dos Direitos”. O autor, além dessa característica, aponta o caráter normogenético dos princípios e, portanto, dos direitos fundamentais: são os princípios (direitos fundamentais) que dão origem às demais normas (BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. Disponível em: http://direitoufma2010.files. wordpress.com/2010/05/norberto-bobbio-a-era-dos-direitos.pdf. Acesso em: 12 jun. 2014). 32 Assim afirma grande parcela da doutrina e os adeptos da teoria clássica da argumentação jurídica, mas é de se ressaltar que essa opinião não é pacífica e que há entendimentos mais atuais sobre as possíveis formas de apresentação das normas jurídicas. Para os fins do presente artigo, que pretende abordar as relações entre Direito Penal e Constituição e não a teoria da argumentação jurídica adotar-se-á a classificação de normas em regras e princípios. volume 15 39 i encontro de internacionalização do conpedi colisão33, os direitos humanos possuem natureza principiológica. Dessa forma, e na medida em que previstos na Constituição e, portanto, dotados de fundamentalidade, os princípios penais nela previstos são cláusulas pétreas. Com essa premissa, tem-se que a teoria dos direitos humanos como objeto e limite do direito penal, explicitada por Alessandro Baratta34, tem como paradigma o fato de que os direitos humanos relativos ao direito penal, previstos na Constituição como princípios, possuem dupla função. Na primeira função identificável, os princípios penais constitucionais se apresentam com uma carga negativa, impondo portanto limites à intervenção penal. Em sua segunda função, os princípios penais constitucionais são dotados de um aspecto positivo, no sentido de uma possibilidade de definição do objeto da tutela penal por intermédio do direito penal, à luz das previsões constitucionais. Pode-se dividir tais princípios constitucionais em princípios intrassistemátivos da mínima intervenção penal e princípios extrassistemáticos. No primeiro deles, faz-se uma classificação em três grupos: 1. Princípios de limitação formal, 2. Princípio de limitação funcional 3. Princípios de limitação pessoal ou de limitação da responsabilidade penal. 33 Mediante a aplicação da técnica de ponderação de valores em caso de colisão de princípios ou de direitos fundamentais, muito utilizada pela jurisprudência pátria. Como exemplos de colisão, pode-se citar a colisão entre liberdade e segurança social, na decisão pelo deferimento ou não de liberdade provisória; de privacidade e segurança, na decisão sobre interceptação das comunicações telefônicas, todos com previsão constitucional. Para aplicação da técnica, há a previsão de três subprincípios, quais sejam: necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito. Sobre o tema, cf. Robert Alexy (Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros Editores, 2008); Lenio Streck (A dupla face do princípio da proporcionalidade: da proibição de excesso (Übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. Revista da Ajuris, Ano XXXII, nº 97, marco/2005) e Suzana de Toledo Barros (O Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais. 2ed. Brasília: Brasilia Jurídica, 2000). 34 BARATTA, Alessandro. Principios del derecho penal mínimo - para uma teoría de los derechos humanos como objeto y limite de la ley penal – trad. Francisco Bissoli Filho. Doutrina Penal n. 10-40, Buenos Aires, Argentina: Depalma, 1987., p. 634. Disponível em: http://danielafeli. dominiotemporario.com/doc/ALESSANDRO%20BARATTA%20Principios%20de%20 direito%20penal%20minimo.pdf. Acesso em: 13 jun. 14. 40 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi Dentre os princípios de limitação formal, destaca-se em primeiro lugar o princípio da reserva da lei ou legalidade em sentido estrito, sob a fórmula “nullum crimen, nula poena sine praevia lege”, previsto tanto na Magna Carta (art. 5º, inciso XXXIX), como no Código Penal (art. 1º). Tal princípio estabelece que não há crime sem lei anterior que o preveja, nem pena sem prévia cominação legal, relacionando-se de forma direta aos direitos fundamentais de primeira dimensão, mais especificamente ao direito de liberdade. De se ressaltar que os direitos humanos não são absolutos e que, portanto, são passíveis de restrição, desde que respeitado o seu núcleo essencial. Sendo assim, o princípio da legalidade no Direito Penal estabelece que somente poderá haver restrição do direito à liberdade, em face do Direito Penal, se houver previsão legal, seja em relação ao crime, seja em relação à pena cominada. O segundo princípio desse grupo é o princípio da taxatividade, profundamente relacionado ao princípio da legalidade. A previsão de crimes, pela lei, somente pode ser feita de forma taxativa, expressa, mediante o processo de subsunção direta, não se admitindo formas analógicas de criação de tipos penais, senão mediante previsão taxativa de tipo, pela lei respectiva. O terceiro princípio é o da irretroatividade da lei penal mais maléfica ou da extra-atividade da lei penal mais benéfica, previsto no art. 5º, inciso XL, da Constituição. Por esse princípio, a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu. O princípio do primado da lei penal substancial é o quarto desse grupo, e visa assegurar a extensão das garantias contidas no princípio da legalidade aos três níveis possíveis de aplicação da lei penal: de ações da polícia (inquérito e investigações), dentro do processo (ação penal e incidentes) e na execução da pena. O quinto e último princípio do grupo é o princípio da representação popular, que preceitua o respeito dos requisitos mínimos do Estado do Direito no que tange à representatividade da assembleia legislativa e ao seu funcionamento regular para criação de tipos penais. Dentre os princípios de limitação funcional, destaca-se o princípio da resposta não contingente, pelo qual “a lei penal é um ato solene de resposta aos problemas sociais fundamentais que se apresentam como gerais e duradouros em uma sociedade”; o princípio da proporcionalidade abstrata, que especifica que volume 15 41 i encontro de internacionalização do conpedi somente graves violações ao direito devem ser tuteladas pelo Direito Penal e ainda que as penas devem guardar proporcionalidade à gravidade da infração praticada. Em segundo lugar, o princípio da idoneidade preceitua a necessidade de estudo dos efeitos socialmente úteis que cabe esperar da pena e da tipificação da conduta. O princípio da subsidiariedade, em complemento afirma que o Direito Penal deve atuar como ultima ratio, somente se tipificando condutas que, por outros mecanismos, não poderiam ser coibidas35. O princípio da proporcionalidade concreta ou de adequação do custo social assevera os elevados custos sociais da pena, de forma que há a necessidade de uma proporcionalidade concreta na cominação. O princípio da implementação administrativa da lei, ressaltando a importância da estrita observância do sistema penal como um todo, estabelece que a aplicação correta da lei bastaria por si mesmo para reduzir drasticamente ao mínimo a área de intervenção da lei. Fala-se ainda do princípio do respeito pelas autonomias culturais, no que se pode citar a importante discussão acerca da tipificação ou não de condutas de grupos culturais dentro da mesma coletividade de um país (exemplo de determinadas práticas indígenas, dentre outros) e da relação entre conflitos culturais e criminalidade. Por fim, nesse grupo, tem-se o princípio do primado da vitima, que se relaciona às teorias da justiça restaurativa, dentre outras, destacando o importante papel restitutivo e restaurativo que deve ser relacionado ao sujeito passivo da infração penal36. 35 Nesse sentido, Michel Foucault, na obra “Vigiar e Punir”, estabelece as conhecidas regras a serem observadas para implementação desse caráter do direito penal: 1. Regra da quantidade mínima; 2. Regra da idealidade suficiente, 3. Regra dos efeitos colaterais, 4. Regra da certeza perfeita, 5. Regra da verdade comum e 6. Regra da especificação ideal. (FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Rio de Janeiro: Vozes, 2008). 36 Enquanto o sistema de justiça criminal vigente – constituído pelas leis penais, pelas agências e pelas prisões – é quase que inteiramente voltado ao ofensor, que se preocupa precipuamente em apurar sua culpa e puni-lo, a justiça restaurativa é sensível às necessidades e interesses de todos os envolvidos, outorgando a autores e vítimas o protagonismo na solução dos conflitos, atendendo à sua carência de informações (acerca do processo, das razões e circunstâncias 42 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi No terceiro grupo, tem-se os princípios de limitação pessoal ou limitativos da responsabilidade penal; dentre eles o princípio da imputação pessoal ou personalidade, em relação ao qual a pena não passará da pessoa do condenado, previsto expressamente em nossa Constituição; o princípio da responsabilidade pelo fato, que se relaciona às teorias do direito penal do autor e direito penal do fato, dando preferência a este último; e o princípio da exigibilidade social do comportamento conforme a lei; que guarda relação com o conceito de culpabilidade. Ressaltamos ainda a previsão, em nossa Constituição, do princípio da individualização da pena - art. 5º, inciso XLVI. Dentre os princípios extrassistemáticos da mínima intervenção penal, destacam-se os princípios da descriminalização de condutas que não tenham ofensividade ou lesividade, princípio da não intervenção inútil; princípio da privatização dos conflitos; princípio da politização dos conflitos; princípio da preservação das garantias formais. Outra classificação destacada por Alessandro Baratta diz respeito aos princípios metodológicos da construção alternativa dos conflitos, com maior relação entre o Direito Penal e a sociologia, visando propiciar uma visão inovadora e mais diferenciada dos conflitos e problemas sociais; o princípio da subtração metodológica dos conceitos de criminalidade e da pena, que “propõe o uso, em uma função heurística, de um experimento metodológico: a subtração hipotética de determinados conceitos de um arsenal preestabelecido, ou a suspensão (epoché) de sua validez”37. No mesmo grupo, menciona-se o princípio de não especificação dos conflitos e dos problemas, o princípio geral de prevenção e o princípio da articulação autônoma dos conflitos e das necessidades reais38. Em face dessa sistemática de previsão constitucional dos princípios penais, é possível afirmar que a Constituição Federal de 1988 traz importantes passos de uma constituição garantista. do delito etc.); permitindo uma cooperação atuante, espaço de escuta, em busca de uma compensação material e simbólica. 37 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e crítica del diritto penal. Milino, Bologna, 1982. 38 Cf. BARATTA, Alessandro. Sur la criminologie critique et as fonctions dans la politique criminalle. Milino, Bologna, 1983 e BARATTA, Alessandro. La teoria dela prevenzioneintegrazione. Uma “nuova” fondazione dela pena all “interno dela teoria sistêmica. In: Dei Delitti e dele Pene. Milino, Bologna, 1984. volume 15 43 i encontro de internacionalização do conpedi 7. constituição, direito penal e gar antismo O garantismo penal é uma teoria jusfilosófica que tem como um de seus principais defensores Luigi Ferrajoli39. Embora melhor desenvolvida no fim do Século XX, tal teoria tem suas raízes no iluminismo, Século XVIII e pretende se apresentar como um modelo normativo de direito, ou seja, estabelecendo um sistema de vínculos impostos ao poder estatal em garantia dos direitos dos cidadãos, relacionando-se, portanto, aos direitos fundamentais de primeira geração; uma teoria crítica do direito, que busca questionar o papel do direito penal no desenvolvimento e concretização da validade e efetividade do direito e uma teoria de filosofia política, para a qual é necessário ao direito penal, especialmente ao tipificar condutas, uma justificação ética-política ao estado do direito, não bastando a justificação jurídica40. Nessa seara, é possível afirmar que o legislador constituinte brasileiro, ao optar por erigir ao status constitucional de direitos humanos e, portanto, de princípios penais constitucionais as principais diretrizes do Direito Penal, destacando-se, nesse sentido, o princípio da legalidade, da irretroatividade da lei penal mais maléfica, da individualização da pena, da proibição de penas especificamente previstas no texto maior, buscou criar um sistema de limitações ao legislador infraconstitucional, que não pode relativizar tais garantias penais. Neste contexto, a função do direito penal seria a de impor freio à violência institucional, com a utilidade de um “funcionalismo redutor”41. Esse sistema de garantias penais, dessa maneira, funciona não somente com uma função positiva de criação e efetivação de direitos do cidadão contra o jus puniendi estatal, mas como uma técnica de limitação ao próprio legislador e ao aplicador da lei penal, que não poderá descumprir ou não observar esses standards mínimos previstos pelo constituinte. Nisso se verifica o avanço da Constituição 39 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica e outros. SP: RT, 2006. 40 Deve-se anotar aqui a observação feita pela corrente da criminologia crítica no sentido de que “referir-se a um direito penal garantista em um Estado de direito é uma redundância grosseira, porque nele não pode haver outro direito penal senão o de garantias” (ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. 2a. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p 173). 41 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; OLIVEIRA, Edmundo. Criminologia e política criminal. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2010, p. 473). 44 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi brasileira mencionado por Luigi Ferrajoli, ao classificá-la como uma Constituição de Terceira Geração. Desta feita, destaca-se a relação entre Direito Penal, Constituição e Direitos Fundamentais, desempenhando a Constituição brasileira um papel nitidamente garantidor de direitos, muito embora não se limite a esse papel de garantia, como já se destacou em linhas anteriores. Com tais axiomas, o garantismo contesta o discurso maniqueísta de incompatibilidade entre defesa social e direitos individuais. A supremacia do interesse público não seria discordante dos interesses individuais e tampouco legitimaria qualquer abuso de poder contra os ofensores ou a vulgarização da resposta estatal42. É de se analisar, nesse ponto, a relação entre a Carta Magna garantista e os bens jurídicos penais. 8. constituição e bens jurídicos penais Ao se falar em bens jurídicos penais, referimo-nos aqueles bens que, à luz dos princípios da subsidiariedade e da fragmentariedade, foram eleitos pelo legislador para serem tutelados pelo arcabouço penal, não sendo suficiente, portanto, à tutela de outros ramos do Direito. O bem jurídico penal funcionada como limite ao Direito Penal, na medida em que, se não há violação a um bem jurídico penal, não pode haver a tipificação de condutas e/ou a imposição de penas43. A Constituição como norma suprema deve refletir esses bens jurídicos penais, como valores mais caros para a sociedade à qual se relaciona. Para tanto, o legislador constituinte deve partir de estudos sociológicos, auferindo quais os valores mais importantes para determinada sociedade, elegendo dentre esses valores quais justificam a imposição da ultima ratio que é o Direito Penal. Enquanto o 42PALADINO, Carolina de Freitas. Minimalismo, abolicionismo ou garantismo: qual a solução para os problemas no âmbito penal? In: Cadernos da Escola de Direito e Relações Internacionais, Curitiba, 13: p. 415, vol.1. 2010. Disponível em: http://ufrr.br/nupepa/index. php?option=com_phocadownload&view=category&download=84:abolicionismo&id=14:di sciplina-direito-criminologia-e-cidadania. Acesso em: 16 jun. 14. 43 Nessa esteira, cabe colacionar o posicionamento do Supremo Tribunal Federal em relação à posse de arma desmuniciada, referindo-se ainda aos crimes de perigo concreto e de perigo abstrato. A norma penal deve cuidar de condutas que tenham ofensividade e lesividade ao bem jurídico penal tutelado. volume 15 45 i encontro de internacionalização do conpedi legislador constituinte deve identificar quais são esses bens na própria sociedade, o legislador infraconstituinte deve retirar tais valores da própria Constituição – e aqui se encontra uma das mais importantes relações entre Direito Penal e Constituição. O direito penal deve então ser considerado como o último recurso (ultima ratio) de intervenção estatal, de forma que este ramo do direito não seja utilizado quando houver a possibilidade de utilizar outros instrumentos jurídicos nãopenais para restaurar a lei violada. Afinal, a pena é um mal irreversível e uma solução imperfeita, que deve ser usada somente após a falha de outros modos de proteção. Assim, não basta provar a idoneidade da resposta penal. Mister que também se demonstre que ela não é substituível por outros modos de intervenção de menor custo social (necessidade e a utilidade da ingerência penal44). Neste sentido, oportuna citar a crítica de Winfried Hassemer45 de que, a despeito da reivindicação acadêmica de emprego do direito penal como ultima ratio, o que se percebe atualmente é um movimento oposto a este, sendo aplicado o direito penal como sola ou prima ratio para a solução dos problemas sociais. A tendência é que qualquer conduta lesiva seja tratada por este ramo (crimes de trânsito, tributários, de porte de arma, contra as relações de consumo, violência doméstica etc.). É o que chamam de “modernizar” (modernisieren) o Direito Penal, de ampliálo para um instrumento funcional de política interna e de pedagogia popular, a fim de sensibilizar cidadãos46. Este fenômeno é chamado de “administrativização do direito penal”, caracterizado pelo uso indiscriminado da tutela penal com o fim de reforçar o cumprimento de obrigações para com o Estado, expandindo-se o poder punitivo aleatoriamente. Dessa forma, o direito penal não se distingue dos outros instrumentos de solução dos conflitos pela sua utilidade ou pela sua 44 BARATTA, Alessandro. Principios del derecho penal mínimo - para uma teoría de los derechos humanos como objeto y limite de la ley penal – trad. Francisco Bissoli Filho. Doutrina Penal, n. 10-40, Buenos Aires, Argentina: Depalma, 1987, p. 632. 45 HASSEMER, Winfried. Características e crises do moderno direito penal. In: Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal – n. 18, Fev-Mar/2003, pp. 149. Disponível em: http:// pt.scribd.com/doc/55381562/Hassemer-Caracteristicas-e-Crise-do-moderno-direito-penalPablo-Rodrigo-Alflen#download. Acesso em: 16 jun. 14. 46 HASSEMER, Winfried. Características e crises do moderno direito penal. In: Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal – n. 18, Fev-Mar/2003, pp. 144. Disponível em: http:// pt.scribd.com/doc/55381562/Hassemer-Caracteristicas-e-Crise-do-moderno-direito-penalPablo-Rodrigo-Alflen#download. Acesso em: 16 jun. 14. 46 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi gravidade, apesar dos seus instrumentos rigorosos, tornando-se uma soft law, um meio de manobra (Steuerung) social47. Esta constatação reforça a tese de Paulo de Souza Queiroz48 em defesa do garantismo e do minimalismo, para quem “um direito penal mínimo não significa enfraquecer o sistema penal, mas fortalecê-lo”. Ao analisar a relação entre os valores sociais e a Constituição, pode-se identificar concepções formais do bem jurídico, pela qual o legislador, de forma nem sempre pautada na realidade social, mas em uma análise meramente formal, elege ou escolhe os bens que devem ser tutelados pelo Direito Penal. Por outro lado, nas concepções mais aceitas, as materiais, – o legislador escolhe e cria bens penais por intermédio da valoração social. É da sociedade, portanto, que devem ser retirados os bens jurídicos a serem protegidos potencialmente pelo Direito Penal, como aqueles mais importantes ao convívio social. Destaca-se, no sentido das concepções materiais do bem jurídico, a noção de Luigi Ferrajoli em relação à função limitadora do bem jurídico. Para o autor, a lesão ao bem jurídico potencialmente tutelado é condição necessária, mas nunca suficiente para a proibição e punição. Pode-se apontar, ainda no sentido dessas concepções materiais, duas revoluções, a primeira do legalismo formal, que distancia o Estado de Direito do absolutismo, e a segunda do legalismo substancial, relacionada à concepção material do bem jurídico e que prega a necessidade das escolhas legislativas refletirem valores sociais mais importantes. Após a escolha desses bens, segundo essa concepção, a Constituição é verdadeiro limite ao Direito Penal, havendo duas principais teorias que justificam o tema. 9.teorias da constituição como limites ao direito penal Partindo dos pressupostos da teoria dos garantismo penal e das relações entre Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Penal, duas principais teorias explicitam como a Constituição desempenha o papel limitador ao direito penal. 47 HASSEMER, Winfried. Características e crises do moderno direito penal. In: Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal – n. 18, Fev-Mar/2003, pp. 149. Disponível em: http:// pt.scribd.com/doc/55381562/Hassemer-Caracteristicas-e-Crise-do-moderno-direito-penalPablo-Rodrigo-Alflen#download. Acesso em: 16 jun. 14. 48 QUEIROZ, Paulo de Souza. Por que defendo um direito penal mínimo. 5 dez. 2007. Disponível em: http://pauloqueiroz.net/por-que-defendo-um-direito-penal-minimo. Acesso em: 16 jun. 14. volume 15 47 i encontro de internacionalização do conpedi Segundo a teoria da Constituição como limite negativo ao Direito Penal, toda a atividade do legislador infraconstitucional, desde que não desrespeite frontalmente o texto constitucional, será admitida. Da mesma maneira, poderia o legislador infraconstitucional tipificar, segundo a teoria dos limites negativos, condutas atentatórias a valores não reconhecidos pelo legislador constituinte, desde que não fira valores constitucionais49. Por outro lado, a teoria da Constituição como limite positivo ao Direito Penal preceitua que o legislador ordinário deve se ater a utilizar a tutela penal apenas para a proteção de bens jurídicos reconhecidos pela Constituição como valores precípuos de determinada sociedade50. Para essa teoria, não basta que a lei penal não fira ou contrarie a Constituição. Além disso, ela deve se ater a tutelar condutas que firam valores de relevância constitucional, ou seja, extrair tais valores da Constituição. Decorrem dessa segunda teoria – do limite positivo – duas subdivisões. Para a primeira delas, a do Direito Penal como potencial espelho do texto constitucional, independente da importância que um determinado valor possui dentro da sistemática constitucional, poderá haver a criminalização da conduta ofensiva a esse valor. Como exemplo, pode-se citar que, como a família é um valor descrito no art. 226 da Constituição, é possível, ainda nos dias atuais, tipificar-se o crime de adultério51, independente da importância desse valor para a sociedade em dado momento histórico. Na segunda subdivisão, tem-se o Direito Penal como instrumento de tutela dos direitos fundamentais. Para essa teoria, para cada preceito penal, para cada tipificação ou cada crime, deve haver um valor com status de direito fundamental no texto constitucional. Não basta estar previsto na Constituição Federal, fazendo49 Cf. BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao Direito Penal brasileiro. 11 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. 50 Giordio Marinucci e Emilio Dolcini ressaltam que não existem obrigações constitucionais implícitas de incriminação deduzíveis do caráter dos direitos fundamentais dos bens em jogo (MARINUCCI, Giordio; DOLCINI, Emilio. Constituição e escolha dos bens jurídicos. Revista Portuguesa de Ciência Criminal. Coimbra: Aequitas-editorial noticias, ano 4, fasc 2, abr-jun 1994, p. 185.) 51 A propósito, ressalte-se que o adultério não se encontra mais tipificado como crime, embora o valor família permaneça intacto no texto constitucional, não tendo havido qualquer alteração formal em relação a esse valor. 48 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi se, assim, necessário que o bem jurídico tenha status de direito fundamental, apesar de nem todo direito fundamental poder ser considerado um bem jurídico penal52, mas somente aqueles que, segundo análise sociológica, forem mais importantes e caros à sociedade. Nessa linha de pensamento, justifica-se, por exemplo, a descriminalização do crime de adultério, considerando a análise sociológica refletida pela opção do legislador infraconstitucional. Essa teoria se relaciona com a posição do caráter histórico dos direitos fundamentais53. Note-se, por oportuno, que a descriminalização nem sempre significa a aceitação da conduta descriminalizada, nem o afastamento do caráter socialmente negativo da situação ou mesmo uma ausência de qualquer controle sobre ela. Descriminalizar significa afastar uma das formas pelas quais se exerce o controle social de condutas – o direito penal – substituindo-a por outras formas de controle social, formal ou informal, como os juízes cíveis, os programas de justiça restaurativa dentro dos tribunais ou fora deles, o sistema de saúde ou de assistência social, a família, a escola, as igrejas, os clubes, as associações etc. Há, portanto, uma falsa crença de que a intervenção do sistema penal é a única forma de controle ou enfrentamento de situações negativas ou condutas delituosas54. Verifica-se, destarte, que garantismo, minimalismo e descriminalização são elementos correlatos e necessários para uma política criminal eficaz. 10. conclusões As relações entre Direito Penal e Constituição são fortes, marcadas, pela adoção do Estado de Direito, pela presença dos Direitos Fundamentais que denotam 52 Domenico Pulitanò menciona o insolúvel o conflito verificado entre direitos fundamentais como instrumentos de garantia contra o estado e direitos fundamentais como fundamento e consequentemente propulsor do poder punitivo desse mesmo estado. A busca de um Direito Penal mínimo não pode conviver com CF que traz em seu bojo necessidade automáticas e não concretas de criminalização. Assim, a CF não pode ser tomada como fundamento, mas sim como limite positivo do direito penal (PULITANÒ, Domenico. Diritto Penale - Tutela Penale della Persona. Turim: Ed. G. Giappichelli, 2011). 53Há três principais teorias sobre o tema: jusnaturalismo, juspositivismo e historicismo. Filiamo-nos a esta terceira, que também é compartilhada pelo pensamento de Norberto Bobbio (BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. Disponível em: http://direitoufma2010.files.wordpress.com/2010/05/norberto-bobbio-a-era-dos-direitos. pdf. Acesso em: 12 jun. 2014). 54 KARAM, Maria Lúcia. Pela abolição do sistema penal. In: PASSETTI, Edson (org). Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 104. volume 15 49 i encontro de internacionalização do conpedi valores constitucionais precípuos ao Direito Penal. Analisando a Constituição brasileira, pode-se verificar que se adotou o modelo de uma Constituição de Terceira Geração, segundo o qual o Estado não atua apenas com papel negativo, de abstenção ou de non facere, mas desempenha importante função de definição dos bens jurídicos penais mais importantes, bens estes que são variáveis no tempo e no espaço, por se relacionarem ao caráter histórico dos direitos fundamentais. Conclui-se também que a Constituição pátria demonstra relação com a segunda velocidade do Direito Penal, ocupando-se de dar primazia ao conceito de dignidade da pessoa humana, que é erigido como fundamento da República Federativa do Brasil, prevendo não somente penas privativas de liberdade, mas penas restritivas de direitos e outras, conforme escalonamento dos crimes em máximo, médio e menor potencial ofensivo. Segundo uma análise histórica da adoção dos princípios constitucionais penais, é possível verificar a atual opção pelo garantismo penal, cuidando o legislador constituinte de criar mecanismo de limites ao jus puniendi estatal, efetivando esses limites por intermédio de garantias ao cidadão, sem descuidar, ao mesmo tempo, da tutela de direitos sociais (segunda geração) e transindividuais (terceira geração). Ao limitar o Direito Penal, apesar da divergência existente na doutrina, entendemos que a Constituição optou pela teoria dos limites positivos ao Direito Penal como instrumento de tutela dos direitos fundamentais, de forma que o legislador infraconstitucional somente deve tipificar condutas que reflitam valores constitucionais que se relacionem com os direitos fundamentais, até porque, se interpretada de forma diversa ou extensivamente, justificar-se-ia a incidência do direito penal em toda e qualquer forma de conduta humana, afastando-se o sistema constitucional de um Direito Penal mínimo e passando a justificar, em contrapartida, um Direito Penal máximo. Qualquer que seja a teoria adotada, de toda forma, o principal objetivo de delinear as relações entre Constituição e Direito Penal é de delinear os limites ao poder punitivo estatal, garantia contra arbítrios e retrocessos. É preciso, por fim, evitar-se a adoção de um Direito Penal do inimigo, evitando o hábito do direito penal de emergência, fundado na “luta” contra formas de criminalidade, sob pena de se instituir um Direito Penal simbólico. 50 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi Portanto, os direitos fundamentais devem ser considerados como instrumentos de garantia como estado, como limitador do poder punitivo estatal, de forma que a Constituição é um limite positivo ao Direito Penal, pautando-se este, em consequência, na necessidade efetiva, e não na necessidade meramente formal, da tutela penal. 11. referências ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros Editores, 2008. BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e crítica del diritto penal. Milino, Bologna, 1982. ______. La teoria dela prevenzione-integrazione. Uma “nuova” fondazione dela pena all “interno dela teoria sistêmica. In: Dei Delitti e dele Pene. Milino, Bologna, 1984. ______. 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Assim demonstrase o papel da mídia na ampliação dessa legislação penal, e como as vítimas estão sendo expostas nos meios de comunicação como forma de legitimar a atuação do sistema penal. Após a análise dos projetos de lei em tramitação para criminalizar a homofobia, conclui-se que a proposta é a da criminalização meramente simbólica, que não gera efeitos protetivos concretos a vítimas, podendo inclusive revitimizá-las. Palavras-chave Criminalização da Homofobia; Direito Penal Simbólico; Vitimização. 1 Professora de Direito Penal e Criminologia da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e da Faculdade de Direito do Recife (CCJ/UFPE), Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Direito da Universidade Católica de Pernambuco (PPGD/ UNICAP). Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). 2 Professor da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), Professor da Faculdade de Direito do Recife (CCJ/UFPE), Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco (PPGD/UFPE), Professor do Programa de PósGraduação em Direito da Direito da Universidade Católica de Pernambuco (PPGD/ UNICAP), Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Líder do Grupo de Pesquisa “Jurisdição Constitucional, Democracia e Constitucionalização de Direitos”. (UNICAP/CNPq) volume 15 55 i encontro de internacionalização do conpedi Abstract The purpose of this article is to demonstrate, through the analysis of proposed bills to criminalize homophobia in Brazil, that the creation and implementation of social policy through criminal sanctions is flawed. In this way, based on the critical criminology literature, it is highlighted that the LGBTT movement cannot seek emancipation through the punitive power. The expansion of the Brazilian criminal law, as a means of responding to the demands of several social movements, which occurred particularly after the 1988 Constitution, is also noted. The article then discusses the Media’s role in the expansion of criminal law, and explores how victims are being exposed to the media in order to legitimize the actions of the criminal justice system. After the analysis of the proposed bills to criminalize homophobia in Brazil, it is argued that, in general, such proposals are merely symbolic and do not generate concrete protective effects to the victims, and quite contrary to that, may even revitctimize them. Key words The Criminalization of Homophobia; Symbolic Criminal Law; Victimization. 1.toda forma de amor vale a pena: notas introdutórias A luta pela liberdade de amar é a questão que será desenvolvida no presente artigo. Porém, o que vamos expor agora é o reverso do amor, pois será feita uma análise do sistema punitivo brasileiro para discutir a necessidade da criminalização da homofobia. A partir da década de 90, especialmente, até o presente, a expansão do direito penal brasileiro torna a legislação tão ampla que somos todos incapazes de informar quantos tipos penais existem hoje, ou até quais são as leis que versam, de alguma forma, sobre a matéria penal ou processual penal. A criação de leis esparsas que passaram a regulamentar tais matérias é tão extensa que o Código Penal e o Processual Penal representam muito pouco no arcabouço legislativo punitivo. Embora esse fenômeno não seja particularmente brasileiro, pois se pode estudar o mesmo fenômeno em praticamente todo o 56 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi mundo ocidental, é a partir de legislação pátria e darealidade marginal brasileira que será feita a abordagem. A ampliação da legislação penal fica muito nítida no cenário nacional após a Constituição de 1988, pois foram aprovadas inúmeras leis, algumas tipificando novas condutas e outras enrijecendo o direito penal e processual penal. Pode-se citar, por exemplo, a lei de colarinho branco (7.492/89), a lei de preconceito racial (7.716/89), a lei de prisão temporária (7.960/89), a lei dos crimes hediondos (8.072/90), o código de defesa do consumidor (8.078/90), a lei dos crimes contra ordem tributária (8.072/90), a lei dos crimes contra a ordem econômica (8.176/90), lei do crime organizado (9.034/95), lei do transplante de órgãos (9.434/97), lei de tortura (9.455/97), o código de trânsito brasileiro (9.503/97), a lei dos crimes ambientais (9.605/98), a lei de lavagem de dinheiro (9.613/98), entre muitas outras. Na virada do milênio surgiram mais leis para “combater” a criminalidade e “proteger” o cidadão, em especial, o estatuto do torcedor (10.617/2003), o estatuto do idoso (10.714/2003), o estatuto do desarmamento (10.826/2003), a lei de violência doméstica ou familiar contra a mulher - lei Maria da Penha (11.340/2006) e a nova lei antidrogas (11.343/2006) e mais recentemente a lei que define a organização criminosa (12.850/2013). São tantas leis que versam direta ou indiretamente sobre a matéria penal que ocupariam facilmente várias páginas do presente trabalho. 2. a criminalização do cotidiano O que chama atenção na expansão desenfreada do direito penal é justamente ser este o direito da ultima ratio, de caráter fragmentário, por declaradamente restringir direitos, criar estigmas, tanto para vítima como para os agressores. No direito penal não temos meio culpado ou meio inocente, não existe a compensação de culpas. Por isso, é muito comum que na fase do processo penal sejam travadas verdadeiras guerras que geram necessariamente mais dor e reproduzem estigmas às partes envolvidas. Esta situação se estende de um “simples” crime contra a honra, como a injúria, até um crime contra a vida, como homicídio. Nos crimes contra a honra, depois de passada a fase preliminar, todo o processo gira em realmente demonstrar que a vítima provocou ou merecia aquela agressão volume 15 57 i encontro de internacionalização do conpedi verbal, o mesmo acontece no crime de homicídio, muitas vezes, só resta à defesa demonstrar que era justo aquela morte, gerando mais reprodução de dor para os seus familiares. Dessa forma resta muito pouco, ou absolutamente nada, de restaurativo ou educativo no processo penal, já que muitas vezes todos saem com o sentimento que foram imensamente injustiçados. O padrão de grande parte da doutrina penal é trabalhar com os personagens “Tício” e “Mévio”, um é o sujeito ativo e o outro é o sujeito passivo. Geralmente eles não se conhecem, não pertencem à mesma classe social e os exemplos versam sobre crimes patrimoniais, como furto, roubo, latrocínio, ou, sobre o homicídio, ou ainda, sobre um crime sexual, como o estupro. Quando a doutrina trabalha com mais “ousadia” discorre sobre o tráfico ilícito de entorpecente em que temos a “representação do mal” na figura do traficante como sujeito ativo e toda a sociedade como sujeito passivo, nos denominados crimes vagos.Na maioria desses exemplos, declaradamente, é legitimada a criminalização da pobreza. Então, reafirma-se todo o maniqueísmo declarado na legislação penal. Tanto é assim que se a vítima não demonstrar ser um “poço de bondade” ela passa a não legitimar a atuação do direito penal. Como demonstra Lola Anyar de Castro, por muitas vezes o processo penal revitimiza as vítimas e transforma os delinquentes em vítimas pela demora processual e os abusos exercidos nas prisões, segundo a autora: A vitimação, assim como a criminalidade, também é uma possibilidade majoritária mas desigualmente distribuída de acordo com estereótipos de vítimas que operam no senso comum e jurídico Pois, com efeito, “a intervenção estereotipada do sistema penal age tanto sobre a ‘vítima’, como sobre o ‘delinqüente’. Todos são tratados da mesma maneira (CASTRO, 2007, p. 189). Por isso, toda uma visão minimalista defendida de forma uníssona pela doutrinapenal, embora seja importante destacar que existem várias formas de minimalismos, poisos estudos minimalistas podem ser utilizados para comprovar a deslegitimação do sistema penal como para legitimar sua atuação (cf. ANDRADE, 2006). 58 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi Diante do aparato legislativo mencionado anteriormente é muito fácil demonstrar a ineficácia de todo sistema punitivo, e não poderia ser diferente, como já afirmado por vários autores3, especialmente da criminologia crítica, considerando-se todos os tipos existentes e da imensa maioria das pessoas não ter sofrido nenhum processo de criminalização. Significa afirmar que cada pessoa existente que nunca foi criminalizada é a prova concreta que vivemos ausentes do direito penal e que se resolve grande parte dos conflitos, que embora estejam tipificados como crimes, por outras vias Dessa forma, diante de tantas condutas que fazem parte do dia a dia das pessoas estarem tipificadas como crime e praticamente sem aplicação, chega-se facilmente a conclusão que a regra é a cifra oculta da criminalidade (Cf. MELLO, 2013). 3. o papel da mídia na criminalização primária Estando a cifra oculta facilmente demonstrada e sendo cada um de nós a prova incontestável dessa realidade, restam algumas indagações:por que o aumento crescente da legislação penal? E qual o motivo da legislação penal, que reforça escancaradamente a desigualdade, está atuando, pelo menos, na forma da criminalização primária, tão fortemente na defesa da igualdade? É necessário situar o papel da mídia nessa ampliação da legislação penal, pois é comum que, quando aconteça um crime de grande repercussão, em seguida venha um ou vários projetos de lei e, por vezes, ocorrem alterações legislativas. Um grande exemplo desse fenômeno, sem dúvida, é a lei dos crimes hediondos, que tanto no seu surgimento como nas suas modificações foram motivadas por casos que tomaram grande repercussão nos meios de comunicação, como sequestro de empresário, morte de uma atriz, os problemas da falsificação dos remédios e mais recentemente a prostituição infantil, que vem como uma resposta simbólica às exigências dos eventos internacionais como a Copa do Mundo eas Olimpíadas. O primeiro motivou a criação da lei e os últimos motivaram as suas modificações4. 3 Essa abordagem é feita por vários autores, entre eles ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. Trad. Vânia Romano Pedrosa e Almir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991. 4 Vale destacar que, em todas essas situações, as vítimas foram pessoas de classe média ou médiaalta. Mesmo no caso da falsificação de remédio, a grande parte das vítimas eram usuárias de volume 15 59 i encontro de internacionalização do conpedi A mídia dá tanto destaque à criminalidade violenta que cria uma representação infiel da realidade que deságua em uma política social extremamente punitiva (Cf. HÜGEL, 2000, p. 40), de modo que não se discute com a profundidade necessária os problemas estruturais mais graves que afetam a sociedade, como a miséria, a péssima distribuição de renda, a falta de escolas e hospitais, e se produz a sensação que as leis atuais não combatem a criminalidade, precisando, consequentemente, de novas leis para a resolução dos problemas sociais. Os meios de comunicação podem livremente filmar ou fotografar um suspeito, e assim as tevês e os jornais ditam a sentença antes mesmo da existência do processo. Conforme Eduardo Galeano: “Os meios de comunicação condenam previamente, e sem apelação, os pobres perigosos, como previamente condenam os países perigosos” (1999, p. 298). Dos meios de comunicação, é a televisão5 que apresenta a maior capacidade de confundir a ficção com a realidade. A narrativa sensacionalista da história da vítima apresentada pela televisão desperta os medos e a ira dos telespectadores6, consequentemente surge um desejo de vingança não só da vítima mais de toda sociedade, que também se sente diretamente vitimizada com um ato de tamanha violência. O sensacionalismo é utilizado através de instrumentos dramáticos e estratégias sofisticadas para a promoção da insegurança e propagação das medidas de caráter punitivo, de preferência a pena privativa de liberdade, como a principal forma de combate à criminalidade (Cf. MATHIESEN, 2003). No Brasil não podemos deixar de mencionar as novelas e a força que estas apresentam, inclusive, no campo legislativo. Outros exemplos que podem ser citados como forma de enrijecimento da legislação penal e que tiveram grande repercussão na mídia são o Código de pílulas anticoncepcionais, e como se sabe esse tipo de medicamento muito é utilizado pela classe média. No caso mais recente, que foi a Exploração sexual infantil, pode ser apontado como o legado mais objetivo da Copa do Mundo. 5 Alguns programas televisivos se propõem, inclusive, a “resolver o que a lei e a justiça não resolvem”, como fazia o programa Linha Direita, da Rede Globo de televisão. Sobre o tema conferir (Cf. MENDONÇA, 2002). 6 Em março de 2008, o caso do assassinato da menina Isabella Nardoni causou uma repercussão enorme nos meios de comunicação; por conta desse crime foram aprovadas várias alterações das leis penais e processuais penais. Uma interessante reflexão desse caso é feita por Luciano Oliveira. O caso Nardoni e a justiça do populacho. Disponível em: www.jc.uol.com. br/2008/05//19/not_169/25.php. Acesso em 20/05/2008. 60 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi trânsito, o crime de assédio sexual7, o regime disciplinar diferenciado, entre tantos outros. Mas até então nenhuma dessas modificações receberam, após a vigência da lei, uma grande vinculação com o nome de pessoas, que tanto no pólo ativo ou passivo, motivaram essa situação. Tal é a situação da lei Maria da Penha. 4.leis penais com nome de vítimas: uma nova forma de legitimação Em 1983, Maria da Penha Maia sofreu duas tentativas de homicídio sendo imputada a autoria ao seu esposo. A primeira agressão foi um tiro que a deixou paraplégica; já na segunda recebeu uma descarga elétrica durante um banho. Em 2002, após 19 anos da prática do crime, o seu marido passou 2 (dois) anos preso. O caso tomou tanta repercussão que chegou ao conhecimento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão da Organização dos Estados Americanos (OEA), sediada em Washington, Estados Unidos, que acatou, pela primeira vez, a denúncia de um crime de violência doméstica 8. Dessa forma, Maria da Penha, que inclusive escreveu um livro sobre a sua trajetória para conseguir a punição do marido (Cf. FERNANDES, 1994), tornou-se símbolo da luta contra violência doméstica em todo o Brasil9. Com a edição da lei 11.340/06, a mídia divulgou amplamente o seu sofrimento e como a sua história de vida exerceu influência direta na criação e aprovação do referido diploma legal10. Maria da Penha, desde a edição da lei, viaja por todo 7 Sobre o crime de assédio sexual, Nilo Batista destaca o programa Globo Repórter, da emissora Rede Globo televisão, que foi ao ar no dia 30/03/2001. O tema do referido programa era o limite entre a paquera e o assédio sexual, e o apresentador Sérgio Chapelin afirmava que: “o assédio causa constrangimento e muita dor”. O programa narra alguns casos reais de pessoas que foram “vítimas” do assédio sexual e, por fim, fala da impunidade pela ausência de um tipo penal. Depois do apelo do programa, em 15 de maio do mesmo ano a lei foi publicada e entrou imediatamente em vigor. In: Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade.Rio Janeiro,n. 7, p. 271-288. 2. sem, 2002. 8 As informações foram extraídas do site: http://www.contee.org.br/secretarias/etnia/mate ria_23.htm. Acesso em 08/08/2007. 9 Maria da Penha tornou-se tema de música gravada por Alcione no disco “De tudo eu gosto”, no ano de 2007, assim como teve sua história narrada na literatura de Cordel (ALVES, 2007). 10 É, mais uma vez, importante destacar que os casos de violência doméstica que sensibilizam a mídia e, conseqüentemente, “os lares” brasileiros são sempre de mulheres de classe média, “independentes” e “inteligentes” que foram mortas, ou sofreram tentativa, por seus companheiros, pessoas extremamente possessivas como é o caso de Sandra Gomide, que foi volume 15 61 i encontro de internacionalização do conpedi Brasil proferindo palestras e discutindo a aplicação do diploma legal que leva o seu nome. Essa mesma vinculação foi feita, de alguma forma, com relação ao projeto de lei 122 e Alexandre Ivo, adolescente de 14 anos que foi brutalmente assassinado na cidade de São Gonçalo, no Rio de Janeiro, por ser homossexual. O fato foi amplamente divulgado pela mídia e a sua mãe Angélica está na luta pela prisão dos assassinos do seu filho e existe um movimento denominado Alexandre (V)Ivo que circula nos meios de comunicação e que fazem uma vinculação da projeto de lei 122 como a Projeto de Lei Alexandre Ivo11. Uma lei que apresenta um nome de uma pessoa pode ser interpretada de várias formas. Primeiramente, de uma forma simbólica, um marco de um movimento social, no caso da lei Maria da Penha como um grande marco do movimento feminista (Cf. HERMAN, 2007, p. 18). Por outro lado, a lei perde uma das suas principais características que é a impessoalidade. Exige-se que todas as mulheres sejam percebidas como Maria da Penha, vítimas dos seus algozes, quase sempre seus maridos ou companheiros, e que desejam, a todo custo, a sua punição, para poder continuar a sua vida com tranquilidade. É importante ressaltar que, casos como esses, são exceções e não regra no diaadia, pois, em grande parte das agressões, as mulheres não querem a prisão do marido ou companheiro, mas apenas que a agressão não se repita (Cf. MELLO, 2008). Atrelar a lei a uma pessoa também apresenta um estereótipo de vitima que geralmente sensibiliza parte da população. No caso de Maria da Penha, uma mulher, mãe de duas filhas, professora universitária, no caso de AlexandreIvo um jovem, branco, estudante de classe média. O sofrimento das vítimas, em casos como o de Maria da Penha, ou de Alexandre Ivo está sendo usado como uma nova forma de legitimar as leis penais. assassinada em 2000 pelo seu namorado, o jornalista Pimenta Neves, e Patrícia Ágio Longo, que foi assassinada em 1998 pelo seu marido, o promotor de justiça Igor Ferreira e Silva. Quando se fala de violência doméstica, esses dois casos, mais o de Maria da Penha, são uma das formas de justificar a necessidade do enrijecimento da lei penal para acabar com esse tipo de crime. 11As informações estão disponíveis em: http://alexandrevivo.blogspot.com.br/2011/05/atoalexandre-vivo-em-basilia-e-iv.html 62 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi As vítimas, cada vez mais, estão sendo expostas nos meios de comunicação e a sua imagem começa a ser vinculada conjuntamente com a de políticos que prometem apoiá-las com o intuito de evitar que surjam novas vítimas nessa mesma situação. Algumas vítimas são selecionadas pelos meios de comunicação e, dessa forma, deixam de ser um elemento oculto no crime, passam a ser alvo tanto da mídia como dos políticos, que, por vezes, exploram o sofrimento delas para atingir interesses próprios. Em 2012, o Senador José Sarney prestou uma “homenagem” às vítimas dedicando o projeto do Código Penal a duas crianças que foram mortas. O primeiro caso, em 1997, na cidade de São Paulo, Ives Ota, vítima de um sequestro que resultou morte e o segundo caso o de João Hélio, em 2007, na cidade do Rio de Janeiro, vítima de um assalto que resultou morte. Essas duas situações tiveram ampla divulgação na imprensa e são revividos até hoje como situações justificadoras do enrijecimento da lei penal12. Segundo Garland: A figura santificada da vítima que sofre se converteu em um produto desejado nos circuitos de intercâmbio político e da mídia e colocam-se indivíduos reais diante das câmeras ao mesmo tempo que lhes convidam a assumir esse papel, muitas vezes convertendose, durante o processo, em celebridades da mídia ou ativistas de movimentos de vítimas (2005, p 214). Um caso famoso de uma lei que leva o nome de uma pessoa é a lei Megan, que teve origem no Estado da Califórnia, Estados Unidos, mas hoje é uma lei federal naquele país e assumiu o nome da vítima. Megan Kanka foi sexualmente violentada e depois morta em Nova Jersey por um pedófilo em liberdade condicional que morava em frente à casa dos seus pais, gerando uma grande comoção em todo país. Com base nesse caso, que ocorreu em 1994, surgiu uma onda de legislação nos Estados norte-americanos para tratar dos casos de abuso de sexual, causando um verdadeiro terrorismo penal, estigmatizando os homens e 12 No site da associação Ives Otta existe um link pelo fim da impunidade http://www.ivesota. org.br/index.php/textos/5/quem-somos.html. É importante destacar que tanto no caso Ives Ota, como no de João Hélio os responsáveis foram rapidamente presos e foram condenados a penas superiores a 40 anos de privação de liberdade. volume 15 63 i encontro de internacionalização do conpedi ampliando demasiadamente o poder punitivo estatal, apresentando todos os tipos de presunções e, consequentemente, graves injustiças. Todos aqueles taxados como pedófilos eram equiparados ao estuprador de Megan, e se não tinham feito algo parecido poderiam estar prestes a fazer (Cf. WACQUANT, 2001, 113-132)13. A atribuição do nome de um indivíduo a uma lei é uma forma de neutralizar as objeções que essa lei possa sofrer. Após o processo de santificação da vítima, geralmente uma mulher ou uma criança, de um crime violento, passa a existir uma invalidação das preocupações com o delinquente, pois este deve ser punido de forma rígida e exemplar, para que possa “pagar pelo que fez”. Qualquer menção aos direitos do delinquente ou a humanização do seu castigo pode ser facilmente considerado como um insulto às vítimas e aos seus familiares (Cf. GARLAND, 2005, p. 240-243). Esse também é o sentimento com a lei 11.340/2006. Toda crítica dirigida a esta lei soa como um ato de insensibilidade em relação ao sofrimento de Maria da Penha e, de certo modo, uma indiferença à questão da violência contra a mulher e da dominação do masculino sobre o feminino (Cf. MELLO, 2008). O mesmo se procura com o projeto de lei 122, atrelando a lei a um adolescente que foi vítima de um homicídio por conta da sua opção sexual. E vale ressaltar que nem a lei Maria da Penha e nem o projeto de lei 122 tratam do crime de homicídio, versam sobre outras condutas, porém adquirem suas justificativas em crimes violentos, mesmo quando não tutelam o bem jurídico vida. O que dizer de um Senador da República que faz uma dedicatória no projeto do Código Penal a duas crianças que foram assassinadas, quando os responsáveis foram imediatamente presos e rapidamente condenados, quando o Código Penal não faz nenhuma mudança no crime de homicídio. 5.falsas promessas: os movimentos sociais em busca da função simbólica do direito penal Cada vez mais, segundo Elena Larrauri, os novos movimentos sociais como grupos ecológicos, feministas e pacifistas, buscam o Direito Penal como uma 13 Sobre a “caça” aos delinqüentes sexuais nos Estados Unidos a partir da lei Megan cf. (WACQUANT, 2001, p. 113-132). 64 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi forma de defender os tidos como fracos(1991, p. 192). Essa maneira equivocada de ampliação do Direito Penal é muito nítida também no Brasil, como por exemplo, a lei dos crimes ambientais, o Estatuto do idoso, a própria lei Maria da Penha, entre outras. A justificativa para tamanha ampliação é a denominada função simbólica do Direito Penal14. Os defensores dessa função do Direito Penal acreditam que o Estado, ao legislar, teria a força de inverter a simbologia, já existente na sociedade, atuando como uma forma de persuasão sobre os indivíduos para que eles obedeçam a uma conduta mínima de comportamento, sob pena de serem taxados de delinquentes15. No caso específico da violência doméstica, o Direito Penal poderia inverter o poder onipotente do marido sobre a mulher, trazendo à tona o equilíbrio na relação doméstica (Cf. LARRAURI, 1991, p. 20). Sob a perspectiva da Teoria geral do Direito, é possível identificar, em decorrência da expansão da legislação, fortes componentes simbólicos, viabilizando a distinção entre os sentidos manifestos e os sentidos latentes da normatização16. Interessa-nos mais de perto, a discussão dos efeitos simbólicos da expansão legislativa. 14 Segundo Larrauri: Los nuevos movimientos partidarios de la criminalización hablan de las funciones simbólicas del derecho penal, pero guardan un embarazoso silencio acerca de la aplicación de este «símbolo» (1991, p. 214). Sobre o direito penal como um meio de estabelecerprincípios gerais (SHEERER, 1989,p. 32-33). 15 Defendendo a função simbólica da pena não como uma retribuição mais como uma reafirmação do Estado (Cf. RAMÍREZ; MALARÉE, 2004, p. 57-59). 16 É o que ocorre com o modelo de legsilação de Harald Kindermann: “Na tipologia de Kindermann encontraremos três tipos de legislação: legislação como confirmação de valores sociais; legislação como fórmula de compromisso dilatório e legislação-álibi. Subjacente à legislação como confirmação de valores sociais, podemos vislumbrar o embate de grupos políticos, pela prevalência de seus pontos de vista sobre os demais. Para os atores ativos do discurso político, é irrelevante a utilidade instrumental desta espécie de legislação. Que o resultado legislativo final, resultante do discurso político, seja realmente aplicado com eficácia à realidade social é questão de interesse secundário. O interesse simbólico predominante é o da afirmação da própria “supremacia política”, através das influências exercidas nas atividades legiferantes. Uma segunda espécie de legislação simbólica é a chamada legislação como fórmula de compromisso dilatório. O compromisso dilatório aqui caracteriza-se com ênfase principalmente no aspecto de afastamento e adiamento das decisões destinadas a solução dos conflitos sociais para um momento posterior, restando a ilusão de que a matéria é legalmente regulada. Na terceira categoria de legislação simbólica está a legislação-álibi. Com a legislação-álibi, típica dos “nominalismos” constitucionais, pretende-se reforçar a confiança do cidadão na estrutura de poder vigente. Aqui não se cogita exatamente de um embate político de grupos divergentes, mas do próprio relacionamento entre governo e cidadão. Na legislação-álibi, a dimensão simbólica pode ser encontrada quando verificamos a aprovação de leis em atendimento a pressões populares, como forma de identificação do governo com volume 15 65 i encontro de internacionalização do conpedi O Direito Penal simbólico não gera efeitos protetivos concretos, e geralmente é utilizado para atender às manifestações de grupos políticos ou ideológicos quando desejam declarar determinados valores ou repudiar determinadas atitudes consideradas lesivas aos seus interesses. De fato, com o Direito Penal simbólico, segundo Roxin: “comumente não se almeja mais do que acalmar eleitores, dandose, através de leis previsivelmente ineficazes, a impressão de que está fazendo algo para combater ações e situações indesejadas”(ROXIN, 2006, p.47). Por sua vez, o Direito Penal simbólico17 também tem uma forte ligação como os meios de comunicação, pois são eles que apresentam hoje os problemas sociais vistos como mais importantes, bem como se colocam como os agentes mais significativos de controle social nas sociedades modernas, já que possuem uma capacidade ímpar de generalizar pontos de vista e atitudes do corpo social (RIPOLLÉS, 2003). O uso simbólico do Direito Penal foi sem dúvida um forte argumento do movimento feminista, e agora do movimento LGBTT18, para justificar a sua demanda criminalizadora. É certo que as normas penais simbólicas causam, pelo menos de forma imediata, uma sensação de segurança e tranqüilidade, iludindo os seus destinatários por meio de uma fantasia de segurança jurídica sem trabalhar as verdadeiras causas dos conflitos. Daí a afirmação que mais leis penais, mais juízes, mais prisões, significa mais presos, mas não menos delitos (Cf. QUEIROZ, 2005, p. 52). os anseios do povo. Na maioria dos casos, não há uma mudança substantiva da realidade social, antes pelo contrário, a legislação-álibi proporciona aos grupos políticos que compõem o governo uma espécie de “prestação de contas” frente à opinião pública. Nesta hipótese, ao encobrir a realidade da práxis constitucional, a legislação-álibi tem como sentido principal proporcionar a manutenção do status quo”. TEIXEIRA, João Paulo Allain. Idealismo e Realismo Constitcuional em Oliveira Vianna: Análise e Perspectivas. Brasília, Revista de Informação Legislativa, 1997, nº 135; p. 111 17 Sobre a impossibilidade de o direito penal apresentar funções promocionais ou simbólicas conferir: DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais do direito penal revisitadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 72-75; PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, criminalização e direito penal mínimo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 123-128. 18 Desde o dia 28 de junho de 1969 que marcou o episódio de Stonewall problema com a nota e início do movimento LGBT. A maior importância de Stonewall foi ter criado um fato político que despertou a comunidade LGBT para dar capilaridade as suas lutas. Existia uma pauta comum: viver livremente, definindo uma resistência de um grupo que vivia silenciosa na clandestinidade. 66 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi 6.em busca de novos inimigos: as propostas legislativas par a criminalização da homofobia O Direito Penal não constitui meio idôneo para fazer política social (Cf. CAPELLETTI, 1998, 161) e as mulheres e os homossexuais não podem buscar a sua emancipação através do poder punitivo e sua carga simbólica. Punir pessoas determinadas para utilizá-las como efeitos simbólicos para os demais significa a coisificação dos seres humanos19. A própria mulher, historicamente, foi vítima dessa carga simbólica do Direito Penal, quando só poderia ser considerada vítima de determinados crimes quando fosse honesta, ou seja, quando se portasse da maneira adequada na visão masculina. Vale ainda destacar que a própria pratica de relações sexuais foi considerada crime até a década de 70 em alguns estados norte-americanos. O sistema punitivo na construção do seu discurso trabalha com os ditos inimigos. A partir dessa visão fica muito fácil aceitarmos a ideia do sujeito ativo como a representação do mal social. Hoje inclusive a dogmática penal retoma esses parâmetros declaradamente através da teoria do “direito penal do inimigo”20. Fica claro vislumbrar que hoje esses inimigos são os traficantes e os terroristas, porém aolongo da história os inimigos foram as mulheres, na condição de bruxas, os judeus, os homossexuais e os diferentes de uma maneira geral (Cf. ZAFFARONIl, 2007). Vale ainda destacar que a própria prática de relações sexuais foi considerada crime até a década de 70 em alguns estados norte-americanos (Cf. WACQUANT, 2001). Já no Brasil,a sodomia deixa de ser tipo penal com o Código Penal de 1830, porém a lei de contravenção penal com os tipos penais de vadiagem, importunação ofensiva ao pudor, perturbação da tranquilidade e o Código Penal com o crime de ato obsceno serviram para criminalização dos homossexuais. 19 Sobre a coisificação do ser humano para servir de exemplo aos demais cf. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. El discurso feminista y el poder punitivo. In PIERANGELI, José Henrique (coord.). Direito criminal. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, v. III, pp.76-77; Las imágenes del hombre en el derecho penal moderno. In Abolicionismo penal. Buenos Aires: Ediar, 1989, p.132-133. 20 Para uma crítica marginal do direito penal do inimigo conferir o livro O inimigo no direito penal. (ZAFFARONI, 2007). volume 15 67 i encontro de internacionalização do conpedi Cada vez mais se criamleis penais que protegem aqueles que outrora tiveram suas perseguições legitimadas pelos discursos punitivos. A partir dessa constatação, podemos indagar: será que essas novas formas de criminalização poderão ocasionar novos preconceitos ou entrar em uma produção de novos inimigos? A proposta do projeto de lei 122 era de ampliar a lei de racismo, lei 7.716/89, e o crime de injúria por preconceito localizado no Código Penal. Esta lei trata única e exclusivamente da matéria penal, e praticamente não apresenta aplicação prática, pois poucos são os casos que chegam a delegacia, e praticamente não existem condenações e nem pessoas presas pela prática de tais condutas. Será que isso significa que o Brasil não é um país racista? O que essa lei mudou até o ano de 2010, quando foi instituído o Estatuto da Igualdade Racial, que versa sobre uma série de políticas públicas exigindo ações afirmativas das três esferas de governo e do corpo social de uma maneira geral? Quantas pessoas conhecem os crimes que estão naquela lei, quantas praticaram aquele tipo de conduta? Será que a criminalização desse tipo de conduta apresentou alguma forma de inclusão social dessas pessoas? Analisando a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça de 1989 até agora foram encontrados apenas poucos julgados, que no final afastam a lei de racismo e tipificam a conduta nos crimes contra a honra estipulados no Código Penal, especificamente a injúria por preconceito (art. 140 § 3º)21. Foi essa inclusive a motivação paraocorrer, em 2009, a mudança da ação penal da injúria por preconceito que deixar de ser ação privada e passa a ação pública condicionada à representação. Em 17/12/2013, o Senado Federal aprovou o apensamento do projeto de lei 122 à proposta do projeto donovo Código Penal, para que pudessem 21 Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa. […] § 3o Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: (Redação dada pela Lei nº 10.741, de 2003) Pena - reclusão de um a três anos e multa. 68 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi tramitar conjuntamente22. Depois dessa decisão o pastor Silas Malafaia dá várias declarações entre elas: PLC 122 acaba de ser enterrado no Senado. A Deus seja a glória. Parabéns aos senadores Renan Calheiros, Magno Malta, Lindberg Farias e outros. Não adianta chorar ou xingar o PLC 122 foi para o ‘espaço’. Nada de privilégios para ninguém. Homo, hetero, religioso ou não, lei é pra todos [...] Vitória do povo de Deus que esta aprendendo a usar os direitos da cidadania.Valeu o bombardeio de emails para os senadores. Ainda tem mais [...] 7 anos de lutas incluindo processos, calúnias, difamação e etc. Vitória da família, bons costumes e da criação pela qual Deus fez o homem. Ainda tem muita coisa que precisamos estar atentos. São mais de 800 projetos no Congresso para destruir os valores cristãos. Não vão nos calar”, escreveu o pastor em seu perfil23. No dia 21 de maio de 2014, a deputada federal Maria do Rosário protocola o projeto de lei 7582/2014, que visa tornar crime os atos de intolerância contra os LGBTT, segundo a deputada: Essas pessoas estão desprotegidas diante da violência por que o Estado não lhes dá segurança e nem igualdade na sua cidadania. Então é preciso sim assegurar essa igualdade ao segmento dos LGBT24. Não resta dúvida que é preciso se posicionar contra todos os atos de intolerância contra o movimento LGBTT, agora resta saber quais serão os aliados e se o sistema punitivo, depois que tudo foi apontado no presente artigo, é uma boa estratégia ou pode reforçar o discurso do ódio em uma guerra de quem criminaliza mais. Vale destacar que na busca de direitos antidiscriminatórios, o movimento LGBTT brasileiro ganha repercussão na medida em que o Poder Judiciário, na 22http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/2013/12/17/projeto-que-criminaliza-homofo bia-vai-tramitar-em-conjunto-com-novo-codigo-penal 23 Essa e várias outras falas do pastor podem ser encontradas na internet e também existem vários vídeos no youtube em que o pastor faz uma verdadeira campanha contra a PL 122. Cf: http:// noticias.gospelmais.com.br/silas-malafaia-comemora-pl-122-jean-wyllys-lamenta-63497.tml 24 A notícia e a entrevista da deputada podem ser encontradas no seguinte endereço eletrônico: http://www.revistaforum.com.br/blog/2014/05/deputada-protocola-novo-projeto-para-crimi nalizar-homofobia-leia-entrevista/ volume 15 69 i encontro de internacionalização do conpedi perspectiva do ativismo judicial e ante a ausência de marcos legais, alcança espaços de conquista às demandas de igualdade material. Assim, o reconhecimento da união estável com reflexos em direitos sucessórios e previdenciários é o mais significativo entre os demais, incluídas as questões de realização de cirurgias transexuais no sistema público de saúde, a mudança de registro civil para correspondente identidade de gênero, a adoção de crianças por casais homossexuais, a licença à natalidade. (AMARAL; MELLO, 2013) Todos estes reconhecimentos são marcos efetivos no sentido da diminuição do preconceito, incrementando as ações de “resistência e ruptura da cultura homofóbica determinada pela lógica heteronormativa” (CARVALHO, p. 187, 2012). Não obstante as conquistas, ainda existem outras demandas, como a despatologização da homossexualidade entre outras. São muitos espaços de lutas que devem ser buscados, inclusive no campo do legislativo, mas o caminho da criminalização simbólica além de ineficiente pode acarretar um total desvirtuamento da luta emancipatória do movimento LGBTT, pois não restam dúvidas, a partir dos estudos da criminologia de fundamento crítico, que o que realmente pretende o poder punitivo não é combater (reduzir e eliminar) a criminalidade, protegendo bens jurídicos universais gerando segurança pública e jurídica, mas ao revés, é construí-la seletiva e estigmatizadamente, reproduzindo, material e ideologicamente, as desigualdades e assimetrias sociais (de classe, gênero, raça)(Cf. ANDRADE, p. 270, 2004). 7. a criminalização do meu próximo Um fato que não pode passar despercebido é que as pesquisas realizadas em paradas do orgulho LGBTT, entre os anos de 2003 e 2006, demonstram que a maior parte das agressões aos homossexuais acontecem entre pessoas que se conhecem e, frequentemente, ocorrem na esfera da própria casa, na vizinhança, nas redes familiares e conjugais e de forma notável nas escolas e faculdades. Significa dizer que boa parte das vítimas dessas agressões mantem relações com os discriminadores, pois são pessoas do seu convivo diário, quando não pertencentes à mesma família (SIMÕES; FACCHIN, 2009). 70 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi O projeto de criminalização é do próximo, e isso precisa ficar bem claro25. Será que as vítimas desejarão criminalizar os seus familiares, os seus amigos? Será que é através dessa criminalização que iremos chamar atenção dos preconceitos que essas pessoas produzem? Podemos inclusive analisar essa peculiaridade à luz da violência doméstica e no frequente processo de revitimação das mulheres nesse contexto ao explicar o porquê de muitas mulheres não quererem que se inicie um processo criminal contra o agressor, mostrando que a via criminal não é a mais apropriada para resolver a situação. Não é difícil entender que, no caso concreto, o princípio da pessoalidade não é verificado. Ou seja, a pena imposta não vai atingir apenas o réu, mas sim toda a família, principalmente a vítima. Assim, o sistema penal não será uma instância que vá contemplá-las, mas punilas indiretamente. Neste sentido, Larrauri preconiza que: “Todo o sistema parece estar mais interessado em servir sua própria lógica interna do que servir às vítimas”(2008,p. 101). Assim, nos casos selecionados para o sistema poderemos encontrar ao fim do processo, entre as vítimas e os agressores, um total sentimento de dubiedade, ocorrendo por vezes que a vítima sinta-se uma violadora, já que vislumbra o mal causado ao agressor muito mais gravoso que aquele que ele lhe causou (ALENCAR; MELLO, 2011). A lógica do direito penal e processual penal é de reduzir o conflito ao laboratório da dogmática, promovendo uma assepsia sóciocultural (BARATTA, 1998) dentro de uma alienação política de seus efeitos, e isto implica em efeitos gravíssimos entre as partes envolvidas (BARATTA, 1998). Não se pode deixar de destacar, assim como acontece na lei de racismo, as dificuldades de se encontrar a figura do sujeito ativo (agressor), pois o processo de rotulação (BECKER, 1971) de quem é (ou não) delinquente é condicionado pelas diversas reações sociais as quais, por sua vez, são guiadas por valores imperantes na sociedade, já que afinal, o poder de definição é capitaneado por apenas uma classe social, que partilha, conservadoramente, valores relativos à moralidade, à sexualidade, à classe social etc (MACHADO, 2010). Dessa forma, acredita-se necessariamente que toda forma de amor vale a pena e nos avanços que o movimento LGBTT já conseguiu, a luta deve ser incessante 25 Art. 14. Impedir ou obstar, por qualquer meio ou forma, o casamento ou convivência familiar e social. Pena: reclusão de dois a quatro anos. volume 15 71 i encontro de internacionalização do conpedi por políticas de ações afirmativas, de conscientização, de sensibilização para a percepção de quanto é pequeno e mesquinho a visão do preconceito do dia a dia diante da felicidade do outro e não utilizar a estratégia de “empoderamento”26 do movimento LGBTT através da criminalização da homofobia. 8.na procur a de um fechamento emancipatório e libertário É preocupante a luta dos movimentos sociais na busca desse tipo de legislação, pois toda essa força poderia ser usada em outras frentes que promovessem paz social e consciência das ditas diversidadescomo foi feita até agora no campo do direito constitucional e do direito civil, como, por exemplo, na luta do casamento igualitário. Embora a Lei Maria da Penha tenha atuado em várias frentes e seja uma lei que apresenta poucos artigos relacionados ao direito penal e processual penal, apresenta uma forte crença no poder punitivo na resolução dos conflitos sociais. Já a lei de racismo, que é uma lei penal na pureza de sua acepção, basicamente nunca foi aplicada no Brasil e a pouca jurisprudência dos Tribunais Superiores, que diz respeito a tal lei, é para afastar sua aplicação em nome do Código Penal, pela dificuldade da comprovação do dolo específico na prática do crime. Mesmo diante dessa realidade fática, vive-se hoje um verdadeiro embate e enfrentamento do movimento LGBTT para ampliar essa lei, na crença que isso irá gerar uma ampliação de direitos e seria o ápice do grito: NÃO À HOMOFOBIA! Nos processos de emancipação, as minorias sociais têm sido capazes de se mobilizar, agregando as suas pautas de ativismo político agendas teóricas da academia, convidando o saber crítico à reflexão. É neste sentido que a criminologia de base crítica se apresenta como aliada aos movimentos sociais, não para com eles tensionar, mas dialogar no sentido de construção de estratégias mais ricas para 26 “Esse vocábulo, cujo uso está consagrado no meio dos movimentos feministas e das minorias em geral, é uma tentativa de tradução do termo inglês emporwerment.Pode ser entendido como o processo pelo qual o sujeito conquista autonomia pela participação ativa na construção de sua própria história. Apesar do uso comum nos movimentos mencionados , o termo permanece como um neologismo na língua portuguesa, visto que não há registro dele em dicionário”. (RORIZ, 2010). 72 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi todos os envolvidos que buscam a superação da cultura sexista, racista, machista, excludente e violenta.(AMARAL; MELLO, 2013). Desse modo, seria o processo de criminalização, seja pela ampliação da Lei Maria da Penha, seja pela criminalização da homofobia, o mecanismo mais adequado para a luta política dos movimentos LGBTT? Vale salientar que a lei 11.340/2006 apresenta grandes méritos no que diz respeito às medidas de prevenção e de proteção da mulher, mas apresenta falhas no campo penal. Infelizmente, a lei se tornou mais conhecida pelos seus aspectos penais com o slogan midiático: “homem que bate em mulher agora é preso”, e como sempre as medidas de caráter penal, por serem simbólicas e extremamente seletivas, são mais facilmente aplicadas do que as medidas de caráter preventivo ou educativo. É importante mais uma vez destacar que o Direito Penal ignora por completo a violência estrutural e as suas causas, pois o seu discurso é simplesmente punitivo, procurando apenas atribuir a culpa a alguém, seja ao homem que bateu na boa mãe de família ou a própria mulher, que por não ter sido tão boa assim mereceu apanhar. Termina, portanto, estigmatizando os sujeitos envolvidos, oferecendo falsas soluções, e não satisfazendo a vítima, que, muita vezes, pode deixar a Justiça com o rótulo de que gosta de apanhar. Por fim, tornar essa matéria de domínio do sistema punitivo pode ser um retrocesso dentro de um movimento prioritariamente emancipatório e que busca, de qualquer forma, a liberdade será que não estamos dando força a um sistema reacionário e historicamente discriminatório. Afinal, há sempre de se buscar algo melhor do que o Direito Penal (ZAFFARONI, 2001). 9.referências ALENCAR, Daniele Nunes de; MELLO, Marília Montenegro Pessoa de. A Lei Maria da Penha e sua aplicação na cidade de Recife: uma análise crítica do perfil do “agressor” nos casos que chegam ao Juizado da mulher (anos 20072008). Revista Sociais e Humanas. v. 24, n. 02, p. 09-21, jul./dez. 2011. ALVES, Valdecy. A lei Maria da Penha em cordel. Fortaleza: Tupynanquim, 2007. volume 15 73 i encontro de internacionalização do conpedi ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Minimalismos e abolicionismos: a crise do sistema penal entre a deslegitimação e a expansão. Seqüência. Florianópolis, ano XXVI, n. 52, p. 163-182, julho, 2006. ______. A soberania patriarcal:o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. Revista Sequência, Florianópolis, ano XXV, n. 50, p. 71-102, julho, 2005. BARATTA, Alessandro. La vida y ellaboratoriodelderecho. a propósito de laimputación de responsabilidad en el proceso penal. Doxa- Cuadernos de Filosofía del Derecho, n. 5, 1998. BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. 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Abstract This essay deals with the reception of the etiological paradigm in Brazil, from the studies of Raimundo Nina Rodrigues, highlighting the contributions of the physician the Maranhão, regarding the “treatments” for the patients with psychological distress, submitted to the Brazilian Criminal Justice System. Key words Positivist criminology; Social control; Treatment; Bearer of psychological distress. 1 Advogada. Especialista em Ciências Criminais pelo CESUSC (Brasil). Mestra e Doutoranda em Ciências Criminais pela PUCRS (Brasil). Email: [email protected] 2 Professor titular do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS (Brasil). Doutor em Direito pela UFPR. Pós-doutor em Criminologia pela Univ. Kent – UK. volume 15 79 i encontro de internacionalização do conpedi 1.introdução Em meados do século XIX a biologização dos comportamentos humanos produziu inúmeras orientações teóricas e práticas nas mais diversas áreas3, consolidando assim o paradigma etiológico-determinista, impulsionado pelo nascimento do evolucionismo, da antropometria, da frenologia, da antropologia criminal, do racismo científico, dentre outros. Entre as teorias etiológicas sobre as doenças mentais, dominaram as concepções organicistas. A estes estudos, agregou-se a teoria da “degenerescência” ou “degeneração” ligadas à questão racial, baseada no pressuposto de que haveria progressiva degeneração mental em casos de miscigenação racial. Tal teoria foi redefinida à luz do evolucionismo, considerando que os desequilíbrios físico e mental do indivíduo degenerado interromperiam o progresso natural da espécie; ou seja, todo degenerado seria um desequilibrado mental (ODA, 2001, p. 01). É no período novecentista que a apreensão das diferenças transforma-se na proposta teórica universal e globalizante: naturalizar as diferenças. “O projeto grandioso que pretendia retirar a diversidade humana para localizá-la na moradia segura da ciência determinista do século XIX, deixava pouco espaço para o arbítrio do indivíduo” (SCHWARCZ, 2008, p. 65). Esse modelo populista e convincente foi absorvido completamente pelos pesquisadores brasileiros. Nessa linha, o texto busca compreender a recepção do paradigma etiológico no Brasil a partir dos estudos do médico maranhense Raimundo Nina Rodrigues, que tinham como foco as análises da raça negra (e dos mestiços) como fator relevante de desenvolvimento da população, bem como fator criminógeno. Nina consolidou a Criminologia Positivista em “terrae brasilis”, com toques muito particulares, reafirmando o discurso legitimador das desigualdades e do controle social, pela via biológica-orgânica-racial-determinista. O ponto nevrálgico desse ensaio é demonstrar quais foram as contribuições de Nina Rodrigues - enquanto formação do pensamento jurídico-penal e consequências político-criminais - no que se refere ao controle dos portadores de sofrimento psíquico submetidos ao Sistema de Justiça Criminal brasileiro. 3 Como exemplo: direito, psiquiatria, sociologia, antropologia, psicologia, política, etc. 80 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi Para isso, trabalhar-se-á inicialmente com o surgimento do termo raça, a teoria da degenerescência e a influência desses quesitos na auto-imagem brasileira, como também a tese evolucionista da população, que tinha o negro como objeto científico e o branqueamento como forma de purificação e viabilidade da nação. O segundo ponto tratará da fundação da Escola Nina Rodrigues no Brasil: seus fundamentos e suas contribuições no âmbito médico-jurídico. As investigações de Nina Rodrigues sobre degenerescência, os efeitos em termos de criminalidade e o controle social dos degenerados são questões fundamentais para a compreensão histórica e a importância desse autor na construção do que se reconhece como controle social (e disciplina) destinado ao portador de sofrimento psíquico no Brasil. 2. a questão das r aças: diferenças e miscigenação Até o final do século XVIII os diversos grupos sociais, em sua origem, não eram definidos como “raças”, mas sim como “povos” ou “nações”, fruto da noção de igualdade que foi o ideário da Revolução Francesa. A partir do século XIX, o termo “raça” foi introduzido na literatura por Georges Cuvier e a visão do homem branco em relação aos outros povos (primitivos), passou a ser determinada pelo racismo científico. “Tratava-se de uma investida contra os pressupostos igualitários das revoluções burguesas, cujo novo suporte intelectual concentrava-se na ideia de raça”, que cada vez mais se aproximava da noção de “povo” (SCHWARCZ, 2008, p. 47). Essa, portanto, era uma crença compartilhada com o paradigma científico, que teve uma importante articulação com a teoria da degenerescência4. Cuvier apresentou duas características importantes sobre a concepção de raças nesse período, são elas: 1) a representação das raças como uma hierarquia, com brancos no topo e negros na base; 2) as diferenças de cultura e qualidade mental produzidas pelas diferenças no físico. Logo, os caucasianos ganhariam o domínio 4 Morel dedicou-se a estudar sobre a história das doenças mentais e a resumir as contribuições de diversos países europeus a tal história. Fundamenta com critérios da etiologia uma nova classificação das loucuras, o que lhe ensejou a formulação da teoria da degenerescência (entendida como resultado último da mistura das diferentes espécies humanas). A degenerescência para Morel é muito mais uma petição de princípio que uma teoria deduzida rigorosamente de fatos comparáveis (não heterogêneos). A simples constatação de incidências mórbidas na ascendência de alguém não implica, necessariamente, qualquer transmissão genética da loucura (ou de algum gérmen). (PESSOTTI, 1999, pp. 82-84) volume 15 81 i encontro de internacionalização do conpedi sobre o mundo, pois os negros eram escravizados, embora fossem sensíveis e racionais (BANTON, 1977). O positivismo estático deu lugar ao dinâmico – ideia de evolução5 que dominou o pensamento europeu a partir de 1852. O mundo do devir, do movimento, do progresso, assumiu seu posto entre cientistas e antropólogos, muito embora os franceses preferissem o termo “transformismo” ao evolucionismo. A evolução abria novas frentes na luta entre ciência e teologia; envolvia o próprio homem. Todas as coisas pareciam estar num fluxo perpétuo... isso era resultado da Revolução Darwiniana. Darwin6 (2004) trouxe em suas pesquisas novos elementos ao pensamento evolucionário já iniciado por Herbert Spencer e Henry Huxley. Como não lera muito sobre a história do pensamento evolucionário, apostou nas suas pesquisas empíricas, sobretudo nas realizadas na América do Sul (Ilhas Galápagos) durante a viagem do Beagle (1831-1836), regressando convicto da infinita divergência da natureza. Não foi o primeiro a basear-se na seleção natural, mas o primeiro a torná-la central e considerá-la um mecanismo essencialmente progressivo, que se combinava com as variações biológicas. (BAUMER, 1977, pp. 97-101) Para Darwin, a desigualdade humana estava diferenciada em três áreas principais: raças humanas, nações e indivíduos. Distinguia as raças com base na cor da pele, formato do crânio, nádegas ou relacionava o comportamento mental e moral com a estrutura física, reforçando a questão das raças inferiores e superiores. 5 Baumer (1977, p. 98) chama atenção de que “a ideia de evolução, Darwiniana ou não, de nenhum modo era nova. Herbert Spencer escreveu um ensaio sobre este assunto em 1852 em que compara modos de pensamento estático e dinâmico e defende a evolução. (...) A consciência da vida num mundo de permanente mudança, constantemente em evolução, no século XIX não dependia da doutrina da evolução. Muito antes de Darwin, Matthew Arnold preocupou-se com o tempo, quando comparou a correria doentia da vida moderna com a vida estável da velha Inglaterra”. 6 A Origem das Espécies é o livro de Charles Darwin que apresenta a Teoria da Evolução. A primeira edição saiu em 1859, cujo título era (em inglês) On the Origin of Species by Means of Natural Selection, or the Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life (Sobre a Origem das Espécies por Meio da Selecção Natural ou a Preservação de Raças Favorecidas na Luta pela Vida). Somente na sexta edição, de 1872, que o título foi abreviado para The Origin of Species (A Origem das Espécies), como é popularmente conhecido. No trabalho, utilizou-se a edição em português de 2004. 82 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi Darwin combinou as teorias monogenistas e poligenistas7, que estavam na moda, afirmando que as várias raças humanas podiam descender de um tronco comum, mas que a partir de um determinado ponto, desenvolveram-se diferentes grupos ou variedades e seguiram rotas diferentes. Existia uma subsequente competição moral e mental entre as raças, sendo vitoriosa a classe de homens mais evoluída. (BAUMER, 1977, p. 112) O Homo Europaeus ficou identificado como o tipo ariano, ou seja, como a espécie mais promissora e mais inteligente da raça branca, encontrando o seu representante supremo entre os alemães, os franceses ou qualquer outro grupo regional. Segundo Baumer (1977, pp. 113-114), Darwin vinculou-se aos eugenicistas, acentuando mais as diferenças entre os indivíduos que os grupos. Acreditava, embora achasse utópico, “que a eugenia8 era o único meio de melhorar a raça humana, de controlar o coeficiente de natalidade dos ‘incapazes’ e favorecer os ‘capazes’ através de casamentos entre jovens e do cultivo da saúde dos seus filhos”. Como contemporâneo de Darwin, destaca-se o Conde de Gobineau9, que por muitos, é considerado um dos autores principais da afirmação das teorias racistas e 7 Segundo Skidmore (1976, pp. 67-68), no século XIX havia três escolas de teorias raciais, são elas: 1) Etnológico-biológica - afirmava a poligenia. Sustentava a criação das raças humanas por meio das mutações de várias espécies. Seu maior representante nos EUA foi Louis Agassiz. Sua Journey in Brazil foi largamente citada no Brasil e deu curso entre à elite às ideias de diferenças raciais inatas e de degenerescência mulata; 2) Escola histórica, bem representada por Gobineau. Esses pensadores afirmavam que as raças humanas – as mais diversas – podiam ser diferenciadas uma das outras – com a branca permanentemente e inerentemente superior a todas.; 3) Darwinismo social. Darwin defendia um processo evolutivo que por definição, começava com uma única espécie. 8 “Criada no século XIX por Francis Galton, a eugenia é um conjunto de ideias e práticas relativas a um ‘melhoramento da raça humana’ ou, como foi definida por um de seus seguidores, ao ‘aprimoramento da raça humana pela seleção dos genitores tendo como base o estudo da hereditariedade. (...) A hereditariedade determinaria o destino do indivíduo. (...) O movimento eugenista, ao procurar melhorar a raça, deveria sanar a sociedade de pessoas que apresentassem determinadas enfermidades ou características consideradas indesejáveis (tais como doenças mentais ou impulsos criminosos), promovendo determinadas práticas para acabar com essas características nas gerações futuras. Todavia, esse quadro não era aplicado apenas a indivíduos, mas principalmente, às raças, baseando-se num determinismo racial (se pertence a tal raça, será de tal forma) fazia com que a hierarquia social fosse traduzida por hierarquia racial.” (MACIEL, 1999, p. 121) 9 Para Baumer (1977, p. 112), “a obra mais influente sobre o pensamento da raça no século XIX é a do Conde de Gobineau, Ensaio sobre a Desigualdade das Raças, que apareceu em 1853, e a que se seguiu, em 1859, sobre o mito ariano, de Adolph Pictet, ‘As Origens Indo-Europeias’”. volume 15 83 i encontro de internacionalização do conpedi pessimistas entre os séculos XIX e XX. O autor entendia cruzamentos raciais como combinação de heranças, mas não de forma igualitária. Olhava a raça superior - especialmente a ariana - como um agente catalítico, destruidor da genética mais fraca, e a miscigenação, sob uma óptica pessimista do racismo. Inaugurou o conceito de “degeneração da raça” e cortou os últimos laços com a monogenia e o evolucionismo social, quando da impossibilidade do progresso de algumas sociedades compostas por sub-raças, mestiças e incivilizadas (BANTON, 1977). Gobineau entendia que o cruzamento entre as raças diversas levaria à degeneração dos tipos mais nobres e, portanto, à decadência do gênero humano. Em resumo, os mestiços eram uma sub-raça, decadente e degenerada. Durante 14 meses (abril de 1869 a maio de 1870), o Conde de Gobineau foi Ministro da França junto à Corte de D. Pedro II, Imperador constitucional do Brasil e por isso também a sua importância em relação aos estudos raciais neste país. Era clara a sua indignação quanto à função designada e por isso resmungava que “o Brasil foi o túmulo de sua atividade política”. Nas suas extravagantes teses racistas, afirmava que “no Brasil a mestiçagem estaria, como em qualquer outro lugar, fadada a debilitar a raça. Logo, os brasileiros viam-se condenados a desaparecer, prevendo a data do atestado de óbito coletivo brasileiro para dali a 270 anos” (READERS, 1988, pp. 09-15). Gobineau não hesitou em tirar conclusões drásticas em relatório oficial sobre a escravidão e exaltava que “os nativos brasileiros não eram nem trabalhadores, nem ativos, nem fecundos”. (SKIDMORE, 1976, p.46) A “teoria das raças” instaurou um determinismo racial e um ideário político, que via de forma altamente pessimista a questão da miscigenação. As raças constituiriam fenômenos finais, resultados imutáveis e o cruzamento era enten- “O Conde de Gobineau foi uma pessoa polêmica e controvertida. Nasceu em 14 de julho de 1816, no vilarejo de Ville d´Avray, entre Versailles e Paris. Enquanto exercia funções menores, escrevia poesias e romances folhetinescos e publicava na imprensa crítica literária e artigos de política nacional. Ocupou a chefia de gabinete de Alexis de Tocqueville, então Ministro das Relações Exteriores. Foi Embaixador em Atenas, no Brasil e Estocolmo. Fez-se conde em 1853. Seus méritos diplomáticos eram questionados. Os colegas o consideravam um intruso que pouco interesse demonstrava pela carrière. Este homem franzino, de monóculo e suíças, tinha fama de arrogante e ranzinza, o que explica talvez sua transferência para o Brasil – castigo que muito ofendeu o seu orgulho” (READERS, 1988, pp. 09-10). 84 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi dido como um grande erro. Os postulados eram claros: a) enaltecer a existência dos tipos puros – não sujeitos a processos de miscigenação; b) compreender a mestiçagem como sinônimo de degeneração racial e social. A intolerância cega aos inferiores converteu-se na “prática avançada do darwinismo social”: a eugenia. Esta, por sua vez, tinha uma meta definida que era intervir na reprodução das pessoas, evitando a degeneração das espécies ditas “puras”. (SCHWARCZ, 2008, pp. 56-60). A eugenia enquanto ciência visava o nascimento de pessoas perfeitas (de raça pura), desejáveis e controladas; enquanto movimento social preocupava-se em promover casamentos adequados – entre grupos determinados –, evitando uniões nocivas ao pleno desenvolvimento da sociedade. O movimento acabou dando lugar ao termo degeneração (em detrimento à evolução) e o pensamento era de que o progresso estaria restrito às sociedades puras, livres de miscigenações, deixando de lado o evolucionismo enquanto processo social obrigatório. A teoria das raças fez com que a naturalização dos diferentes fosse um projeto universal de correlações entre atributos físicos e morais (SCHWARCZ, 2008, pp. 60-65). A ciência do século XIX originou uma nova dimensão temporal. A rigidez, a fixidez, as particularidades, tudo que fora considerada eterno, tornou-se transitório. Alguém ainda duvidava de que a ciência era a grande salvadora do mundo e que nada mais fizera senão o bem, pelo menos nas suas aplicações práticas? 3.o “labor atório r acial” - análise evolucionista da população br asileir a As certezas científicas foram disseminadas em território brasileiro com muita intensidade. A partir da segunda metade do século XIX, a questão racial deu um salto de importância na formação da auto-imagem do país: “o Brasil passou a ser definido pela raça”. (ODA, 2001, p. 02) A noção de raça impulsionou de forma significativa o regime escravista, que continuou sua domesticação sobre os corpos negros e mestiços mesmo após a abolição10. Destaca Lobo (2008, p. 193) que o movimento fomentou 10 “As três grandes leis abolicionistas – Ventre livre (1871), Saraiva Cotegipe ou dos Sexagenários (1885) e Áurea (1888) – revelam o andamento moderado do processo. Com efeito, a Lei Rio volume 15 85 i encontro de internacionalização do conpedi também outras contribuições: a) a normalização de todos os comportamentos; b) a disciplinarização dos trabalhadores livres (em especial imigrantes, brancos e operários). As elites brasileiras queriam livrar-se do “negro moralmente pernicioso”, “intelectualmente carente” e manter a hierarquia social. Para isso, interpretaram a nacionalidade exclusivamente pela raça, fornecendo as justificativas para o atraso brasileiro perante os países europeus (civilizados e evoluídos). Quanto mais ascendiam socialmente, mais repudiavam negros e mestiços (não os queriam como empregados, nem como criados domésticos). Mais do que preconceito, a questão era científica (LOBO, 2008, p. 215). Ora, o perigo estava na contaminação dos imigrantes com a indisciplina, a vadiagem e a afronta aos bons costumes. A maioria dos abolicionistas percebia o processo “evolucionista”, com o triunfo gradual do homem branco11. Eram favoráveis à imigração europeia por dois Branco (mais conhecida como a Lei do Ventre livre) foi acima de tudo uma manobra política para acalmar a oposição, logo após o final da Guerra do Paraguai. (...) A lei representava um ato importante na política imperial. (...) A ideia era prorrogar o cativeiro, ao mesmo tempo em que se tornava o processo de abolição mais lento e controlado. A segunda lei, de tão vergonhosa, foi contestada já na época de sua promulgação. A Lei dos Sexagenários dava liberdade aos escravos maiores de 60 anos e previa a possibilidade de o prazo ser estendido até os 65. Sabemos que a média de vida dos trabalhadores no campo variava de 10 a 15 anos, a lei era um instrumento a favor dos senhores e não dos cativos. Por fim, a Lei Áurea selava uma sorte que já estava determinada faz algum tempo. Na verdade, quando em 13 de maio de 1888 a princesa Isabel aboliu a escravidão, muito cativos já haviam concretizado sua liberdade. O resultado imediato dessa versão organizada e pretensamente cordata de nossa libertação dos escravos foi jogar uma imensa população, despreparada e pouco instruída, num processo de competição desigual, sobretudo com a mão-de-obra imigrante que afluía ao país desde os anos de 1870. O certo é que a abolição era vendida como um presente e, enquanto tal, uma dádiva não negociada. O problema foi que se dissimulou um processo de confronto, para se investir numa imagem de superação lenta, ordenada, gradual e controlada pelo Estado. Além disso, no país se projetou a imagem de uma democracia racial, corolário da representação de uma escravidão benigna, extinta de forma ‘harmoniosa’”. (SCHWARCZ, 2001, pp. 44-46) 11 Por outro lado, alguns abolicionistas - com o pensamento divergente e preocupados com a questão étnica - partilhavam a crença (elitista e de efeito simbólico) de que a “sociedade brasileira não detinha preconceito racial, vide os debates das leis abolicionistas, que revelavam a prevalência de tal convicção no seio de todas as facções políticas” (SKIDMORE, 1976, p. 38). Para eles, a opinião aceita entre a elite era clara: o Brasil soubera evitar o preconceito da raça. Segue o discurso do então deputado por Minas Gerais, Perdigão Malheiro (1871), de reconhecida autoridade em matéria escravagista, em que condenava as injustificadas e caluniosas críticas à harmonia racial no Brasil: “Desde que para o Brasil vieram negros da Costa d´África, nunca houve esse desprezo pela raça africana, que aliás, se notava em 86 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi grandes motivos: a) os europeus ajudariam na escassez da mão de obra, em virtude do fim do trabalho escravo; b) a imigração ajudaria na aceleração do branqueamento do Brasil (SKIDMORE, 1976, p. 40). Como é sabido, o pensamento abolicionista nasceu do liberalismo europeu do século XIX, que seguiu a Revolução Industrial, a urbanização e o crescimento econômico, restando claro que a lógica do país “mais branco” trazia um objetivo mercadológico/patrimonial/produtivo evidente - “os abolicionistas queriam que os europeus trouxessem para o país uma corrente de sangue caucásico vivaz, enérgico e sadio, que pudéssemos absorver sem perigo”. A dificuldade do movimento de “branqueamento” da raça brasileira, acreditase, foi enfrentar o sistema multirracial12. Não se tinha sectarismo no Brasil, muito por conta dos surtos de produção de açúcar (nordeste), ouro e diamante (centrosul) e café (sul). Em todos esses lugares tinha-se uma população significativa de escravos. “Em 1819, segundo estimativa oficial, nenhuma dessas regiões tinha menos de 27% de escravos na população total” (SKIDMORE, 1976, p. 59). Como falar em branqueamento no Brasil? Curiosamente, percebeu-se um aumento da população branca no Brasil entre 1890 e 1950. Os dados oficiais demonstravam que a porcentagem de brancos passou de 44% em 1890 para 62% em 1950. A imigração avassaladora de brancos (a partir de 1890, três milhões de europeus radicaram-se no Brasil), a baixa taxa de natalidade da população negra, a alta taxa de mortalidade dos filhos negros (pelas péssimas condições de sobrevivência), foram contribuintes para esse aumento. O “ideal de branqueamento, assim como o sistema social tradicionalista, ajudou outros países, principalmente nos Estados Unidos. A escravidão se tornara menos perniciosa, principalmente depois de 1850. Preconceito de cor no Brasil? Senhores, eu conheço muitos indivíduos de pele escura que valem mais do que muitos de pele clara. Esta é a verdade. Não vemos nas escolas, nas academias, nas igrejas, ao nosso lado, homens distintos, bons estudantes, de pele de cor? Não vemos no parlamento, no governo, no Conselho de Estado, em missões diplomáticas, no exército, nas repartições públicas, gente de pele mais ou menos escura, de raça mestiça mesmo com a africana?” (SKIDMORE, 1976, p. 39) 12 “E quais as origens do sistema multirracial? O Brasil já tinha antes da abolição grande número de homens de cor. Os escravos eram provavelmente, em maior número que os homens livres (brancos e de cor) no Brasil do século XVIII. Aparentemente a população livre de cor crescera muito depressa no século XIX. (....) A fertilidade diferencial foi um segundo fator na criação do sistema multirracial. (...) Os dados demográficos concluíram quem que a população preta reproduziu-se num ritmo mais lento depois da Abolição do que a branca e a mulata. (...) A relativa ausência de sectarismo no Brasil foi outro fator que ajudou a produzir um sistema multirracial”. (SKIDMORE, 1976, pp. 55-59) volume 15 87 i encontro de internacionalização do conpedi a definir também a escolha das fêmeas em relação à raça dos parceiros, optando assim, sempre pelos mais claros” (SKIDMORE, 1976, p. 61-62). “Quanto mais branco, melhor; quanto mais claro, superior” (SCHWARCZ, 2001, p. 49). O branco representa(va) muito mais que uma cor, mas uma qualidade social de muito valor; simboliza(va) progresso, limpeza, normalidade, aceitação, inclusão social e vias de cidadania. Os negros (e miscigenados) eram (e ainda são) animalizados e estigmatizados (sobretudo pela ciência) como sujos, degenerados, anormais, criminosos, etc; precisa(vam) ser excluídos de forma eficaz para não comprometer ainda mais o progresso do país. Vivia-se a complexa passagem da escravização à ordem do trabalho “livre”, que agora possuía novos personagens: de um lado negros (ex-escravos), de outro, imigrantes (brancos “livres”), que necessitavam de novas formas disciplinares. O trabalhador branco deveria estar sempre pronto para enfrentar o trabalho árduo e não estava isento dos efeitos racistas, ou seja, novas dinâmicas de relações sociais e de controle. O Estado, por sua vez, enfrentava a dificuldade do controle de pessoas livres (brancos imigrantes, negros e mestiços) sem trabalho, desocupadas, doentes, e com isso, desse novo corpo proveio “o modelo de fardo social, a produzir os sentidos do que passou a ser chamado de ‘deficiência’, objeto de novas coerções eugênicas ou sanções normalizadoras médico-pedagógicas”. (LOBO, 2008, pp. 216-217) O pensamento racial que gerava discussões abertas no mundo europeu foi absorvido (mimeticamente) pelos teóricos brasileiros de pacote fechado, sem nenhum senso crítico. Essa nova percepção de mundo era, portanto, devedora da lupa europeia de análise. Do ponto de vista intelectual, o negro era o menos evoluído, retardado mental, sem capacidade de aprendizagem; moralmente, era pervertido, degenerado, com tendências criminosas e violentas; no aspecto físico, era o mais sujeito às doenças. Ou seja, os negros levariam à degeneração da raça “produtiva” brasileira. Por isso o apoio à imigração de brancos europeus. Era preciso substituir a mão de obra do trabalhador escravo negro por europeus brancos (de preferência do norte da Europa), para que assim o Brasil melhorasse a raça (sem doenças físicas e mentais) e garantisse uma boa produtividade no mercado de trabalho (LOBO, 2008, p. 197). 88 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi Nessa linha, Rodrigues (2010, pp. 14-15) destaca: A Raça Negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontestáveis serviços à nossa civilização, por mais justificadas que sejam as simpatias de que a cercou o revoltante abuso da escravidão, por maiores que se revelem os generosos exageros dos seus turiferários, há de constituir sempre um dos fatores da nossa inferioridade como povo. (...) Este juízo obedece, na sua emissão franca e leal, não só ao mais rudimentar dever de uma convicção cientifica sincera, como aos ditames de um devotamento respeitável ao futuro da minha pátria. Com o racismo científico e o evolucionismo houve um deslocamento na observação: o negro passou a ser um objeto da ciência. E como tal, possuía feições múltiplas: “uma do passado, — estudo dos negros africanos que colonizaram o país; outra do presente: — Negros crioulos, Brancos e Mestiços; a última, do futuro: — Mestiços e Brancos crioulos” (RODRIGUES, 2010, p. 18). “Futuro e valor social do Mestiço ário-africano no Brasil: tal, pois, a fórmula do nosso problema ‘O Negro’”. Rodrigues (2010, p. 17) entendia que o problema era de natureza complexa ao extremo e que demandava investigações em domínios das mais variadas competências, mas que acabava sendo muito difícil a observação num país governado sem estatísticas, e consequentemente sem estrutura para executar tais pesquisas. Para Nina Rodrigues, a miscigenação resultaria em indivíduos desequilibrados, híbridos fisicamente, degenerados intelectualmente e com desvios comportamentais, sendo fatal para o progresso da nação. A imagem da miscigenação constituía o ponto inicial para o entendimento da situação sóciopolítica do país, e por isso, tanta preocupação. A saída digna para garantir o futuro da nação era “purificar” o sangue dos brasileiros. A solução defendida por João Batista Lacerda, no I Congresso Internacional das Raças (em 1911) era prática: o embranquecimento da população. O objetivo principal não estava focado em aguardar a melhoria da raça pelo embranquecimento, nem tampouco em coibir os cruzamentos. O movimento eugênico brasileiro no início do século XX, apostava em medidas preventivas: (a) higienizá-los por meio do exame e do certificado pré-nupcial; (b) esterilização dos volume 15 89 i encontro de internacionalização do conpedi anormais. E não eram só negros e mestiços que ofereciam riscos para o futuro da nação, mas os “anormais” e todos os pobres, que sempre foram responsáveis pela miséria moral e material e agora, pela degeneração da espécie. Em resumo, a grande preocupação dos médicos cientistas era com as elites, na reformulação da organização familiar (de origem colonial). O projeto científico evolucionista era assegurar uma prole sadia, evitando a reprodução das taras13 hereditárias que também degeneravam as raças (LOBO, 2008, pp. 203-204). O foco era o progresso da nação e a justificativa era romper com o atraso. Ordem e progresso! Era o lema moderno. Na hierarquia racial brasileira em que o branco europeu ocupava a alta cúpula social (como civilizado, superior e sadio), que o negro e o indígena eram classificados como selvagens, primitivos e inferiores, e que os miscigenados eram degenerados, o projeto político de salvação nacional – por critérios “científicos” – era a prática eugênica (que ia da discriminação até a exclusão dos seres subjulgados inferiores). Fazia-se necessário salvar o Brasil, com urgência... 4.a escola nina rodrigues: por uma antropologia criminal à br asileir a Raimundo Nina Rodrigues é reconhecido como o grande nome da Medicina Legal brasileira. Fundador do que se denominou de “Escola Nina Rodrigues14”, 13 “A palavra tara, dicionarizada como defeito físico ou moral e degeneração, depravação, tem sua origem na palavra árabe tarah: ‘o que se rejeita (das mercadorias)’. De fato, podese depreender que os assim chamados ‘tarados’ (como cegos, surdos-mudos e outros) eram considerados refugo e, assim, rejeitados e excluídos”. (MACIEL, 1999, p. 136) 14 Os dois grandes nomes da Escola Nina Rodrigues são Afrânio Peixoto e Arthur Ramos. Seu primeiro e maior discípulo, o médico (romancista, político e crítico literário) Afrânio Peixoto, tornou a obra do médico maranhense nacionalmente reconhecida, difundindo o pensamento da Escola e proporcionando reformas promissoras. Era contra a imigração de negros no Brasil, exatamente por compactuar com a teoria da degenerescência e considerar todas as consequências desastrosas na população oriundas da miscigenação. Em 1897 escreveu sua tese inaugural “Epilepsia e crime”, trabalho que abordava a “persistência das percepções e da consciência, até nas grandes crises convulsivas”, derrubando assim os velhos dogmas da psiquiatria sobre a inconsciência das crises de qualquer gênero. Em 1907 reformou o serviço médico-legal do Distrito Federal, dando continuidade ao legado de Nina (CORRÊA, 1982, p. 189). Arthur Ramos foi outro discípulo de destaque da referida Escola. Estudou medicina na Bahia, onde ficou famoso pelo seu interesse em psicanálise. Junto com Afrânio Peixoto deu início às reedições dos livros esgotados de Nina Rodrigues. Estava em busca da solução mais científica e mais humanizada para a mistura de raças e culturas. Foi o pioneiro dos modernos 90 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi trouxe como nexo comum na sua extensa obra os estudos sobre perícia médicolegal e antropologia das relações raciais, contribuindo intensamente para o desenvolvimento das ciências sociais no Brasil. Um dos focos de Nina Rodrigues e seus seguidores era a definição da sociedade brasileira enquanto povo e do país enquanto nação, colocando as relações raciais como questão principal. Seus trabalhos impregnados de teorias científicas e de interesses políticos procuravam respostas para estas questões, bem como critérios de acessos à plena cidadania e à construção de imagens ideais do país. As pesquisas de Nina Rodrigues15 sobre a diversidade étnico-cultural e social do Brasil estruturaram-se na linha racial-evolucionista (advinda dos estudos antropológicos europeus), visando estratégias que possibilitassem compreensões e soluções sobre a questão da unidade nacional. E nessa época o saber médico passara a regular, de forma muito mais intensa, a vida individual das populações e das instituições urbanas. No período de produção científica de Nina Rodrigues, esse caráter regulador da medicina, embora estabelecido, necessitava de maior consolidação e esse autor trabalhou em tal sentido (MACHADO et al., 1978). Apoiado na teoria da degenerescência (ou degeneração) Nina criou uma antropologia criminal, que deveria ser aplicada como elemento purificador e preventivo dos processos de degeneração, que para ele, encontravam-se ativos na população brasileira. 4.1.nina rodrigues e os estudos sobre degenerescência: quais as causas e as consequências? Nina exibia claramente a sua filiação à escola italiana. As novas ideias de Lombroso, Ferri e Garófalo - que buscavam as causas do crime e da criminalidade em âmbitos individuais, físicos e sociais e compunham a base da Criminologia Positivista - ampliaram-se no Brasil e foram absorvidas por este e outros estudos brasileiros de antropologia social, história cultural e social. Na concepção de Ramos (1937, p. 188), Nina Rodrigues “foi um sábio que criou um nome científico que ultrapassou fronteiras do nosso país, impondo-se à consideração dos circuitos internacionais, sem haver saído da província, sem intervenções diplomáticas e sem recomendações oficiais”. 15 Não só Nina Rodrigues, mas vários autores da época debruçaram-se sobre o tema, tais como Juliano Moreira, Arthur Ramos, dentre outros. volume 15 91 i encontro de internacionalização do conpedi pesquisadores nacionais. Na concepção de Duarte (2006, p. 138), a criminologia Positivista, atrelada às teorias raciais, gerava uma aliança entre técnica e ciência, possibilitando o deslocamento da problemática das diferenças entre as raças e da superioridade da raça branca, desde um problema de justificação da ordem atual para a implementação de uma política de controle social efetivo. Sobre a inviabilidade social do mestiço, com o reconhecimento de uma influência degenerativa nos cruzamentos humanos, Nina considerava que foi a psicologia criminal que afirmou a possibilidade dessa consequência do cruzamento. “No segundo Congresso de Antropologia Criminal, em Paris, em 1889, Clémence Royer invocou pela primeira vez a influência degenerativa da mestiçagem na etiologia do crime” (RODRIGUES, 2008, pp. 01-03). Bom, em tais condições, fazia-se necessário resolver o problema através da observação direta e imediata da sociedade. Rodrigues (2008, pp. 05-07) entendia que a observação voltada para todo um povo ou para casos muito específicos não poderia trazer provas “com as luzes soberanas da verdade”. Num país sem o recurso a estatísticas era quase impossível distinguir a influência da mestiçagem entre as outras causas complexas, suscetíveis de produzir sua decadência. Para evitar esses problemas, em suas pesquisas empíricas procurou preencher duas condições fundamentais: “(a) estudar pequenas localidades, (pois seria mais fácil distinguir as diferentes causas degenerativas); (b) completar o estudo da capacidade social da população através do exame de sua capacidade biológica escalonada sobre sua história médica”. Dessa forma, resolveu pesquisar a comarca de Serrinha (Bahia). Este lugar era conhecido por apresentar índices significativos de tuberculose pulmonar. Não havia endemias sérias, mas a malária se destacava na época. A população era composta predominantemente de mestiços, mas se encontrava, de forma geral, três tipos raciais: o pardo (que reunia as três raças, branca, negra e amarela), os negros (em grande maioria) e os brancos (em pequeno número). Os curibocas também se faziam presentes; eram descendentes diretos dos índios, mas encontrados muito raramente16 (RODRIGUES, 2008, pp. 06-07). 16 Para Nina Rodrigues (1957, pp. 84-86), podia-se distinguir na população brasileira (em geral) uma grande maioria de mestiços dos mais variados cruzamentos e uma minoria de elementos 92 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi Propôs-se a verificar se a população tinha o vigor e a atividade que se podia esperar de uma população nova, saudável e fortificada pelo cruzamento. Partindo dessa hipótese17, constatou que a tendência à degenerescência era tão acentuada em Serrinha quanto poderia ser num povo decadente e esgotado. “A propensão às doenças mentais, às afecções graves do sistema nervoso, à degenerescência física e psíquica era das mais acentuadas” (RODRIGUES, 2008, p. 8). E quais eram as causas e as condições originárias que fomentavam tal quadro? Nina concluiu que as condições locais, climáticas, higiênicas, sanitárias e de consanguinidade eram as respostas mais importantes, mas destacou que especialmente esta última era a causa maior dessas manifestações: As causas reais das manifestações mórbidas ou de degenerescência estudadas na população de Serrinha devem ser mais longínquas e mais poderosas, e essas causas não são outras senão as más condições nas quais se efetivaram os cruzamentos raciais dos quais saiu a população da localidade analisada. O cruzamento de raças tão diferentes antropologicamente, como são as raças branca, negra e vermelha, resultou num produto desequilibrado e de frágil resistência física e moral, não podendo se adaptar ao clima do Brasil nem às condições da luta social das raças superiores. Rodrigues (2008, p. 18) (grifo nosso) antropológicos puros não cruzados, são eles: “ (1) a raça branca - representada pelos brancos crioulos não mesclados e pelos europeus, ou de raça latina, principalmente portugueses e hoje italianos em São Paulo, Minas, etc, ou de raça germânica, os teuto-brasileiros do sul da república; (2) a raça negra - representada pelos poucos africanos ainda existentes no Brasil, principalmente Estado, e pelos negros crioulos não mesclados; (3) a raça vermelha, ou indígena - representada pelo brasilio-guarani selvagem que ainda vagueia nas florestas dos grandes estados do oeste e extremo norte. (...) Os mestiços brasileiros carecem de unidade antropológica e também podem ser distribuídos por um número variável de classes ou grupos, compreendem: (1) os mulatos – produto do cruzamento do branco com o negro, grupo muito numeroso, constituindo quase toda a população de certas regiões do país e divisível em: a) mulatos dos primeiros sangues; b) mulatos claros, de retorno à raça branca e que ameaçam absorvê-la de todo; c) mulatos escuros, cabras produtos do retorno à raça negra, uns quase completamente confundidos com os negros crioulos, outros de mais fácil distinção ainda; (2) os mamelucos ou caboclos – produto do cruzamento do branco com índio; (3) curibocas ou cafusos – produto do cruzamento do negro com índio. Este mestiço é extremamente raro na população. (4) Pardos – produto do cruzamento das três raças e proveniente principalmente do cruzamento do mulato com o índio ou com os mamelucos caboclos”. 17 Sobre detalhes metodológicos da pesquisa, ver Rodrigues (2008). volume 15 93 i encontro de internacionalização do conpedi Por um viés diferente de Morel, o médico maranhense chegou à ligação da degenerescência-enfermidade, cuja análise é fundamental para o presente trabalho. Com estas pesquisas, pela primeira vez18 um autor brasileiro aproximou categorias distintas (raciais, biológicas e psiquiátricas), sobretudo a questão racial na identificação do criminoso. Eis a formação fundamental para a análise sobre controle social no Brasil, o quarteto quase-fantástico: NEGRO/MESTIÇO → DEGENERADO → DOENTE MENTAL → CRIMINOSO. Qual era, então, o efeito da mistura de raças na natureza mental e em termos de criminalidade? Essa certamente era uma pergunta fundamental para os novos propósitos dos estudos de Nina que agora estavam voltados para a garantia da ordem social. Parece que a mistura entre raças de homens muito diferentes produzia um tipo mental sem valor, que não servia nem para levar a vida da raça superior, nem da inferior, e não era apropriada a nenhum gênero de vida, afirmava Rodrigues (2008, p. 23). A dissolução do caráter provinha dos desdobramentos de tendências hereditárias opostas, que criavam no mesmo indivíduo motivos de deliberação e de ação, diferentes ou contraditórios. No que se refere à questão da criminalidade dos povos mestiços, Nina julgava estar suficientemente demonstrada a alta violência. A impulsividade das raças inferiores representava um fator de primeira ordem na criminalidade, mas compreendia-se facilmente que a impulsividade criminal poderia ser, em grande medida, uma simples manifestação da anomalia que fazia com que os criminosos não conseguissem adaptar-se ao meio social. Concluiu que o crime, como as outras manifestações de degenerescência dos povos mestiços - tais como a teratologia e a degenerescência-enfermidade - “estava intimamente ligado, no Brasil, à decadência produzida pela mestiçagem defeituosa de raças antropologicamente muito diferentes e cada uma não adaptável, ou pouco adaptável, a um dos climas extremos do país: a branca ao norte, a negra ao sul” (RODRIGUES, 2008, 18 Faz-se interessante destacar que Lombroso trabalhou a tese do criminoso nato, procurando as causas do crime no criminoso, utilizando paradigmas biológicos, mas não trabalhou especificamente a questão das raças (mestiçagem e degenerescência). Sobre o assunto ver, Lombroso (1896). 94 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi pp. 27-44). A associação do crime às manifestações degenerativas e seu retorno aos sentimentos indomáveis (dos instintos bárbaros ou selvagens), não deixava qualquer dúvida a esse respeito. Essa associação criada e “cientificamente” identificada nas pesquisas de Nina gerou e ainda gera consequências diretas na construção do pensamento jurídico-penal, nas práticas político criminais, no senso comum teórico (que são microssistemas penais individuais) e em todo o funcionamento do Sistema de Justiça Criminal brasileiro. Ou seja, o controle social formal e informal é até hoje baseado com ênfase nessa equação perpetuada desde o final do século XIX, que diariamente é (re)legitimada como uma das grandes justificativas (científicas) dos mecanismos de punição (de todas as ordens). O estereótipo dos etiquetados como criminosos no Brasil engloba (de forma geral) as características observadas por Nina e, posteriormente, foi sendo complementado por outras categorias: criminoso/homem = doente = degenerado = violento = negro/mestiço = pobre/excluído. Ressalta Andrade (2003, p. 21) que nessa lógica matemática o código hegemônico da violência não casualmente coincide com a descrição de alguns crimes (contra os corpos e patrimônio) no Código Penal, com as lições manualescas da Criminologia tradicional e com a seletiva clientela do sistema penal. “O senso comum da criminalidade coloniza inteiramente, submetendo ao seu reduto o senso comum da violência”. Os portadores de sofrimento psíquico que estão submetidos ao controle social formal (sistema de justiça criminal) também se encaixam perfeitamente a essa moldura construída para controle e regulação. Na realidade, Nina quando fez essas aproximações estabeleceu que o criminoso era fruto de uma degenerescência (racial), que levaria à uma debilidade (mental), tornando-o potencialmente perigoso e consequentemente criminoso. Por isso também, tem-se de forma corriqueira, sobretudo em casos de crimes sanguinários com apelos midiáticos intensos, a aproximação entre crime e doença mental, como forma de justificar (“cientificamente”) as causas do ocorrido. Nina Rodrigues conseguiu então um glorioso feito para a escola positiva brasileira: identificar de forma mais precisa - atendendo as particularidades da volume 15 95 i encontro de internacionalização do conpedi sociedade e diferenciando-se nisso das pesquisas lombrosianas – as origens do potencial de periculosidade social, indevidamente associada pelos positivistas ao conceito de anormalidade, justificando assim, a pena privativa de liberdade e as medidas de segurança como meios de defesa social. Com o foco em saúde pública e ordem social, Nina Rodrigues também admitiu que, além das práticas criminosas serem manifestações de degenerescência dos povos mestiços, os brancos também cometiam crimes. Ambos eram ameaças sociais e os dois deveriam ser retirados da vida em sociedade, mas por razões diferentes: “os negros porque estavam historicamente defasados em relação a ela, os brancos por não terem se adaptado às normas de conduta que eles próprios produziram” (CORRÊA, 1982, p. 08). Para o mesmo fim (cometimento de delitos), e com soluções aparentemente semelhantes (retirada do indivíduo do convívio social), o autor construiu justificativas muito bem definidas e distintas, com ênfase racista e biológica, buscando as causas (científicas) desses impulsos criminais. Pode-se exigir que todas estas raças distintas respondam por seus atos perante a lei com igual plenitude de responsabilidade penal? Pode-se conceber que a consciência do direito e do dever que têm essas raças inferiores, seja a mesma que possui a raça branca civilizada? Ou que, pela simples convivência e submissão, possam aquelas adquirir, de um momento para outro, essa consciência, a ponto de se adotar para elas conceito de responsabilidade penal idêntico ao dos italianos, a quem fomos copiar nosso código? (RODRIGUES, 1957, p. 106) Realmente responder a essas questões exigiria um bom conhecimento em ciências biológicas. Destacava que o Código Penal brasileiro, até então, longe desses estudos, refletia um ensino religioso arcaico (pelo princípio da igualdade), que do ponto de vista do livre arbítrio, devia ser tão injusto nos domínios penais, quanto nos domínios sociais. Em resumo, a grande dificuldade estava em avaliar a responsabilidade do índio e do negro (já incorporados à nossa sociedade) gozando dos mesmos direitos dos brancos e colaborando na civilização do país (RODRIGUES, 1957, pp. 107-108). Sem abandonar a hereditariedade, a consequência mais relevante dessa nova perspectiva penal e política foi o deslocamento da questão da responsabilidade. 96 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi “A liberdade de vontade, a intenção de atuar conscientemente de determinada maneira, deixava de ser relevante no julgamento de um ato, uma vez que cada um estava predeterminado pela sua pertinência a certas classes biológicas” (CORRÊA, 1982, p. 65). A questão da responsabilidade não girava mais em torno do livrearbítrio (como considerava a escola clássica), passando-se a investigar quais as medidas de defesa social seriam mais adequadas para lidar com aquelas ameaças. No modelo liberal contratualista a responsabilidade penal do autor era avaliada pela sua capacidade volitiva e de cognição. O pressuposto da punição era exatamente a possibilidade de conhecimento da norma incriminadora e sua violação voluntária. Logo, a culpabilidade19 (estruturada no conceito de livrearbítrio) fundamentava e legitimava a aplicação da pena. Com o surgimento da criminologia positivista o conceito de periculosidade entrou em cena, colocando em xeque a ideia de reprovabilidade penal pautada na culpabilidade. O positivismo criminológico negava a culpabilidade ao sustentar como evidência empírica “não ser o crime ato humano resultado de vontade livre do sujeito, mas derivado de causas alheias, de fatores endógenos ou exógenos que anulam qualquer vontade, pois determinantes” (CARVALHO, 2010, p. 156). A periculosidade passou a ser entendida, desde então, como o grau de probabilidade do impulso criminal do indivíduo. Quanto maior a chance de cometer crimes (devidamente comprovado pelas ciências?), maior a periculosidade do agente. Nessa ordem, fez-se necessário aprimorar as perícias médico-legais para promover diagnósticos e prognoses futuras confiáveis. 4.2.a luta por uma medicina judiciária O crime já não era uma entidade simplesmente teórica, uma abstração jurídica, mas um fato concreto, “jogado à mercê de rijos determinismos”. Era preciso um estudo investigativo forte sobre as causas da criminalidade, como meio de assegurar uma defesa social eficaz. Os estudos raciais, por si só, não sustentavam tais propósitos, então, era preciso avançar por outras vias: o estudo antropo-psicológico dos delinquentes (que sucedeu ao lombrosionismo puro das 19 Sobre o tema, consultar: Tangerino (2011). volume 15 97 i encontro de internacionalização do conpedi simples anomalias morfológicas) passou a ser a preocupação absorvente de todos os criminologistas! (RAMOS, 1937, p. 167). Utilizando uma teoria que deslocava a ênfase da saúde ou da doença para o doente, transformava-o em objeto individualizado de um saber autorizado e autoritário, pautado no paradigma etiológico. Os modelos (jurídico e médico) deixavam de ser heterogêneos, passando a fundir-se (em saberes específicos), na produção de mecanismos técnicos que pudessem diagnosticar (quando necessário) e punir os indivíduos que causassem danos à sociedade. A intersecção dos saberes médicos e legais produziria um terceiro tipo de conhecimento, o qual observaria a sociedade como um corpo a ser conhecido em todas as suas etapas (nascimento, desenvolvimento, enfermidades e mortificação). Assim, se a medicina (clínica) curava ou prevenia (higiene), a sua versão médico-legal20 seria fundamental para diagnosticar e indicar o tratamento adequado - dentro dos ditames médicojurídicos -, em casos de atentados contra a normalidade da vida social (CORRÊA, 1982, p. 68). Ramos (1937, p. 201) destacava que Nina alargou demasiadamente o campo teórico e prático da medicina legal, não restringindo as investigações aos problemas de laboratório, autopsia ou clínica forense, mas estendendo às questões de psicologia patológica, antropologia criminal, etnografia religiosa, sociologia, entre outros campos de conhecimento. Nina Rodrigues sustentava a necessidade de uma assistência médico-judiciária aos alienados, bem como os estudos científicos do crime e do criminoso, juntamente com todas as formas modificadoras da responsabilidade. Para ele, deveria existir uma clínica psiquiátrica junto à Faculdade de Medicina, exigindo para todos os estudantes da área um estágio na psiquiatria, e para os médicos peritos de asilos e prisões, uma frequência mais prolongada nesses estabelecimentos. Nesse período da Faculdade médica baiana, Nina associou a Criminologia à Medicina Legal. Esta obteve uma função mais ampla que a simples tarefa pericial: deixou a modesta 20 “A medicina legal foi uma das primeiras disciplinas a conquistar um espaço institucional próprio e a definir seu agente: o perito. Tempos depois a perícia médico-legal se fragmentará nas mãos de muitos especialistas, mas sua metodologia e alguns dos objetos que Nina Rodrigues definiu ao enfatizar sua autonomia nacional, serão apropriados pela Antropologia” (CORRÊA, 1982, p. 69) 98 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi ciência dos médicos auxiliares da justiça e passou a guiar também os legisladores (RAMOS, 1937, pp. 197-199). Os peritos passaram a ocupar o famoso lugar dos “operadores secundários do direito”, como diria Lopes Jr. (2007). Indagava-se agora a via higiênica e social; esse seria o caminho para corrigir a natureza a aperfeiçoar o homem. A medicina legal, com a nova figura do perito, ao lado da polícia (e do judiciário) explicaria a criminalidade e determinaria a loucura (Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife, 1919, p. 54). A constituição da medicina legal como disciplina autônoma era uma luta de Nina pela preservação da medicina institucional. Essa especialização, segundo Corrêa (1982, p. 103), serviria tanto como organização interna do saber médico, como para cumprir uma função ideológica. Com as especialidades e duas Faculdades médicas em destaque, em outro nível de avaliação, gerou uma disputa pela hegemonia na medicina. Os médicos da Faculdade do Rio de Janeiro buscavam sua originalidade nas descobertas de doenças tropicais, que deveriam ser sanadas pelos programas higiênicos. Os médicos baianos seguiram a mesma rota afirmando que o cruzamento racial era o grande mal do país e, ao mesmo tempo, a maior diferença. Os cariocas tinham a doença como foco de combate e os baianos tinham o doente como ponto de análise. “Era a partir da miscigenação que se previa a loucura e entendia a criminalidade, ou, nos anos 20, se promoviam programas eugênicos de depuração” Schwarcz (1993, p. 190). Mas apareceu um novo debate. A medicina quando deparada ao Direito tentava se afirmar enquanto saber superior. “O objetivo era curar um país enfermo, tendo como base um projeto médico-eugênico, amputando a parte gangrenada do país, restando uma população de possível perfectibilidade” Schwarcz (1993, p. 190). O homem do direito seria um assessor que colocaria na lei o que o perito médico indicasse e com o tempo sanaria o problema. Nas faculdades de Direito o discurso era outro. Cabia ao jurista codificar e dar uma forma unificada ao país, sendo o médico apenas um técnico que auxiliaria no desempenho daquele profissional. Uma proposta diferente estava em questão. Ao elemento racial de investigação, agregavam-se as pesquisas sanitaristas, os modelos de educação e os moldes disciplinares. Os “novos olhares” aproximavam-se, com saberes científicos diversos, volume 15 99 i encontro de internacionalização do conpedi com ditas “novas” explicações, causas, diagnósticos, tratamentos e controles, mas com velhos ranços do passado. 4.3.o controle social dos degener ados O médico Nina Rodrigues enfatizava que se faziam necessários, no mínimo, dois códigos no país; um para negros e um para brancos, tamanha era a diferença entre as raças. Como a questão nacional passou a ser entendida pela raça, anulava-se a discussão sobre cidadania no contexto da nova República. Nessa ordem, passou a criticar a legislação penal brasileira, “sugerindo ao Legislador o preenchimento de lacunas, em busca de uma defesa social com atenção aos modificadores da imputabilidade”, recaindo diretamente sobre a garantia eficaz da ordem social21 (CORRÊA, 1982, p. 132). A adoção de um código penal único era um grande equívoco na concepção de Nina Rodrigues, por não corresponder à realidade social e não atentar aos princípios mais elementares da natureza humana, ou seja, não levava em consideração as diversidades étnicas. Devido às acentuadas diferenças (inclusive climáticas) do Brasil, para efeitos de legislação penal, sugeria uma divisão entre as quatro grandes regiões do país e diferentes formas de punição. Em crítica à Escola Clássica, entendia que esta não só era irracional e insustentável por se firmar em contradições, como insuficiente. E argumentava: 21 As ideias de Nina de tratamento diferenciado para as diferentes raças e para os alienados são oriundas de Philippe Pinel, na França. Este, por sua vez, após uma disposição normativa de 1793 – que exigia o recolhimento de desviantes das ruas aos asilos e hospícios – foi nomeado o primeiro diretor de um hospital exclusivo para alienados. Pinel foi o fundador da psiquiatria, não apenas por sua atuação em prol das reformas dos hospícios de alienados, mas, sobretudo, por introduzir uma diferenciação metodológica entre a observação dos fenômenos psicológicos e a tentativa de explicá-los. Defendeu que era preciso separar os loucos dos marginais, enfatizando que era necessário reconhecer os alienados pela sua condição de doentes, mesmo tendo cometido algum tipo de injusto. A solução para esses casos seria o asilo em instituições psiquiátricas. “Entregues aos cuidados médicos, receberiam a devida assistência no controle de sua doença, através da promoção do tratamento moral em seu corpo sensível. A ideia era reprimir a violência natural dos alienados. Nesse sistema terapêutico criado por Pinel, o confinamento e o isolamento eram fundamentais e visavam, ao mesmo tempo, afastá-lo do ambiente costumeiro, oferecer medidas de segurança à sociedade e ao próprio alienado e melhor observá-lo para melhor tratá-lo” (PINEL, 2007, pp. 15-27). O impacto do tratado de Pinel (em 1800) reformulou o Código Penal Francês de 1810. Pela primeira vez a loucura obteve uma importância significativa, e esta condição de diferente gerou um “estado de exceção” (BARROS-BRISSET, 2011, pp. 11-12). 100 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi Infelizmente o Brasil é país em que a Constituição republicana cometeu o grande duplo erro em adotar, com a unidade do código penal, a dualidade da magistratura; (...)em que a execução das penas, os meios penais, nunca obedecem ainda hoje, a um sistema racional qualquer; (...) em que os alienados, a não ser no Rio de Janeiro, estão em condições mais precárias do que os da França antes de Pinel; em que além da ausência completa de meios educativos de eficácia real, a infância se acha de todo sem proteção contra a aprendizagem e a educação do crime (RODRIGUES, 1957, pp. 165-166). O negro tinha caráter instável como o da criança, e por isso, possuía uma “cerebração incompleta”. Num meio de civilização adiantada ele destoava dos demais. “As suas impulsividades são tanto melhor e mais frequentemente para o ato anti-social, quanto as obrigações lhes aparecem mais vagas e menos adaptáveis às condições da sua moralidade e do seu psíquico”, sustentava Rodrigues (1957, pp. 117-118). Tinha-se uma presunção lógica: a responsabilidade penal, fundada na liberdade do querer, das raças inferiores, não poderia ser equiparada a das raças brancas civilizadas. No entanto, o problema requereria sempre uma apreciação das individualidades no caso concreto, e não deveria ser solucionado em termos gerais de raça. Seu argumento fundamental era a negação do livre-arbítrio. Apoiado em Spencer, Haeckel, Ribot, Clóvis Beviláqua, ele contestava a liberdade da vontade, afirmando que a escolha de motivos era “tão somente a resultante da organização psico-fisiológica do indivíduo” (RODRIGUES, 1957, p. 55). Era simples na visão do referido médico, ou punia sacrificando o livre-arbítrio, ou respeitava tal princípio em detrimento da segurança social. Além dos presos comuns, sua preocupação perpassava pelos alienados em geral. Pontualmente sobre os “alienados baianos”, Nina Rodrigues por várias vezes manifestou-se quanto à insalubridade dos alojamentos do hospital destinados ao setor, denunciando práticas indevidas numa série de artigos no Jornal de Notícias (1904). Clamava por um hospital de alienados modelar, com o emprego de métodos psiquiátricos mais delicados e modernos (CORRÊA, 1982, p. 121). E chamava a atenção de que o Brasil tinha (tem) um péssimo hábito de transplantar modelos que só se adapta(vam) às condições muito particulares de outros povos; ou seja, não funciona(ria) no Estado brasileiro. volume 15 101 i encontro de internacionalização do conpedi Apesar das críticas ácidas ao sistema, Nina Rodrigues tinha uma proposta prática: criar (ainda na Bahia) um pequeno asilo-hospital, onde seriam incorporados todos os asilos conhecidos. Corrêa (1982, p. 123) informa que este modelo inicial (vinculado a uma proposta de legislação estadual) permitiria uma expansão gradual do sistema, proporcionando à cidade a assistência asilar satisfatória, é ela: o hospital para os casos graves; a colônia para os crônicos que pudessem trabalhar e o hospício para os alienados incorrigíveis e inválidos. Explicando que o asilo-hospital poderia funcionar com uma dinâmica aberta ou fechada e que funcionaria também como escola técnica para médicos. Assim, defendia esse sistema asilar diferenciado como contraponto à prisão, “que servia como segregação desumana e perigosa dos pobres”. Ergueram-se assim, dois grandes importantes sistemas formais de controle: um sustentado pelo discurso jurídico-penal; outro apoiado pelos saberes médicospsiquiátricos. Apesar da intersecção e das relações de dependência entre eles, seus fundamentos, suas técnicas e seus procedimentos eram diferentes. Entretanto, a meta do discurso prático e funcional era uma só: eficácia e (re)legitimação do controle social formal. 5.o fantasma de nina rodrigues nos “tr atamentos” destinados aos portadores de sofrimento psíquico submetidos ao sistema de justiça criminal br asileiro A conexão entre os saberes jurídico-penal e médico-psiquiátrico fortaleceu os discursos e as técnicas de guerra de um sistema de justiça criminal voltado para o controle e regulação social dos sujeitos indesejáveis, que numa estrutura maniqueísta representam o mal social. No polo demonizado (cujo estereótipo já é conhecido desde o século XIX) encontra-se também o indivíduo portador de sofrimento psíquico, que por si só já representa “perigosidade social”. Isto porque, esta dita “perigosidade” é entendida ameaçadora para a própria comunidade no qual está inserido e para o próprio indivíduo. O indivíduo portador de sofrimento psíquico que comete um injusto penal é engolido (de forma voraz) pelo Sistema Penal. Este se apropria do problema 102 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi (de forma narcísica como salvador da pátria22) manifestando a dupla função de proteção já mencionada - e exerce toda sua força de “guerra” ao racionalizar a vingança comunitária. Aqui a rotulação da “periculosidade” cumpre um duplo papel: imantar a necessidade de tratamento via imposição de diagnóstico de doença mental e também contemplar a necessidade de neutralização penal, via exclusão. “A periculosidade torna-se o principal atributo do louco e paradoxalmente vai produzir a necessidade de segregação por meio da defesa social e o aparecimento das medidas de segurança no final do século XIX”. (MATTOS, 2006, p. 57) O projeto científico então é claro e inegociável: realizar análise empírica individual (microscópica) entre os indivíduos integrantes dos grupos que apresentam características delituais, com o intuito de identificar (diagnóstico) a origem causal patológica (etiologia), de forma a projetar tratamento (prognóstico) para anular ou reprimir o impulso criminal do indivíduo (periculosidade). (CARVALHO, 2010, P. 157) A atuação do Estado continua sendo de controle social através do uso de uma violência institucionalizada23, desenvolvida dentro do sistema penal24. As medidas de internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico (antigo manicômio judiciário) são vistas como forma de inocuização, segregação e neutralização. Como função oculta, funciona como estufa para mudar pessoas; cada uma é um experimento natural sobre o que se pode fazer ao eu (GOFFMAN, 2005, p. 22). As instituições totais não têm interesse na preservação da relação do doente com o meio externo. Pelo contrário, as relações familiares, culturais, interpessoais, 22 Sobre o assunto ver, Carvalho (2010). 23 Por violência institucionalizada entendemos a violência do Estado em sua forma mais concreta – a violência da polícia e dos diversos sistemas de encarceramento e tutela de que se tornam alvo alguns segmentos da população. É a violência exercida sobre o corpo e portanto sobre a mente, que é também corpo, conforme Rauter (2001, p. 03). 24 Seguindo o entendimento de Zaffaroni e Pierangeli (2002. p.70), chamamos “sistema penal” ao controle social punitivo institucionalizado, que na prática abarca a partir de quando se detecta ou supõe detectar-se uma suspeita de delito até que se impõe e executa uma pena, pressupondo uma atividade normativa que cria a lei que institucionaliza o procedimento, a atuação dos funcionários e define os casos e condições para esta atuação. Esta é a ideia geral de “sistema penal” em sentido limitado, englobando a atividade do legislador, do público, da polícia, dos juízes, promotores e funcionários e da execução penal. volume 15 103 i encontro de internacionalização do conpedi educacionais - geralmente já fragilizadas antes da internação25 -, em virtude da barreira e dos muros do “hospital”, acabam por desaparecer pelo processo de perda gradual e mortificação da essência daquele ser segregado. A irreversibilidade dessa morte traz consigo a destruição do ser enquanto indivíduo. “A desqualificação como inferior, louco, criminoso ou pervertido consolida a exclusão e é a perigosidade pessoal que a justifica” (SANTOS, B., 2006, p. 281). As mulheres, os homossexuais, os loucos, os toxicodependentes foram objeto de várias políticas todas elas vinculadas ao universalismo antidiferencialista, neste caso sob a forma de normatividades nacionais e abstratas quase sempre traduzidas em lei. (...) A gestão controlada da exclusão tratou de diferenciar entre as diferenças, entre as diferentes formas de exclusão, permitindo que algumas delas passassem por formas de integração subordinada, e outras fossem confirmadas no seu interdito. (grifo nosso) Torna-se evidente que o Sistema de Justiça Criminal utiliza-se da Criminologia tradicional, com bases organicistas, para diagnosticar e encarcerar pura e simplesmente, mas do que para tratar ou individualizar a pena. No campo processual a inadequação torna-se clara: não se trata mais da averiguação do crime cometido pelo indivíduo, mas sim da sua inocuização imediata a partir do conhecimento da existência de um sofrimento psíquico (anterior). O perito, ao realizar o exame psiquiátrico, pressupõe como culpado um sujeito pela prática de um fato delituoso do qual a materialidade e a imputabilidade não foram ainda juridicamente comprovadas (SOUTO, 2007, p. 579). Os peritos - “operadores secundários” – acabam formulando sobre o crime e o criminoso um discurso biopsicopatológico para justificarem a punição. Tem-se um direito penal do autor em pleno funcionamento, com as estruturas do final do século XIX cada vez mais (re)legitimadas e fortalecidas. Na perspectiva de Nina Rodrigues, a partir da miscigenação era possível detectar a degeneração, prever a loucura, entender as causas da criminalidade e estabelecer formas de controle (e punição) eficazes. E o que de fato mudou após 100 anos? 25 Nas palavras de Goffman (2005, p. 24): “As instituições criam e mantêm um tipo específico de tensão entre o mundo doméstico e o mundo institucional, e usam essa tensão persistente como uma força estratégica no controle dos homens.” 104 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi Nada. Pelo contrário, o retrocesso predominou tendo em vista a vigência de um Estado Democrático de Direito, onde nunca se falou tanto em proteção de direitos e garantias fundamentais e ao mesmo tempo nunca se exaltou tanto a tortura e as violações, sob a justificativa de proteção da coletividade. Parece que a única conexão determinista feita por Nina Rodrigues, até então exposta neste trabalho, que foi abandonada (ao menos temporariamente) foi a estabelecida entre a miscigenação racial e a degeneração/doença mental. Ou seja, não seria mais possível detectar a degeneração e prever a loucura a partir da miscigenação26. No entanto, várias análises e aproximações feitas pelo médico maranhense insistem permanecer vivas e legítimas nas engrenagens penais. A ideia de doença mental/anormalidade, social-política-psiquiatricamente construída e difundida, associada ao sistema de justiça criminal (quando do cometimento de um injusto) tem a capacidade de difundir uma perigosidade, que é avaliada pelos saberes psi, saberes estes que acreditam (equivocadamente) ter condições de prever comportamentos futuros de alguém. Acrescenta Santos, J. (2005, p. 193) que o problema está na falta de credibilidade do prognóstico de periculosidade criminal: se a medida de segurança pressupõe prognose de comportamento criminoso futuro, então inconfiáveis prognósticos psiquiátricos produzem conseqüências destruidoras, porque podem determinar internações perpétuas - em condições ainda piores do que as de execução penal. Na verdade, parece comprovada a tendência de supervalorização da periculosidade criminal no exame psiquiátrico, com inevitável prognose negativa do inimputável - assim como, por outro lado, parece óbvia a confiança ingênua dos operadores jurídicos na capacidade do psiquiatra de prever comportamentos futuros de pessoas consideradas inimputáveis, ou de determinar e quantificar a periculosidade de seres humanos. Na “ideologia da insanidade moderna” – expressa através dos jargões científicos dos diagnósticos, prognósticos e tratamentos psiquiátricos – incorporada aos 26 Porém, vale ressaltar, que a questão racial esteve e ainda está permanentemente vinculada às questões criminais como fator criminógeno. volume 15 105 i encontro de internacionalização do conpedi Sistemas de Controle Formal e Informal, “a ideologia é médica, a tecnologia é clínica e o perito é psiquiatra” (SZASZ, 1977, p. 13). Parece claro que as penas detentivas desproporcionais e indeterminadas (medidas de segurança) dos textos que acompanham o código italiano de 1930 (códigos uruguaio e brasileiro) estão destinadas à eliminação de inimigos (criminosos graves, por um lado, e indesejáveis, por outro). Para o autor, por mais que se relativize a ideia, quando se faz a distinção entre cidadãos (pessoas) e inimigos (não pessoas), está-se referindo a seres humanos que são privados de certos direitos fundamentais em razão de não serem mais considerados pessoas. Esta distinção não é uma invenção gratuita de Jakobs nem de nenhum outro doutrinador moderno, mas sim uma consequência necessária da admissão das medidas de segurança e outras medidas excludentes (ZAFFARONI, 2007, p. 98 - 162). A abertura e a visibilidade das relações que se estabelecem nas instituições totais realizadas pela criminologia crítica (cárcere) e pela antipsiquiatria (manicômios) possibilitam perceber as formas físicas e simbólicas de violência exercidas nos espaços institucionais de controle social. No primeiro aspecto (violências físicas), a forma asilar de tratamento revela-se absolutamente ofensiva aos direitos humanos fundamentais mínimos (seja pela estrutura física dos manicômios ou pelas práticas terapêuticas). No segundo aspecto (simbólico), o efeito estigmatizador da internação manicomial revela a impossibilidade do tratamento, ou seja, demonstra ser a prática isolacionista antagônica à própria ideia de recuperação e de reinserção do paciente na comunidade (CARVALHO, 2010, p. 168). O injusto continua sendo um problema jurídico sim, por isso a manutenção do indivíduo sob a custódia do Estado Penal, mas a justificativa técnica do perito que traz consigo a carga da dita cientificidade, é fundamental para consubstanciar a manutenção da medida. O modelo declarado das Medidas de Segurança detentivas (como ressocialização e tratamento) no Brasil não reflete em nada suas funções ocultas. Tendo em vista que foram inicialmente pensadas como complemento de pena (ainda no sistema do duplo binário), com a reforma do Código Penal em 1984 o que houve foi o desmembramento de penas e medidas, tornando estas como sanções independentes, mas em sua gênese os fundamentos (ocultos) continuaram exatamente os mesmos (ou até piores) dos da pena privativa de liberdade. 106 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi O que se tem - e pelo visto vai permanecer por muitos anos considerando que o sistema funciona muito bem na sua pseudoprecariedade – é um fascismo psiquiátrico que o Direito Penal se apropriou por total conveniência. Saberes médicos que justificam “cientificamente” a permanência dos portadores de sofrimento psíquico em hospitais de custódia e tratamento ou em estabelecimentos com condições análogas cumprem o papel que foi designado pelo Estado. O movimento antimanicomial (legalmente estabelecido pela lei 10.216/01) não conseguiu movimentar as estruturas seculares do sistema penal psiquiatrizado. Isso porque se tem um indivíduo portador de sofrimento psíquico, que simbolicamente utiliza o sistema de saúde pública, mas que originariamente pertence ao Estado Penal. Isso é o bastante e define as bases de resistência ao movimento libertador e desinstitucionalizador proposto pela Reforma Psiquiátrica. Nina(s) Rodrigue(s) vivem e permanecem em todas as esferas e instituições gritando bem alto que as justificativas médicas, biológicas e psiquiátricas são capazes de neutralizar quase que eternamente um indivíduo. 6. inquietações finais A recepção da Escola Positiva italiana juntamente com os estudos sobre raça desenvolvidos de forma particular e diferenciada no Brasil foram fundamentais para a formação do pensamento jurídico-penal no país. Tratando da aproximação entre os saberes médicos e jurídicos, destacou-se o maranhense Raimundo Nina Rodrigues que se debruçou sobre os estudos da raça negra e degenerescência como análise social e criminológica. A antropologia criminal de Nina contribuiu para legitimar problemas sociais como questões biológicas e orgânicas, decorrentes de um subdesenvolvimento das raças humanas. Dessa forma, legitimava-se o tratamento desigual dos desiguais. Seria inadmissível a manutenção da falsa igualdade jurídica em detrimento dos avanços da ciência que veementemente demonstrava a desigualdade entre as raças. A cientificidade médica parece realmente ter vencido a batalha. Bem fortalecida na esfera penal, é ela considerada capaz de justificar a permanência de indivíduos portadores de sofrimento psíquico internados no Sistema de Justiça Criminal. Os saberes psi, numa construção e (re)legitimação sofisticada, mantêm volume 15 107 i encontro de internacionalização do conpedi no senso comum várias concepções fortes e problemáticas: 1) conceito de doença mental; 2) conceito de perigosidade; 3) noção de criminoso-doente; 4) necessidade de medidas detentivas na maioria dos casos de portadores de sofrimentos psíquicos envolvidos em questões penais. A máquina estatal-penal, com a sua rota punitiva e seu potencial genocida de criminalização utiliza esses argumentos que caem como uma luva para justificarem todas as suas práticas de controle e extermínios velados. Os estudos e argumentos novecentistas estão cada dia mais vivos e dinâmicos. As justificativas punitivas avançaram e os retrocessos nas práticas democráticas e vitais de cidadania foram desastrosos. 7.referências ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo X cidadania mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. 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Sua execução carece de adequada regulamentação que permita à defesa, alijada de sua produção, elementos para rastrear a fonte de prova. A Lei no 9.296/96 trouxe novos atores para esse subsistema probatório, absolutamente inexistentes no sistema penal tradicional, que interferem diretamente na cadeia de custodia das provas obtidas. Com objetivo de verificar a possibilidade de exercer um controle epistêmico sobre a prova, analisamos a Resolução no 59/2008 do Conselho Nacional de Justiça que pretende disciplinar e uniformizar as rotinas do procedimento de interceptação, bem como analisamos os sistemas de Tecnologia da Informação utilizados pelos órgãos públicos de persecução para receber e armazenar os dados obtidos das interceptações. 1 Professor Adjunto de Direito Processual Penal e Prática Penal da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro - FND/UFRJ. Professor Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado) da Universidade Católica de Petrópolis UCP. Professor Adjunto do IBMEC. Professor da Escola de Magistratura do Rio de Janeiro. Membro da Banca de Orientação de projeto de dissertação e tese de mestrado, doutorado e pós-doutorado do Instituto de Educação Superior Latinoamericano. Pós-Doutor em Direito Penal e Garantias Constitucionais pela Universidad Nacional de La Matanza Argentina. Doutor e Mestre em Filosofia pela UFRJ. Mestre em Direito Penal Internacional pela Universidad de Granada - Espanha. Especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra - Portugal. Especialista em Direito da Economia pela Fundação Getúlio Vargas. Graduado em Direito pela UERJ. Licenciando em História pela UNIRIO. Membro da Associação Internacional de Direito Penal. Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal. Membro da Sociedade Internacional de Criminologia. Membro da Sociedade Americana de Criminologia. Membro do Instituto de Direito Comparado Luso-brasileiro. Membro do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito. Advogado criminalista. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Penal e Processo Penal. volume 15 113 i encontro de internacionalização do conpedi Palavras-chave Interceptação das comunicações; Controle epistêmico; Cadeia de custodia. Astratto I progressi tecnologici introdotti nel processo penale nuovi modi di ottenere informazioni, l’intercettazione delle comunicazioni telefoniche è uno di loro. L’intercettazione delle comunicazioni non ha un regolamento appropriato. Così, la difesa, che non partecipa, non può rintracciare la fonte di prova. La Legge 9.296/96 ha portato nuovi attori per questo sottosistema probatorio, assolutamente inesistente nel sistema di giustizia penale tradizionale, che interferiscono direttamente nella catena di custodia delle prove acquisite. Per verificare la possibilità di esercitare il controllo epistemico su una prova, analizziamo la risoluzione n 59/2008 del Consiglio Nazionale di Giustizia, che intende unificare la disciplina e le routine di procedura de l’intercettazione e analizzare i sistemi del TI utilizzati per ricevere e archiviare i date ottenuti dall’intercettazione. Parole chiave Intercettazione delle comunicazioni; Controllo epistemico; Catena di custodia. 1.introdução: o processo como modelo epistemológico de controle da obtenção de informações por métodos ocultos Nos últimos anos o processo penal vem sofrendo mudanças práticas nos métodos de obtenção de informações, sobretudo com a introdução em ritmo acelerado de novas tecnologias, que põem em xeque o respeito aos direitos fundamentais. Inobstante este trabalho tenha por referência o processo penal brasileiro, não são poucos os autores estrangeiros que apontam essa tendência de utilização 114 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi de métodos não tradicionais para formação do conhecimento sobre os fatos na Espanha2, Alemanha3, Itália4, Portugal5, Argentina6, entre outros. É bem verdade que há hoje mais aparelhos celulares que habitantes no Brasil e os dados do Conselho Nacional de Justiça indicam que em média há autorização judicial de monitoramento de mais de vinte mil linhas telefônicas por mês, o que pode dar ideia da profusão da utilização da interceptação telefônica como método de coleta de elementos cognitivos. Não se pode olvidar que no sistema de valoração de provas forjado pela Lei no 11.690/2008, que alterou o Código de Processo Penal, esse meio de prova inverte a lógica do sistema acusatório, entre outros, por dois motivos. Em primeiro lugar, a despeito da regra geral segundo a qual o juiz não pode fundamentar sua sentença exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, há uma ressalva para a possibilidade de justificar uma eventual condenação apenas nas provas cautelares, não repetíveis e antecipadas, dentre as quais está a interceptação telefônica. Essa previsão malogra, na prática, o direito fundamental ao contraditório, pois este, no sentido objetivo, implica na possibilidade de que as partes participem na formação da prova, sendo que, 2 MUÑOZ CONDE, Francisco. De las prohibiciones probatorias al derecho procesal penal del enemigo. Buenos Aires: Hammurabi, 2008. Ainda do mesmo autor: Valoración de las grabaciones audiovisuales en el proceso penal. 2ª ed. Buenos Aires: Hammurabi, 2007. ABEL LLUCH, Xavier e RICHARD GONZÁLEZ, Manuel. Estudios sobre prueba penal volumen III: Actos de investigación y medios de prueba en el proceso penal: diligencias de instrucción, entrada y registro, intervención de comunicaciones, valoración y revisión de la prueba en vía de recurso. Madri: La Ley Actualidad, 2013. BACIGALUPO, Enrique. El debido proceso penal. Buenos Aires: Hammurabi, 2007. 3 ROXIN, Claus. La prohibición de autoincriminación y de las escuchas domiciliarias. Buenos Aires: Hammurabi, 2008. Mais especificamente sobre as investigações genéticas como meio de prova: GÖSSEL, Karl Heinz. El derecho procesal penal en el Estado de Derecho. Obras completas. Tomo I. Santa Fe: Rubinzal-Culzoni, 2007. 4 CONTI, Carlotta e TONINI, Paolo. Il diritto delle prove penali. Milão: Giuffrè, 2012. 5 COSTA ANDRADE, Manuel da. Sobre as Proibições de prova em processo penal. Coimbra: Coimbra, 2006; AGUILAR, Francisco. Dos Conhecimentos Fortuitos Obtidos Através de Escutas Telefónicas. Coimbra: Almedina, 2004. VALENTE, Manuel Monteiro Guedes. Escutas Telefónicas: da excepcionalidade à vulgaridade. 2a ed. Coimbra: Almedina, 2008. 6 HENDLER, Edmundo S. Las garantías penales y procesales: enfoque histórico-comparado. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2004. PASTOR, Daniel (Diretor) e GUZMÁN, Nicolás (coordenador). Neopunitivismo y neoinquisición: un análisis de políticas e prácticas penales violatorias de los derechos fundamentales del imputado. Buenos Aires: Ad Hoc, 2008. volume 15 115 i encontro de internacionalização do conpedi segundo Paolo Tonini, “a verdadeira prova não é aquela que se obtém sob sigilo, por meio de pressões unilaterais, mas aquela cuja formação ocorre de modo dialético”7, dialética ausente na interceptação telefônica. Em segundo lugar, as regras de determinação da competência no Brasil implicam em que o juiz que tenha deferido o pedido de interceptação telefônica ou determinado sua realização de ofício (o que é estarrecedoramente possível de acordo com o art. 3o da Lei no 9.296/96) será competente para a ação principal. Aliás, a rigor, o que o art. 1o da Lei no 9.296/96 diz é precisamente que o juiz competente para a ação principal será competente para deferir ou determinar a medida de interceptação telefônica. Isso, para falar o mínimo, coloca a imparcialidade do juiz em situação constrangedora. André Machado Maya faz um bom apanhado sobre a jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos e da Corte Constitucional da Espanha sobre a utilização da prevenção como regra de exclusão da competência em razão da violação do princípio da imparcialidade8, o que, lamentavelmente, não é acolhido pelos tribunais brasileiros. Essa regra brasileira da prevenção como determinadora da competência implica na exposição do juiz aos elementos cognitivos que possibilitam a formação da convicção e antecipam na consciência do julgador a decisão a ser tomada, de tal sorte que novos conjuntos de elementos cognitivos acabam por se submeter a procedimentos psicológicos de afastamento ou redução da dissonância cognitiva com a prevalência dos elementos conhecidos previamente9. Portanto, diante da profusão de medidas cautelares probatórias que afetam diretamente direitos fundamentais do cidadão, pois impedem o exercício completo do direito ao contraditório e, em razão de regras de determinação da competência, comprometem a imparcialidade pela submissão do juiz ao 7 TONINI, Paolo. A prova no processo penal italiano. Tradução Alexandra Martins e Daniela Mróz. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 27. 8 MAYA, André Machado. A prevenção como regra de exclusão da competência no processo penal: uma (re)leitura necessária a partir da jurisprudência do tribunal europeu de direitos humanos e da corte constitucional da Espanha. Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF, nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008. 9 Nesse sentido vale a leitura de FESTINGER, Leon. Teoria da dissonância cognitiva. Tradução Eduardo Almeida. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1975. Sobre a influência que os elementos cognitivos da investigação exercem sobre a formação da convicção judicial SCHÜNEMANN, Bernd. O juiz como um terceiro manipulado no processo penal? Uma confirmação empírica dos efeitos perseverança e aliança in Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. Tradução Luís Greco. São Paulo: Marcial Pons, 2013. 116 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi conhecimento de elementos cognitivos prévios e unilaterais, faz-se necessário questionar até que ponto as decisões penais nessas circunstâncias são legítimas. Para Luigi Ferrajoli, tanto do ponto de vista epistemológico, como político, como jurídico, o que se exige é “que a legitimidade das decisões penais se condicione à verdade empírica de suas motivações”10. O processo, segundo Michele Taruffo, sob uma perspectiva metodológica, pode ser analisado pela sua dimensão epistêmica “como um ‘modelo epistemológico’ do conhecimento dos fatos com base nas provas”11. E ressalta: Em todo e qualquer procedimento de caráter epistêmico tem importância decisiva o método, ou seja, o conjunto das modalidades com que são selecionadas, controladas e utilizadas as informações que servem para demonstrar a veracidade das conclusões. No âmbito do processo isso equivale a fazer referência sobretudo às regras que disciplinam a produção das provas e sua utilização, ou seja, ao “direito das provas” e à equivalente noção anglo-americana da law of evidence.12 Portanto, resta claro que o processo penal se legitima pela busca do conhecimento da verdade com base nas provas. Certo de que os fatos estão no passado, as provas nada mais são do que signos transmitidos, são materiais semióticos que representam a única via de acesso ao conhecimento13 e que, como em todo procedimento de caráter epistêmico, devem ser obtidas com estrita observância do método de produção e utilização. Ignorar a dimensão epistêmica do processo pode gerar distorções insanáveis como reduzir um meio de prova a outro cujas condições típicas de obtenção são menos exigentes. Vejamos: A prova pericial, após os exames (do perito oficial e dos assistentes técnicos), resulta em um laudo pericial e, possivelmente, em pareceres técnicos. Tomar o 10 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal 4a ed. Tradutores Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 70. 11 TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. Tradução Vitor de Paula Ramos. São Paulo: Marcial Pons, 2012, p. 160. 12 Ibid, p. 164. 13 ANDRÉS IBÁÑEZ, Perfecto. Prueba y convicción judicial en el proceso penal. Buenos Aires: Hammurabi, 2009, p 49. volume 15 117 i encontro de internacionalização do conpedi laudo pericial e os pareceres técnicos como prova documental, apenas porque se apresentam em forma de documento é um grave erro. A prova testemunhal resulta em uma declaração em folha de papel assinada ou em um fonograma gravado em mídia. Tomar o papel do depoimento assinado ou o fonograma como prova documental é, igualmente, um erro. A prova de quebra de sigilo bancário e fiscal resulta em uma determinada quantidade de papéis impressos com as informações obtidas dos bancos ou da Receita Federal. Tomar esses papéis como prova documental é um erro. A busca e apreensão pode resultar na arrecadação de documentos guardados no domicílio devassado. Tomar os documentos apreendidos como prova documental é, claramente, um erro. A interceptação telefônica resulta em páginas de papéis contendo transcrições das conversas gravadas ou em fonogramas gravados em mídia digital. Tomar esses papéis ou os fonogramas como prova documental é um erro. O que caracteriza o meio de prova é seu procedimento, não seu resultado. O rito probatório caracterizador do meio de prova vai desde o requerimento de produção, passando pela sua admissão e produção, até sua valoração. O completo ritual de obtenção da prova confere natureza a ela. É precisamente o caminho pelo qual a prova deve seguir, com suas regras específicas, legitimadas pela submissão ao contraditório e à ampla defesa, que precisam ser observados idiossincraticamente, sob pena de, transformando o resultado de qualquer meio de prova em prova documental, bastar submetê-los a um contraditório diferido, em que a outra parte deve apenas sobre ele falar. A elaborada ritualística da prova não está na lei processual para satisfazer caprichos ou tornar o processo um complexo emaranhado de atos enfadonhos. Cada regra de produção probatória cumpre sua função de garantia e deve ser respeitada. Há meios de prova, de outro lado, que são obtidos por métodos ocultos, vez que a surpresa é parte condicionante do sucesso da empreitada. Todavia, na maior parte destes casos, em especial a interceptação das comunicações telefônicas e as escutas ambientais, carecem de uma regulamentação metodológica de obtenção. 118 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi Essa omissão legislativa pode implicar na adoção de uma alternativa epistemológica autoritária pela aplicação de um subjetivismo inquisitivo14, a menos que se definam mecanismos de estabelecimento prévio das “regras do jogo”, às quais todos os atores do sistema penal, inclusive o juiz, devam se submeter. Como muito bem observou Geraldo Prado, quando a legislação silencia sobre o procedimento probatório, a exigência de motivação da “decisão que defere o emprego de métodos ocultos de investigação importa”15 não apenas na indicação dos elementos que convencem acerca da sua adequação, mas “ainda, na definição dos meios de sua execução e fiscalização”16. Essa foi a técnica utilizada pelo legislador pátrio no que concerne ao procedimento para execução da diligência. Basta ver que a Lei no 9.296/96, que regulamentou o art. 5°, XII CRFB/88, para tratar dos casos de autorização da interceptação telefônica e telemática como meio de prova no processo penal brasileiro dispôs no art. 5o que cabe ao juiz, na decisão que defere ou determina a medida, definir “a forma de execução da diligência”. De se observar que é a autoridade policial quem deve conduzir os procedimentos de interceptação, cientificando o ministério público, que poderá acompanhar a sua realização, segundo o art. 6o da referida Lei. Assim, inobstante não se possa deixar de relembrar o atropelo dos princípios do contraditório e da imparcialidade da jurisdição, estão definidas as posições (porém não totalmente as tarefas de cada um) dos atores tradicionais do sistema penal, com o devido alijamento da defesa. A novidade é que a Lei no 9.296/96 traz à cena dois novos atores para este subsistema probatório: (1) as concessionárias de serviço público de telefonia e provedores de acesso e (2) o sistema de tecnologia da informação (TI) que trata os dados colhidos dos monitoramentos das comunicações (e seus operadores privados). Isso ocorre, respectivamente, no artigo 7o e no parágrafo 1o do art. 6o, ambos da Lei no 9.296/96. 14 FERRAJOLI, op. cit., p. 46/47. 15 PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 78. 16Ibid. volume 15 119 i encontro de internacionalização do conpedi O art. 7o afirma que a autoridade policial (não é a autoridade judicial, nem o ministério público) poderá requisitar serviços e técnicos especializados às concessionárias de serviço público. O parágrafo 1o do art. 6o apenas afirma que “no caso de a diligência possibilitar a gravação da comunicação interceptada, será determinada sua transcrição”. Muito embora este dispositivo nada fale sobre sistemas de TI, quando faz menção à possibilidade de gravação, torna esse procedimento obrigatório sempre que tiver sido possível. Acontece que em 1996, quando a Lei entrou em vigor, poderia não ser possível em todos caso, mas hoje, com o avanço tecnológico, isso é sempre possível e entra em cena o sistema de TI utilizado para realizar a tarefa como parte da engrenagem probatória no processo penal. Todavia, essas parcas menções legais às concessionárias de serviço público de telefonia e ao sistema de tecnologia da informação que trata os dados colhidos dos monitoramentos das comunicações, não são suficientes para descrever com precisão o papel que devam desempenhar. Falta regulamentar de maneira uniforme os procedimentos de execução dessas medidas invasivas, incluindo a atividade de cada um dos atores do sistema penal e dos novos atores desse subsistema probatório. Isso fez com que o Conselho Nacional de Justiça, criado pela Emenda Constitucional no 45/2004 para controlar a atuação administrativa e financeira do Poder judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, entre outras, tais como, elaborar relatório semestral estatístico sobre processos e sentenças prolatadas, criasse o Sistema Nacional de Controle de Interceptações Telefônicas e editasse a Resolução no 59, de 09 de setembro de 200817, com o objetivo de disciplinar e uniformizar as rotinas visando ao aperfeiçoamento do procedimento de interceptação telefônica nos órgãos jurisdicionais do Poder Judiciário. Essa providência, tomada por um órgão que não tem atribuições legislativas, desvela o vácuo deixado no ordenamento pelas normas que disciplinam a interceptação telefônica. 17 Disponível em http://www.cnj.jus.br/images/stories/docs_cnj/resolucao/rescnj_59consolidada. pdf. Acesso em 16 de junho de 2014. 120 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi Ora, não se pode esquecer que o sistema penal é capaz de destruir relações sociais, vilipendiar reputações, devassar a intimidade e eliminar a privacidade, mesmo que o cidadão a ele submetido não seja condenado, o que importa em reconhecer a capacidade sancionatória que o processo penal por si só representa. A principal contribuição para esse quadro se encontra no âmbito das medidas cautelares, sejam as de natureza pessoal como as prisões provisórias, sejam as de natureza real como os sequestros de bens, sejam as de natureza probatória como a busca e apreensão e a interceptação das comunicações. Tais medidas, uma vez executadas, expõem a pessoa sujeita a qualquer delas à execração pública e, não apenas, mas também por isso, devem ser regulamentadas com o maior rigor de detalhes possível, atribuindo a cada ator do sistema penal o seu preciso papel e coibindo arbitrariedades. Aduza-se a isso a necessidade de dar ao menos parcial cumprimento ao contraditório. É bem verdade, como se viu anteriormente, que o contraditório no sentido objetivo, entendido como a possibilidade de que as partes participem na formação da prova, está definitivamente alijado do subsistema probatório de interceptação das comunicações, como método oculto de obtenção de prova que é. Entretanto, deve se respeitar o contraditório sob o ponto de vista subjetivo, entendido como o direito ao confronto com a acusação. Ora, confrontar-se com a acusação não pode ser reduzido à mera possibilidade de “falar sobre” algo que “já é”, mas que não contribuiu para existir, tampouco pôde rastrear os pressupostos de validade de sua existência. A preservação de cada uma das etapas da operação que realizou a interceptação das comunicações de um cidadão é a única maneira de assegurar a integridade do procedimento probatório, ou seja, deve ser preservada a cadeia de custodia para permitir à defesa rastrear as fontes de prova e exercer, ao menos, o aspecto subjetivo do direito ao contraditório. Essa preservação das evidências das medidas de interceptação das comunicações não pode estar restrita à apresentação da mídia em que se encontram gravados os arquivos de áudio, mas deve incluir a preservação do próprio sistema de TI, bem como dos registros de atividades de todos os atores do sistema penal, tradicionais (como polícia e ministério público), mas também os novos (como as concessionárias de serviço público de telefonia e os operadores do sistema de volume 15 121 i encontro de internacionalização do conpedi tecnologia da informação que trata os dados colhidos dos monitoramentos das comunicações). Geraldo Prado já havia assinalado essa necessidade ao afirmar que “os suportes técnicos que resultam da operação, portanto, devem ser preservados. A razão adicional, de natureza constitucional, está vinculada ao fato de que apenas dessa maneira é possível assegurar à defesa, oportunamente, o conhecimento das fontes de prova.”18 Porém, como já foi dito, a legislação não descreve o procedimento utilizado na execução da diligência, sendo deixado ao magistrado a tarefa de delinear como isso deve ocorrer. O que existe de mais próximo a uma norma sobre o assunto é a Resolução no 59/2008 do Conselho Nacional de Justiça. De outro lado, à falta de procedimentos técnicos legais para execução da interceptação das comunicações, o que mais se aproxima de um padrão uniforme para monitoramento são os manuais produzidos pelas empresas desenvolvedores dos sistemas de TI utilizados pela autoridade policial para execução da diligência. Assim, cumpre analisar se são válidos os instrumentos anteriormente aludidos. Afinal a Resolução no 59/2008 do Conselho Nacional de Justiça se presta à disciplinar e uniformizar as rotinas do procedimento de interceptação telefônica? Essa Resolução conflita com o ordenamento legal ou apenas cria regras de funcionamento administrativo do Poder Judiciário e rotina de seus membros? Os manuais dos sistemas de TI que captam e armazenam os dados colhidos dos monitoramentos das comunicações estão em conflito com o ordenamento legal? Esses manuais revelam que o sistema de TI funciona de acordo com a Constituição e a legislação federal sobre o assunto? 2.a resolução no 59/2008 do conselho nacional de justiça A Resolução no 59 de 2008 do CNJ, já com as alterações introduzidas pela Resolução no 84 de 2009, também do CNJ, tem por finalidade disciplinar e uniformizar as rotinas visando o aperfeiçoamento do procedimento de interceptação telefônica e de sistemas de informática e telemática nos órgãos jurisdicionais do Poder Judiciário. 18 PRADO, op. cit., p. 79. 122 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi De fato, a Seção I destina-se a regulamentar a distribuição e o encaminhamento dos pedidos de interceptação, ao passo que a Seção II cria uma rotina para recebimento de envelopes lacrados pela serventia judiciária, criando procedimentos que permitam uniformizar o processamento dos pedidos de interceptação telefônica. Ocorre que a Seção III determina qual deve ser o conteúdo da decisão judicial que defere a medida cautelar de interceptação, o que ultrapassa as funções e finalidades atribuídas constitucionalmente ao CNJ e invade esferas de regulamentação de natureza eminentemente processual, matéria que deve ser regulada por lei de competência privativa da União, na forma do art. 22, I, da Constituição. Vale ressaltar que o art. 10 da Resolução no 59/2008 impõe que o magistrado deverá fazer constar expressamente de sua decisão que será sempre escrita e fundamentada: a indicação da autoridade requerente; os números dos telefones ou o nome de usuário, e-mail ou outro identificador no caso de interceptação de dados; o prazo a interceptação; a indicação dos titulares dos referidos números; a expressa vedação de interceptação de outros números não discriminados na decisão; os nomes das autoridades policiais responsáveis pela investigação e que terão acesso às informações; e os nomes dos funcionários do cartório ou secretaria responsáveis pela tramitação da medida e expedição dos respectivos ofícios, podendo reportar-se à portaria do juízo que discipline a rotina cartorária. A Seção IV trata, em seu único art. 11, da expedição de ofícios às operadoras, determinando que esses ofícios devem ser gerados pelo sistema informatizado do respectivo órgão jurisdicional ou por meio de modelos padronizados a serem definidos pelas respectivas Corregedorias locais e devem fazer constar: o número do ofício sigiloso; o número do protocolo; a data de distribuição; o tipo de ação; o número do inquérito ou processo; o órgão postulante da medida (Delegacia de origem ou Ministério Público); o número dos telefones que tiveram a interceptação ou quebra de dados deferida; a expressa vedação de interceptação de outros números não discriminados na decisão; a advertência de que o ofícioresposta deverá indicar o número do protocolo do processo ou do Plantão Judiciário, sob pena de recusa de seu recebimento pelo cartório ou secretaria judicial; e a advertência da regra contida no art. 10 da Lei no 9.296/96, segundo o qual constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de volume 15 123 i encontro de internacionalização do conpedi informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei. Deve ser registrado não consta do art. 11 que o ofício deva mencionar o prazo de interceptação determinado pelo juiz. Interessante que, conquanto o CNJ não tenha nenhuma atribuição para regulamentar atos a serem praticados por quem não está vinculado funcionalmente ao poder Judiciário, a Seção V dispõe sobre as obrigações das operadoras de telefonia, em seu art. 12, o que, por via obtusa, seja uma espécie de reconhecimento da atribuição às mesmas de importante papel no sistema penal. De acordo com este artigo as operadoras deverão, após receber o ofício da autoridade judicial, “confirmar com o juízo os números cuja efetivação fora deferida e a data em que foi efetivada a interceptação, para fins do controle judicial do prazo” (grifo nosso). Não se pode deixar de ressaltar que o ofício que deve ser expedido à operadora não contém o prazo de execução da medida, bem como não está entre as obrigações da operadora de telefonia controlar o prazo de execução da medida. Ao contrário, de acordo com a parte final do caput do art. 12 da referida Resolução, destacada no parágrafo anterior, o controle do prazo é judicial, portanto não cabe à operadora de telefonia, nem à autoridade policial, nem ao ministério público, mas ao juiz. Ainda segundo os parágrafos do art. 12, as operadoras de telefonia deverão enviar ofício semestralmente à Corregedoria Nacional de Justiça indicando os nomes das pessoas, com a indicação dos respectivos registros funcionais, que por força de suas atribuições, têm conhecimento de medidas de interceptação telefônica deferidas, bem como os nomes dos responsáveis pela operacionalização das medidas, comunicando, ainda, qualquer alteração no quadro de pessoal, arquivando-se o ofício na própria Corregedoria. Na Seção VI, em seu art. 13, a Resolução regula a atuação do plantão, devendo ser ressaltado que o pedido de prorrogação de prazo de medida cautelar de interceptação de comunicação telefônica, telemática ou de informática não será admitido durante o plantão, a não ser na hipótese de risco iminente e grave à integridade ou à vida de terceiros. É difícil imaginar como uma medida de interceptação da qual o interceptado não tem conhecimento possa impedir que se cause dano à alguém que se encontre em iminente e grave risco, mas é o que diz o dispositivo. 124 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi A Seção VII prevê, em seu art. 14, que os pedidos de prorrogação de prazo pela autoridade competente deverão se fazer acompanhar dos áudios em CD ou DVD com o inteiro teor das comunicações interceptadas (sempre que possível encriptados), as transcrições das conversas relevantes à apreciação do pedido de prorrogação e o relatório circunstanciado das investigações com seu resultado. A Seção VIII regula, no art. 15, como se deve realizar o transporte dos autos para fora das unidades do Poder Judiciário, definindo uma rotina a ser obedecida. Deve ser ressaltado que esta Seção não cria uma rotina para recebimento, movimentação e guarda das mídias de áudio ou audiovisual, com o objetivo de definir um procedimento que garanta a segurança da cadeia de custodia dentro dos órgãos e serventias do Poder Judiciário. A rotina definida no art. 15 destinase apenas a disciplinar o transporte dos autos para fora das unidades do Poder Judiciário. A mais próxima menção à tramitação dos documentos (se é que podemos fazer uma interpretação extensiva e considerar as mídias em que estão gravados os áudios e vídeos como documentos) é o que consta do art. 16 (Seção IX) da Resolução, que determina às unidades do Poder Judiciário que tomem as medidas necessárias para o recebimento, a movimentação e a guarda de feitos e documentos atenda às cautelas de segurança previstas na própria Resolução, sem contudo, como já dito, definir as rotinas de movimentação e guarda das mídias. No mais, a Resolução afirma a responsabilidade, “nos termos da legislação pertinente”, dos servidores que fornecerem informações de elementos sigilosos contidos em processos ou inquéritos regulados pela Resolução (art. 17) e atribui aos juízes a obrigação de informar mensalmente à Corregedoria Nacional de Justiça, por via eletrônica, a quantidade de interceptações em andamento (art. 18). Não há, nessa Resolução, qualquer regulamentação de procedimento que determine como deva ser a cadeia de custódia das mídias ou do próprio sistema de tecnologia da informação (TI) que trata os dados colhidos dos monitoramentos das comunicações que garanta às partes o direito de conhecer às fontes de prova. Isso implica em que é ao juiz, na bojo da decisão que defere a medida cautelar de interceptação das comunicações, que cabe a definição dos meios de execução e fiscalização das mesmas. volume 15 125 i encontro de internacionalização do conpedi Resta saber de que forma funcionam os sistemas de tecnologia da informação (TI) que tratam os dados colhidos dos monitoramentos das comunicações para verificar sua compatibilidade com a Constituição e a lei, bem como a possibilidade de que estes sistemas garantam uma cadeia de custodia confiável. 3.sistemas de tecnologia da informação (ti) que captam e armazenam os dados colhidos dos monitor amentos das comunicações 3.1.identificação dos sistemas de recepção e armazenamento de dados Pelo que se tem notícia, há no Brasil basicamente três sistemas de TI utilizados para recepção e armazenamento dos dados objetos de monitoramento: o Sistema Guardião desenvolvido e comercializado pela empresa Dígitro Tecnologia Ltda., o Sistema Sombra desenvolvido e comercializado pela empresa Federal Tecnologia de Software Ltda.-EPP e o Sistema Wytron desenvolvido e comercializado pela empresa Wytron Technology Corp. Ltda. Dados colhidos do Processo no 0.00.000.001328/2012-95, que tramitou junto ao Conselho Nacional do Ministério Público e se tratava de um Pedido de Providência formulado pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, consistente no requerimento de auditoria e inspeção nos sistemas de escuta e monitoramento de interceptações telefônicas utilizados pelas unidades do ministério público brasileiro19, mostram que, a partir das consultas feitas às 30 unidades do ministério público brasileiro, 8 (oito) adquiriram o Sistema Guardião (o ministério público federal e o ministério público dos estados de Goiás, Mato Grosso, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, São Paulo, Santa Catarina e o Distrito Federal); 6 (seis) adquiriram o Sistema Wytron (o ministério público dos estados de Alagoas, Amapá, Ceará, Maranhão, Pará e Rondônia); 3 (três) adquiriram o Sistema Sombra (o ministério público dos estados da Bahia, Mato Grosso do Sul e Paraíba); 4 (quatro) utilizam o Sistema Guardião disponibilizado ou cedido por órgãos do Poder Executivo (o ministério público dos estados do Espírito Santo, Minas Gerais, Amazonas e Tocantins); 9 (nove) não possuem ou 19 Disponível em http://s.conjur.com.br/dl/relatorio-guardiao-mp-cnmp.pdf. Acesso em 16 de junho de 2014. 126 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi não têm acesso a qualquer um desses sistemas (o ministério público militar, o ministério público do trabalho e o ministério público dos estados de Sergipe, Pernambuco, Acre, Paraná, Piauí, Roraima e Rio de Janeiro). Portanto, das 30 (trinta) unidades do ministério público, 21 (vinte e uma) adquiriram ou utilizam sistemas de TI que se destinam a receber e armazenar dados obtidos de interceptações telefônicas ou de dados. Destas 21 (vinte e uma) unidades que operam sistemas de monitoramento de comunicações, 12 (doze) “não dispõem de ato normativo versando sobre procedimentos e rotinas adotadas”20 e 18 (dezoito) recorrem a policiais civis e/ou militares na operação. Quanto à aquisição desses sistemas pelos Departamentos de Polícia Federal dos Estados não há dados tão precisos quanto esses constantes do processo que tramitou no Conselho Nacional do Ministério Público, mas dados do Portal da Transparência do governo federal demonstram que as empresas Dígitro Tecnologia Ltda., Federal Tecnologia de Software Ltda.-EPP e Wytron Technology Corp. Ltda. comercializaram com o Departamento de Polícia Federal, sendo, ademais, amplamente divulgada a contratação do Sistema Guardião pelas Superintendências da Polícia Federal de Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro. 3.2.oper ação da interceptação Quanto à operação desses Sistemas, a Dígitro e a Federal afirmam que seus sistemas, Guardião e Sombra, respectivamente, não permitem a interceptação telefônica sem a participação das operadoras de telefonia, portanto só realizam monitoramento passivo, são as operadoras de telefonia que encaminham as informações interceptadas ao Sistema de monitoramento. Na prática, as operadoras “abrem um link” de tal forma que a chamada telefônica ou o fluxo de dados seja desviado para um outro canal de recepção diverso do destinatário e o direciona para o sistema de TI utilizados para recepção e armazenamento dos dados objetos de monitoramento (Guardião, Sombra ou Wytron, por exemplo). 20 Decisão proferida no processo 0.00.000.001328/2012-95, que tramitou junto ao Conselho Nacional do Ministério Público. Disponível em http://s.conjur.com.br/dl/relatorio-guardiaomp-cnmp.pdf. Acesso em 16 de junho de 2014. volume 15 127 i encontro de internacionalização do conpedi Assim, se o interlocutor A (não interceptado) liga para o interlocutor B (interceptado), esta ligação irá se completar, mas o fluxo se duplicará em dois links, um para o interlocutor, outro para o sistema de TI responsável pelo monitoramento. Aqui está um primeiro, porém muito grave problema. É que diversamente do que consta da legislação, quem verdadeiramente conduz a interceptação não é a autoridade policial, como determina o art. 6o da lei no 9.296/96, mas a operadora de telefonia. São precisamente as concessionárias de serviço público de telefonia ou os provedores de acesso (no caso de desvio de dados) que controlam quem será objeto de interceptação e qual a duração, pois, uma vez que os sistemas de monitoramento são passivos, é a operadora que abre e fecha o link e, portanto, determina o tempo de interceptação. Diante das informações prestadas pelas empresas desenvolvedoras dos sistemas de TI responsáveis pelo monitoramento das comunicações, as operadoras de telefonia e os provedores de acesso desempenham, na prática, um papel proeminente na execução das medidas cautelares de interceptação. No entanto, o sistema legal ignora esse novo ator desse subsistema probatório, não dispensando sequer uma única regulamentação para sua atuação, muito menos discutindo a adequação ou inadequação da sua posição protagonista na coleta de informações dentro da investigação penal. Ademais, as operadoras de telefonia também não fazem o desvio da chamada para o canal de recepção do sistema de TI dedicado ao monitoramento das comunicações sem o auxílio de uma ferramenta. Há um sistema chamado Vigia, desenvolvido pela empresa Suntech que gerencia “todo o processo de interceptação legal e retenção de dados para qualquer serviço ou subsistema de comunicação de qualquer tecnologia ou vendedor”. De acordo com o desenvolvedor, “com o Vigia é possível interceptar a comunicação em praticamente todos os tipos de rede e reter dados de comunicação sem notificar os assinantes ou prejudicar o serviço”21. Desta forma, o Sistema Vigia e os sistemas de TI dedicados ao monitoramento das comunicações (Guardião, Sombra ou Wytron) não se sobrepõem, ao contrário, são complementares. Na verdade o Sistema Vigia é o sistema ativo, ele é quem 21Disponível em http://www.suntech.com.br/pt/solucoes/lawful-interception/vigia/. Acesso em 16 de junho de 2014. 128 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi de fato realiza a interceptação e o desvio da chamada para o sistema passivo que recebe e armazena os dados. Importa ressaltar que os Sistemas passivos de TI que recebem e monitoram os dados interceptados são adquiridos e operados pelas autoridades públicas responsáveis pela investigação (ministério público, polícia federal, secretarias de segurança dos estados, etc.), ao passo que o Sistema Vigia tem como clientes exatamente as operadoras de telefonia (Claro, Oi, Vivo, Tim, Nextel, Embratel, GVT, Movistar), o que aliás é divulgado em seu sítio eletrônico na internet22. Isso apenas corrobora o fato de que operadoras de telefonia e provedores de acesso são atores do sistema penal e precisam ser assim compreendidos para que suas ações sejam excluídas ou regulamentadas. É ainda imprescindível que se compreenda quais as possibilidades de que os operadores das empresas desenvolvedoras desses sistemas (aqui leia-se todos eles, Vigia, Guardião, Sombra, Wytron, ou qualquer outro com a mesma funcionalidade), que prestam serviços de suporte técnico, tenham acesso aos mecanismos de funcionamento e aos dados armazenados. Isso porque qualquer um que possa ter acesso, inclusive remoto, ao sistema para solucionar eventual problema técnico, precisa ser devidamente conhecido para configuração da cadeia de custódia. 3.3.funcionamento e algumas funcionalidades dos sistemas de recepção e armazenamento de dados Em nossa pesquisa tivemos acesso ao Manual de Configuração e Operação do Sistema Guardião (Versão Release 1.6.8 e Versão do Aplicativo 3.2.8.78 – julho de 2013) da empresa Dígitro Tecnologia Ltda. Importa dizer que este trabalho não pretende fazer qualquer apanhado sobre o funcionamento do sistema informático, mas apenas traçar em linhas gerais algumas funcionalidades que interessam para garantia dos direito fundamental à prova. Assim, as chamadas direcionadas pela operadora de telefonia ou os dados desviados ingressam na plataforma que realiza a gravação em um determinado 22 Disponível em http://www.suntech.com.br/pt/clientes/. Acesso em 16 de junho de 2014. volume 15 129 i encontro de internacionalização do conpedi suporte (HD) e as informações referentes àquela chamada são armazenados em um banco de dados relacional, que podem ser acessados e manipulados. Em outras palavras, o Hard Disk (HD) em que ficam armazenados os áudios é diverso daquele em que estão armazenados os dados (metadados), mas são relacionados de tal forma que para cada áudio há os correspondentes dados do metadados que, quando acionados remetem por hiperlink diretamente ao áudio vinculado. Isso implica em que, malgrado se afirme que não é possível fazer exclusão de um áudio do sistema, qualquer alteração de dados na base gera um apagamento lógico, ou seja, não havendo mais relação entre dados e áudio o acionamento do hyperlink não será direcionado ao áudio e, portanto, o áudio fisicamente existe, mas não é encontrado. Ademais, o módulo de backup do sistema permite alguns tipos de backup (manual ou por agendamento), mas se não gerado é possível que haja sobrescrição, ou seja, a gravação por cima, o que implica também na possibilidade de perda definitiva de áudios. Isso fica muito claro quando no início do Manual a Dígitro informa que não se responsabiliza por perdas de informações, devido a não observação por parte do cliente, de procedimentos de backup, orientando para que regularmente armazene os dados também em mídia eletrônica (CD, DVD, etc.), de forma a possuir contingência externa. É possível inserir no sistema durante a operação alguns dados cadastrais, como os alvos do monitoramento, os telefones monitorados, os alvarás judiciais que autorizam a interceptação com a data da expedição, o período e a data de validade. Todavia, esse cadastro, como já dito antes, não torna o sistema ativo, porquanto ele não irá captar as chamadas de determinados alvos e telefones, que continuam a depender do desvio a ser realizado pela operadora de telefonia. O problema é que o cadastro de alvará judicial não permite ao sistema bloquear a gravação das chamadas após o término do período de validade da autorização judicial, de tal sorte que esta gestão do período de interceptação fica a cargo exclusivo das operadoras de telefonia. Há no sistema a possibilidade de ter acesso aos logs de eventos que, segundo o manual, se selecionada essa opção, será apresentada uma janela com informações estratégicas da execução do programa, recolhidas durante a utilização do Guardião, que são utilizadas para que se possa fazer a telemanutenção do sistema. 130 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi Essa funcionalidade, embora não tenha finalidade de controle da utilização do sistema para rastreamento das fontes de prova, deveria ser utilizado para tal. Alie-se essa ferramenta aos logs de gravação, que fornecem o histórico de gravações e revelam qualquer problema no processo de conversão das gravações, bem como ao histórico de backup, teremos um rastreamento pelo próprio sistema. Ocorre dois problemas: o primeiro é que esse rastreamento só forneceria informações até o backup e o segundo é que não há sequer notícia de uma única autorização judicial conhecida que dê à defesa (ou seus eventuais assistentes técnicos) acesso ao sistema de logs do sistema. Com efeito, rastrear apenas até o backup é insuficiente quando nos deparamos com perda de áudios nas medidas cautelares de interceptações telefônicas e nos obriga à voltarmos à questão da cadeia de custódia. Em outras palavras, ainda que o sistema de TI responsável pela recepção e armazenamento das ligações telefônicas ou dados interceptados permita rastrear as etapas da operação até a geração do backup para assegurar a integridade do procedimento probatório, é imprescindível que após a geração seja criada uma rotina por lei ou fixada na decisão que defere a interceptação, para permitir à defesa do acusado rastrear as fontes de prova e exercer o seu direito ao contraditório e à defesa. A não observância da rotina, implica na quebra da cadeia de custódia e, por conseguinte, na perda da prova. Ainda que a exata rotina de custódia da fonte de prova fosse definida, seria imprescindível que o acesso ao sistema de TI responsável pela recepção e armazenamento das ligações telefônicas ou dados interceptados fosse garantido à defesa. No entanto, ao argumento de que não se pode dar acesso do sistema à defesa por colocar em risco o sistema e o sigilo de outras operações em andamento (numa presunção de má-fé da defesa e seus eventuais assistentes técnicos), nega-se tal direito sem sequer conceber a criação de mecanismos que possam garantir esse acesso sem prejuízo dos demais interesses envolvidos. 4.conclusões Diante de tudo que se expôs é adequado apontarmos algumas conclusões: 1) O avanço tecnológico promove mudanças nos métodos de obtenção de informações nas persecuções penais com o aporte de técnicas como a interceptação das comunicações telefônicas e de dados quem vem sendo utilizados em profusão; volume 15 131 i encontro de internacionalização do conpedi 2) Esses novos meios de prova colocam em xeque os direitos fundamentais, em especial o direito ao contraditório (vez que a defesa não toma parte na sua produção) e a imparcialidade da jurisdição (já que o juiz submete sua consciência aos elementos cognitivos unilateralmente produzidos); 3) A legitimidade das decisões penais está condicionada à verdade empírica de suas motivações; 4) O processo, sob uma perspectiva metodológica, é um modelo epistemológico do conhecimento dos fatos com base nas provas, que são materiais semióticos que representam a única via de acesso da consciência ao conhecimento; 5) Como em todo procedimento de caráter epistêmico, as provas no processo devem observar estritamente os métodos de produção e utilização; 6) As interceptações das comunicações telefônicas e de dados são provas produzidas por métodos ocultos cuja definição dos meios de execução e fiscalização são deixados pelo art. 5o da Lei no 9.296/96 à definição do juiz; 7) A Lei no 9.296/96 traz à cena dois novos atores para o sistema penal: (1) as concessionárias de serviço público de telefonia e provedores de acesso e (2) o sistema de tecnologia da informação (TI) que trata os dados colhidos dos monitoramentos das comunicações (e seus operadores privados); 8) Diante da inexistência de definição de procedimentos para execução da medida de interceptação das comunicações, o Conselho Nacional de Justiça criou o Sistema Nacional de Controle de Interceptações Telefônicas e editou a Resolução no 59, de 09 de setembro de 2008, com o objetivo de disciplinar e uniformizar as rotinas visando ao aperfeiçoamento do procedimento de interceptação telefônica nos órgãos jurisdicionais do Poder Judiciário; 9) A preservação de cada uma das etapas da operação que realizou a interceptação das comunicações de um cidadão (cadeia de custódia) é a única maneira de assegurar a integridade do procedimento probatório, permitindo que a defesa rastreie e conheça as fontes de prova. Por conta disso é necessário que sejam preservados os suportes técnicos utilizados na interceptação das comunicações; 10) A Resolução no 59/2008 do CNJ extrapola os poderes conferidos constitucionalmente ao órgão e dispõe sobre o que deve constar da decisão 132 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi que defere a medida de interceptação das comunicações, bem como regula as atribuições das operadoras de telefonia, que devem confirmar com o juízo os números cuja efetivação fora deferida e a data em que foi efetivada a interceptação, para fins do controle judicial do prazo; 11) A Resolução no 59/2008 do CNJ ainda determina o que deve constar dos ofícios enviados às operadoras, mas não inclui aí o prazo de interceptação; 12) A Resolução no 59/2008 do CNJ obriga, ainda, as operadoras a enviar ofício semestralmente à Corregedoria Nacional de Justiça indicando os nomes das pessoas, com a indicação dos respectivos registros funcionais, que por força de suas atribuições, têm conhecimento de medidas de interceptação telefônica deferidas, bem como os nomes dos responsáveis pela operacionalização das medidas, comunicando, ainda, qualquer alteração no quadro de pessoal, arquivando-se o ofício na própria Corregedoria, o que demonstra a importância da participação dessas pessoas na execução da medida; 13) A Resolução condiciona a prorrogação da medida a que o pedido se faça acompanhar dos áudios em CD ou DVD, e cria rotinas para transporte dos autos para fora das unidades do Poder Judiciário, mas não cria procedimentos para a guarda dos áudios remetidos aos órgão jurisdicionais, não criando uma cadeia de custódia uniforme; 14) No Brasil, os órgãos públicos responsáveis pela investigação utilizam três sistemas de TI para recepção e armazenamento dos dados obtidos pelas interceptações: o Sistema Guardião desenvolvido e comercializado pela empresa Dígitro Tecnologia Ltda., o Sistema Sombra desenvolvido e comercializado pela empresa Federal Tecnologia de Software Ltda.-EPP e o Sistema Wytron desenvolvido e comercializado pela empresa Wytron Technology Corp. Ltda.; 15) Esses sistemas de TI utilizados para recepção e armazenamento dos dados obtidos pelas interceptações são passivos, pois quem redireciona a chamada para suas plataformas são as operadoras de telefonia e os provedores de acesso; 16) O sistema de TI utilizado por todas as operadoras para fazer a gestão da interceptação é o Vigia, desenvolvido pela empresa Suntech; 17) Embora os sistemas Guardião permite realizar cadastro de dados referentes ao alvará judicial e sua validade, o sistema não bloqueia o recebimento volume 15 133 i encontro de internacionalização do conpedi do direcionamento de chamadas após a expiração do prazo, portanto apenas a operadora de seus empregados controlam a observância do período de interceptação; 18) Embora as empresas desenvolvedoras dos sistemas de TI utilizados para recepção e armazenamento dos dados obtidos pelas interceptações afirmem que o sistema não realiza apagamentos de áudios, no Guardião isso pode ocorrer em duas hipóteses: apagamento lógico (quando é apagado algum dado relacionado com um áudio, que passa a não ser mais encontrado) e sobrescrição (quando o HD excede sua capacidade de armazenamento e os novos áudios começam a sobrescrever os antigos se não for realizado o procedimento de backup); 19) O Guardião permite o conhecimento de logs de eventos, logs de gravação acesso ao sistema e o histórico de backups, todavia isso não permite à defesa rastrear as fontes de prova porque (1) esse rastreamento só forneceria informações até o backup e (2) não há sequer notícia de uma única autorização judicial conhecida que dê à defesa (ou seus eventuais assistentes técnicos) acesso ao sistema de logs do sistema; 20) Portanto, o atual subsistema de prova de interceptação das comunicações telefônicas e de dados introduz indevidamente dois novos atores, cuja atuação não é regulamentada, e não define procedimentos e rotinas que garantam à defesa rastrear as fontes de prova para o legítimo exercício do direito ao contraditório e à ampla defesa. 5.referências ABEL LLUCH, Xavier e RICHARD GONZÁLEZ, Manuel. 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O objetivo da pesquisa consiste em analisar o teor de alguns dispositivos das resoluções emanadas do COAF para verificar sua adequação às limitações decorrentes do princípio da legalidade. Analisa-se o poder regulamentar no âmbito do Poder Executivo e as atribuições do COAF como unidade de inteligência financeira responsável pelo combate à lavagem de dinheiro no Brasil. Por fim, conclui-se pela necessidade de melhor adequação do teor das resoluções emanadas do COAF aos princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito, bem como à teoria garantista. Palavras-chave Garantismo; Princípio da legalidade; Poder regulamentar; Limites; Resoluções. Lavagem de Dinheiro. 1 Doutorando em Direito Constitucional pela UNIFOR. Mestre em Direito Público pela Universidade Federal do Ceará. Professor do Curso de Direito na Unichristus e no Programa de Pós Graduação Estrito Senso da Escola Superior do Ministério Público no Ceará. Advogado e presidente da Comissão de Acompanhamento da Reforma do Código Penal da OAB/CE. 2 Advogado Criminalista. Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Líder do Grupo de Pesquisa “Tutela penal e processual penal dos direitos e garantias fundamentais”, desenvolvido no LACRIM (Laboratório de Ciências Criminais – UNIFOR). E-mail: [email protected] volume 15 137 i encontro de internacionalização do conpedi Abstract This article discusses the limits of the regulatory power of the Financial Activities Control Council (COAF), from the perspective of the principle of Legality as a fundamental premise of the democratic Rule of Law, as well as the grounds brought by the Theory of Criminal Guaranteeism. The objective of this work is to analyze the content of some devices of the resolutions issued by the COAF to verify its suitability to the limitations arising from the principle of legality. It is also analyzed the regulatory power within the Executive Branch and the attributions of the COAF as financial intelligence unit responsible for fighting money laundering in Brazil. Finally, it is concluded by the need to better match the tenor of the resolutions issued by the COAF to the constitutional principles of the democratic rule of law and the guaranteeism. Key words Guaranteeism; Principle of Legality; Regulatory Power; Limits; Resolutions; Money Laundering. 1.introdução Hodiernamente, a temática sobre a lavagem de dinheiro ocupa significativa pauta no âmbito dos organismos internacionais, haja vista a preocupação das autoridades com a grande repercussão dos mecanismos de branqueamento de capitais na estrutura e funcionamento dos grupos criminosos atinentes à denominada criminalidade econômica, inclusive por organizações cujo objetivo centra-se na prática de atos de terrorismo com repercussões locais e/ou internacionais. No contexto relativo à criminalidade econômica e ao crime organizado, o fenômeno da lavagem de capitais emergiu de modo relativamente recente no quadro jurídico, como decorrência do tráfico internacional de entorpecentes, tendo sido objeto de criminalização pela legislação penal de países diversos, inclusive o Brasil. Na perspectiva mundial, os instrumentos normativos mais importantes referentes à lavagem de dinheiro são a Convenção das Nações Unidas Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e de Substâncias Psicotrópicas (Convenção de Viena), de 19 de dezembro de 1988, e a Convenção do Conselho 138 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi da Europa (Convenção de Strasbourg), de 08 de novembro de 1990, que também estabeleceu o mandato de incriminação desta conduta. Em nosso País, por intermédio da Lei n. 9.613, de 03 de março de 1998, fora autorizada a criação do Conselho de Controle de Atividades Financeiras COAF, unidade de inteligência financeira do Brasil, subordinada ao Ministério da Fazenda, cujo objetivo institucional consiste em recepcionar, analisar e retransmitir, na forma de relatórios de inteligência, aos órgãos públicos competentes para investigação e persecução criminal, informações estratégicas que configurem indícios de cometimento do crime de lavagem de dinheiro3. Desse modo, a implantação da política de prevenção e repressão aos mecanismos de lavagem de dinheiro, no Brasil, depende da colaboração de entidades públicas e particulares, com vistas a que auxiliem os órgãos administrativos e de persecução penal mediante a comunicação de atitudes suspeitas, principalmente em atividades relacionadas a bancos, corretores, comerciantes de bens de alto valor e atividades semelhantes. Recentemente, em razão da Lei n. 12.683, de 09 de julho de 2012, a discussão em torno do delito de lavagem de dinheiro auferiu novos contornos, uma vez que o referido diploma normativo pretende tornar mais eficaz a persecução penal para este tipo de atividade delitiva. O COAF, por sua vez, depois da entrada em vigor da referida lei, emitiu resoluções destinadas a regulamentar a colaboração de pessoas físicas e jurídicas no combate à lavagem de dinheiro, especialmente relacionadas às atividades de comercialização de joias, pedras e metais preciosos; distribuição e dinheiro e quaisquer bens, na exploração de atividades de loterias; e relativas a empresas que atuem no ramo de fomento comercial. Mencionadas resoluções impõem a obrigação de comunicação ao COAF de operações que, consideradas as partes e o modo de realização, possam configurar 3 A expressão lavagem de dinheiro fora empregada inicialmente nos Estados Unidos, com o objetivo de descrever o método utilizado pelo crime organizado na década de 1930, do século passado, para justificar a origem dos recursos obtidos com a prática dos ilícitos, no caso, a exploração de máquinas de lavar roupas automáticas. Atualmente, lavagem de dinheiro é o ato ou a sequência de atos praticados com a finalidade de mascarar a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, valores e direitos de origem delitiva ou contravencional, e cujo objetivo final, consiste na reinserção desses valores na economia formal, com aparência de legalidade (BOTTINI; BADARÓ, 2012, p. 21). volume 15 139 i encontro de internacionalização do conpedi sérios indícios de lavagem de dinheiro. Tais diplomas, no entanto, não definem, de forma objetiva e clara, em que consistem tais indícios. Constam, também, nas mesmas resoluções administrativas, determinações de que os procedimentos de apuração devem ser recorrentes, inclusive com a realização de outras diligências nelas não previstas, o que enseja grande insegurança jurídica para as pessoas obrigadas, nos termos da legislação. O objetivo deste ensaio, portanto, gravita à orbita de analisar o teor destes dispositivos, ante os necessários filtros do princípio da legalidade e da teoria do garantismo penal, bem como dos limites ao poder regulamentar, no âmbito do Poder Executivo manifestado no Estado Democrático de Direito. Para tanto, será necessário analisar a Resolução n. 21, expedida pelo COAF em 22 de dezembro de 2012, bem como a doutrina administrativista e penal no tocante à abordagem do princípio da legalidade como premissa necessária para formação e manutenção do Estado Democrático de Direito, para que, a partir de um raciocínio indutivo, concluir que ditas resoluções gravitam à margem do princípio da legalidade, fazendo com que a segurança jurídica, e, por consequência, o garantismo penal, sejam violados. 2. o princípio da legalidade como premissa no estado democr ático de direito O Estado de Direito sempre teve no princípio da legalidade um dos seus maiores sustentáculos, na medida em que o primeiro é subordinado ao ordenamento jurídico, ou seja, deve respeito a um conjunto de normas que necessariamente regulamentam sua ação. Fundamentado na supremacia da Constituição, proteção dos direitos individuais, separação de poderes e superioridade da lei, o Estado de Direito impõe a si os limites da sua atividade e a esfera de respeito pelas liberdades individuais.4 Nessa perspectiva, a separação de funções constitui elemento fundamental para a consolidação do Estado de Direito, pois funciona como mecanismo que 4 A concepção liberal e formalista do princípio da legalidade sempre se destacou como dogma central do Direito Administrativo. Apesar disso, esta concepção formal jamais correspondeu à realidade, sob pena de se considerar toda atuação administrativa mecânica e sem qualquer cunho de caráter criativo, como se os órgãos administrativos apenas executassem aquilo que já estaria exaustivamente previsto em lei (OLIVEIRA, 2011, p. 141). 140 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi permite o exercício do poder político, por meio de uma divisão entre órgãos independentes e autônomos. Cabe ao Parlamento, como instrumento maior da vontade popular e dentro da lógica de separação de poderes, o primado da elaboração de normas jurídicas, com o objetivo de limitar e preordenar a atuação dos órgãos administrativos. No primeiro momento, a ideia de legalidade significava, primordialmente, o necessário cumprimento da lei, de modo praticamente mecânico, como corolário da ideia de que aos particulares é permitido fazer tudo o que não esteja vedado pela lei, em respeito à sua autonomia privada, mas à Administração Pública é licito somente agir de acordo com as prescrições legais (BINENBOJM, 2006, 10). Esta carga de valoração da legalidade fora amplamente acatada pela doutrina clássica, no Brasil. Para Celso Antonio Bandeira de Mello, o mencionado princípio consagra a ideia de que a Administração Pública somente pode ser exercida de acordo com os ditames legais (BANDEIRA DE MELLO, 2007, p. 97). Também Meirelles (2009, p. 55), em semelhante raciocínio, esclarece que, na Administração Pública, não há liberdade nem vontade pessoal, ou seja, enquanto ao particular é permitido fazer tudo o que a lei não proíbe, na Administração somente é permitido fazer o que a lei autoriza. Eis a concepção clássica do princípio da legalidade, que, por seu turno, entrou em crise no século XX, por não ter sido capaz de atender as demandas do Estado Liberal, e, tampouco, do Estado de Bem-Estar Social. 5 Carvalho Filho (2009, p. 19), por sua vez, lembra que no Estado moderno são duas as funções estatais básicas: criar a lei e executá-la, sendo que a última pressupõe o exercício da primeira, colocando-se a atividade de administrar de forma subjacente à legislativa. Assim, somente “se pode conceber a atividade administrativa diante dos parâmetros já instituídos pela atividade legiferante” (CARVALHO FILHO, 2009, p. 19). Na reflexão de Sundfeld (2002, p. 49), o Estado de Direito evoluiu sistematicamente para o Estado Democrático de Direito ao permitir a participação do povo como destinatário do poder político, de modo que os agentes políticos 5 Para Medauar (1992, p. 142), esta concepção clássica do princípio da legalidade caracterizou um grande avanço na perspectiva de garantia, certeza jurídica e limitação do poder, uma vez que significava a superação da vontade pessoal do Monarca pela segurança da disposição impessoal e abstrata da lei. Deste modo, o poder se tornava objetivado, ou seja, obedecer à lei consistia em obedecer à Administração e não à vontade da autoridade. volume 15 141 i encontro de internacionalização do conpedi sejam eleitos e renovados periodicamente com a participação popular e de modo a consagrar a responsabilização desses governantes, em caso de descumprimento dos preceitos da Constituição. Esta nova concepção do Estado já não se coadunava ao primado absoluto da lei, como instrumento de controle da atividade dos juízes e administradores, na perspectiva de que estes atuavam como meros repetidores do texto legal. Efetivamente, a ideia de legalidade passa a receber os contornos da noção de legitimidade, como algo que deve permitir ao aplicador da lei ir muito além do mero aspecto formal da norma, para fazer valer o teor material do texto normativo, entendido como a captação política dos interesses da sociedade. A ideia de legitimidade abarca a perspectiva ético-política e não apenas a ordem ético-jurídica, atinente à noção clássica de legalidade. Na fase atual, de constitucionalismo contemporâneo, a noção de Estado de Direito formal deve ser imediatamente substituída pela de Estado de Direito material, ideia esta intimamente relacionada à concretização do princípio democrático, pautado na busca de uma ordem jurídica legítima. Na Administração Pública, esta superação do paradigma da legalidade como valor máximo da atuação do administrador, no seu aspecto formal, propiciou o fenômeno da constitucionalização do Direito Administrativo, de tal modo que a Constituição e o seu sistema de direitos fundamentais devem guiar o arcabouço normativo que irradia todo o regime jurídico administrativo. Canotilho (2003, p. 836) propõe a ideia de que, atualmente, a Constituição funciona como fundamento primeiro da ação administrativa, vale dizer, a reserva da legalidade vertical fora substituída pela reserva vertical do texto constitucional. A própria noção de interesse público como algo que possui prioridade sobre o interesse particular deve ser entendida apenas como aquilo que tenha sido definido em lei, de modo que descabe ao administrador invocar de forma vaga a ideia de interesse público, para com suporte nela, constranger a liberdade dos administrados, o que não significa, de modo algum, legalismo estrito. A Administração não há de agir apenas de acordo com a lei, mas sim consoante ao bloco de legalidade, ou seja, além da autorização legal, o ato administrativo deverá atentar para a moralidade administrativa, a igualdade, a boa-fé, a razoabilidade, a boa administração, a eficiência e aos demais princípios que norteiam o conteúdo dos atos da Administração Pública (SUNDFELD, 1993, p. 33). 142 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi Para Binenbojm (2006, p. 25), a ideia de constitucionalização do Direito Administrativo, relacionada à superação do paradigma formal da legalidade, encontra convergência no princípio maior da dignidade da pessoa humana. O autor ressalta a existência de novas premissas fundamentadoras da relação entre os cidadãos e o Estado, a seguir expostas: 1) a Constituição, e não mais a lei, passa a situar-se no epicentro da vinculação administrativa; 2) o conceito de interesse público e sua propalada supremacia sobre os interesses particulares deixa de estar ao inteiro arbítrio do administrador e passa a depender de juízos de ponderação proporcional entre os direitos fundamentais e outros valores definidos na Constituição Federal; 3) a ideia de discricionariedade abandona a perspectiva de ser um espaço de livre escolha do administrador para se convolar em resíduo de legitimação, a ser preenchido por procedimentos técnicos e jurídicos prescritos na Constituição e nas leis, objetivando o grau de legitimidade da decisão administrativa; 4) a noção de Poder Executivo unitário cede espaço para a participação de autoridades administrativas independentes, nomeadas pelo chefe do Poder Executivo após aprovação pelo Poder Legislativo, para cumprimento de mandato com estabilidade no cargo, garantindo a noção de independência política dos dirigentes das denominadas agências reguladoras. A própria Teoria do Garantismo Penal, desenvolvida inicialmente por Luigi Ferrajoli para o Direito Penal e o Processo Penal, com o objetivo de buscar uma aproximação entre a normatividade e a efetividade dos direitos fundamentais, atualmente encontra guarida nos demais ramos do Direito, inclusive, intensamente, no Direito Administrativo. Ferrajoli (2006, p. 786) desenvolveu três significações para o termo garantismo. O primeiro significa um modelo normativo de Direito, cujo escopo, sob a perspectiva epistemológica, caracterizase como sistema cognitivo ou de poder mínimo e, sob o prisma político, é caracterizado como técnica de tutela idônea a minimizar a violência e maximizar a liberdade. No plano jurídico, tal modelo funciona como um sistema de vínculos impostos à função punitiva do Estado em garantia dos direitos dos cidadãos. O segundo significado designa uma teoria jurídica da validade e da efetividade como categorias não apenas entre si, mas, também e primordialmente, pelo vigor das normas. Desse modo, o garantismo pugna pela legitimação interna do Direito, o que requer dos juízes e demais operadores da Ciência Jurídica uma constante tensão crítica acerca das leis vigentes, tanto no que tange à validade como em volume 15 143 i encontro de internacionalização do conpedi relação à efetividade das normas jurídicas. A terceira e última perspectiva da Teoria do Garantismo designa uma filosofia política que requer do Direito e exige do Estado o ônus da justificação externa com base nos bens e nos interesses dos quais a tutela ou a garantia constitui a finalidade. Nessa perspectiva, o juiz, sem qualquer laivo de ativismo judicial, mas, sim, focado em parâmetros normativos constitucionais, assume a relevante função de não permanecer inerte ante as violações ou ameaças de lesão aos direitos fundamentais consagrados. O magistrado assume, portanto, nova função no Estado Democrático de Direito, de modo que a legitimação da sua atuação deriva totalmente do modelo constitucional, consubstanciado na necessária proteção dos direitos fundamentais. A justificação política do Direito é realizada pela legitimação externa, enquanto a legitimação interna busca fundamento na esfera jurídica do Direito, não apenas no que tange à forma, mas principalmente no que se refere ao conteúdo. O modelo de legalidade material, denominado legalidade estrita por Ferrajoli, permite muito mais do que a mera verificação da perfeita forma da lei. Há um acréscimo ao conceito formal, na sua concepção tradicional, de modo que a legalidade estrita é o signo de validade das normas positivadas. Desse modo, a ideia de legalidade se confunde com a própria legitimidade material, que deve pautar toda a forma de atuar da Administração Pública.6 6 Os chamados pilares da teoria garantista vêm com o objetivo de responder às indagações de “quando e como punir?” relativas à aplicação da lei penal; de “quando e como proibir?”, concernentes ao tema da tipicidade das condutas penalmente relevantes; e de “quando e como julgar?”, intrinsecamente ligada à atividade processual. Assim, apresentam-se como pilares fundamentais do garantismo penal: 1) princípio da retributividade ou da sequenciabilidade em relação ao delito consubstanciado na regra “nulla poena sine crimine”, que determina que não deve haver pena sem crime anterior que a justifique; 2) princípio da legalidade, nos sentidos lato e estrito, expresso na regra “nullum crime sine lege”, isto é, não há crime sem lei anterior que o defina; 3) princípio da necessidade ou economia do Direito Penal, manifestado pelo comando “nulla lex (poenalis) sine necessitate” e indicativo de que o Direito Penal constitui a “ultima ratio” do ordenamento jurídico; 4) princípio da lesividade ou da ofensividade do evento (“nulla necessitas sine injuria”), condicionando a atuação do Direito Penal à existência de lesão ou perigo de lesão a um bem juridicamente tutelado; 5) princípio da materialidade ou exterioridade da ação (“nulla injuria sine actione”), que exige a existência de ação ou omissão penalmente relevantes para a repressão da conduta; 6) princípio da culpabilidade ou da responsabilidade pessoal (“nulla actio sine culpa”), ou seja, não há responsabilização sem comprovação de culpa ou dolo; 7) princípio da judiscionariedade no sentido lato e no sentido estrito (“nulla actio sine judicio”), designando que não há aplicação de pena senão pela autoridade competente; 8) 144 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi A Constituição Federal de 1988 - CF, por sua vez, determinou a todos os entes e órgãos da Administração Pública obediência à legalidade não apenas no concernente à concepção formal e clássica deste princípio, mas, principalmente, como decorrência fundamental do Estado Democrático de Direito e pilastra essencial dos direitos e garantias fundamentais do cidadão. 3.balizamentos jurídico-constitucionais ao poder regulamentar na administr ação pública É inegável a constatação de que uma das principais competências da Administração Pública consiste em detalhar e especializar os comandos legais, visando à sua fiel interpretação, aplicação e efetividade. Historicamente, o poder regulamentar é atribuído ao chefe do Poder Executivo7, em razão da sua competência para expedir decretos e regulamentos, em todas as esferas federativas. A própria lei, no entanto, poderá conferir o poder regulamentar, em determinadas questões, a diferentes órgãos da Administração Pública ou a entidades autônomas do Estado, como as autarquias, como forma de descentralização administrativa, exigindo-se, contudo, que o agente competente para a elaboração do ato administrativo atue dentro da esfera que a lei traçou (CARVALHO FILHO, 2009, p. 101). Assim, a competência regulamentar da Administração tem o parâmetro da legalidade como limite e fundamento para sua atividade, vale dizer, o princípio da legalidade se reveste do caráter de reserva geral da lei, no sentido de que cabe ao regulamento, ou a qualquer outro instrumento normativo decorrente do poder regulamentar apenas o detalhamento do diploma normativo oriundo do Poder princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusação (“nullum judicio sine acusatione”) apresentando-se como expressão do princípio da obrigatoriedade da ação penal; 9) princípio do ônus da prova ou da verificação (“nulla accusatione sine probatione”), isto é, a acusação tem o ônus de provar a responsabilidade do acusado que goza do estado de inocência até que o contrário seja provado; e 10) princípio do contraditório ou da defesa ou da falseabilidade (“nulla probatio sine defensione’) indicativo do direito que o réu tem de ter ciência da acusação e de sobre ela se manifestar por todos os meios de prova admitidos em direito (FERRAJOLI, 2006). 7 O inciso IV do art. 84 da Constituição Federal dispõe que compete privativamente ao Presidente da República “sancionar, promulgar e fazer publicar leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução.” volume 15 145 i encontro de internacionalização do conpedi Legislativo. Em razão disso, o regulamento não deve funcionar contra legem, ultra legem, tampouco praeter legem, devendo se legitimar somente quando operar secundum e intra legem.8 Trata-se, portanto, de uma atividade normativa de caráter secundário, absolutamente ancorada na lei, em todas as suas matizes, quer no preenchimento do significado que a amplitude do dispositivo legal requeira, quer no detalhamento destas disposições.9 Em verdade, sempre que a Administração produz norma ou regulamenta a lei, ou mesmo quando atua no espaço definido pelo diploma normativo, isto não significa que a norma decorrente do órgão público terá a função de detalhar ou especificar o comando normativo, mas, sim, guardar o limite da não contradição e da não inovação (MIRAGEM, 2011, p.84). Sarlet (2008, p. 9) leciona que, tradicionalmente, o poder regulamentar possui três funções essenciais no sistema jurídico: a) solucionar a execução da lei, sempre que for o caso; b) especificar e facilitar a execução da lei, de modo prático, além de acomodar a estrutura da administração para fiel observância da legislação; c) incidir no campo da discricionariedade técnica, como, por exemplo, no caso da legislação ambiental. De modo geral, o poder geral regulamentar da Administração Pública encon-tra duas vertentes quanto aos limites de sua atuação. Em primeiro plano, a concepção mais conservadora do poder regulamentar, caracterizada pela vinculação negativa da Administração, sob o entendimento de que a lei não é o pressuposto da atividade administrativa, mas apenas o seu limite. A segunda 8 A Constituição Federal, em hipótese excepcional, conforme o artigo 84, VI, “a” dispensa a necessidade de lei para o tratamento da organização da Administração Pública Federal, matéria atualmente disciplinada por decreto. De acordo com o princípio da simetria, tal regra é aplicável aos estados, Distrito Federal e municípios. 9 Sergio Ferraz firma entendimento no sentido de que regulamento é o ato administrativo, de caráter normativo, com a finalidade de especificar os mandamentos da lei ou de prover situações especiais ainda por ela não especificadas. Para esse autor, o poder regulamentar é amplo. Assim, a tradicional afirmação de que tal poder deve ser integralmente submetido aos ditames da lei deve ser encarada com reservas ( FERRAZ, 1977, 111). Em igual sentido, ganha espaço, na doutrina, o entendimento de que o ingresso, no ordenamento jurídico brasileiro, das agências administrativas reguladoras, permitiu, ante a chamada “ reforma administrativa”, maior poder de regulação normativa para estas entidades, pois se, antes, a legislação buscava tão-somente descentralizar a Administração Pública, e, na maioria das vezes, manter a concentração da titularidade da competência para o exercício da função administrativa, atualmente, tal fenômeno não ocorre ( MOREIRA, 2007, 14). 146 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi linha de pensamento, mais moderna e atual, considera a lei como aspecto de vinculação positiva do poder regulamentar. Em decorrência desse entendimento, a Administração somente poderá agir de acordo com o que a lei estabeleça. Consequentemente, é possível asseverar sobre a existência do âmbito material da lei e do regulamento, de modo que são reservados à lei, em sentido formal, normas de proibição que possam interferir nas liberdades dos administrados, assim como restrições de direitos ou imputações de sanções criminais ou administrativas, sempre com obediência ao Princípio da Anterioridade.10 Desse modo, regulamentos ou normas semelhantes que estabeleçam limitações aos direitos fundamentais sem respaldo na legislação não encontram guarida no ordenamento jurídico pátrio. De igual modo, tal proibição também diz respeito à imputação de sanções, inclusive multas administrativas, especialmente aquelas cominadas mediante decretos regulamentares, mesmo naquele em que a conduta seja proibida por lei. Na perspectiva de Streck, Sarlet e Cléve (2005, p. 15), mesmo o Conselho Nacional de Justiça – CNJ e o Conselho Nacional do Ministério Público - CNMP, cujos conjuntos de atribuições possuem matrizes oriundas diretamente da CF, não poderiam inovar o ordenamento jurídico mediante o seu poder regulamentar. Para os citados autores parece equivocada a ideia de que tais órgãos possam substituir a vontade geral oriunda da manifestação do Poder Legislativo, por intermédio da expedição de atos regulamentares, porquanto, no Estado Democrático de Direito, não se pode admitir que um órgão administrativo possa emitir resoluções cujos reflexos possam atingir ou macular os direitos fundamentais previstos na CF. 10 Bandeira de Mello (2007, p. 338) esclarece que toda a disciplina jurídica atinente ao regulamento, inclusive pertinente aos limites do poder regulamentar, aplica-se, ainda com maior razão, a instruções, portarias, resoluções, regimentos ou quaisquer outros atos gerais do Poder Executivo. Afirma anda que na pirâmide jurídica, alojam-se em nível inferior ao próprio regulamento. Enquanto este é ato do chefe do Poder Executivo, os demais assistem a autoridades de nível mais baixo e, por consequência, investidas em funções de menor relevância. Tratando-se de atos subalternos e expedidos, portanto, por autoridades subalternas, por via deles, o Executivo não pode exprimir poderes mais dilatado que os suscetíveis de expedição mediante regulamento. Desse modo, toda dependência e subordinação do regulamento à lei, bem como os limites em que se há de conter, manifestam-se revigoradamente no caso de instruções, portarias, resoluções regimentos ou normas semelhantes, o que permite se utilizar as conclusões deste estudo à disciplina das resoluções do COAF. volume 15 147 i encontro de internacionalização do conpedi Desse modo, tais colegiados submeter-se-iam a dois tipos de restrição: a primeira é no sentido de que não podem expedir regulamentos com caráter geral e abstrato, em face da reserva da lei; a segunda diz respeito à impossibilidade de ingerência dessas resoluções nos direitos e garantias fundamentais, inclusive diante da cláusula de proibição de restrição a tais direitos, a qual encontra guarida na reserva lei, também garantia constitucional (STRECK, SARLET, CLÈVE, 2005, p. 15). Não obstante, no julgamento da Ação Direta de Constitucionalidade n.° 12, o Supremo Tribunal Federal – STF decidiu pela constitucionalidade da Resolução n. 7/2005, a qual vedou a prática do nepotismo no Brasil no Poder Judiciário, posteriormente amplificada para as outras esferas das funções do Estado e cristalizada na Súmula Vinculante n.° 13, do mesmo Tribunal. De acordo com o voto proferido pelo relator, Ministro Carlos Britto, a resolução apenas debulhou os próprios conteúdos lógicos dos princípios constitucionais de regência da atividade administrativa do Estado, dentre os quais merecem destaque impessoalidade, eficiência e igualdade. Desse modo, no caso das resoluções do CNJ, o STF decidiu que são diplomas normativos primários, dotados de generalidade, impessoalidade e abstratividade11. 11 Evidentemente, não se deve estender a conclusão do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADC n. 12, aos diplomas normativos expedidos por outros órgãos da Administração Pública, os quais não possuem fundamento de validade decorrente diretamente da Constituição Federal. Veja-se a ementa: “EMENTA: AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE, AJUIZADA EM PROL DA RESOLUÇÃO Nº 07, de 18.10.05, DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. ATO NORMATIVO QUE “DISCIPLINA O EXERCÍCIO DE CARGOS, EMPREGOS E FUNÇÕES POR PARENTES, CÔNJUGES E COMPANHEIROS DE MAGISTRADOS E DE SERVIDORES INVESTIDOS EM CARGOS DE DIREÇÃO E ASSESSORAMENTO, NO ÂMBITO DOS ÓRGÃOS DO PODER JUDICIÁRIO E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS”. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. 1. Os condicionamentos impostos pela Resolução nº 07/05, do CNJ, não atentam contra a liberdade de prover e desprover cargos em comissão e funções de confiança. As restrições constantes do ato resolutivo são, no rigor dos termos, as mesmas já impostas pela Constituição de 1988, dedutíveis dos republicanos princípios da impessoalidade, da eficiência, da igualdade e da moralidade. 2. Improcedência das alegações de desrespeito ao princípio da separação dos Poderes e ao princípio federativo. O CNJ não é órgão estranho ao Poder Judiciário (art. 92, CF) e não está a submeter esse Poder à autoridade de nenhum dos outros dois. O Poder Judiciário tem uma singular compostura de âmbito nacional, perfeitamente compatibilizada com o caráter estadualizado de uma parte dele. Ademais, o art. 125 da Lei Magna defere aos 148 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi Assim, somente deve ser admitida a edição de regulamentos autônomos em relação a matérias não sujeitas à reserva legal nas hipóteses em que a Administração Pública tiver como objetivo o atendimento de mandamentos constitucionais. 4.o conselho de controle de atividades financeir as (coaf) e sua atuação no combate à lavagem de dinheiro O COAF, unidade de inteligência financeira do Brasil, fora criado pela Lei n. 9.613, de 03 de março de 1998, com vistas a disciplinar, aplicar penas administrativas, receber, examinar e identificar as ocorrências suspeitas de atividades ilícitas previstas na referida lei. Trata-se de órgão público de deliberação coletiva, com subordinação direta ao Ministério da Fazenda e jurisdição administrativa em todo o território nacional. A função principal deste órgão consiste em reunir informações acerca de atividades suspeitas da prática de lavagem de dinheiro e, desde então, efetivar os encaminhamentos pertinentes aos órgãos de persecução penal.12 Tal órgão funciona como unidade de inteligência financeira de caráter administrativo, vale dizer, como órgão técnico, sob a supervisão de uma entidade que não se pode considerar como autoridade coercitiva ou judicial. Atua, portanto, de modo a estabelecer uma interface importante do setor financeiro Estados a competência de organizar a sua própria Justiça, mas não é menos certo que esse mesmo art. 125, caput, junge essa organização aos princípios “estabelecidos” por ela, Carta Maior, neles incluídos os constantes do art. 37, cabeça. 3. Ação julgada procedente para: a) emprestar interpretação conforme à Constituição para deduzir a função de chefia do substantivo “direção” nos incisos II, III, IV, V do artigo 2° do ato normativo em foco; b) declarar a constitucionalidade da Resolução n. 07/2005, do Conselho Nacional de Justiça.” (BRASIL, 2009, online) 12 Conforme o artigo 16, da Lei n. 9613/1998, o COAF será composto por servidores públicos de reputação ilibada e reconhecida competência, designados em ato do ministro de Estado da Fazenda, dentre os integrantes do quadro de pessoal efetivo do Banco Central do Brasil, da Comissão de Valores Mobiliários, da Superintendência de Seguros Privados, da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, da Secretaria da Receita Federal do Brasil, da Agência Brasileira de Inteligência, do Ministério das Relações Exteriores, do Ministério da Justiça, do Departamento de Polícia Federal, do Ministério da Previdência Social e da Controladoria Geral da União, atendendo à indicação dos respectivos ministros de Estado. Além disso, é importante mencionar que o presidente do COAF será nomeado pelo presidente da República, por indicação do Ministro da Fazenda. volume 15 149 i encontro de internacionalização do conpedi com as autoridades responsáveis pelo poder de coerção do Estado. O COAF, portanto, não tem atribuição para iniciar diretamente qualquer investigação, suspender operações ou sequestrar ativos (CARLI, 2012, p. 244). As primeiras unidades de inteligência financeira foram criadas para dar cumprimento às deliberações da Convenção de Viena, no início da década de 1990.13 Surgiram como importantes instrumentos de prevenção e repressão à lavagem de dinheiro em muitos países, principalmente em razão do aumento da sofisticação dos mecanismos utilizados por criminosos para garantir o encobrimento do produto de ilícitos decorrentes do crime organizado e do terrorismo. Além da Convenção de Viena, cujo escopo principal consistia em conjugar esforços internacionais para o combate ao tráfico internacional de entorpecentes e substâncias psicotrópicas, também merece destaque a instituição do Grupo de Ação Financeira Internacional - GAFI, organismo de caráter internacional, gestado em 1989, sob a coordenação das sete nações mais industrializadas (G7), para maximizar o combate à lavagem de dinheiro. Referido grupo publicou 40 recomendações, com o objetivo de regulamentar questões de natureza financeira, penal e de cooperação internacional. Entre tais recomendações, consta a necessidade de fortalecimento da cooperação internacional por intermédio das unidades de inteligência financeiras dos países participantes do organismo, independentemente de participação do Poder Judiciário, uma vez que a legislação de alguns países somente permite esse intercambio de informações com autorização judicial (BONFIM; BONFIM, 2005, p. 20). Ainda no âmbito internacional, merece destaque a Convenção do Conselho da Europa relativa à lavagem de dinheiro, mais conhecida como Convenção de Estrasburgo, em cujas diretivas ficaram reconhecidas a necessidade da adoção de medidas mais eficazes no combate a este tipo de criminalidade, assim como 13 O Brasil ratificou os termos da Convenção de Viena, conforme o Decreto n. 154, de 26.06.1991, mas somente sete anos depois o projeto de lei que tratava do crime de lavagem de dinheiro fora transformado em lei. Precedente à lei brasileira, outros países, igualmente signatários da Convenção de Viena, modificaram suas legislações penais para introduzir o crime de lavagem de dinheiro, a exemplo de Alemanha, Bélgica, França, México, Portugal e Suíça (BARROS, 2004, p. 88). 150 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi o estabelecimento de medidas legais de embargos e confisco, com o escopo de privar os criminosos do proveito econômico dos ilícitos penais. A transmissão de informações estratégicas, por sua vez, decorre de obrigação administrativa de pessoas físicas ou jurídicas, bem como de entidades do setor privado - bancos, empresas securitizadoras, organizações que atuem no ramo de bens de alto valor ou que possuam, de alguma forma, contato com a movimentação econômica de outras pessoas atuantes nesses ramos - de comunicar tais operações à unidade de inteligência financeira, sob pena de responsabilização de caráter administrativo, especialmente multas, e, também, em alguns casos, responsabilização de natureza criminal. Após a fase da transmissão das informações, o que deve ocorrer sempre de modo sigiloso e de sorte a resguardar o nome da pessoa responsável pela comunicação, a unidade de inteligência financeira deverá analisar o material recebido e emitir relatório, com o objetivo de confirmar ou não a ocorrência da suspeita de lavagem de dinheiro. Para tanto, devem ser confrontadas as informações com outros dados, decorrentes de comunicações de outras instituições, inclusive informações de unidades de inteligência financeira de outros países, hipótese permitida em virtude da atual fase de colaboração internacional no combate à lavagem de capitais. Em linhas mestras, a legislação comporta três categorias de obrigações, direcionadas a diversos entes, ou seja: a) identificação de clientes e manutenção de cadastro atualizado; b) manutenção do registro de transações efetivados com tais clientes, por prazo determinado e comunicação de operações suspeitas de lavagem de dinheiro. Para permitir a execução e acompanhamento dessas obrigações, a Lei n. 9.613/1998 atribuiu ao COAF poder funcional de analisar, receber e identificar ocorrências suspeitas de lavagem de dinheiro; poder funcional de aplicar multas administrativas e poder funcional regulamentar. Assim, o COAF deve regulamentar o tema lavagem de dinheiro para as entidades abrangidas pela lei, mesmo que não estejam sujeitas a nenhum regulador ou fiscalizador específico, como, por exemplo, os bancos, os quais estão sujeitos às normas que emanam do Banco Central. Indiscutivelmente, o COAF constitui importante mecanismo na estrutura de combate à lavagem de dinheiro no Brasil. Tal asserção decorre dos recursos humanos e diversificados que compõem o mencionado órgão e que fornecem volume 15 151 i encontro de internacionalização do conpedi aos órgãos de persecução penal importantes informações capazes de desvendar delitos em distintas operações financeiras, muitas vezes, inseridas em engrenagens negocias de alta complexidade. 5.consider ações sobre as resoluções emanadas do coaf à luz do princípio da legalidade O poder regulamentar do COAF constitui importante ferramenta para disciplina das obrigações administrativas, de pessoas físicas ou jurídicas que executem atividades abrangidas pelas áreas de interesse dos órgãos de fiscalização do Estado, especialmente os que atuam no combate à lavagem de dinheiro. Desde a sua criação, o COAF emitiu 27 resoluções, com disciplina acerca dos atos de comunicação de ilicitudes no mercado financeiro e sanções administrativas em caso de descumprimento.14 Mencionadas normas disciplinam diferentes ramos de atividades e profissões. Bottini e Badaró (2013) esclarecem que as obrigações decorrentes do poder regulamentar do COAF podem ser divididas em três grandes grupos: a) de registro; b) de comunicação; c) de compliance. O primeiro grupo é atinente à coleta de dados sobre clientes, operações comerciais e seus beneficiários. O segundo compreende a comunicação de atos suspeitos às autoridades públicas. O terceiro concerne à compliance, ou seja, diz respeito à criação de mecanismos de controle internos preventivos e de combate à lavagem de dinheiro. As resoluções, assim, detalham a forma de cumprimento das obrigações estabelecidas em lei, de modo que o cumprimento das obrigações delas decorrentes é fundamental para preservar os dirigentes de qualquer responsabilidade administrativa ou criminal. Na concepção de Bottini e Badaró (2013), justamente ao tratar da política de compliance, o COAF emite, sistematicamente, resoluções genéricas e inespecíficas, sem a correta indicação das medidas a serem adotadas pelos obrigados, o que enseja grande insegurança jurídica em torno do tema, afetando, por sua vez, um dos pilares da teoria garantista, qual seja, a necessidade de uma lei clara e específica quanto à conduta a incriminar, bem como à sanção a ser imposta (FERRAJOLI, 2006). 14 A Resolução n. 27, de 6 de novembro de 2013, revogou as Resoluções n. 3, n. 5 e n. 22. A íntegra dos textos das Resoluções encontram-se em: http://www.coaf.fazenda.gov.br/ legislacao-e-normas/normas-do-coaf. 152 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi A Resolução n. 21, de 20 de dezembro de 2012, dispõe sobre procedimentos a serem adotados por empresas de fomento comercial. Tal norma tem por objetivo estabelecer normas gerais de prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo, sujeitando-se ao seu cumprimento as empresas de fomento comercial ou mercantil (factoring), em qualquer de suas modalidades, inclusive a securitização de ativos, títulos ou recebíveis mobiliários e gestoras afins. Após tecer uma série de obrigações de registro e comunicação de informações, a referida Resolução estabelece que “as pessoas obrigadas devem estabelecer procedimentos adicionais de verificação” nos casos de dúvida em relação à veracidade das informações prestadas pelos clientes. Na sequência, a Resolução obriga a adoção de “medidas adequadas” para compreensão da composição acionária e da estrutura de controle dos clientes pessoas jurídicas. Mais adiante, dispõe que, nas hipóteses em que não for possível identificar o destinatário final, as pessoas obrigadas devem “dispensar especial atenção” à operação, avaliando a conveniência de sua realização. 15 Na visão de Batista (2002, p. 65), o princípio da legalidade, também conhecido como princípio da reserva legal “constitui a chave mestra de qualquer sistema penal que se pretenda racional e justo”, vez que estabelece o limite do poder estatal perante o indivíduo, conferindo previsibilidade suficiente da intervenção do Estado na liberdade individual, o que, automaticamente, remete à ideia de segurança jurídica. Numa das funções atribuídas ao princípio da legalidade, estabelece-se a proibição de incriminações vagas e imprecisas (“nullum crimen 15 “Art. 8º Para a realização das operações de que trata esta Resolução, as pessoas de que trata o art. 1º deverão assegurar-se de que as informações cadastrais do cliente estejam atualizadas no momento da realização do negócio. Art. 9º As pessoas de que trata o art. 1º devem adotar procedimentos adicionais de verificação sempre que houver dúvida quanto à fidedignidade das informações constantes do cadastro ou quando houver suspeita da prática dos crimes previstos na Lei nº 9.613, de 3.3.1998, ou de situações a eles relacionadas. Art. 10. As pessoas de que trata o art. 1º devem adotar medidas adequadas para compreenderem a composição acionária e a estrutura de controle dos clientes pessoas jurídicas, com o objetivo de identificar seu beneficiário final. Parágrafo único. Quando não for possível identificar o beneficiário final, as pessoas de que trata o art. 1º devem dispensar especial atenção à operação, avaliando a conveniência de realizá-la ou de estabelecer ou manter a relação de negócio.” (BRASIL, 2012a, online). volume 15 153 i encontro de internacionalização do conpedi nulla poena sine lege certa”), exigindo-se, assim, um preceito incriminador de conteúdo certo, exato e específico, com total precisão semântica, de modo a pautar a conduta do cidadão-administrado, pois há, segundo Batista (2002, p. 80), o direito público subjetivo de qualquer pessoa de conhecer o crime. Uma parte da doutrina penal reconhece este princípio como o da taxatividade, exigindo do legislador precisão na formulação do tipo penal e da respectiva sanção, para que “a lei enuncie, mediante a indicação dos diversos caracteres da conduta delitiva, a matéria de proibição a fim de que os limites entre o lícito e o ilícito não fiquem à mercê da decisão judicial” (LOPES, 1999, p. 85). Ou seja, trata-se de um mandato de certeza, compatível com a ideia de garantismo, preservando, também, a ideia de separação de poderes. Como chama a atenção Schmidt (2001, p. 118), a “manutenção da liberdade dos cidadãos” tem como pressuposto a edição de leis “por um poder que não seja o responsável pela administração do Estado (e vice-versa), já que poderia este editar leis abusivas com a finalidade de abusivamente, administrar o ente público, e, ademais, de isentarse à sua própria obediência”. Mais adiante, o mesmo Schmidt amplia a noção de quebra de separação de poderes mediante a aplicação do princípio da taxatividade como limitação do ato de julgar, pois o juiz, ao avocar para si a responsabilidade de delimitar o conteúdo de um tipo legal, está exercendo o papel de legislador e utilizando “a analogia como forma de adequação típica” (2001, p. 123). Desta maneira, não há duvidas de que o COAF extrapola as suas funções no que tange ao poder regulamentar que lhe fora deferido no âmbito de compliance, uma vez que a utilização de expressões genéricas para descrição das obrigações a que estão sujeitas pessoas físicas e jurídicas não oferece a necessária segurança jurídica decorrente do princípio da legalidade. Além disso, o não cumprimento dessas obrigações poderá acarretar o pagamento de pesadas multas administrativas. Em outras situações, poderá implicar até mesmo responsabilização criminal, caso os órgãos de persecução enquadrem o responsável pelo setor de compliance na figura da omissão penalmente relevante, tudo de acordo com o artigo 13, § 2. °, do Código Penal brasileiro.16 16 “Art. 13. O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o crime não teria ocorrido. 154 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi Aliás, no julgamento da Ação Penal n. 470/MG pelo STF (Caso Mensalão), os ministros reconheceram a responsabilidade criminal dos dirigentes do Banco Rural (núcleo financeiro do esquema criminoso), pelo crime de lavagem de dinheiro, em razão do descumprimento das normas de compliance decorrentes da obrigação de comunicar transações suspeitas ao COAF, ou seja, restou constatado que os saques em espécie efetuados na “boca do caixa” não eram objeto de registro e comunicação adequadas aos órgãos fiscalizadores.17 No caso em tela, os ministros ressaltaram que não há ilegalidade alguma na realização de saques em espécie, ainda que vultosos. O STF ressaltou que transações vultosas, envolvendo quantidades expressivas de dinheiro, são usualmente realizadas por meio de cheques ou transferências bancárias, de conta para conta. Por ocasião do julgamento da referida ação penal, o STF considerou incomum a realização de transações elevadas em espécie, entre outros motivos por riscos óbvios de segurança. E não raramente esses saques vultosos em espécie não têm razão senão dificultar o rastreamento bancário e a identificação do beneficiário da transação.18 [...] § 2. ° A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, guarda e vigilância; b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; c) com o seu comportamento anterior, criou o riso da ocorrência do resultado.” 17 Ainda em relação ao julgamento da ação penal n. 470/MG, do Supremo Tribunal Federal, houve uma subsunção praticamente automática, na qual a violação do dever de informar as operações suspeitas determinava a condenação, ante o descumprimento de deveres (non compliance). Tal interpretação se confirmou, não apenas no que tange às condenações, na medida em que as estratégias de defesa ocuparam-se de demonstrar a ausência de irregularidades nos programas de compliance e a simples inexistência do dever de comunicar fundamentou algumas absolvições, no referido julgamento (SAAD-DINIZ, p. 161, 2013). 18 Não por acaso, no acórdão publicado no dia 22.04.2013, fora citada a Carta-Circular n. 3.098 do Banco Central, datada de 11.06.2003, que estabeleceu mecanismos de controle sobre elevadas transações em espécie. A medida visa a prevenir a realização de operações da espécie para lavagem de dinheiro. O ato normativo exige que as instituições financeiras comuniquem obrigatoriamente ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF, operações de depósito, saque ou provisionamento de saques em espécie de valor igual ou superior a R$ 100.000,00. Tal comunicação ao COAF é efetuada mediante registro eletrônico da operação no Sistema do Bacen – SISBACEN, juntamente com os dados exigidos na mencionada circular, dentre eles os relativos à identificação completa do beneficiário da transação. volume 15 155 i encontro de internacionalização do conpedi Desta feite e em arremate, a ausência de taxatividade nas obrigações impostas nos diplomas normativos emanados do COAF torna inconstitucionais as resoluções objeto da presente análise, principalmente em razão dos contornos delimitadores do princípio da legalidade, baseados no garantismo penal, e também em decorrência do fenômeno da constitucionalização do Direito Administrativo. 6.conclusões A nova feição dos princípios constitucionais e o fenômeno do constitucionalismo contemporâneo exigem outra perspectiva em relação ao princípio da legalidade. Se, no primeiro momento, a legalidade formal caracterizou um grande avanço no que tange ao subjetivismo decorrente do absolutismo monárquico, na quadra atual, o princípio da legalidade se confunde com a própria ideia de legitimidade, numa perspectiva de respeito e concretização dos direitos e garantias fundamentais, previstos na CF. O poder regulamentar da Administração Pública não deve inovar o ordenamento jurídico, mas apenas especificar o cumprimento das leis, sempre de modo a respeitar os direitos fundamentais positivados como garantia para o cidadão. Além disso, o poder regulamentar dos órgãos do Estado deve obediência ao princípio da legalidade como decorrência da constitucionalização do Direito Administrativo, no sentido de que os atos normativos emanados do exercício desse poder devem obediência também aos postulados da proporcionalidade, publicidade, moralidade, impessoalidade e eficiência, paradigmas fundamentais da Administração Pública, no contexto atual. O COAF, como unidade de inteligência financeira, exerce atividade fundamental no combate à lavagem de dinheiro e insere o Brasil no âmbito atual das políticas internacionais, para o efetivo controle desse tipo de criminalidade. A Resolução n. 21, anteriormente analisada, peca pela ausência de clareza em alguns dispositivos, o que torna passível de acarretar a imputação de graves Com esse mecanismo, toda transação bancária em espécie no valor igual ou superior a R$ 100.000,00 gera uma comunicação obrigatória à unidade de inteligência instituída no Brasil para prevenção à lavagem de dinheiro, propiciando seu encaminhamento, após a análise da informação, aos órgãos competentes para investigação e persecução criminal, se for o caso. 156 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi sanções de ordem administrativa e criminal para as pessoas obrigadas a colaborar com o Poder Público. A configuração genérica dos dispositivos analisados permite a conclusão de que tais resoluções não se adequam aos limites decorrentes do poder regulamentar da Administração Pública, e, por consequência, maculam o princípio da legalidade em sua perspectiva garantista, que, por sua vez, remetem seus postulados à disciplina constitucional. Desse modo, mister se faz uma urgente reformulação nos dispositivos emanados das resoluções do COAF, de modo a possibilitar que as empresas e profissionais insertos no processo de colaboração com o poder Público possam exercer suas atividades de modo adequado, mas, sempre, com a necessária segurança jurídica inerente ao Estado Democrático de Direito. 7.referências BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. BARROS, Marco Antônio de. Lavagem de capitais e obrigações civis correlatas: com comentários, artigo por artigo, à Lei n. 9.613/1998. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. 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É apresentado um estudo sobre os diferentes estágios de vitimização enfrentados pelo agredido a partir da ocorrência do delito. As conclusões, necessariamente provisórias, apontam que, por enquanto, a justiça restaurativa é uma possibilidade complementar ou auxiliar ao sistema penal, sendo um veículo útil para uma melhoria do tratamento destinado à vítima do delito, minimizando, sobretudo, o processo de vitimização secundária. Palavras-chave Justiça restaurativa; Sistema Penal; Vitimologia. 1 Doutora em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (UFBA/Edital 003/2010). Possui graduação em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA/2004-2008) e mestrado em Direito Público por esta mesma instituição (UFBA/2009-2011). É professora Assistente de Direito Penal da Faculdade de Direito UFBA. É professora colaboradora do curso de Especialização em Ciências Criminais da Fundação Faculdade de Direito da UFBA; da Escola de Magistrados da Bahia (EMAB); da Pós-Graduação da Universidade Católica do Salvador (Ucsal); da Pós-Graduação do Centro de Estudos Jurídicos de Salvador (CEJUS); da Faculdade Baiana de Direito (FBD); da graduação e da Pós-Graduação da Universidade Salvador (UNIFACS). É membro do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP); do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito no Brasil (CONPEDI) e da Comissão de Defesa do Concurso Público da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção do Estado da Bahia (OAB/BA). Advogada criminalista. 2 Doutorando em Direito Público pela UFBA. Mestre em Direito Público pela UFBA (2012). Mestre em Políticas Sociais e Cidadania pela UCSAL (2009). Graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia (1998). Atualmente é professor adjunto da Universidade Salvador- Graduação e Pós-Graduação. Professor Assistente da Faculdade Baiana de Direito. Professor Substituto da UFBA. Procurador do TJD/FBF. Membro do Instituto Baiano de Direito Desportivo. Membro do Conselho Consultivo do Instituto Baiano de Direito Constitucional. Advogado e Consultor Jurídico. volume 15 161 i encontro de internacionalização do conpedi Abstract The investigation of the research focuses on the possibility of restorative justice as an alternative to the criminal justice system useful in decreasing the process of victimization of the victim. Legal frameworks such as the UN Resolution on restorative justice and the possibilities of adopting this model of justice in Brazil with current legislation are analyzed. A study on the different stages of victimization faced by abused from the occurrence of the crime appears. The findings, necessarily provisional, indicate that, for now, restorative justice is a complementary possibility or assist the criminal justice system, being a useful tool for improving care for the victim of the crime, minimizing especially the process of secondary victimization. Key words Restorative justice; Penal system; Victimology. 1. introdução O problema central do qual parte o presente estudo é a maior efetividade da justiça restaurativa como veículo redutor do processo de vitimização secundária vivenciado pelo sujeito ofendido a partir da ocorrência do crime. Deste modo, tem como tema central a justiça restaurativa e, mais especificamente, delimita-se pela elaboração de uma análise vitimológica acerca da solução restaurativa. A hipótese que orienta o presente estudo a demonstração de que a justiça restaurativa corresponde a meio mais eficaz no combate ao processo de sobrevitimização que o sistema penal tradicional, no qual a vítima acaba por ocupar posição distanciada, funcionando, somente, como meio de prova. Justifica-se a relevância do presente estudo diante da urgente necessidade de reaproximação da vítima na solução do conflito no qual figurou como sujeito ofendido, apresentando-se a justiça restaurativa como forma de resgate atenção que merece ser dispensada ao ofendido, sem que tal processo represente um retorno aos tempos históricos de vingança privada. Para tanto, o presente artigo aborda, inicialmente, quais são as características da justiça restaurativa, enfatizando em que medida diferem do sistema penal 162 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi tradicional, enfatizando a participação voluntária da vítima como um dos protagonistas na busca pela solução do conflito instaurado a partir da ocorrência de um delito. Posteriormente, apresenta-se de que forma a justiça restaurativa tem sido acolhida internacionalmente, quando se dará ênfase ao marco legal definido pela Resolução da ONU. Em seguida, passa-se a tratar dos marcos legais que figuram referência legal da adoção da prática restaurativa no sistema jurídico brasileiro. Em seguida, são apresentados alguns exemplos práticos de adoção da prática restaurativa no Brasil. Mais adiante, relaciona-se a justiça restaurativa e o processo de vitimização. Deste modo, inicialmente, apresenta-se o objeto de estudo da vitimologia e, em seguida, os diferentes estágios de vitimização sofridos pelo ofendido a partir da ocorrência do delito. Por fim, são apresentadas as razões pelas quais a justiça restaurativa corresponde a um veículo útil na minimização da sobrevitimização quando comparada ao modelo penal tradicional de solução. 2.justiça restaur ativa: uma alternativa ao sistema penal tr adicional de solução de conflitos A justiça restaurativa mais do que uma teoria, mesmo que ainda em formação, tem se caracterizado como um conjunto de práticas em busca de uma teoria (SICA, 2007, p.10). Isto torna a tarefa de conceituação extremamente complexa, ante a inexistência de uma teoria, dogmas e princípios, sobre o tema, “devido a suas origens muito plurais, ambigüidade de metas e contraditória instrumentação técnica” (MOLINA; GOMES, 2006, p. 398). Qualquer prática destinada a promover a reparação do dano causado pela conduta desviante pode ser considerada como justiça restaurativa lato sensu. De forma mais específica apresenta-se como a “proposta de promover entre os verdadeiros protagonistas do conflito traduzido em um preceito penal (crime), iniciativas de solidariedade, de diálogo, e, contextualmente, programas de reconciliação” (SICA, 2007, p. 10). A Justiça Restaurativa baseia-se num procedimento de consenso, em que a vítima e o infrator, e, quando apropriado, outras pessoas volume 15 163 i encontro de internacionalização do conpedi ou membros da comunidade afetados pelo crime, como sujeitos centrais, participam coletiva e ativamente na construção de soluções para a cura das feridas, dos traumas e perdas causados pelo crime. [...], um acordo objetivando suprir as necessidades individuais e coletivas das partes e se lograr a reintegração social da vítima e do infrator. (PINTO, 2005, p. 20) O objetivo deste tipo de prática é buscar a reparação do dano causado3, com o fim de restabelecer-se na sociedade a paz. Desta forma, a justiça restaurativa “não gira em torno da idéia excludente e obsessiva do castigo, mas da reparação com a conciliação e com a pacificação” (MOLINA; GOMES, 2006, p. 404). [...] é um provimento relegitimante, que restabelece a confiança da coletividade no ordenamento muito mais do que a ilusão preventiva derivada da cominação da pena, além de afastar o direito penal do papel de vingador público. (SICA, 2007, p. 5) A participação da vítima e do infrator no modelo da justiça restaurativa é primordial para sua realização, sem esta participação, que deve ser espontânea, não há possibilidade da instauração desta prática. Quais seriam as conseqüências da inserção de cada um destes atores no processo de mediação e conciliação4? As medidas adotadas pelo sistema penal e o papel destinado à vítima dentro deste são completamente desvinculados de uma preocupação humanista. As 3 Não se trata de uma mera reparação civil do dano ou um simples ressarcimento de ordem econômica. Sobre o tema Antonio García-Pablos de Molina (2006, p. 404) afirma que: “esse novo paradigma diferencia-se muito, no entanto, da imagem preconceituosa que alguns lhe atribuem, no sentido de que seria um desatinado “ajuste privado” ou mera “composição”, que resolve o crime pela via reparadora mais antiga que conhece a humanidade: o pagamento de uma quantia em dinheiro. Evidentemente não se trata disso. Aqueles que propugnam por esse novo paradigma advertem que ele potencializa o lado interpessoal do conflito criminal, a sua dimensão histórica, real e concreta, em toda sua complexidade, confiando na capacidade dos indivíduos implicados para resolvê-los (...)”. 4 Entre as práticas utilizadas para efetivação da justiça restaurativa destacam-se a utilização da mediação e conciliação. “A expressão mediação, do latim antigo mediare (dividir, abrir ao meio) é adaptada para indicar a finalidade de enfrentar dinamicamente uma situação problemática e abrir canais de comunicação bloqueados; refere-se a uma atividade em que uma parte terceira, neutra, ajuda dois ou mais sujeitos a compreender o motivo e a origem de um conflito, a confrontar os próprios pontos de vista e encontrar uma solução sob a forma de reparação simbólica, mais do que material”. (SICA, 2007, p. 46). A conciliação ocorre quando a mediação é conduzida por agente do Estado (Juiz ou Conciliador). 164 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi respostas alcançadas pela justiça penal tradicional não possuem a preocupação de identificar a dor e o sofrimento destas, e na maioria das vezes o sentimento, mesmo após a condenação do ofensor, é a da concretização de uma injustiça. Em relação ao papel assumido pelo ofensor, este deixa de estar diante de instância “alheia” ao fato, que tem como finalidade a imposição de uma punição, que deve lhe impor dor e sofrimento, pela própria etimologia da palavra pena, como já conceituado anteriormente. O ofensor deve, dentro do modelo da justiça restaurativa, enfrentar diretamente as conseqüências do seu ato, sendo colocado diante da vítima para que possa ver e sentir a dor e o dano acarretado com seu comportamento desviante. Diante desta situação, ele deverá discutir com o ofendido a melhor forma de reparação, para aquele caso. Ressalte-se que não existem modelos de respostas pré-concebidos nestas práticas, o caso concreto é que irá determinar a solução. A justiça “restaurativa” é, paradoxalmente, mais exigente com o infrator, pois não se contenta com que este cumpra o castigo merecido, nem sequer com que repare o mal que causou a sua vítima e à comunidade. Pretende, sobretudo, que ele se envolva ativa e responsavelmente na busca negociada de uma solução válida. Que assuma a realidade do dano causado e sua própria responsabilidade. Que se comprometa na solução do conflito, sem relatar um (dano) ou outra (responsabilidade) com perniciosas técnicas de neutralização ou autojustificação. (MOLINA; GOMES, 2006, p. 405). O ofensor deve assumir a responsabilidade pelo seu comportamento desviante, não faz parte do processo garantir-lhe o direito de se defender, através de construções argumentativas e retóricas que tentam dissimular a verdade. O importante na justiça restaurativa é a ocorrência de um ato que lesionou alguém (moralmente, patrimonialmente, fisicamente, etc.), e que requer, portanto, uma reparação. A conciliação e a mediação têm o papel de possibilitar os envolvidos (ofensor e vítima) através de processo comunicacional, desenvolvido dentro de um paradigma democrático participativo, a composição ou reparação do dano, “propõe-se, pois, a intervir no conflito construtiva e solidariamente, sem metas repressivas, procurando soluções” (MOLINA; GOMES, 2006, p. 404). volume 15 165 i encontro de internacionalização do conpedi Mesmo diante da incerteza gerada pelo fato do modelo restaurativo encontrarse em construção, e das realidades diversas que circundam estas práticas, Leonardo Sica (2007, p. 33) elenca três princípios norteadores da justiça restaurativa que são: • o crime é primariamente um conflito entre indivíduos, resultando em danos à vítima e/ou à comunidade e ao próprio autor; secundariamente, é uma transgressão da lei; • o objetivo central da justiça criminal deve ser reconciliar pessoas e reparar os danos advindos do crime; • o sistema de justiça criminal deve facilitar a ativa participação de vítimas, ofensores e suas comunidades. Para que este modelo encontre terreno fértil para se desenvolver é necessário aproximar o direito penal do debate democrático, vez que a sua implementação requer o aprimoramento do Estado Democrático de Direito, com a formulação de políticas públicas que tendam a democratizar o sistema judiciário. Apresenta-se a justiça restaurativa como possível alternativa ao sistema penal, a partir da construção de formas de justiça participativa e comunitária, mais próximas das relações privadas e distantes do modelo processual sancionatório controlado pelo Estado. É também uma forma de criticar o maniqueísmo característico do sistema penal e pugnar por um modelo de justiça que fortalece os laços comunitários. O objetivo daqueles que defendem a justiça restaurativa é romper com o afastamento completo da população dos mecanismos engendrados pelo sistema penal, que é basicamente “Estatal”, e passa a ser, portanto, monopolizado por aqueles que detêm o poder e dominam os mecanismos de produção, dentro de uma sociedade capitalista. Reivindica-se a participação popular, dentro de um Estado Democrático, como política criminal, requerendo, portanto, a efetivação de mecanismos da democracia direta. A ausência do estado, o seu afastamento, e a transposição do poder decisório exclusivamente para a população, todavia, é uma proposta muito perigosa, pois pode abrir espaço para outros atores assumirem o seu lugar. 166 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi A transição para este modelo no Brasil, então, não poderia ser repentino. É necessária a intermediação e participação do Estado. Não dá para defender, por enquanto, a perda de espaço para o domínio completo da sociedade, em relação à mediação e conciliação, envolvendo os comportamentos desviantes. Diante deste argumento, esta pesquisa prioriza a análise dos projetos de justiça restaurativa que envolve o Estado. Antes de continuar, porém, a análise da justiça restaurativa, será demonstrada a relação entre sistema penal e cidadania, para compreender se há terreno fértil para justiça restaurativa, se há efetivamente espaço para o desenvolvimento de uma teoria cidadã no direito penal. 2.1. a justiça restaur ativa no contexto internacional e o marco legal internacional da resolução da onu As práticas de justiça restaurativa são muito antigas e estão baseadas nas tradições de muitos povos no oriente e no ocidente. Princípios restaurativos teriam mesmo caracterizado os procedimentos de justiça comunitária na maior parte da história dos povos do mundo. Essas tradições, todavia, foram substituídas paulatinamente pelo modelo dominante de justiça criminal, tal como dissertado, que se configura hodiernamente. De fato, a idéia de justiça criminal como o equivalente de “punição” parece já assentada no senso comum, mesmo o teórico, como já foi defendido, o que é o mesmo que reconhecer que ela já se tornou parte de nossa cultura. O país considerado como um dos pioneiros na (re)implementação do modelo de justiça restaurativa é a Nova Zelândia. A origem desta prática neste Estado deve-se “à reivindicação da população maori, em vista da desproporcional taxa de encarceramento de membros dessa comunidade em relação à população branca de origem européia, na aplicação de métodos menos invasivos no tratamento de menores infratores [...]” (SICA, 2008, p. 82). Como resultado, foi editado o Estatuto das Crianças, Jovens e suas Famílias (Children, Young Persons and Their Families Act), em 1989, que rompeu radicalmente com a legislação anterior e que visava responder ao abuso, ao abandono e aos atos infracionais. volume 15 167 i encontro de internacionalização do conpedi A responsabilidade primária pelas decisões sobre o que seria feito foi estendida às famílias, que receberiam apoio em seu papel de prestações de serviços e outras formas apropriadas de assistência. O processo essencial para a tomada de decisões deveria ser a reunião de grupo familiar, que visava incluir todos os envolvidos e os representantes dos órgãos estatais responsáveis (bem-estar infantil para casos de cuidados e proteção e a polícia nos casos de infrações). (MAXWELL, 2005, p. 280) Além do modelo neozelandês, na Oceania, merece destaque o modelo australiano de justiça restaurativa, implementado a partir da década de 90, do século passado. Seguindo a tendência da experiência neozelandesa a eleição da aplicação deste modelo recaiu sobre a Justiça da Infância e da Juventude, dispersos em programas por toda a Austrália. O público jovem atingido pela justiça restaurativa neste país tem em média entre 10 e 17 anos. A infração, geralmente sujeita a este procedimento, são: o roubo, o furto, o dano e as chamadas condutas desordeiras, estão, todavia excluídas as lesões de ordem sexual e os homicídios, além das condutas relacionadas com as drogas. O procedimento é conduzido, na maioria dos casos, pela polícia, e excepcionalmente pelos magistrados, quando antes de prolatar uma decisão determina-se a realização de uma conferência com a finalidade de se realizar uma mediação. Além da participação da polícia e de magistrados, podem participar destas conferências a família do jovem, advogados, a vítima e seus apoiadores. Outro referencial em matéria de justiça restaurativa é o Canadá, apontado como o local onde se realizaram, inclusive, as primeiras experiências dessa sorte. Uma reforma no Código Penal canadense inseriu o dispositivo 718.2 (e), que possibilita a aplicação de todas as sanções alternativas ao encarceramento, desde que razoáveis, devem ser consideradas para todos os acusados (SICA, 2008, p. 98). Nos Estados Unidos da América, mesmo mantendo sua tendência de políticas reificadoras do encarceramento, iniciou-se o projeto de reconciliação entre vítima e ofensor com um projeto do Condado de Elkhart, no Estado de Indiana, entre os anos de 1977 e 1978. “Embora as abordagens e nomes variem, há hoje mais de cem programas nos Estados Unidos usando algum tipo de mediação vítima-ofensor” (ZEHR, 2008, p. 150). 168 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi Percebe-se, por esta breve exposição, que a justiça restaurativa, nos exemplos apresentados, tem ficado adstrita, sobretudo a casos que envolvem crianças e adolescentes, ou quando envolvem adultos, na maioria das vezes por crimes praticados contra o patrimônio, no intuito de reparar a lesão. Como marco legal internacional identifica-se a Resolução 2002/12, do Conselho Social e Econômico, da Organização das Nações Unidas – ONU, elaborada com a finalidade de desenvolver princípios e procedimentos para utilização da justiça restaurativa. Esta Resolução reporta-se a duas anteriores que tinham como finalidade estimulara a utilização da justiça restaurativa em sede de processos penais, quais sejam as Resoluções 1999/26 e 2000/145. A partir a justificativa referida no preâmbulo da Resolução, são construídos os princípios e entabuladas as ideias centrais para elaboração dos procedimentos, respeitando-se, porém, a soberania legislativa de cada Estado para estipulara estas regras. Aplica-se a ideia de justiça restaurativa, segundo esta Resolução da ONU, a qualquer processo no qual a vítima e o ofensor, e, quando apropriado, quaisquer outros indivíduos ou membros da comunidade afetados por um comportamento 5 A ideia central da Resolução que justifica a sua edição está descrita no seu preâmbulo, que assim dispõe: “Considerando que tem havido um significativo aumento de iniciativas com justiça restaurativa em todo o mundo. Reconhecendo que tais iniciativas geralmente se inspiram em formas tradicionais e indígenas de justiça que vêem, fundamentalmente, o crime como danoso às pessoas/ Enfatizando que a justiça restaurativa evolui como uma resposta ao crime que respeita a dignidade e a igualdade das pessoas, constrói o entendimento e promove harmonia social mediante a restauração das vítimas, ofensores e comunidades/ Focando o fato de que essa abordagem permite que as pessoas afetadas pelo crime possam compartilhar abertamente seus sentimentos e experiências, bem assim seus desejos sobre como atender suas necessidades/ Percebendo que essa abordagem propicia uma oportunidade para as vítimas obterem reparação, se sentirem mais seguras e poderem superar o problema, permite os ofensores compreenderem as causas e consequências de seu comportamento e assumir responsabilidade de forma efetiva, bem assim possibilita à comunidade a compreensão das causas subjacentes do crime, para se promover o bem estar comunitário e a prevenção da criminalidade/ Observando que a justiça restaurativa enseja uma variedade de medidas flexíveis e que se adaptam aos sistemas de justiça criminal e que complementam esses sistemas, tendo em vista os contextos jurídicos, sociais e culturais respectivos/ Reconhecendo que a utilização da justiça restaurativa não prejudica o direito público subjetivo dos Estados de processar presumíveis ofensores/ Reconhecendo que a utilização da justiça restaurativa não prejudica o direito público subjetivo dos Estados de processar presumíveis ofensores”. (PINTO, 2009) volume 15 169 i encontro de internacionalização do conpedi desviante, equivocadamente denominado naquele texto como “crime”, conforme entendimento da Criminologia Crítica participa ativamente na resolução das questões oriundas deste comportamento. Os processos restaurativos podem incluir a mediação, a conciliação, a reunião familiar ou comunitária e círculos decisórios. A partir da Resolução das Nações Unidas, alguns países já introduziram a justiça restaurativa em sua legislação, destacando-se a Colômbia, que a inscreveu, inclusive, na própria Constituição (art. 250) e na legislação infraconstitucional (Art. 518 e seguintes, do Novo Código de Processo Penal), e a Nova Zelândia, que desde 1989 já introduziu na legislação infanto-juvenil. 2.2.marcos legais de referência da pr ática restaur ativa no br asil É preciso ressaltar inicialmente que o procedimento restaurativo ainda não é expressamente previsto em lei, em sentido formal, a sua possibilidade decorre da interpretação da legislação existente, nas situações anteriormente discutidas. A previsibilidade para implantação de práticas restaurativas, todavia, encontra sede na própria Constituição Federal de 1988, ao prever que: Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: I – juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo6, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau. Após a determinação constitucional da instalação no Brasil de juizados especiais, com competência, em tese, para prática da justiça restaurativa, 6 A definição de crime de menor potencial ofensivo encontra-se em dois diplomas legais, quais sejam a s Leis nº 9.099/95 e 10.259/2001. A primeira instituiu os Juizados Especiais na esfera Estadual e a segunda instituiu na esfera Federal. A redação do art. 61 da Lei nº 9.099/95 encontra-se atualmente subsumido pela redação do Art. 2º, parágrafo único, que traz a seguinte definição: “Consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa”. 170 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi foram editadas duas leis federais, a 9.099/95 e a 10.259/2001, que criaram, respectivamente, os juizados especiais estadual/distrital e federal7. Com essa inovação da Constituição de 1988, e o advento, principalmente, da Lei 9.099/95, abriu-se uma pequena janela, no sistema jurídico pátrio, para a acomodação sistêmica do modelo restaurativo no Brasil, mesmo sem a edição de uma lei direta sobre a matéria, com a prática da mediação, a partir da exegese dos seguintes dispositivos: Art. 72. Na audiência preliminar, presente o representante do Ministério Público, o autor do fato e a vítima e, se possível, o responsável civil, acompanhados por seus advogados, o juiz esclarecerá sobre a possibilidade da composição dos danos e da aceitação da proposta de aplicação imediata de pena não privativa de liberdade. Art. 73. A conciliação será conduzida pelo juiz ou por conciliador sob sua orientação. Parágrafo único. Os conciliadores são auxiliares da justiça, recrutados, na forma da lei local, preferencialmente entre bacharéis em Direito, excluídos os que exerçam funções na administração da Justiça Criminal. (grifou-se) Da leitura dos dispositivos transcritos depreende-se a possibilidade real de encaminhamento dos processos que envolvam os denominados crimes de menor potencial ofensivo a um núcleo restaurativo, para tentativa de mediação, conforme expressa disposição legal. Será necessário, para tanto, que as legislações de cada Estado disciplinem esta prática. Além dessa possibilidade, cita-se o Estatuto do Idoso, Lei nº 10.741/2003, que prevê o seguinte: Art. 94. Aos crimes previstos nesta Lei, cuja pena máxima privativa de liberdade não ultrapasse 4 (quatro) anos, aplicase o procedimento previsto na Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, e. subsidiariamente, no que couber, as disposições do Código Penal e do Código de Processo Penal. 7 Tratam dos crimes de menor potencial ofensivo, conforme nota anterior. volume 15 171 i encontro de internacionalização do conpedi Fica, então, previsto que na prática dos crimes tipificados na referida Lei, que não ultrapassem o limite da pena quantificado, deve-se aplicar o procedimento da Lei dos Juizados Especiais, portanto com a aplicação da possibilidade de mediação já discutida. O Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069/1990, enseja e recomenda, de forma implícita, o uso da prática restaurativa, em alguns dispositivos, particularmente quando dispõe sobre a remissão, no art. 126, e diante da amplitude das medidas socioeducativas previstas no art. 112 e seguintes deste diploma legal, que na sua quase totalidade são diversas da reclusão, demonstrando as possibilidades existentes ao sistema de encarceramento. A aceitação pelas partes da alternativa restaurativa não pode ser imposta, nem direta, nem indiretamente. As partes devem ser informadas, de forma clara que se trata de uma ferramenta alternativa posta à disposição delas, e que sua aceitação pode ser revogada a qualquer momento, e a participação deverá ser sempre voluntária. 2.3.diferentes pr áticas de justiça restaur ativa no br asil A justiça restaurativa também encontrou adeptos no Brasil, a partir de algumas práticas e projetos, no início do século XXI, por enquanto em pequena quantidade, mas que merecem a atenção desta pesquisa, incluindo, principalmente, o projeto de Salvador, Bahia. O Ministério Público do Distrito Federal iniciou projeto de justiça restaurativa na circunscrição jurisdicional da cidade satélite de Gama (MARÇAL JUNIOR, 2008), para casos que envolviam violência doméstica, amparado pela legislação federal, Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, que prevê: Art. 29. Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher que vierem a ser criados poderão contar com uma equipe de atendimento multidisciplinar, a ser integrada por profissionais especializados nas áreas psicossocial, jurídica e de saúde. Art. 30. Compete à equipe de atendimento multidisciplinar, entre outras atribuições que lhe forem reservadas pela legislação local, 172 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi fornecer subsídios por escrito ao juiz, ao Ministério Público e à Defensoria Pública, mediante laudos ou verbalmente em audiência, e desenvolver trabalhos de orientação, encaminhamento, prevenção e outras medidas, voltados para a ofendida, o agressor e os familiares, com especial atenção às crianças e aos adolescentes. (grifos do autor) O município de Guarulhos, em São Paulo tem o seu projeto de justiça restaurativa direcionado para as crianças e adolescentes, como proposta interdisciplinar vocacionada para educação. O Projeto de Mediação da Vara da Infância e da Juventude de Guarulhos foi firmado em parceria com as Faculdades Integradas de Guarulhos – FIG, e aprovado pelo Tribunal de Justiça, inicialmente pelo período experimental de um ano, e consistia na capacitação de grupos de mediadores voluntários, para atuar nas causas processuais da Vara da Infância versando sobre: 1) atos infracionais de natureza leve; e 2) conflitos familiares (MADZA, 2007). O projeto de mediação já tinha o enfoque das Práticas Restaurativas, desde a sua concepção, especialmente no que tange aos atos infracionais de natureza leve, nos quais se realizava a mediação entre vítima e ofensor (MADZA, 2007). Passado o período experimental, e constatada a eficiência do sistema implementado, o projeto foi definitivamente aprovado pelo Tribunal de Justiça para funcionar em caráter permanente, com a celebração de convênio entre o Judiciário Estadual e a Instituição de Ensino supra mencionada, isto em outubro de 2006, passando a denominar-se de “Setor de Mediação de Guarulhos” (MADZA, 2007). A prática da justiça restaurativa foi instituída no município de Joinvile, Santa Catarina, pelo Juiz de Direito Alexandre Morais da Rosa, através da Portaria nº 05/2003, também direcionada para o público infanto-juvenil, dando aplicabilidade ao Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), com a finalidade de promover a mediação na prática de atos infracionais. A referida Portaria regulamenta a formação de uma equipe interprofissional, que será colocada à disposição da Vara da Infância e da Juventude no âmbito da Comarca de Joinville-SC, nos casos de apuração de atos infracionais cometidos por crianças e adolescentes, bem como a aplicação de técnicas de mediação. volume 15 173 i encontro de internacionalização do conpedi Esta equipe interprofissional é formada por profissionais qualificados na área de serviço social, orientação, educacional, direito e psicologia, dentre outras especialidades, considerando-se como seus integrantes as Assistentes Sociais Forenses, os Comissários da Infância e da Juventude, Educadoras Educacionais, Psicólogas e demais profissionais atuantes nesta área, todos indicados pelo Juiz de Direito. Não existe quantificação de resultados da experiência de Joinvile, todavia o autor da Portaria, o Juiz Alexandre Morais da Rosa (2008, p. 211), traz o seguinte relato: Os resultados são animadores. (...) Há uma preocupação, também, contra o perigo da monetarização dos relacionamentos intersubjetivos, a saber, de se quitar as culpas com dinheiro, uma vez que a psicanálise bem sabe o que significa: te pago para que não nos relacionemos. O projeto piloto de justiça restaurativa de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, de acordo com Beatriz Aguinsky e Leoberto Brancher (2009), também foi direcionado para a infância e juventude, para pacificação de situações de violência envolvendo crianças e adolescentes, implementado na 3ª Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre/RS. Este projeto foi denominado de “Justiça para o Século 21”, e consiste numa experiência que objetiva a adaptação, teste, avaliação, sistematização e incorporação institucional de procedimentos, valores e ideias sobre a justiça restaurativa, focado na realidade local (AGUINSKY; BRANCHER, 2009). Entre as justificativas do projeto é ressaltada a necessidade de superar políticas públicas que retro alimentam um sistema que não observa as demandas do público infanto-juvenil, quando este pratica algum tipo de comportamento desviante (AGUINSKY; BRANCHER, 2009). O projeto de justiça restaurativa da capital baiana foi elaborado em março de 2009 pela Juíza de Direito da Extensão do 2º Juizado Especial Criminal, da Capital baiana, coordenadora do projeto, conjuntamente com a Desembargadora Presidente do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, o Secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça e o Diretor Superintendente do Instituto 174 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi Pedro Ribeiro de Administração Judiciária - IPRAJ, que é a instituição gestora financeira do projeto. O novo modelo funciona no Juizado Especial Criminal, situado no Largo do Tanque, com o objetivo de instalar o Programa de Justiça Restaurativa, em Salvador, na zona de periferia, com abrangência na região suburbana de Lobato, Plataforma, Coutos, Escada, Periperi e Paripe, além dos Bairros da Liberdade, São Caetano, Fazenda Grande, Uruguai e Bonfim. A ideia é aplicar a pratica da mediação em conjunto com a Lei nº. 9.099/95, que cuida dos crimes de menor potencial ofensivo. Estão envolvidos no projeto além do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, o Ministério Público Estadual, a Defensoria Pública, a Ordem dos Advogados do Brasil, a Universidade Salvador, a Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia, a Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania, a Academia da Polícia Civil da Bahia, a Sociedade Protetora dos Desvalidos, o Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas, Centro de Saúde Mental Dr. Álvaro Rubin de Pinho, Associação Cultural Bloco Carnavalesco Ilê Aiyê, Universidade do Estado da Bahia e União Metropolitana para Desenvolvimento da Educação e da Cultura. 3. a justiça restaur ativa e o processo de vitimização Uma vez apresentada a justiça restaurativa, cumpre agora delimitar o enfoque de abordagem, enfatizando o posicionamento da vítima no referido modelo em comparação ao tradicional sistema de solução de conflitos. Para tanto, inicialmente, pretende-se examinar o conceito de vitima, para, em seguida, apresentar o objeto de estudo da vitimologia. Isto porque se intenta analisar a justiça restaurativa a partir do olhar da vitimologia e da diretriz geral de maior proteção ao sujeito ofendido. Elías Neuman (1994, p. 27) trabalha a evolução gramatical do conceito, atentando, inicialmente, para o sentido etimológico do vocábulo “vítima”, que teria sua origem em duas variações - vincire e vincere. O primeiro vocábulo estaria relacionado ao sacrifício de animais como oferenda para os deuses, ao passo que vincere teria o condão de representar o sujeito vencido. volume 15 175 i encontro de internacionalização do conpedi Esclarece Lélio Braga Calhau (2002, p. 22), neste sentido, que o conceito de “vítima” pode ser extraído de diferentes linhas conceituais, destacando-se a gramatical ou literária, a vitimológica e a jurídica. Em todos os campos semânticos, pode-se ver que, gramaticalmente, a vítima é aquele que sofre uma lesão ou perda. É por esta razão que se vê, na língua portuguesa, o amplo uso da palavra “vítima”, bem como a manutenção das mesmas origens terminológicas em outros idiomas, tal como ocorre com “victim”, em inglês; “victime”, em francês e “vittima”, em italiano (NEUMAN, 1994, p. 27). Ainda quanto ao sentido etimológico, Jaume Solé Riera (1997, p. 20) acrescenta se tratar daquele que sofre um dano em virtude de culpa alheia ou de caso fortuito. A criminologia, ao tratar da origem do crime, investigando suas possíveis causas, demorou a voltar atenção para o estudo da vítima. Primeiramente, a criminologia positivista promoveu um enfoque bioantropológico para examinar o fenômeno criminoso, o qual era compreendido como um dado ontológico, isto é, uma realidade pré-constituída - anterior, portanto, à reação social e ao direito penal (BARATTA, 2004, p. 34). Com a criminologia crítica, o enfoque deixa de ser o sujeito criminoso e passa a ser o próprio processo de criminalização, abandonando-se a ideia de “delito natural” em prol do exame dos mecanismos seletivos que determinam a criação das normas penais, originando, com isso, o crime - passando este a ser compreendido como fruto do controle social (BARATTA, 2004, p. 34). Nota-se, portanto, que o estudo criminológico não atentou, em princípio, para um “conceito” próprio de vítima, uma vez que esta não consistia seu objeto específico de estudo, já que a origem do delito esteve, durante muito tempo, relacionada às características do criminoso e, após, com a criminologia crítica, relacionada à seleção dos tipos penais. Resta saber, uma vez compreendido o conceito de vítima, qual a importância e o tratamento que a esta têm sido dispensados pelo ordenamento jurídico, examinando quais vantagens a solução restaurativa apresenta em comparação à ao modelo punitivo tradicional de solução. 3.1. a vitimologia e a proteção do ofendido A análise crítica proposta pelo presente projeto fundamenta-se na evolução dos estudos atinentes à vitimologia, cuja tradicional definição é dada como “o 176 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi estudo científico das vítimas do delito”, em que se vinculou a análise, por parte do julgador, do comportamento da vítima à necessidade de uma nova atitude garantista de proteção e de ajuda moral e material perante o ofendido8, conforme ensina Elias Neuman (1994, p. 23). De acordo com Tony Peters (2001, p. 208), os primeiros estudos vitimológicos subordinavam a análise do ofendido do delito às questões etiológicas então objeto de estudo da criminologia positivista, contexto que marca o surgimento da vitimologia etiológica. Esclarece o autor que, somente a partir da década de quarenta, passou-se a atentar para o papel assumido pela vítima quando da realização do delito. Sobre as origens do pensamento vitimológico, Gerardo Landrove Díaz (1990, p. 26) esclarece que, apesar de o estudo da vítima, em geral, tratar-se de um tema tão antigo quanto a própria humanidade, a aproximação científica relacionada ao tema se produz, basicamente, em um contexto posterior à segunda guerra mundial. Aponta como um dos pioneiros da nova ciência o criminólogo alemão exilado nos Estados Unidos Hans Von Hentig (1948, p. 383), que publicou, no final da década de quarenta, o estudo “The criminal and his victim” - obra em que se apresenta a primeira classificação geral de vítimas e um estudo de seus tipos psicológicos. Em sua obra, Hans Von Hentig (1948, p. 383) dedica capítulo específico para tratar da vítima, centralizando o estudo no exame da contribuição do ofendido para a gênese do crime, expondo, com isso, que sempre há dois sujeitos ligados ao crime - aquele que perpetra a lesão e a vítima, quando já assinalava que o consentimento daquele que sofre a lesão teria força para transformar um ato criminoso em um ato legal. Para Ester Kosovski e Elida Séguin (2000, p. v), a vitimologia é uma ciência nova, que, em sua origem, fora considerada um campo paralelo à criminologia, adquirindo, posteriormente, maior abrangência. Possui um campo de estudo 8 NEUMAN, Elias. Victimología: El rol de la víctima en los delitos convencionales y no convencionales. (tradução livre) Buenos Aires: Editorial Universidad, 1994, p.24. volume 15 177 i encontro de internacionalização do conpedi interdisciplinar, verificando-se uma vinculação estreita com a Medicina; Psicologia; Assistência Social; Direito, dentre outros ramos integrantes deste campo multidisciplinar de atuação. Questiona-se o caráter científico autônomo da vitimologia, ou se esta corresponderia a um ramo integrante da criminologia. Para Heitor Piedade Júnior (2001, p. 64), trata-se de um desdobramento da criminologia, uma vez que, do crime, resulta, necessariamente, uma vítima; acrescenta, outrossim, que a vitimologia corresponde a um ramo do conhecimento interdisciplinar, cujo diálogo com outros campos do conhecimento é indispensável para uma tutela substancial do ofendido, destacando-se o direito constitucional; penal; processual penal; civil e processual civil. Esclarece Ester Kosovski (2000, p. 21) que a vitimologia tem como objetivos principais o desenvolvimento de estudo e pesquisa sobre as vítimas; a mudança da legislação e a assistência e proteção do ofendido. Em linhas gerais, supera a tradicional prevalência de atenção centralizada no sujeito delinquente e no fato criminoso a fim de incluir, também, a abordagem vitimológica. A vitimologia, de acordo com Hilda Marchiori (1996, p. 13), é uma disciplina que tem como objeto o estudo científico das vítimas do delito, considerando-se vítima, na mesma linha do quanto já tratado, a pessoa que sofre uma lesão em seu corpo, sua propriedade, ou outro bem. Assim, vítima é a pessoa que padece de um sofrimento físico, psicológico ou social em razão de uma conduta agressiva de outrem. A autora esclarece que toda espécie de vitimização produz, em maior ou menor grau, uma diminuição do sentimento de segurança individual e, também, coletivo. Isto porque a agressão antissocial afeta não só o sujeito passivo, enquanto vítima direta, como também sua família e sua comunidade social e cultural (MARCHIORI, 1996, p. 14). Neste sentido, os estudos de vitimologia têm observado que a ocorrência do delito gera um trauma para a vítima, sobretudo pelo fato de a lesão romper com uma comum sensação de inviolabilidade e de imunidade comum a todos aqueles que (ainda) não haviam sofrido delito algum (MARCHIORI, 1996, p. 14). Gerardo Landrove Díaz (1990, p. 34) aponta a década de setenta como o marco contextual de consolidação da vitimologia enquanto uma disciplina 178 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi científica nova, autônoma e paralela à criminologia. Alerta que a criminologia tradicional pouco demonstrou, em seus mais variados trabalhos, interesse para com o sujeito passivo do delito, de modo que a vitimologia assumiria a árdua tarefa de superar este vazio científico. De acordo com Antonio Garcia Pablos de Molina (2008, p. 134), a moderna vitimologia não tem como pretensão um retorno ao passado paradigma de vingança privada ou “idade de ouro” da vítima, uma vez que a resposta ao delito não pode seguir os impulsos emocionais do ofendido. Não se trata, também, de contrapor os interesses da vítima aos direitos e garantias do delinquente. O que se busca, por meio do novo movimento vitimológico, é uma redefinição global do status de vítima e, com isso, o estabelecimento de uma nova relação entre esta e o delinquente; e o sistema legal; e a sociedade; e os poderes públicos, modificando, com isso, as ações políticas voltadas para a vítima, especialmente as de assistência (MOLINA, 2008). Com isso, os novos estudos em torno do ofendido passam a observar o trauma pós-lesão como consequência vitimológica do delito, particularmente caracterizado por um sentimento de vulnerabilidade provocado no sujeito passivo do crime, o que acarreta, por consequência, sentimentos de angústia, desconfiança, bem como insegurança individual e social. O crime significa, a um só tempo, um dano e um perigo - dano em razão da lesão já ocorrida; perigo em razão da possibilidade de uma nova vitimização futura. (MARCHIORI, 1996) Pedro Moura Ferreira (1997), ao examinar o processo de vitimização desde a fase juvenil, atenta para a importância do papel da escola no processo de vitimização. Segundo o autor, cerca de 60% dos casos de vitimações já se inicia no espaço escolar, especialmente por se tratar de uma ambiência que reúne, por um longo período, sujeitos extremamente diversificados, e que nem sempre oferece condições de segurança e vigilância necessárias à efetiva prevenção de lesões. Demais disso, acrescenta que a supervisão familiar do desenvolvimento juvenil figura variável crítica de forte impacto sobre o processo de vitimização. De acordo com o autor, o papel da família, apesar de limitado - haja vista, sobretudo, o fato de a vítima não passar a maior parte de seu dia em direta vivência familiar -, tem o papel de exercer a supervisão e o acompanhamento do desenvolvimento do jovem (FERREIRA, 1997). volume 15 179 i encontro de internacionalização do conpedi É fácil observar, todavia, que o papel familiar de fiscalização, no âmbito das relações pós-modernas, mormente tem sido deixado de lado, sem o efetivo cumprimento, não raro com o fundamento na “inocente” crença de transferência para as demais instâncias diretas de convívio com o jovem - destacando-se aqui o próprio ambiente escolar. O resultado disso é o desenvolvimento de grande parte dos jovens já em um ambiente de descuido, gerando-se um ambiente favorável à vitimização. O principal problema, neste caso, é a incorporação do processo de vitimização como parte inerente ao convívio social9. 3.2.sobre os diferentes estágios de vitimização Os estudos de vitimologia apontam para a existência de diferentes formas e fases de vitimização. Assinala James Dignan (2005, p. 23) que a vitimização é um processo complexo marcado por vários elementos, pois abrange o momento vivenciado durante o cometimento da ofensa; compreende, também, a reação da vítima à ofensa, incluindo suas mudanças internas decorrentes da interação com o fenômeno criminoso; o processo complexo ainda abarca a interação da vítima com terceiros, especialmente os agentes da justiça criminal. É por esta razão que os estudos vitimológicos apontam a existência de diferentes estágios de vitimização. A vitimização primária, de acordo com Gerardo 9 Disto o autor diverge. Após entrevistar diversos jovens vítimas e não vítimas das mais variadas lesões, concluiu que, “o acompanhamento mais intenso da atividade escolar dos filhos, aparentemente, não implica qualquer segurança adicional no que respeita ao controlo que sobre os adolescentes é exercido, indicando que a vitimização é independente do empenhamento com que os pais seguem a educação escolar dos filhos”. Cabe aqui discordar. A pesquisa feita pelo autor foi orientada a partir de entrevista objetiva, na qual a pergunta que avaliou o item em debate foi formulada da seguinte forma: “Os teus pais costumam estar a par da tua vida escolar?”. (FERREIRA, 1997, p. 166). Com o mencionado questionamento, a semelhança do percentual de vítimas e de não vítimas entrevistadas que respondeu “Muito” ao referido questionamento levou o autor à conclusão de que o acompanhamento familiar não gera um acréscimo de segurança para os filhos enquanto estão fora de casa. Não nota o autor, todavia, que, ainda que não se possa falar em uma maior possibilidade de prevenção de agressões por meio da fiscalização pela família, o tratamento posterior de eventuais danos sofridos é imprescindível para a não ocorrência da banalização do processo de vitimização. Em outras palavras, ainda que a fiscalização familiar não seja capaz de prevenir lesões, o acompanhamento pela família é importante para o tratamento adequado do processo de vitimização, desde o momento de sua primeira ocorrência, de forma a evitar a sua perpetuação na formação social do jovem vitimado. 180 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi Landrove Díaz (1990, p. 43), reflete a experiência direta do ofendido com as consequências prejudiciais primárias produzidas pelo delito. Estes danos diretos podem se apresentar por meio das mais variadas naturezas, compreendendo desde a ofensa em si ao bem jurídico lesionado, até os danos psicológicos, econômicos e sociais imediatamente decorrentes do crime (DÍAZ, 1990). Assim, a ansiedade decorrente do medo de que o delito não se repita; o abatimento psicológico decorrente da lesão; a mudança de hábitos do ofendido e, consequentemente, a alteração da sua forma de relação social, são mostras do processo de vitimização primária (DÍAZ, 1990). Por esta razão, James Dignan (2005, p. 23) atenta para a necessidade de se distinguir os efeitos do crime em si dos impactos decorrentes do crime na vida da vítima. Para Jaume Solé Riera (1997, p. 27), o fato de o atual modelo de garantias protecionistas ser pensado, basicamente, para a figura do imputado, deixando de lado as vítimas dos delitos, faz aparecer o conceito de vitimização secundária. Tratase, pois, de um efeito da neutralização hoje enfrentada pelo ofendido. Consiste no fato de a vítima experimentar o que o autor denomina um plus negativo ante o aparato estatal, sem que se lhe dispense a atenção jurídica necessária, o que se soma à já dramática situação de vida suportada pelo sujeito agredido em razão do delito sofrido. Este processo de vitimização secundária é vivenciado não só no processo penal, como também na fase pré-processual, quanto da busca por amparo junto aos aparatos estatais de controle. Esclarece Elena Larrauri (1992) que os estudos de vitimização foram úteis, sobretudo, para a constatação de que existe um número significativo de casos que sequer chega a fazer parte das estatísticas policiais. Raul Cervini ( 1992, p. 129) atenta para o processo de vitimização, pontuando que a vítima sofre não só com o fato punível em si, mas também com a reação formal e informal derivada do delito - quando se extraem danos psicológicos, físicos, sociais, econômicos, dentre tantos outros. Acrescenta o autor que, frequentemente, a vítima é pensada tão somente como um instrumento processual de busca da verdade, ou, pior, como o verdadeiro acusado em lugar do autor do fato. É diante do referido contexto que se observa o processo de vitimização secundária ou sobrevitimização, materializado no dano adicional sofrido pela volume 15 181 i encontro de internacionalização do conpedi vítima em razão da própria mecânica do (mau) funcionamento da justiça penal formal (CERVINI, 1992, p. 129). Ana Isabel Pérez Cepeda (2001, p. 475), consciente dos prejuízos que a vítima sofre com o cometimento do delito, bem como durante sua investigação e persecução criminal, afirma dever existir uma intervenção positiva dos particulares e dos poderes públicos direcionada à satisfação das necessidades e expectativas do ofendido. Esclarece Raul Cervini (1992) que a vitimização secundária se manifesta, inicialmente, já no momento em que a vítima busca o amparo da polícia. O autor aponta o despreparo de agentes policiais para com o amparo à vítima como um problema comum aos mais diversos ordenamentos, uma vez que a atuação da polícia está, ordinariamente, voltada à identificação do responsável pelo crime, não aos cuidados com o ofendido. Para além das dificuldades oriundas do descaso normalmente enfrentado em delegacias de polícia, a sobrevitimização também se substancializa nos diversos entraves burocráticos relacionados ao início do processo e, em seguida, no curso da própria persecução criminal, especialmente em razão da longa demora processual (CERVINI, 1992, p. 131). Enfatiza Selma de Santana (2010) que a vitimização secundária se manifesta no tratamento impessoal das instâncias de controle social; na excessiva burocratização do sistema, o que antecede a fase processual. Já no curso do processo, a vitimização secundária se prolonga em uma série de outras situações, especialmente na frequente desqualificação do sujeito ofendido como estratégia defensiva (SANTANA, 2010). Para além dos estágios de vitimização primária e secundária, cabe atentar, também, para os processos de vitimização terciária e quaternária. Explica Jorge Luis Nassif Magalhães Serretti que a vitimização terciária está relacionada à rejeição da vítima junto ao seu grupo social em razão do próprio processo de vitimização. Deste modo, a vítima passa a ser alvo de um juízo social de censura, sofrendo, portanto, uma nova vitimização. De acordo com Ana Sofia Schmidt de Oliveira (1999, p. 114), o sentimento social de rejeição voltado contra a vítima deriva, sobretudo, de uma não 182 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi identificação com a infração sofrida ou, pior, de uma repulsa inconsciente a uma identificação com atributos socialmente negativos percebidos na vítima. Este processo, segundo a autora, é extremamente comum nos crimes sexuais, em que uma eventual identificação percebida pelo indivíduo que divida com a vítima um mesmo ambiente social é, inconscientemente, transformada em repulsa. A vitimização quaternária, por seu turno, manifesta-se no medo da vítima em ser, novamente, vitimizada (SERRETTI, 2011). Para Elena Larrauri (1992), o temor vivenciado pela vítima tem como uma de suas principais razões o fato desta dividir, frequentemente, o mesmo ambiente social que o seu agressor, consoante apontam os estudos vitimológicos. Tony Peters (2001, p. 221) adverte se tratar de um equívoco a valoração das consequências da vitimização a partir da gravidade do delito, acrescentando que, em grande parte, os processos de vitimização decorrem de delitos de pequena gravidade. Significa então dizer que o impacto da vitimização está mais relacionado às características pessoais do ofendido; ao seu comportamento; ao seu contexto social; ao tratamento dado pelas instâncias de controle, do que à espécie delitiva sofrida. 3.3. a vitimização secundária e a solução restaur ativa A partir do quanto já foi exposto, há que se atentar, especialmente, para o processo de vitimização que se inicia a partir do sofrimento direto com o cometimento do delito. Sendo a decidibilidade de conflitos no campo da dogmática penal uma forma de intervenção essencialmente tardia - cabe notar que não há que se falar no exercício do poder punitivo antes da ocorrência de uma lesão ou, ao menos, de um perigo concreto de lesão a um bem jurídico -, o Estado deve voltar sua atenção à continuidade do processo de vitimização que se dá para além da ocorrência do crime. Observando a realidade brasileira, vale destacar, como forma de minimização do processo de vitimização secundária, a criação de delegacias especializadas, aparelhadas para um atendimento mais adequado à vítima. Além disso, citase, também, a consolidação do entendimento jurisprudencial a respeito da desnecessidade de representação formal para os crimes processados por meio volume 15 183 i encontro de internacionalização do conpedi de ação penal pública condicionada à representação, quando será bastante a manifestação de vontade do ofendido para que seja apurada a responsabilidade do autor do fato (STJ, HC 15391 / DF, 5ª Turma, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ 27/08/2001 p. 360). No entanto, em que pese os avanços destacados, ainda há um longo caminho a se percorrer na busca por soluções do processo de vitimização secundária do ofendido. A justiça restaurativa, nesse sentido, é o modelo que mais se aproxima de um resgate cidadão da vítima após o sofrimento da lesão. De acordo com Antonio Scarance Fernandes (2001, p. 2), no processo penal tradicional, a vítima assume o mero papel de informante, sendo considerada uma colaboradora do sistema, assumindo condição semelhante à de uma testemunha. Para o processo penal, o lesado, sujeito passivo do crime, não é considerado quer sujeito passivo principal, quer secundário, da ação penal. Significa dizer que, pelo entendimento tradicional10, apesar de a vítima sofrer com a prática do delito, o seu interesse jurídico somente repercute na esfera cível, não chegando à órbita penal. Vale citar, como forma de tornar claro o descaso para com a vítima observado no processo penal tradicional, o teor do art. 201 do Código de Processo Penal brasileiro, que determina a condução coercitiva da vítima que não comparece para prestar declarações: Art. 201. Sempre que possível, o ofendido será qualificado e perguntado sobre as circunstâncias da infração, quem seja ou presuma ser o seu autor, as provas que possa indicar, tomando-se por termo as suas declarações. (Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008) 10 Entendendo o assistente de acusação como sujeito incompatível com o sistema acusatório processual penal, tem-se Aury Lopes Jr. (2010, p. 44); em sentido oposto, sustentando que é legítimo o interesse jurídico do ofendido na aplicação justa da pena, afirma Guilherme de Souza Nucci (2010, p. 558). Ressalte-se, por fim, que o entendimento jurisprudencial acerca da matéria foi parcialmente pacificado por meio da súmula 210, do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual “O assistente do Ministério Público pode recorrer, inclusive extraordinariamente, na ação penal, nos casos dos arts. 584, § 1º, e 598 do Código de Processo Penal”. 184 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi § 1o Se, intimado para esse fim, deixar de comparecer sem motivo justo, o ofendido poderá ser conduzido à presença da autoridade. (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008) Deste modo, o processo penal tradicional funciona como meio de perpetuação dos estágios de vitimização impostos ao sujeito ofendido, tratando-o como mero objeto, sem colocar à disposição instrumentos adequados e eficientes de proteção e amparo, especialmente após a vivência do trauma ocasionado após o delito. Raul Cervini (1992, p. 126) trata, ainda, do papel da vítima na políticacriminal tradicional como um sujeito informal de controle do delito, aparecendo, primeiramente, com a mera função de noticiar o evento criminoso. Uma vez dado o conhecimento às autoridades do cometimento do delito, caberia ao Estado o controle do procedimento, entretanto, a comum demora e excesso de burocracia procedimental acabavam por promover um “adormecimento” das denúncias (CERVINI, 1992, p. 126). É em razão da morosidade do Judiciário que as vítimas, caso desejassem a efetiva satisfação do direito substancial, deveriam assumir a função de impulsionamento do feito, não mais podendo aguardar a atuação de ofício por parte dos sujeitos formais do processo (CERVINI, 1992). É esse um dos fatores que contribui para uma nova compreensão da vítima - não como parte formal do processo, mas como instrumento de estímulo da movimentação processual. Para Antonio Scarance Fernandes (2001, p. 8), apesar de, atualmente, já se verificar uma certa redescoberta processual da vítima, ainda há muito a ser melhorado. De acordo com o autor, deve-se buscar uma dignificação do papel da vítima no processo penal, de modo que o ofendido tenha legitimidade quer para a defesa de interesses civil, quer para a busca da “justa condenação do réu”. A mencionada redescoberta deve-se, sobretudo, ao crescimento da chamada “justiça consensual”, em que são buscadas, em um novo modelo processual penal, a solução material do problema da vítima, voltando-se, sobretudo, para a reparação do dano sofrido. No Brasil, em matéria penal, esta nova dimensão da importância processual e substancial da vítima ganha corpo, sobretudo, com o advento da já referida Lei dos Juizados Especiais Criminais. Antonio Beristain (2000, p. 140) aponta a necessidade de evolução do atual programa de política criminal para um novo modelo de política vitimal, o qual volume 15 185 i encontro de internacionalização do conpedi estaria voltado ao estudo e à compreensão tanto do delinquente enquanto vítima da sociedade, quanto das vítimas diretas e indiretas do delito. Como é possível perceber do quanto foi apresentado, a inserção da vítima no processo restaurativo retira-a do local tradicionalmente definido pelo sistema penal, qual seja à margem do processo, como se mero objeto fosse, para dar-lhe voz e permitir-lhe que se aproprie do conflito. A conciliação atende melhor às necessidades reais da vítima, sejam materiais, sejam morais, e evita a perniciosa vitimização secundária. Facilita a efetiva reparação dos danos (reparação não necessariamente econômica ou pecuniária) e proporciona um positivo mecanismo de comunicação recíproca entre infrator e vítima, que melhora, inclusive, as atitudes desta última, de tal modo a se encontrar a correta solução do conflito. (MOLINA; GOMES, 2006. p. 406) A mudança de papel da vítima é fundamental na concretização da cidadania, a mutação do seu papel tem entre outras finalidades reduzir o seu sofrimento, o que deveria ser o foco da justiça penal, todavia o sistema penal acaba utilizando-o, ao invés de saná-lo, pois ele “atrai um interesse pernicioso da mídia e, por consequência, também atrai a atenção de políticos, especialmente durante as campanhas eleitorais” (SICA, 2007, p.173). Explica Selma de Santana (2010, p. 22) que a vitimologia encontra importância ao modificar o enfoque de análise lançado pelos pioneiros da criminologia, representantes da Escola Positiva italiana, todos com o olhar debruçado sobre a figura do criminoso. Passa, portanto, a voltar atenção não para aquele que pratica o crime, mas para o sujeito que sofre imediata e mediatamente com a ação criminosa. É com esse enfoque que a vítima deixa de ser compreendida como mero sujeito passivo do crime e meio de prova para o processo penal, passando a ser vista, a partir dos estudos vtimológicos, como o sujeito titular do valor violado por meio do crime, é dizer, o titular do bem jurídico ofendido pela conduta delitiva (SANTANA, 2010). É, portanto, esta percepção vitimológica alcançada pela justiça restaurativa que, por sua vez, reorienta o programa político-criminal de tutela vigente, 186 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi passando esse a transcender a essência punitivista do direito penal para que se passasse a buscar programas de amparo ao ofendido; modelos de compensação de dados e, de um modo geral, ações institucionais voltadas à redução do processo de vitimização que se alastra para além do sofrimento direto quando da ocorrência do delito (SANTANA, 2010). 4.conclusões A esclerose do sistema de justiça formal acaba gerando mais violência, pois quando os cidadãos percebem que o sistema formal de justiça não está funcionando, como eles desejam, podem buscar a justiça alternativa, não aquela que se discutiu neste trabalho, mas outras formas, inclusive os meios ilegais e violentos de se obter justiça. O resultado é a vingança privada em lugar da retribuição estatal legítima ou da justiça socialmente consensual e democrática. Tais práticas não são complementares, mas antitéticas em relação ao sistema de justiça formal, e são em especial destrutivas para o tecido social das comunidades. Elas não melhoram o acesso à justiça para os cidadãos e comunidades desprovidos de poder, mas sim fornecem uma justiça torpe de cidadãos privados, vingativos, que normalmente corresponde àquela parcela da sociedade destituída de poder, que acabam se tornando as vítimas principais do próprio sistema. A justiça restaurativa destaca-se por possuir um viés preventivo e educativo, principalmente em relação a adolescentes e jovens. Como foi descrito no trabalho, tanto as práticas internacionais, como a maioria das práticas brasileiras foi direcionada para o público infanto-juvenil, com resultados a priori satisfatórios no efeito educacional, e como consequência prevenindo ocorrências futuras. A implementação da justiça restaurativa deve, necessariamente, ocorrer através da elaboração de políticas públicas com essa finalidade. Essas, por sua vez, não podem perder de vista que a concretização de práticas de cunho restaurativo demanda um procedimento particular, com ambiente favorável para recomposição de danos, e que, principalmente, os mediadores não devem ser da área jurídica, pela falta de qualificação específica para a tarefa, que é afeita a psicólogos e assistentes sociais. volume 15 187 i encontro de internacionalização do conpedi A inclusão do cidadão e a possibilidade de recomposição de danos (materiais e morais) intermediada pelo Estado podem gerar a recomposição da imagem deste perante a sociedade, tão abalada pela crise ética vivenciada pelas instituições. O direito penal não pode desenvolver um programa de tutela que se volte, apenas, para a proteção impessoal de bens jurídicos, devendo atentar, ainda, para a necessidade de proteção do sujeito lesionado, de modo que o tratamento criminal do fenômeno criminoso não poderá contar, unicamente, com uma análise dogmática do evento. A decidibilidade de conflitos deve abrir espaço para a vitimologia, cabendo ao sistema penal o desenvolvimento de um programa de proteção atento para a necessidade de se afastar o processo de vitimização que se estende para além da prática do crime, não cabendo mais falar em uma dogmática pura, insensível às necessidades de proteção da vítima, bem como ao respeito às garantias fundamentais do acusado. A justiça restaurativa, diferentemente do modelo penal tradicional, resgata a importância do papel da vítima na solução do conflito, sem que tal fato represente um retorno à vingança privada. Com isso, passa a acolher o sujeito ofendido como parte integrante da construção da reparação do dano, não mais como mero elemento probatório. Esse processo de acolhimento e amparo do ofendido minimiza, de forma significativa, o processo de vitimização perpetuado ao longo do processo penal tradicional, uma vez que o ofendido volta a ser elemento de atenção do Estado, reduzindo-se, assim, o desamparo atualmente vivenciado por aquele que busca o auxílio protetor da justiça penal tradicional. 5.referências AGUINSKY, Beatriz; BRANCHER, Leoberto. Projeto Justiça para o Século XXI. Disponível em: www.justica21.org.br. Acesso em: 20/06/2009. BARATTA, Alessandro. Criminología Crítica y Crítica del Derecho Penal. Introducción a la sociología jurídico-penal. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentin, 2004. 188 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi BERISTAIN, Antonio. Victimología. Nueve palabras clave. Principios básicos. Derechos humanos. Terrorismo. Criminología. Religiones. 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No âmbito teóricoconceitual, metodologicamente, descrever-se-á noções acerca das transformações nas relações de poder na modernidade, demarcando-se, como suporte teórico as contribuições de Max Weber, Michel Foucault, Jüngen Habermas e Vera Malaguti, bem como outros autores que propiciaram a reflexão acerca dos limites ao poder punitivo naquela conjuntura, com destaque para Montesquieu, Beccaria, Marat, Romagnosi, Feuerbach e Carrara. Consubstanciando fundamentação de conclusão destaca-se que, ao revisitar as abordagens dos penalistas da conjuntura liberal clássica, o estudo não pretende aventar uma visão romantizada das agências 1 Advogada; Doutoranda em Direito Penal – UERJ; Mestre em Ciências Sociais – UFJF; Especialista em Direito Público – UCAM; Bacharel em Direito – UFJF; Professora de Direito Penal e Criminologia – UFJF. 2 Professora de Língua Portuguesa; Doutora em Letras – UFF; Mestra em Teoria Literária UFJF; Professora no Curso de Direito da Estácio de Sá de Juiz de Fora. volume 15 193 i encontro de internacionalização do conpedi responsáveis pela execução do poder punitivo à época das luzes, mas sim remontar o espírito combativo e politizado dos teóricos que, longe de serem lembrados como membros de uma dada escola penal, são homens que souberam retratar o espírito revolucionário de uma época. No resultado desta pesquisa, entende-se que a política criminal que marca o nosso tempo é contrária à lógica sobre a qual o Direito Penal moderno repousa, segundo a qual a função desse ramo do Direito deve ser a redução e a contenção do poder punitivo, sendo – neste sentido – um apêndice indispensável ao Estado de Direito. Palavras-chave Liberalismo; Pena; Política criminal; Direito penal. Resumen Se objetiva, aquí, establecer un diálogo entre el pensamiento político que basó el ideario liberal clásico y el discurso jurídico penal que floreció en el período iluminista, lo que se denominó el penalismo ilustrado. En el ámbito teórico conceptual, metodológicamente, se describirá nociones sobre las transformaciones en las relaciones de poder en la modernidad, demarcándose, como soporte teórico las contribuciones de Max Weber, Michel Foucault, Jüngen Habermas y Vera Malaguti, además otros autores que propiciaron la reflexión sobre los límites al poder punitivo en aquella coyuntura, con destaque para Montesquieu, Beccaria, Marat, Romagnosi, Feuerbach y Carrara. Al consustanciar fundamentación de conclusión se destaca que, al revisitar los abordajes de los penalistas de la coyuntura liberal clásica, el estudio no pretende plantear una visión romantizada de las agencias responsables por la ejecución del poder punitivo a la época de las luces, sino remontar el espíritu combativo y politizado de los teóricos que, lejos de hacerse acordados como miembros de una escuela penal, son hombres que supieron retratar el espíritu revolucionario de una época. En el resultado de esta investigación, se entiende que la política criminal que marca nuestro tiempo está contraria a la lógica sobre la cual el Derecho Penal moderno reposa, según la cual la función de ese ramo del Derecho debe ser la reducción y la contención del poder punitivo, siendo – en este sentido – un apéndice indispensable al Estado de Derecho. 194 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi Palabras clave Liberalismo; Pena; Política criminal; Derecho penal. 1.introdução Na manhã de 15 de janeiro de 2013 a OAB/RJ publicou em seu sítio virtual3 a notícia de que “em São Paulo, internação à força de viciado deve começar”, expondo aos advogados associados e à comunidade, que o plantão judiciário na cracolândia, no centro da cidade de São Paulo, que atuará nas internações compulsórias de usuários de drogas, está previsto para começar a funcionar na próxima semana. Ou seja, pouco tempo depois da limpeza promovida pela prefeitura do Rio de Janeiro, agora é a vez de o governo paulista adotar uma política de atenção aos dependentes de drogas baseada na internação compulsória. O referido projeto foi discutido pelo governo do Estado e contará com a cooperação do Tribunal de Justiça, Ministério Público e Ordem dos Advogados do Brasil. A reportagem informa, ainda, que o programa destina-se a dependentes químicos com estado de saúde considerado grave e sem consciência de seus atos, o que deve ser devidamente atestado por um psiquiatra. Ao final do texto, a secretária responsável afirma não ser este “um projeto higienista nem de internação em massa”. Num contexto democrático, é de causar espanto uma notícia desta natureza - que tanto demonstra o avanço arbitrário do poder em detrimento do cidadão (embora o usuário e o dependente de crack não sejam percebidos como tais) estar sendo divulgada pela Ordem dos Advogados do Brasil. Conforme insculpido no art. 133 da Carta da República, “o advogado é essencial à administração da justiça”. Tal dispositivo, arrolado no Capítulo IV do texto constitucional, indica as funções essenciais à justiça, dentre elas o Ministério Público, a Advocacia e a Defensoria Pública. A inserção da advocacia como função essencial à administração da justiça visa garantir que os valores que norteiam a atividade advocatícia no país estejam em consonância com os ditames constitucionais. Tal compromisso foi reiterado na Lei 8906/94 que traduz, em seu artigo 44, o compromisso da OAB 3http://www.oabrj.org.br/detalheNoticia/77308/Em-SP-internacao-a-forca-de-viciado-devecomecar-segunda.html volume 15 195 i encontro de internacionalização do conpedi em defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado Democrático de Direito, os direitos humanos e justiça social. O fato de violações às garantias fundamentais decorrentes das referidas internações compulsórias não estar sendo questionado pela OAB e outros órgãos atinentes à justiça, demonstra o esvaziamento do papel desses órgãos na luta contra o arbítrio do poder em detrimento dos cidadãos brasileiros, no caso, os usuários e dependentes de crack. As práticas compulsórias de recolhimento desses cidadãos afrontam o fator mais relevante para o tratamento da dependência: a vontade. Sendo esta uma das manifestações da liberdade, não pode ser vilipendiada por políticas públicas numa ordem democrática. O drama que circunscreve a vida dos dependentes de crack não se lhes retira o poder de decisão sobre si mesmos. A opção pelo confinamento forçado diz proteger aqueles a quem pretende neutralizar, prática nada original na mecânica de poder capitalista. O crack apenas atualiza dispositivos historicamente acionados pelos agentes de poder contra as populações marginalizadas, tidas como temíveis e esteticamente contrárias aos padrões burgueses. A limpeza dos centros urbanos em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo demonstra a permanência histórica das intervenções autoritárias que, transformadas em plataformas políticas tendentes a sensibilizar a sociedade quanto a sua eficiência na resolução do problema das populações de rua, obscurece a real e permanente função das medidas de contenção nas sociedades capitalistas. Foucault, no seu Em defesa da sociedade, explica que na passagem do século XVIII para o XIX a humanidade contou com o aparecimento de mecanismos, técnicas e tecnologias de poder que podem ser consideradas como uma “biopolítica” da espécie humana, que consiste em técnicas de racionalização de um poder que se devia exercer, da maneira menos onerosa possível, mediante todo um sistema de vigilância e controle da população. Além da higiene pública e medicalização da população, outro campo de intervenção da biopolítica vai ser todo um conjunto de fenômenos dos quais uns são universais e outros acidentais, mas que, de uma parte, nunca são inteiramente compreensíveis e acarretam consequências de incapacidade, de pôr indivíduos fora do circuito, de neutralização, etc. (...) (FOUCAULT, 2000, p. 291) 196 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi Essas técnicas de poder, formuladas a partir de bases utilitaristas e positivistas, demandaram a organização de discursos legitimadores de suas práticas. A partir do século XIX - ao contrário dos ideais de liberdade propugnados nas revoluções burguesas do século XVIII - o poder tomou posse da vida. Ressalta-se, contudo, que tal esbulho não alcança igualmente a todos. A seletividade com que o poder passou a engendrar suas técnicas de controle social terminou por aumentar o fosso das desigualdades e exclusões nas democracias liberais. No contexto neoliberal, como assinala Wacquant4, esta mecânica de poder que - através da microfísica (FOUCAULT, 1979) das instituições do Estado - articula políticas de segurança pública, econômicas e assistenciais, revelou um incremento sem precedentes quanto à policização5 dos programas sociais de assistência social6. Para o autor, a articulação das preocupações com o controle e administração das categorias despossuídas mudou o formato da paisagem social e recriaram o próprio Estado, o qual não somente faz o uso legítimo do monopólio da violência material (Weber), mas também o da violência simbólica (Bourdieu). O conceito bourdiesiano de violência simbólica esclarece como a violência, obscurecida através de discursos e práticas legitimantes, é naturalizada pela sociedade, e termina por não ser percebida como violência. É esse mecanismo que faz com que as internações compulsórias citadas acima não sejam percebidas como violentas por boa parte da população brasileira. Os efeitos da naturalização dessa violência são percebidos por Vera Malaguti Batista como uma espécie de adesão subjetiva à barbárie que, grosso modo, consiste numa crescente demanda coletiva por instrumentos de controle social cada vez mais ofensivos, que convive com 4 Nas obras Punir os Pobres, As prisões da miséria e Os condenados da Cidade Loïc Wacquant faz uma vigorosa crítica sobre as políticas criminais levadas a efeito no capitalismo tardio, analisando os impactos da estratégia de prisionização estadunidense na passagem do Estado previdenciário ao que ele chama de “Estado punitivo”. 5 http://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista61/revista61_237.pdf, (LIBANO, 2013), Estado Penal versus Estado Democrático de Direito: A Hipertrofia do Poder Punitivo e a Pauperização da Democracia 6 http://www.ess.ufrj.br/monografias/105119407.pdf, (Coelho, 2009), Democracia e aprisionamento: duas questões atravessadas pelo não encontro. Capítulo 1: O avanço da política penal e a policização da “questão social”, p. 11-33. volume 15 197 i encontro de internacionalização do conpedi [...] a neutralidade técnica das governamentalidades sociológicas. Os efeitos estão por aí e doem: a expansão da prisão, sua teia ampliada de justiças alternativas, terapêuticas, restauradoras, a vigilância reticular, o controle a céu aberto, a transformação das periferias em campos [...]. (BATISTA, 2012, p. 309-310) As estratégias seletivas de controle social que vêm arrasando os contingentes mais vulneráveis na atualidade fazem parte da história das sociedades modernas. No entanto, a força empreendida por elas na atualidade é assustadoramente mais ampla, posto que os índices de encarceramento e outras formas de privação e liberdade com os mais diversos nomes alcançam níveis nunca antes percebidos na história da humanidade. No Brasil, como alerta a Professora Vera Malaguti em suas obras e nos cursos de Criminologia na UERJ, na transição da ditadura para a democracia na década de 1980, a face autoritária do poder punitivo foi atualizada na política de segurança pública e, sob o signo do medo, vai - através de alianças com as agências econômicas – amalgamando outros setores, até mesmo a Academia e forças políticas da administração da Justiça, que deveriam ser um núcleo de resistência. Diante desse cenário aterrador de nossos dias, retomar discursos que sustentavam a limitação do poder punitivo e a busca por espaços de liberdade parecem impropérios quase sujeitos à criminalização. Afinal, liberdade e punição são, de fato, palavras antagônicas. Para compreender como termos tão distintos puderam ser reunidos na conjuntura social do século XVIII, é preciso buscar um momento anterior na história das ideais. O momento atual é de completo declínio das promessas de liberdade e igualdade defendidas pelos filósofos e demais pensadores daquela conjuntura revolucionária, bem como de enfraquecimento da noção de Estado e garantias do modelo liberal clássico. Tal cenário, contudo, não deve ser capaz de apagar um momento histórico da civilização ocidental, no qual indivíduos ávidos por liberdade desafiaram a ordem dominante. Os desdobramentos desses acontecimentos e as formas com que o poder se reinventou7 nos séculos seguintes não têm o condão de apagar esta página da 7 Menegat, M. O sol por testemunha. In Batista, V.M. Loïc Wacquant e a questão criminal no capitalismo neoliberal. Rio de Janeiro: Revan, 2012. 198 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi história. Por isso, o presente estudo - embora aborde as transformações políticas e sociais que subjazem à conjuntura liberal clássica de forma ampla – tem como principal objetivo refletir sobre o pensamento de autores que se dedicaram à construção dos limites para o exercício do poder punitivo. Ao longo do texto, procurar-se-á destacar que mediante o protagonismo da multidão que se opunha ao absolutismo e identificação das massas (tendentes às manifestações revolucionárias) para com os destinatários da implacável tirania levada a efeito entre as camadas urbanas pobres e famintas, os agentes de poder precisaram engendrar novas técnicas e novos discursos para o controle social da concentração de pobres que a acumulação de capital provocou (BATISTA, 2011). É nessa conjuntura que o penalismo ilustrado (BATISTA, 2004) despontou como discurso jurídico limitador do poder punitivo no Antigo Regime, o qual sob a égide da legalidade, da proporcionalidade, da determinação das penas e de outros princípios e garantias que comporiam o núcleo duro do direito penal no Estado de Direito – estabeleceu formalmente limites para a produção da verdade e aplicação das penas. Não obstante, destaca-se que, ao revisitar as abordagens dos penalistas da conjuntura liberal clássica, o estudo não pretende aventar uma visão romantizada das agências responsáveis pela execução do poder punitivo à época das luzes, mas sim remontar ao espírito combativo e politizado dos teóricos que, longe de serem lembrados como membros de uma dada escola penal, são homens que souberam retratar o espírito revolucionário de uma época. 2. poder punitivo, direito penal e política criminal Os estudos acerca de Política Criminal realizados na pós-graduação em Direito Penal da UERJ, oferecidos pelo professor Nilo Batista, acenaram para tanto para o tema “Liberalismo e Pena”, quanto para outros clássicos da ciência política. Ao longo do curso, no entanto, foi possível perceber que o tema escolhido era um dos mais postos à prova na atualidade, haja vista que o estudo deveria revelar o ouro garantista (BATISTA, 2011) do direito penal na confluência revolucionária do século XVIII, o qual, atualmente, é pouco ou nada reluzente. Em face dos desdobramentos da sociedade capitalista após as revoluções burguesas do século XVIII e do distanciamento sistemático do ideário iluminista volume 15 199 i encontro de internacionalização do conpedi no pensamento político e jurídico-penal na atualidade, seria um desafio remontar o cenário em que Beccaria, Romagnosi, Marat, Feuerbach e seus contemporâneos escreveram, de modo a compreendê-los como homens do seu tempo, um tempo grávido de futuro (BATISTA, 2004). Insta reconhecer que tais pensadores - embora não tenham empreendido a crítica da razão punitiva - ofereceram importantes contribuições à limitação do poder de punir no Antigo Regime a partir das noções de legalidade, proporcionalidade e humanidade, como é até hoje o liberalismo garantista (BATISTA, 2011). Para compreender as mudanças em torno da política criminal no período iluminista e as rupturas percebidas atualmente em relação a ela faz-se necessário remontar à natureza política da punição. Segundo professor Nilo, a política criminal deve ser lida como a ciência política do poder punitivo, sendo inaceitável metodologicamente uma política criminal que funcione como mero “diário de bordo” da dogmática jurídico-penal, sem maior contato com a ciência política (o que terminaria por obscurecer os diferentes processos de criminalização das relações sociais)8. No seu O Inimigo no Direito Penal, Zaffaroni explica como o poder punitivo sempre discriminou os seres humanos e lhes conferiu um tratamento punitivo seletivamente distribuído entre os que considerava como entes perigosos ou daninhos. Tais seres humanos são assinalados como inimigos da sociedade. Esse exercício de poder punitivo é característico dos Estados Absolutos, ou Totalitários e contrários à lógica do Estado de Direito. Para compreender a confluência social que determinou as mudanças no exercício do poder punitivo no século XVIII e o compromisso das elites intelectuais e jurídicas com a demanda por ordem9 daquela conjuntura é preciso recuar à ambiência do liberalismo clássico. 3. a conjuntur a liber al do século xviii A crise do século XIV abalou profundamente a sociedade feudal da Europa Ocidental, abrindo caminho para a desintegração do modo de produção feudal 8 Neste sentido também Fragoso (2004, p.23), para quem a política criminal não seria uma ciência propriamente dita, mas uma técnica que, aproximando-se da ciência política, discute, reflete e critica a oportunidade e conveniência de medidas e tendências do direito penal. 9 Pavarini, M. (1983), Control y Dominación: teorias criminológicas burguesas y proyecto hegemonico. Mexico: Siglo Veinteuno Editores. 200 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi e sua superior superação pelo capitalismo, que somente se consolidará no século XVIII, com as Revoluções Burguesas e a Revolução Industrial. Essa superação, que resultou numa nova ordem, foi marcada pelo surgimento do Estado Moderno. Segundo Anitua (2008, p.37), o surgimento do Estado – com sua primeira expressão nas monarquias absolutistas – não pode passar despercebido, nem ser analisado como elemento de transição para o capitalismo. Estado e capitalismo estão intrinsecamente unidos, já que constituem dois aspectos de uma nova forma de exercício de poder racionalizado10. A partir do século XIV, com o fortalecimento das monarquias nacionais, houve uma retração dos fundamentos de legitimidade do poder, baseados no ideal de fé universal e centralizante postulado pela Igreja. A aliança entre os Reis e a Igreja persistiu durante toda a Idade Média, outorgando um sentido de unidade, o qual, não poucas vezes, foi posto em xeque na luta entre o poder político e o religioso. A tensão entre tais poderes, a qual já havia sido questionada pelo humanismo renascentista, será a marca do republicanismo de Maquiavel11. Como ensina 10 Importante destacar o pensamento de Tomás de Aquino (XIII), que teria realizado a maior tarefa racionalizadora e de síntese em sua Suma Teológica, mediante a união do pensamento aristotélico com o cristão. A partir da racionalização do poder da Igreja, o pensador justifica-o como poder divino, e o poder do Monarca seria o poder terreno. O primeiro derivaria do direito divino, ou lei eterna, que emanava diretamente da razão de Deus, sendo, portanto, somente entendível pelos santos e clérigos; já o segundo relaciona-se a um direito natural que deriva do direito humano orientado para a ideia de justiça como bem, conforme Aristóteles. Neste constructo, o delito seria percebido como uma violação desse direito natural que determina que se deve praticar o bem e evitar o mal, noção a partir da qual opera-se a perfeita associação entre delito e pecado. É desta forma que a noção de delito ingressa nos pensamentos ocidentais no século XIII (ANITUA, 2008, p. 49). 11 Através da obra de Maquiavel O príncipe o republicanismo ganhou feições modernas. Alguns princípios foram conservados, outros reformulados e outros completamente abandonados. Para o florentino, os Estados deveriam ser organizados como principados ou repúblicas, de acordo com o número de pessoas que detém o poder. Destacando o primeiro modelo, Maquiavel analisa as condições de ação política, suas possibilidades, seus limites a partir da figura do príncipe, o qual deveria ser o responsável pela instauração de uma nova ordem política. Os meios materiais que o príncipe deveria dispor para agir seriam as leis e as armas, devendo se preocupar também com a arte do governo, a qual é adquirida pelo conhecimento do ser humano. Os homens são vistos como ingratos, volúveis, covardes e movidos pelo interesse pessoal, por isso o príncipe não pode governá-los com bondade, devendo usar, portanto, a força. Num contexto de mudanças e luta pelo poder absoluto, Maquiavel reúne as estratégias e métodos para a conquista a manutenção do poder, legitimadas pela noção de bem comum e ordem pública, definindo, assim, uma visão moderna de governamentalidade. volume 15 201 i encontro de internacionalização do conpedi Foucault (1979, p.278), a intensidade e multiplicidade que caracterizam o século XVI se situam na convergência de processos de governamentalidade que envolvem: superação de estruturas feudais; instauração de grandes Estados territoriais, administrativos, coloniais; crescimento comercial e urbano; reação da Igreja frente a tais transformações; dissidências e dispersões religiosas. As transformações religiosas do século XVI, comumente conhecidas como Reforma Protestante, são parte de um processo que marca o avanço do espírito capitalista que já vinha sendo gestado no Ocidente desde o século XIV, conforme percebido por Max Weber12. O ethos capitalista, que mais tarde se converterá na mola propulsora do liberalismo, é lido por Jessé Souza (2006) como característico de um “racionalismo de dominação do mundo”. Este pode ser definido como uma atitude instrumental em relação às diferentes dimensões da ação humana, a qual será orientada sob os signos da liberdade (a princípio liberdade comercial e de pensamento), tolerância religiosa, defesa da propriedade privada, limitação do poder da Igreja e, posteriormente, do Estado em face dos cidadãos e individualismo (que advém da noção de liberdade natural ou o espaço de arbítrio de cada indivíduo). Esse ethos será essencial para o desenvolvimento do liberalismo econômico, que se opõe à intervenção política nos negócios13. Conforme as contribuições de Charles Taylor em As fontes do self (apud Souza, 2006), nesse contexto, no espaço do senso comum e da vida cotidiana, passa a ser O governante teria por marca a virtù - uma qualidade política e não moral que o impendia à tomada e manutenção do poder, uso da violência, astúcia e força (Ramos, Melo e Frateschi, 2012). 12 Como assinala Jessé Souza (2006, p.11), a importância da variável religiosa na constituição do racionalismo Ocidental é heurística e visa a revelar como uma ética religiosa que condena a si mesma e cria (sem ter tido a intenção) as condições do mundo secular, dominado agora pelo mercado competitivo e pelo Estado racional centralizado. Weber (2004) não reduz, assim, a importância dos outros fatores, apenas indica que para melhor “compreender” a passagem da sociedade tradicional para a moderna, no Ocidente, é preciso perceber como a racionalização religiosa cria precondições de sua própria morte, ao menos como única instância produtora de sentido, e cria as condições “simbólicas” para o surgimento da sociedade secular. 13 Os primeiros teóricos a se insurgirem contra o controle da economia foram os fisiocratas, que, sob o lema laissez faire, defendiam que não há lugar para a ação econômica do Estado, devendo este garantir a livre-concorrência entre as empresas e o direito à propriedade privada quando esta for ameaçada. Destaque para Adam Smith (1723-1790), que partia do princípio de que cada homem é adequado a julgar suas ações, tendo o Estado o papel de proteger as atividades espontâneas dos indivíduos. 202 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi orientada uma nova noção de virtude ocidental a partir da redefinição das esferas práticas do trabalho e da família, retirando, assim, o sagrado como mediador privilegiado das relações sociais. Os suportes sociais dessa nova concepção de mundo são as classes burguesas da Inglaterra, EUA e França, disseminando-se depois por diversos países. O vínculo social adequado às relações pessoais passou a ser de tipo contratual, o que – a partir de um direito racional formal14 – ensejará, por extensão, a democracia liberal contratual como forma de governo. A noção de contrato nasce, portanto, da necessidade de basear as relações sociais e políticas num instrumento de racionalização - o direito -, sendo o pacto a condição formal da existência jurídica do Estado. A tese contratualista, conforme Limongi (apud Ramos, Melo & Frateschi, 2012, p. 98) implica que a política se funde sobre uma relação jurídica, haja vista que o próprio contrato – que dá início à associação política – é um ato jurídico. Segundo Foucault, na teoria jurídica clássica o poder é considerado como um direito de que se seria possuidor como um bem e que se poderia, por conseguinte, transferir ou alienar, total ou parcialmente, por um ato jurídico ou um ato fundamentador de direito, que seria da ordem da cessão ou do contrato. O poder é o poder concreto que cada indivíduo detém e que cederia, total ou parcialmente, para constituir um poder político, uma soberania política. Neste conjunto teórico, a constituição do poder político se faz segundo o modelo de uma operação jurídica que seria da ordem da troca contratual. Por conseguinte, analogia manifesta, que percorre toda a teoria, entre poder e os bens, o poder e a riqueza (Foucault, 1979, p.174), Na busca do fundo jurídico sobre o qual se assentam as relações políticas, o contratualismo liberal prolonga, a seu modo, a tradição do direito natural, 14 O direito racional formal é percebido como fundamental para o desenvolvimento da sociedade moderna e do capitalismo, por sua maneira calculável e sua previsibilidade, essenciais ao crescente mercado competitivo, baseado em princípios impessoais. A criação de tal tipo de direito foi possível pelo fato de o Estado moderno aliar-se aos juristas para fazer valer suas pretensões de poder. O Ocidente, que já dispunha de um direito formalmente estruturado – produto do gênio romano –, e os funcionários formados nesse direito superavam, como técnicos administrativos, todos os demais, permitiu que a aliança entre o Estado e a jurusprudência formal beneficiasse o fortalecimento daquele (SOUZA, 2006, p.95). volume 15 203 i encontro de internacionalização do conpedi apontando para certos critérios de legitimação das relações políticas que preexistem a essas mesmas relações ou que não dependem diretamente delas para se fazer valer. No século XVII, a partir do inglês Locke (1632/1704), o pensamento liberal se consolida na Filosofia Política, com destaque para Dois tratados sobre o governo civil, de 1690, em que são trabalhados os grandes temas do liberalismo clássico: o respeito à vida e à propriedade; a tolerância política e religiosa; a separação dos poderes do Estado; as liberdades civis e políticas. Locke se contrapõe à concepção de Hobbes15 (para quem o contrato é concebido como uma ficção jurídica, uma realidade de pensamento e um ente de razão), quando trabalha com a noção de contrato social como uma realidade histórica que simboliza o acordo entre indivíduos visando garantir a liberdade e a propriedade, que seriam direitos naturais, anteriores ao contrato. No contratualismo de Locke, o direito político, no entanto, assim como em Hobbes, é fundamentado não na história, mas na razão – a qual será necessária para o conhecimento do direito natural. A partir da perspectiva lockeana de direito natural – que separa moral e direito16 - os conceitos de pessoa, trabalho e propriedade estão relacionados entre 15 O contratualismo de Hobbes propõe que o contrato só é capaz de fundar o corpo político enquanto um sistema de direitos e deveres se for sustentado por um soberano. Esse poder figura como espécie de caução ao contrato, que só é válido na condição de haver esse poder (cap. XIV do Leviatã). A ideia de reciprocidade está presente na estrutura contratual, de modo que a função do soberano no contrato é garantir que as partes cumpram os contratos, coagindo aqueles que violaram sua fé, sendo tal coação o fundamento de validade das relações sociais, possibilitando a criação de vínculos jurídicos e obrigações a partir das quais os homens regularão suas condutas. Hobbes põe, ainda, a noção de contrato a serviço de uma justificação da soberania do Estado, o qual é esse poder soberano instituído por e derivado do contrato. O poder do Estado é, ao mesmo tempo, que criado juridicamente pelo contrato é condição dos contratos que cria, de modo que o campo jurídico em que consiste o Estado é sustentado politicamente pelo poder do Estado. (Limongi apud Ramos, Melo, Frateschi, 2012, p.110). 16 Rompendo com a ideia de direito natural que se baseava em um idealismo transcendente (Santo Agostinho, São Tomás de Aquino), o pensamento liberal clássico invoca o direito natural a partir do processo de laicização da cultura, elegendo a razão como guia das ações humanas, com destaque para Hugo Grócio (XVII – Delft, Holanda). Tal concepção de direito traz as ideias de autonomia da vontade e do contrato. A tensão entre ética e mundo, rompida a partir da crítica liberal burguesa, opera a separação entre moral e direito, buscando, acima do sistema racional normativo e positivo, um “direito de razão”, aceitável para todos, porque fundado na natureza (e não nas diferentes religiões que àquele momento rivalizavam). 204 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi si, evidenciando que cada indivíduo é, por natureza, proprietário de certos bens. Cada homem teria direito sobre sua própria pessoa, ou seja, cada pessoa pertence a si mesma e não a outrem nenhum soberano ou igreja. Logo, além de ter direito à autodeterminação, o homem também teria o direito natural ao produto de seu trabalho. Para assegurar esses direitos, Locke constrói um modelo de contrato a partir do qual os homens instituem um governo civil visando garantir o direito à propriedade17. O contrato figura como um mecanismo para a constituição desse governo civil, não como condição dos vínculos de direitos e deveres, mas como poder executivo de um conjunto de vínculos que preexistem à sua instituição e, contra os quais, não pode dispor sem se colocar em guerra com seus súditos. Nesse sentido, a lei natural é para Locke um instrumento de limitação do poder político. O liberalismo político seria o correlato, na política, do individualismo e subjetivismo na teoria do conhecimento (racionalismo/empirismo), que marca um desdobramento da libertação da razão no século XVII (MARCONDES, 2001). O racionalismo moderno, influenciado de forma marcante por Descartes, enfatiza a razão humana no processo de conhecimento e na possibilidade de justificação e fundamentação definitiva e concludente dos sistemas teóricos. Tal empreendimento foi possível porque, embora as transformações políticas e sociais tenham imposto pesados sofrimentos ao contingente miserável, a burguesia letrada promovia, como detalhou Habermas (1984), uma mudança estrutural na esfera pública. Além da política e da economia, o projeto burguês de modernidade manifesta-se também nas artes, nas letras e na filosofia, promovendo, ao mesmo tempo, a ruptura com as categorias de pensamento do passado e os pontos de partida para o Iluminismo. Em seu Imperium circa Sacra, Grócio busca na natureza humana o fundamento do poder do rei sobre as questões religiosas que interessam ao Estado (à maneira de Bossuet) (De Cicco, 2006, p.128-135). 17 Para Locke, antes mesmo da constituição do corpo político, existe uma comunidade natural, concebida como estado de natureza, o qual não é tomado como um estado de dispersão, mas um estado no qual os homens estão naturalmente ligados por vínculos racionais do direito natural, que institui a todo homem, pelo uso da razão, o dever de constituir e respeitar a propriedade. O contrato para Locke, não cria, portanto, os deveres e obrigações, pois estes são anteriores a ele. A função do contrato é evitar que tais relações deixem de ser a pauta de suas relações recíprocas, o que ocorre quando o estado de natureza se degenera num estado de guerra (Limongi apud Ramos, Melo, Frateschi, 2012, p.110). volume 15 205 i encontro de internacionalização do conpedi O ideário iluminista reflete o contexto político e social da conjuntura liberal clássica, abrangendo não somente o pensamento filosófico, como também as artes, a literatura, as ciências, a teoria política e a doutrina jurídica. Segundo Anitua (2008, p.125), o Iluminismo foi o momento em que a burguesia empreendeu claramente sua luta contra os poderes tradicionais, apoiada num jusnaturalismo que - rompendo com o idealismo transcendente, e emergindo de um processo de laicização da cultura moderna - elegeu a razão como guia das ações humanas. Para Jessé Souza, foi o otimismo do Iluminismo que, acreditando na harmonia dos interesses, assumiu a herança do ascetismo protestante no âmbito da mentalidade econômica; conduziu as ações dos príncipes, estadistas e escritores no final do século XVIII e começo do século XIX. O ethos econômico gerou-se da base do ideal ascético; mais tarde foi despojado de seu sentido religioso. Isso acarretou consequências graves. (SOUZA, 2006, p.127) Dentre as principais consequências do processo ao qual Jessé se refere, destaca-se o incremento de poder nas mãos da burguesia. Como ensina a professora Vera Malaguti (2011, p.32), essa nova classe social, a burguesia - composta pelos detentores dos meios de produção no interstício entre o clero, a nobreza e os pobres – vai produzir saberes de modo a atender suas necessidades e à eficiente racionalização do poder (ou, como prefere Foucault: poder-saber) e, paralelamente, oferecer novos compêndios pedagógicos ao mundo desencantado. O desencantamento do mundo propiciou o desenvolvimento da ciência e da técnica modernas e do capitalismo, sob a metáfora do esclarecimento, que visava oferecer oposição ao obscurantismo da Idade Média, à ignorância e às superstições religiosas as elites intelectuais buscaram enfatizar a necessidade do desenvolvimento da consciência como único meio de conquistar autonomia individual. Entre as armas utilizadas pela burguesia para redefinir a consciência coletiva, ressalta-se a educação, com destaque para a Enciclopedia de Diderot e Dalembert, cuja publicação se iniciou em 1751 e sintetizava todo o saber da época, tornando-o potencialmente acessível a todos os indivíduos (todos os que liam, ou seja: a burguesia). Depreende-se daí o caráter pedagógico e seletivo do iluminismo enquanto projeto de formação dos indivíduos na sala de estar da modernidade, 206 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi uma vez que os dispositivos acionados para a dita emancipação individual, a despeito do arcabouço axiológico propugnado, não são acessíveis a todos. Como visto em Foucault, o pensamento politico liberal justifica um Estado não apenas limitado pela lei, mas com propensão econômica favorável aos detentores dos meios de produção e particularmente repressivo para com aqueles que não têm propriedade. Tais questões não ficaram obscurecidas aos problemas teóricos e práticos da organização social e dos fundamentos do poder, tendo sido objeto das reflexões combativas de muitos pensadores iluministas. Nesse sentido, o movimento iluminista, à luz da filosofia política liberal, constrói a crítica ao Antigo Regime e ao poder ilimitado dos soberanos que, ao ofender os direitos naturais dos homens, era tomado como arbitrário. O Iluminismo volta-se contra toda autoridade que não esteja submetida à razão, que recorra ao medo, à superstição, à força, à submissão, como afirma Kant em Wie ist die Aufklärung? – o iluminismo tem um caráter ético e emancipador que visa retirar o homem do seu estado de menoridade. Nessa conjuntura, o poder de punir e a natureza das punições não tardaram a ser alvos das críticas esclarecidas, que visavam à imposição de limites ao Estado em seu exercício de poder punitivo. Decorrem daí as novas concepções acerca do direito penal e, com elas, as possibilidades de manutenção do exercício do poder punitivo pelo Estado, erigidas de modo a adequar-se às limitações que se lhes impunham. A reflexão sobre esses temas por parte dos penalistas da época permitiu o desenvolvimento da noção de legalidade, proporcionalidade e garantias – as quais são invocadas na tentativa de impor limites aos métodos desumanos de persecução penal, averiguação da verdade e imposição de penas. Como destaca a professora Vera, A ascensão da burguesia contra a figura do monarca absoluto vai ensejar novos discursos criminológicos, novas instituições, novas políticas, a partir do enquadramento cartesiano e iluminista do mundo. A prisão [...] se converte na principal pena do mundo ocidental. O delito passa a ser definido juridicamente. (BATISTA, 2011, p. 26) volume 15 207 i encontro de internacionalização do conpedi 4. a escola clássica ou o penalismo ilustr ado No constructo de racionalizações da filosofia política liberal para o exercício do poder em face dos cidadãos, os Estados absolutistas racionalizaram os castigos, o que foi levado a efeito, conforme Anitua (2008), através de intelectuais e funcionários e toda uma hierarquia de serviços especializados na manutenção da ordem – daí as figuras da polícia, promotores, advogados, juízes, serventuários da justiça, entre outras – organizando o que mais tarde seria chamado de sistema penal. Dentre os especialistas que passariam a fazer parte do aparelho estatal, destacam-se os juristas, dada a necessidade do Estado moderno de aliar-se a este setor para que, de forma racionalizada, fizesse valer suas pretensões de poder. Todos os que fossem contemplados com tais cargos deveriam ser fiéis aos objetivos dos monarcas, sob pena de perderem seus empregos. A atualização do poder punitivo nesse período assinala a busca de novas legitimações para o controle social. O dilema da ordem consistia em justificar a criminalização de condutas levadas a efeito pelo contingente empobrecido, sem instrução e com potência revolucionária que colocavam em risco os interesses sociais dominantes. Com a desintegração do modo de produção feudal, acompanhada pela expropriação dos produtores diretos, formou-se uma classe de trabalhadores destituídos dos meios de produção que, expulsos de suas terras, formariam a multidão faminta a ocupar os núcleos urbanos. Aos camponeses expulsos de suas terras não restavam alternativas senão a mendicância e os ofícios degradantes em troca de comida, passando a ser alvo de perseguições sanguinárias que, mais tarde, converter-se-ão em técnicas de disciplinamento para o trabalho e grandes internamentos em instituições do Estado: O poder punitivo em formação não é etéreo, nem ontológico. Ele se relaciona intimamente com o processo de acumulação de capital em curso: a crise do sistema de exploração feudal, a expulsão dos camponeses, o crescimento das cidades e mercados, novas e crescentes necessidades [...] para a empresa guerreira, burocracias nascentes, manufaturas, comércio. [...] Os Estados absolutistas que aparecem nessa conjuntura racionalizaram o 208 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi sistema de castigo e adestraram intelectuais e funcionários para esses misteres: aprimoraram o controle da população, as técnicas de governo, o utilitarismo social e econômico (BATISTA, 2011, p. 32-34). Dado o grande número de miseráveis nos patíbulos, as massas famintas com eles se identificavam, o que acirrava as insatisfações quanto aos métodos de punição utilizados – uma herança do medievo. Desde o século XIII, o poder punitivo vinha exercendo, sob a influência da Igreja, atrocidades contra os contingentes que ameaçassem a ordem e os dogmas religiosos: bruxas, hereges, mulheres e pensadores. Por meio de processos de desumanização, seguidos de demonização, a seletividade do controle social era imposta. A ideia de penitenciária vem desta época, tendo sido feito largo emprego da tortura, escrevendo, conforme Fragoso (2004, p.41) negra página na história do direito penal18. Até a transição para o direito penal de cunho liberal, o sentido geral das leis penais era o da repressão arbitrária. Com o confisco do conflito das partes envolvidas a partir do século XIII, que consolida o exercício da punição ao poder público, este o exerceu em nome da defesa do Estado e da religião, em detrimento dos seus destinatários, criando em torno da justiça punitiva uma atmosfera de incerteza, insegurança e terror, devidamente legitimada pelos que detinham o poder punitivo e com ampla desigualdade e seletividade na aplicação. Os proces18 O processo inquisitório levado a efeito pela Igreja surgiu com o Concílio de Latrão (1215 – século XIII) e possibilitava o procedimento de ofício, sem prévia acusação – pública ou privada – e sem meios de defesa para o réu. Com o fortalecimento do poder político entre os povos germânicos a partir do século XII, o sentido público do crime e da pena – em detrimento da Igreja – adquire relevo, o que culmina com a edição do Constitutio Criminalis Carolina em 1532 (XVI), no reinado de Carlos V. A importância da Carolina reside no fato de atribuir definitivamente ao Estado o poder punitivo. Com a fragmentação do império alemão, surgem após a Carolina – entre os séculos XVI e XVIII – numerosas ordenações criminais, na Áustria, na Saxônia, na Baviera, na Prússia, etc.; as quais já eram legislações atrasadas para o seu tempo, haja vista as transformações sociais, econômicas, filosóficas e políticas ocorridas no período. Na península ibérica, ocupada pelos visigodos no período bárbaro, existia a lei Visigothorum, que vigorou no século VII. Esta legislação ficou conhecida como Fuero Juzgo (foro justo) e apresentava o sentido geral da legislação germânica, com forte influência do direito canônico. No século XIII, com Afonso X, aparece o Fuero Real, que unificou a legislação do Reino e significava grande passo no sentido da pena pública e afastamento da faida e da vingança de sangue, bem como da Lei das Sete Partidas (1256-1265) (FRAGOSO, 2004). volume 15 209 i encontro de internacionalização do conpedi sos eram inquisitórios e secretos, com emprego de tortura e sem qualquer espécie de garantia para a defesa (ZAFFARONI, 2008). Esse modelo inquisitivo segue até o século XVIII. Com o enfraquecimento do Estado Absoluto, enquanto agente responsável pelo equilíbrio social, a utilização da pena como instrumento político entra em crise. A legitimidade do Estado Absoluto para a continuidade da imposição de pena passa a ser também questionada em razão da realidade aviltante da aplicação seletiva das normas penais que contrariavam o discurso liberal. Nesse cenário de crise, diferentes alternativas teóricas no plano da filosofia do direito e da dogmática penal foram erigidas, no sentido de tentar “refundar” o direito penal, marcando a insurgência de intelectuais contra os preconceitos, convenções e tradições, insistindo no livre pensamento até então incriminável (Thomas Greenwood apud FRAGOSO, 2004, p.47). Embora - como demonstrado por Foucault (1979), tenha sido a partir das racionalizações de matriz liberal que o poder punitivo engendrou uma tecnologia de poder dirigida às populações que deverão ser vigiadas, treinadas e punidas, ampliando o alcance do controle social pela via do sistema penal, com destaque para Bentham – interessa-nos aqui trazer à baila um momento anterior a esse, em que o direito penal foi pensado como instrumento de defesa da sociedade. As ideias básicas do Iluminismo em matéria penal são a proteção da liberdade individual contra o arbítrio judiciário; a abolição da tortura; abolição ou limitação da pena de morte; afastamento da ideia de pena vinculada à Igreja ou puramente à moral – fundadas especificamente na ideia de retribuição e expiação. Tais ideias produziram resultado na legislação penal, como, por exemplo, com Catarina II, na Rússia - 1767, e Leopoldo II, na Toscana – 1786; Frederico, o grande, na Prússia; José II, na Áustria e, sobretudo na França, com a Revolução Francesa e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, bem como nos Códigos Penais de 1791 e 1810. Destaca-se, contudo, como assinala Heleno Fragoso (2004:50), que tal movimento reformador não pode ser reunido em uma dita escola – a teria ficado conhecida como “clássica”, uma vez que é difícil reunir os diferentes pensamentos dos juristas à época em um corpo de doutrina comum. 210 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi 4.1. o ouro gar antista Conforme o magistério de Fragoso (2004), o jusnaturalismo de Hugo Grócio inspirou o reexame das ideias políticas dominantes, impondo um dever aos penalistas da época, o de buscar um fundamento racional para a pena. O jusnaturalismo ilustrado caminhou também com Puffendorf, Thomasius e Wolff – que fundamentavam o direito do Estado na razão, e não na força, reconhecendo na pena um caráter utilitarista e não meramente retributivo, pois era útil ao equilíbrio social. Nas obras de Hobbes e Locke, guardadas as diferenciações quanto à natureza e justificação do contrato social, havia a ideia de pena teleologicamente pensada a partir da obediência dos súditos em favor da segurança de todos, com caráter preventivo geral. Tendo em vista que não é adequado tratar o pensamento dos penalistas do período iluminista como pertencentes a uma única escola – dada a diversidade e originalidade do pensamento de cada autor – ao se observar seus pontos comuns, verifica-se que todos consideravam o crime como mera infração à lei, sem entrar no ponto de vista do autor ou sua realidade social. Tais pensadores partem da premissa de que o cometimento do crime é uma decisão soberana, livre e racional do infrator. A noção de homem universal e racionalmente livre permeia esse arcabouço jurídico-penal, marcado também pela visão utilitária da sanção (uma vez que à pena não era atribuído qualquer caráter correcional ou, em termos penais, preventivo especial) – sendo o delito entendido como uma abstração jurídico-formal. Segundo Baratta (2002), o delito era jurídico-penalmente definido como violação de um direito e também do pacto social. O delito, fruto do livre-arbítrio do indivíduo, e não de causas patológicas, tinha no elemento volitivo o vínculo com responsabilidade moral imposta às ações do criminoso. Sob a lógica da defesa social, o direito penal e a pena não eram considerados como meios para intervir no indivíduo, mas para defender a sociedade do crime, o que era realizado a partir de uma contramotivação à prática do delito, consubstanciada na ideia de prevenção geral. Os limites da cominação e da aplicação da sanção penal, assim como o exercício do poder punitivo do Estado, eram assinalados pela necessidade e utilidade da pena e pelo princípio da legalidade. volume 15 211 i encontro de internacionalização do conpedi Entre diversos discursos legitimadores do poder punitivo, passando pelos diferentes modelos – desde os mais autoritários (Hobbes) aos mais liberais (Locke) é em Montesquieu que o direito penal moderno vai deitar suas raízes. No Espírito das Leis, de 1748, Montesquieu trabalha a ideia de harmonia social e liberdade política e econômica dos indivíduos através de um equilíbrio que permita a aceitação das diferentes situações sociais, reduzindo, assim, a violência, sem recorrer à própria violência. Embora sua obra contenha aspectos sociológicos, o maior desiderato de Montesquieu é político, num esforço para construir bases para uma sociedade que – sob o império das leis, dos direitos e garantias – teria como se defender da tirania e do sofrimento (encravado na ideia de pena desde Aristóteles19). No seu conceito de república, promove a retomada do conceito clássico de virtude, dotando-o, porém, de uma versão mais liberal: a virtude política. A virtude é concebida como amor à pátria, o mesmo que amor à igualdade. Essa virtude republicana que faria mover a monarquia. A república deveria ser composta por homens de bem (livro terceiro), o qual não precisa ser cristão, mas sim político: ama as leis, seu país e age por amor a tais leis. Numa franca rejeição aos dogmas religiosos, Montesquieu revela um jusnaturalismo que concebe direitos naturais anteriores à formação das sociedades. Para combater a inclinação do estado de guerra, que emerge da saída dos homens do estado de natureza quando das relações em sociedade, são necessárias leis positivas de modo a regular as condutas e estabelecer limites ao poder em face dos cidadãos. No livro sexto da obra em tela, o autor trata das leis civis e criminais, destacando nestas o estabelecimento das penas. A severidade das punições, a ideia de proporcionalidade, defesa social e críticas à tortura dão a tônica do discurso de Montesquieu sobre o direito penal: A severidade das penas convém melhor ao governo despótico, cujo príncipe é o terror, do que à monarquia ou à república, as quais têm por princípio a honra e a virtude. [...] um bom legislador dedicarse-á menos em punir os crimes que em preveni-los; aplicar-se-á 19 Aristóteles. Ética a Nicomano, Livro X. 212 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi mais em fortalecer os costumes que em infligir suplícios. [...] A experiência tem feito notar que, nos países em que as penas são mais brandas, o espírito do cidadão é atingido por elas, como também o é pelas leis severas. Quando algum inconveniente se dá em um Estado, um governo violento procura imediatamente corrigi-lo; e [...] estabelece uma pena cruel que detém o mal imediatamente. Todavia, assim, desgastam-se as bases do governo (MONTESQUIEU, 2007, p.96). A técnica legislativa de organização das leis penais e a graduação das penas, descritas no item XVI do mesmo título, aduz que crimes mais graves devem ter penas mais incisivas; os crimes devem ser organizados de acordo com seu potencial ofensivo, e são considerados mais graves os crimes que prejudicam mais a sociedade, os quais devem ser alvo de prevenção maior. As penas pecuniárias utilizadas entre os povos germânicos também foram objeto de reflexão de Montesquieu no item XVIII do mesmo livro sexto. O autor propõe que a imposição das penas pecuniárias varie conforme a fortuna do condenado, do contrário, seriam meramente simbólicas (o que até hoje suscita discussões em nossos tribunais). A obra de Montesquieu reclama a separação de poderes. No livro décimo primeiro o autor exprime sua teoria da separação dos poderes, propondo a subordinação dos juízes à lei. Tal medida visa garantir a segurança jurídica, de modo que o cidadão saiba se seu comportamento é ou não conforme a lei. Em meio à narrativa de episódios da república romana e de reis gregos, o autor discorre sobre seu conceito de liberdade, cuja palavra, conforme ele mesmo reconhece, é dotada de grande plurivocidade. Para ele, na democracia a liberdade é um conceito político, que não consiste em fazer aquilo que se quer, mas sim fazer o que se deve querer e não ser constrangido a fazer o que não se deve desejar. A noção de dever permeia, portanto, o ideal de liberdade. Tais deveres estão insculpidos nas leis, que conferem o direito de fazer o que elas lhe facultam, segundo sua vontade. A noção de legalidade pode ser aí percebida, bem como da necessidade de uma constituição para a efetiva limitação do poder: Para que não possa haver abuso de poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder contenha o poder. Uma constituição pode ser feita de tal forma, que ninguém será constrangido a volume 15 213 i encontro de internacionalização do conpedi praticar coisas que a lei não obriga, e a não fazer aquelas que a lei permite. Há em cada Estado três espécies de poder: o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes, e o poder executivo daquelas que dependem do direito civil. Pelo primeiro poder, o príncipe ou magistrado cria as leis [...]. Pelo segundo, determina a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, estabelece a segurança, previne as invasões. Pelo terceiro, pune os crimes ou julga as questões dos indivíduos (MONTESQUIEU, 2007, p. 164-167). Depreende-se, assim, que, no contexto liberal clássico, Montesquieu apresentou como característica das reivindicações políticas da burguesia a moderação e o desejo de imposição de limites ao Estado. Essas características configuram seu ideal de equilíbrio político com o modelo da Inglaterra à época. No que concerne ao pensamento criminológico, a obra de Montesquieu antecipa os critérios popularizados por Beccaria - autor que persegue em sua obra a ideia de liberdade por ele formulada. Em 1764 Beccaria publica em Milão o seu Dos delitos e das penas, no qual assenta – inspirado pelas ideias de Montesquieu e Rousseau - as quais muitas vezes apenas reproduz – as bases da reforma do direito penal vigente, escrevendo páginas corajosas, conforme Fragoso (2004, p.48), contra a tirania que vigorava à época. Já no parágrafo 1º da obra, o autor afirma que contra as desigualdades e abusos do poder somente boas leis poderiam impedir a tendência contínua de concentração de privilégios nas mãos de poucos e a reprodução da miséria. Chama atenção, também, para o fato de que as rupturas produzidas pelo ideário iluminista ainda estão muito longe de ter dissipado todos os preconceitos que alimentávamos. Não houve um que se erguesse, senão fracamente, contra a barbárie das penas que estão em uso em nossos tribunais. Não houve quem se ocupasse em reformar a irregularidade dos processos criminais, essa parte da legislação tão importante quando descurada em toda Europa. Raramente se procurou desarraigar, em seus fundamentos, as séries de erros acumulados desde há muitos séculos; e muito poucas pessoas procuraram reprimir, pela força das verdades imutáveis, os abusos de um poder ilimitado, e extirpar os exemplos bem comuns dessa fria atrocidade que os homens poderosos julgam ter direitos. Contudo, os dolorosos 214 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi gemidos do fraco, que é sacrificado à ignorância cruel e aos ricos covardes; os delitos não provados, ou em quiméricos; a aparência repugnante dos xadrezes e das masmorras, cujo horror é ainda aumentado pelo suplício mais insuportável para os desgraçados, que é a incerteza; tantos métodos odiosos, difundidos por toda parte, teriam por força que despertar a atenção dos filósofos, essa espécie de magistrados que orientam as opiniões humanas. (BECCARIA, 2008, p.16-17) Ao retomar as ideias contratualistas de Montesquieu, no parágrafo 3º de sua obra, traduzindo-as na noção de legalidade no âmbito penal, Beccaria assevera que apenas as leis podem indicar as penas de cada delito e que o direito de estabelecer leis penais não pode ser senão da pessoa do legislador, que representa toda a sociedade ligada por um contrato social. Chama atenção a vedação para decisões judiciais mais gravosas que as leis defendendo que o magistrado, que é parte da sociedade, não pode com justiça aplicar a outro partícipe dessa sociedade uma pena que não esteja estabelecida em lei; e a partir do momento em que o juiz se faz mais severo que a lei, ele se torna injusto, pois aumenta um novo castigo ao que já está prefixado. (BECCARIA, 2008, p. 20). Ao falar sobre a necessidade de divisão de poderes para evitar injustiças, Beccaria defende que o soberano, por representar a sociedade, tem competência para fazer as leis, mas não para julgá-las, o que deve ser feito por um magistrado que, dotado de imparcialidade, decidirá sem apelo se houve ou não a ocorrência do crime previsto em lei. Já no parágrafo 4º, critica o processo de interpretação das leis por parte dos juízes, sintetizando a necessidade de vinculação do juiz à legalidade, de modo a evitar inseguranças. Segundo Beccaria, não há nada mais perigoso do que o axioma comum, de que é necessário consultar o espírito da lei, pois isso implicaria a quebra de todos os diques e abandonaria as leis à torrente de opiniões. Somente com leis fixas e literais, cabendo ao magistrado a missão de examinar os atos dos cidadãos, não se verão mais cidadãos submetidos ao poder de uma multidão de ínfimos tiranos, tanto mais intoleráveis quando maior a desigualdade social entre eles. A expressa vinculação à lei advém da desconfiança dos opositores aos desmandos do poder, entendendo que somente com leis cumpridas à risca o cidadão pode volume 15 215 i encontro de internacionalização do conpedi calcular exatamente os inconvenientes de uma ação reprovável o que, com base na escolha racional, seria útil à sociedade, pois esse conhecimento poderá fazer com que ele se desvie do crime, funcionando, assim, como uma contramotivação. A pena é vista, portanto, como instrumento de defesa social, fundada na utilidade, e o crime como quebra da lógica do contrato social. Toda a obra de Beccaria expressa a confluência da filosofia politica do Iluminismo europeu, além de fornecer pressupostos para uma concepção pragmática do delito e da pena baseada no principio utilitarista da maior felicidade para o maior número de pessoas, à luz do contrato social e da divisão de poderes preconizados por Montesquieu. Com base no referido princípio utilitarista, Beccaria defende que a medida da pena seja o mínimo sacrifício necessário da liberdade individual que ela implica. Daí retira-se a relação entre pena e liberdade, pois, segundo o autor, somente a necessidade obriga os homens a cederem uma parcela de sua liberdade; disso advém que cada qual apenas concorda em pôr em depósito comum a menor porção dela possível, ou seja, exatamente o que era necessário, de modo que as penas que vão além do necessário são injustas por natureza. Revela notar o caráter arrojado do autor que em uma passagem do parágrafo 4º denuncia a falta de comprometimento dos agentes de poder para com as mudanças almejadas. Vejamos: Esses princípios irão, sem dúvida, desagradar aos déspotas subalternos que se arrogaram o direito de esmagar os seus inferiores como o peso da tirania que suportam. Eu poderia temer tudo, se tais tiranos se lembrassem de ler o meu livro e compreendê-lo; mas os tiranos não lêem. (BECCARIA, 2008, p. 24) Para Beccaria, o contrato social estaria na base da autoridade do Estado e das leis, derivando sua função da necessidade de defender a coexistência dos interesses individualizados no estado civil, constituindo, assim, o limite lógico de todo sacrifício legítimo da liberdade individual mediante a ação do Estado, em especial no exercício do poder punitivo. Como ensina a professora Vera, foi o Marquês de Beccaria que produziu a primeira exposição global e articulada entre política criminal, direito penal e processo 216 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi penal em seu livro Dos delitos e das penas. Tendo o contratualismo como base ideológica, e o contrato social e o utilitarismo como pressupostos, Beccaria faz uma defesa da coexistência do Estado sem conflito, presente na maneira de pensar de Hobbes, Locke e Rousseau, com todas as suas nuances. A pena, aqui, se contrapõe ao sacrifício da liberdade. O juiz deverá subordinar-se à lei, e não ao soberano. A ideia de dano social e de defesa social (incólumes até os dias de hoje) são elementos fundamentais dessa teoria. (BATISTA, 2011, p.39) Merece destaque o parágrafo XII, no qual Beccaria discorre sobre os absurdos da tortura, passagens tão vívidas que – sem prejuízo de seu valor argumentativo ou de protesto – podem ser manejadas atualmente ante aos abusos nos quais o poder punitivo continua a incorrer. Há também a exaltação da ideia de não culpabilidade ou presunção da inocência, numa denúncia à reação social ao delito à época – questão que continua tão atual: É uma barbárie consagrada pelo uso da maioria dos governantes aplicar a tortura a um acusado enquanto se faz o processo, seja para que ele confesse a autoria do crime, seja para esclarecer as contradições em que tenha caído, seja para descobrir cúmplices. [...] Um homem não pode ser considerado culpado antes da sentença do juiz; e a sociedade apenas lhe pode retirar a proteção pública depois que seja decidido que ele tenha violado as normas de tal proteção que lhe foi dada. (BECCARIA, 2008, p.37) Ao longo da obra, o autor segue no seu brado combativo, denunciando a desproporcionalidade das penas; os erros e injustiças das legislações; a necessidade de clareza das leis e dos comandos normativos; a inflação penal; a necessidade de formação para a liberdade como medida preventiva do cometimento de crimes e, finalmente, a necessidade de que as penas sejam curtas, públicas e adequadas. Se na formação dos juristas da atualidade, ao invés de compêndios de direito penal descomplicado fosse exigida a leitura deste pequeno, e ao mesmo tempo, tão rico livro de Beccaria, nossos tribunais funcionariam, certamente, como um caixa de ressonância dos pleitos inquestionáveis do pensador milanês que, por conta de suas ideias, foi taxado de fanático, impostor e, como não poderia deixar de ser, perigoso. volume 15 217 i encontro de internacionalização do conpedi Outro personagem que, assim como Beccaria, foi tido como perigoso foi Jean-Paul Marat, memorável revolucionário francês que em seu Plano de Legislação Criminal (1779) oferece uma crítica à ordem vigente à época e lança, como alerta Salo de Carvalho, algumas sementes do socialismo utópico. Marat estudou medicina em Paris e Bordéus, terminando o curso na Inglaterra, onde doutorou-se em 1775. De volta à França, foi nomeado médico da guarda pessoal do conde d’Artois. Em razão de suas ideias, foi considerado subversivo pelo governo. Em 1789, na conjuntura revolucionária da França, fundou o jornal L’Ami du Peuple, tornando-se conhecido como defensor das causas populares. Em razão de sua insurgência contra o governo e sua vinculação ao partido jacobino, Marat foi acusado e condenado por vários crimes. Como visto acima, o contratualismo foi o pensamento que serviu à burguesia industrial em sua luta crescente contra a nobreza hegemônica. Mas nem todos os pensadores do período, contudo, condunaram-se a tais premissas, entre os quais merece destaque Marat, personagem pouco citado do penalismo ilustrado, que escreveu sua obra formulando uma crítica revolucionária à pena. Marat aceitava a tese de que os homens se reuniam em sociedade para garantir seus direitos, mas reconhecia que a primitiva igualdade social propugnada era negada no plano dos fatos, mediante a violência que os homens exerciam uns sobre os outros. Numa crítica intestina à sociedade da época, o autor denuncia a famigerada aliança da alta burguesia com os agentes de poder do Estado, destacando a ausência de contenção à concentração de renda nas mãos de famílias abastadas e fortunas levantadas à custa de exploração dos mais fracos. Antecipando questões até hoje não respondidas pela teoria do delito (sob o ponto de vista da teoria crítica), Marat questionava a legitimidade da punição em relação aos pobres (compreendidos por Marat como em estado de natureza) e também a necessidade de os mesmos respeitarem as leis. Esse homem natural, cuja direitos precedem às leis, não pode estar por elas dominado, sendo livre para resistir ou ceder. Entende que o homem seria mais forte, sem amarras, totalmente livre, pois do contrário, estaria em situação de escravidão e dominação, tornandose fraco por estar dependente. 218 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi Herdeiro do espírito revolucionário que se insurgiu em meio às manipulações políticas e ideológicas, Marat – cujo pensamento não foi colonizado – sofreu grande influência do pensamento rousseauneano e, embora sua obra não tenha maiores reflexões jurídicas ou filosóficas, representa um esforço louvável de deslegitimação do poder punitivo. Como é comum às vozes dissonantes, Jean-Paul foi violentamente silenciado, sendo assassinado a punhaladas pelo girondino Charlotte Corday na banheira de sua casa. Sua morte, retratada por Jacques-Louis David em 1793, tornou-se um dos marcos iconográficos mais emblemáticos do contexto da Revolução Francesa. Outro nome que merece destaque é Giandomenico Romagnosi que em 1791 publicou na Itália o seu Genesi del Diritto Penale, obra na qual fundamenta a pena como um direito de defesa da sociedade em face do comportamento criminoso. Assim compreendida, a pena figura como um “contraestímulo” à prática do crime. A partir da ideia de coação-psicológica pode-se aventar certa entre a fundamentação da pena em Romagnosi com as formulações de Feuerbach, como se verá à frente (ZAFFARONI, 2008, p.525). Vista como “contraestímulo” e não mera retribuição do crime já cometido, a pena perderia seu sentido se, depois do primeiro delito, existisse uma certeza moral de que não ocorreria nenhum outro, e a sociedade não teria direito algum de punir o delinquente. Tal pressuposto coloca em xeque a noção de prevenção geral levado a efeito na atualidade, além de oferecer um contraponto que denota o caráter limitado do direito penal em face da conflitividade social. A afirmação se faz sentir mais plenamente pela consideração de que, conforme Baratta (2002), para Romagnosi a pena não seria o único meio de defesa social, a qual também deveria ser promovida através do melhoramento e desenvolvimento das condições de vida social. Segundo Romagnosi, os homens devem formar um modelo de sociedade de modo que tenham direitos iguais e que nenhum deles possa, em absoluto, pretender maior porção de segurança, bem-estar e deferência, posto que essa é a necessária convergência das ações de cada indivíduo para o bem-estar de todos (parágrafos 197, 199, 201). O caráter liberal e utilitário é percebido a partir das ponderações de que as leis penais seriam legítimas quando obrigadas pela necessidade, como meio de dirigir volume 15 219 i encontro de internacionalização do conpedi as ações dos homens para a realização da ordem moral racional e, portanto, ao seu bem-estar. Conforme Baratta (2002, p.34), para Romagnosi, a verdadeira independência natural do homem pode ser entendida como superação natural da dependência humana da natureza através do estado social, que permite aos homens conservar mais adequadamente a própria existência e realizar a própria racionalidade. Assim como Romagnosi, Anselm Von Feuerbach trabalhou a ideia de pena como “coação psicológica”, sendo esta medida preventiva e não retributiva. Autor do Código Penal Bávaro em 1813, Feuerbach influenciou fortemente os códigos penais do seu tempo. O referido código previa, em parágrafo 1º, o princípio da legalidade, de acordo com a fórmula nulla poena sine lege, segundo a qual todo aquele que cometesse uma ação ou omissão não permitida, para a qual uma lei cominou um determinado mal, estaria sujeito a este mal legal como sua pena. Em seu Tratado de Direito Penal, publicado em 1801 na Alemanha, o autor, mantendo a separação jusnaturalista entre direito e moral, apresenta a primeira definição moderna de crime: uma ação antijurídica, cominada em uma lei penal. Em sua obra Anti-Hobbes (1797), Feuerbach se distancia de Hobbes e Kant, aproximando-se das concepções lockeanas, sob o argumento de que o ser humano não só tem direitos que antecedem o contrato, como também, mediante sua razão, ele sabe ou pode saber quais são esses direitos. Partindo da ideia de direito natural pré-contratual, trabalhou a diferença entre a razão prático-moral (que permitia conhecer o dever moral) e a razão prático-jurídica (que pretendia conhecer os direitos). O princípio da reserva legal foi desenvolvido de maneira criteriosa através dos postulados Nulla poena sine lege; Nulla poena sine crimine; Nullum crimen sine poena legali, os quais permanecessem vigorosos no Ocidente até os nossos dias. Conforme assinala Anitua (2008), sua intenção de aprofundar as diferenças entre moral e direito visava à fundamentação de um fim prático à pena, tendo cumprido este desiderato a partir da ideia de “coação-psicológica”, embora não tenha conseguido resolver as contradições de seu pensamento. Outra grande contribuição para a formulação do conceito de crime foi oferecida por Carrara, que em seu Programa del Corso di Diritto Criminale, de 220 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi 1859, concebe o crime como um ente jurídico e defende que a responsabilidade penal seja fundada no livre-arbítrio. A pena, assim, deveria ser tomada como retribuição jurídica que, também, possibilita o restabelecimento da ordem externa violada pelo delito. Utilizando o método lógico-abstrato no estudo do direito penal, Carrara reconhece, ao analisar o conceito de crime, elementos de força física e força moral, o que chamaríamos hoje de elemento objetivo e subjetivo. Evitando deter-se nas distinções e aproximações entre direito e moral, mas, ainda assim, fundamentando-se no direito natural, considera que – 1) em abstrato, o direito de punir seria de origem formulada por Deus, ligado à ideia de justiça; mas – 2) no plano prático seu fundamento é de defesa social. Assim, tem-se o direito de punir fundado no principio da justiça e limitado pela necessidade. Com absoluto rigor lógico, o penalista italiano elaborou, portanto, três postulados para a racionalização do delito e da pena: 1) o crime é um ente jurídico, logo o crime é a violação do direito. Sendo assim, o crime é tão somente uma infração à lei – a qual é promulgada para proteger os cidadãos; 2)a responsabilidade penal é fundada no livre arbítrio (é indispensável uma vontade livre e consciente orientando a realização da conduta, a qual constitui seu elemento subjetivo); 3)a pena é a retribuição jurídica e restabelecimento da ordem externa violada pelo delito (função preventivo geral). Para Baratta (2002), a importância de Carrara se deve ao fato de haver posto a base lógica para uma construção jurídica e coerente do sistema penal. No plano teórico, Carrara trabalha com a verdade, a qual é dada pela natureza das coisas; no plano prático, trabalha com o fundamento de autoridade da lei positiva. Nesse dualismo reside um modelo integrado do direito penal, o qual visa apreender uma verdade superior e independente da contingente autoridade da lei positiva. Dessa forma, o delito não é percebido como mero dano social, mas como fato juridicamente qualificado como violação do direito. volume 15 221 i encontro de internacionalização do conpedi 5.conclusões Como ensina o professor Salo de Carvalho, as teorias humanistas propugnadas pelo discurso liberal clássico fornecerão as bases para a estrutura principiológica do direito e do processo penal moderno, que faz emergir, no plano formal, um poder punitivo dotado de autonomia e imparcialidade, acomodando o direito e processo penal em um programa político-criminal minimalista. O que o penalismo ilustrado não enfrentou foi com o fato de que nas racionalizações de viés humanista ofereceram novo aparato legitimador para o exercício do poder punitivo, o qual vai se espraiar assustadoramente no século seguinte. Para Nilo Batista, essa é a contradição do liberalismo penal fundacional que propiciou a brecha por onde penetrou todo o autoritarismo que o vem demolindo desde então. Daí a importância das lições de Fragoso (2004, p.19) no sentido de alertar os penalistas, entusiastas da dogmática, que seguir buscando novas e mais refletidas racionalizações legitimantes para o poder punitivo pode levar à perda dos primeiros esforços à sua limitação no século XVIII. Porque quando a dogmática e a atividade jurídica que perdem contato com a realidade social conduzem o direito, como no dizer de Bettiol, ao “esplêndido isolamento”. Ao penalista é essencial, portanto, uma postura crítica perante o sistema vigente, para continuar a marcha das rupturas que uma política criminal progressista implantou no marco inicial do penalismo do século XVIII. Os discursos ora produzidos em matéria penal, conforme denuncia Zaffaroni (2007), têm revelado uma notória transformação regressiva no campo da chamada política criminal ou, mais precisamente, da política penal, pois do debate entre políticas abolicionistas e reducionistas passou-se, quase sem solução de continuidade, ao debate da expansão do poder punitivo. Para o jurista argentino, tal movimento engendra um avanço contra o penalismo ilustrado ou de garantias, consistindo na antecipação das barreiras de punição (até os atos preparatórios); desproporção das consequências jurídicas (penas como medidas de contenção sem proporção com a lesão realmente inferida); debilitação das garantias processuais e identificação dos destinatários mediante um forte movimento para o direito penal de autor. 222 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi A política criminal que marca o nosso tempo é contrária à lógica sobre a qual o direito penal moderno repousa. A função do direito penal (dogmática penal) em todo Estado de direito deve ser a redução e a contenção do poder punitivo, sendo – neste sentido – um apêndice indispensável do direito constitucional do Estado de direito. Dada essa função política, o direito penal nunca pode ser neutro ou despolitizado, devendo buscar sempre a contenção das pulsões absolutistas, num esforço para aperfeiçoar as garantias dos cidadãos como limites redutores das pulsões do Estado de polícia. Eis nossa tarefa. Eis nossa inquietação. Pretender contribuir para o penalismo do nosso tempo implica ter a coragem de sairmos de nossos gabinetes e larçarmonos nos embates sociais. Mister nada tranquilo para os que ainda dormem o sono de cúmplices. Mas, como não nos deixa escapar o inquieto Zaffaroni, nossos próceres não tiveram vidas tranquilas e, justamente por isso, Spee correu o risco de acabar na fogueira, Beccaria publicou seu livro anônimo, Pagano foi fuzilado, Marat morreu apunhalado na banheira, Rossi esfaqueado, circulou a lenda de que Feuerbach foi morto por envenenamento, Romagnosi foi processado, Camignani condenado ao desterro, Mello Freire denunciado à Inquisição, Lardizabal defenestrado e ignorado. Nada disso foi gratuito, mas deveu-se ao fato de que nenhum deles se curvou ao Zeitgeist (ZAFFARONI, 2007, p.176). Sabemos que mudanças radicais e recuo do poder punitivo não são tarefas do direito penal, dadas as limitações deste na mecânica de poder na atualidade. O que compete ao direito penal é tentar promover uma passagem do poder punitivo do modo menos irracional possível, na tentativa de frear a imposição de dores e sofrimentos aos seus destinatários tão bem escolhidos. 6.referências ANITUA, G, I. (2008), História dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan. ARISTÓTELES. (2009), Ética a Nicômano. 3 ed. Tradução: Edson Bini. Bauru/ SP: Edipro. volume 15 223 i encontro de internacionalização do conpedi BARATA, A. (2002), Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan. BATISTA, N. (1996), Introdução crítica ao Direito Penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan. ______. (2002), Matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan. ______. (2004), Novas tendências do direito penal – artigos conferências e pareceres. Rio de Janeiro: Revan. ______; (2006), ZAFFARONI, E.R.; ALAGIA, A.; SLOKAR,A. Direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan. BATISTA, V.M. (2003), O medo na cidade do Rio de Janeiro. Dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan. ______. (2011), Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan. ______. 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Rio de Janeiro: Revan. 226 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi política no criminal y proceso penal: la intersección a partir de las falsas memorias del testigo y su posible impacto carcelario Gustavo Noronha de Ávila1 Érika Mendes de Carvalho2 Resumen La prueba testimonial es una de las más utilizadas en el ámbito procesal. Sin embargo, las entrevistas pueden formar un escenario sugestionable al testigo, que puede redundar en falsas memorias. Falsas memorias consisten en recuerdos de situaciones que, en verdad, nunca han ocurrido. Pueden surgir de dos formas: espontáneamente o a través de una sugerencia externa. El artículo pretende discutir las vinculaciones de esta situación procesal penal con las políticas criminales contemporáneas. Para eso, nos valdremos de un referencial teórico crítico para pensar en formas efectivas de reducir la posibilidad de falsas memorias. Se hace necesario discutir el propio catálogo de tipos penales disponibles, tal vez, la principal manera de alejar posibles contaminaciones a resultaren en privaciones de libertad. Palabras clave Falsas memorias; Prueba testimonial; Política criminal; Sugestionabilidad. Abstract Eyewitness evidence is one of the most used in procedural framework. Moreover, the witness interviews may suffer from suggestibilities, which can 1 Doctor en Ciencias Criminales por la Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Máster en Ciencias Criminales por la Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Profesor de Derecho Procesal Penal del Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter)/ Laureate International Universities. Profesor de Criminología de la Especialización de Derecho Penal y Derecho Procesal Penal del UniRitter/IBCCrim. Profesor de Criminología de la Especialización en Ciencias Penales de la Universidade Estadual de Maringá (UEM). 2 Doctora en Derecho Penal por la Universidad de Zaragoza. Investigadora de la Fundación Araucária de Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Estado do Paraná. Profesora de Derecho Penal de la Universidade Estadual de Maringá (UEM). volume 15 227 i encontro de internacionalização do conpedi result in false memories. False memories consist on the remembrance of facts that never happened. It may occur spontaneously or by external suggestion. The paper discusses the linkages of this criminal procedural situation with contemporary criminal policy. To do so, it is used a critical framework as a manner of thinking about effective ways to reduce the possibility of false memories. It is necessary to discuss the existing catalog of crimes itself, perhaps the main way to move away from possible contaminations that may result in deprivations of liberty. Key words False memories; Eyewitness evidence; Criminal policy; Suggestibility. 1.introducción En una sociedad compleja, acelerada, veloz y de valores indeterminados, promover garantías es un desafío cada vez más importante. Aunque sepamos de sus limitaciones3, siguen como un instrumento democrático fundamental en la defensa de la libertad. La sociedad brasileña, en general, clama por más penas, más puniciones y más Estado. Paradoxalmente, es una sociedad que no quiere prisiones cerca de sus casas. Del mismo modo, cree que ‘nadie es detenido’, aunque nuestros cárceles estén colmados de gente. En el curso de un proceso penal formal e de su (siempre) frustrado intento de reconstrucción vamos a tener en la excesiva confianza en la memoria un problema crucial. Sabemos que la fenomenología4 identifica la importancia de los referenciales en el proceso de descripción, pero del mismo modo sabemos que estas diferencias las normas no las consiguen captar, puesto que su contenido es invariablemente universal. Las sugestionabilidades y sus posibles resultantes, las falsas memorias, constituyen uno de los grandes problemas del proceso de criminalización. Este 3 Véase ÁVILA, Gustavo Noronha de. Falsas Memórias e Sistema Penal: A Prova Testemunhal em Xeque. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. 4 V. MERLEAU-PONTY, Maurice. A fenomenologia da percepção. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 228 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi aspecto encuentra su punto neurálgico en la prueba testimonial. Habitualmente, se trabaja con propuestas de reducción de daños para atenuar posibles efectos negativos en la libertad del sujeto pasivo de la investigación o reo. En estas breves líneas, discutiremos las posibilidades de pensar más allá de las medidas reformistas procesales penales, vinculando la cuestión también a las políticas criminales. ¿Hasta qué punto una sociedad punitiva influencia en la propulsión de sugestionabilidades? ¿Hay posibilidad de pensar en políticas no criminales? ¿Cuáles serían los efectos de ellas para las sugestionabilidades? Son algunas de las cuestiones que, lejos de la pretensión arrogante de agotar, pretenderemos abordar y problematizar con nuestro lector. 2.las falsas memorias como problema del proceso penal Históricamente5, los juristas se preocupan con la cuestión de la memoria. Como el testigo es una prueba fundamental para el gran catálogo de delitos que hay, su estudio presenta una relevancia singular. Probar es (intentar) llegar a la verdad, siempre incompleta, necesariamente contingente y que depende de referencias (tiempo, espacio y lugar). Todo ese espectro será fundamental para comprender el fenómeno de las falsas memorias. En los procesos que intentan la (re)construcción del hecho criminoso pretérito, pueden existir artimañas del cerebro, informaciones almacenadas como verdaderas, o inducciones de los entrevistadores, de otras personas y/o de los medios de comunicación que, sin embargo, no condicen con la realidad. Estas son las llamadas falsas memorias, proceso que puede ser agravado, cuando son usadas técnicas por repetición, como las utilizadas de forma notoria en el ámbito criminal. El cerebro reúne percepciones por la interacción simultánea de conceptos enteros, de imágenes enteras. En lugar de usar la lógica predicativa de un ordenador, de un chip, el cerebro es un procesador analógico, lo que significa, esencialmente, 5 V. GORPHE, François. La crítica del testimonio. 5 ed. Madrid: Reus, 1971. volume 15 229 i encontro de internacionalização do conpedi que él funciona por analogía y metáfora. Relaciona conceptos completos unos con los otros y trata de establecer las similitudes, diferenciaciones o tipos de relaciones entre ellos. No hace el montaje de pensamientos y sentimientos a partir de pequeños fragmentos de datos6. Nuestra memoria trabaja con tres procesos básicos: adquisición, consolidación y evocación7. El primero trata de la forma como aprehendemos determinado hecho/situación. Seguramente, nuestros esquemas cognitivos son necesarios para codificar a un evento y después pasar a la siguiente fase. Falsas memorias consisten en recuerdos de situaciones que, en verdad, nunca han ocurrido. La interpretación equivocada de algo que se sucedió puede ocasionar la formación de falsas memorias. Aunque no presenten una experiencia directa, las falsas memorias representan la verdad como los individuos las recuerdan8. Pueden surgir de dos formas: espontáneamente o a través de una sugerencia externa. Alfred Binet condujo los primeros estudios específicos sobre falsas memorias. Ellos versaban sobre las características de sugestionabilidad de la memoria, o sea, la incorporación y el recuerdo de informaciones falsas, sean ellas de origen interna o externa, que el individuo se acuerda como siendo verdaderas9. Con el fin de ilustrar tal situación, interesante citarse el experimento realizado por Walter Lippmann, en el año de 1922, en el no Congreso de Psicología en Gottingen, hecho, por lo tanto, bajo la mirada de personas entrenadas y acostumbradas a la observación: Desde un lugar cercano al recinto donde ocurría el congreso, había una fiesta, un baile de máscaras. Súbitamente, una puerta del salón se abre abruptamente y un payaso entra corriendo, perseguido, locamente, por un afro descendiente con un arma 6 RATHEY, John J. O cérebro – um guia para o usuário. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p. 13. 7 Véase TULVING, E. Elements of episodic memory. Boston: Oxford Clarendon Press, 1983. 8 BARBOSA, Cláudia. Estudo experimental sobre emoção e falsas memórias. Porto Alegre: PUCRS, 2002. Dissertação (Mestrado em Psicologia), Faculdade de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2002, p. 26. 9 BINET, A. La suggestibilitie. Paris: Scheicher, 1900, apud NEUFELD, Carmem Beatriz; BRUST, Priscila Goergen; STEIN, Lilian Milnitsky. Compreendendo o fenômeno das falsas memórias. In: STEIN, Lilian Milnitsky. Falsas memórias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010. 230 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi en la mano. Ellos se paran en el medio del salón peleándose. El payaso se cae. El afro descendiente salga sobre él y le dispara. Ambos salen rápidamente del salón. Todo el incidente dura más o menos 20 segundos. El presidente del congreso pide a los presentes que sean testigos del hecho, una vez que todo seguramente iba a ser objeto de investigación judicial y testigos iban a ser necesarios. Cuarenta testimonios le llegan a las manos. Sólo uno tenía menos de un 20% de errores en relación a los hechos. Catorce tenían entre un 20 y un 40 % de errores, doce tenían de 40 a 50 % de errores y trece tenían más de un 50 % de errores. En 24 de los reports, 10 % de los hechos relatados eran pura invención. Sobre ¼ de los testigos eran falsos. No hace falta decir que toda la escena fue planeada como un experimento. Toda la escena fue fotografiada. De los falsos reports, 10 podrían clasificarse como leyendas o cuentos, 24 podrían considerarse como algo fantasiosos y sólo 6 de ellos tenían algún valor probatorio10. Falsas memorias de las más diversas se han implementado en estudios científicos. Desde la introducción de aliens11, besos en sapos12 hasta incluso una petición de mano hecha por una máquina de venta de gaseosas de Pepsi13, no parece haber límites para las invenciones. Los estudios demuestran la necesidad de comprender mejor el problema y, para ello, comprender cómo funciona el almacenamiento de recuerdos, muchas veces traumáticos, como son aquellos en los que hay violencia. En estos, los testigos son fundamentales para entender el hecho y sus circunstancias. Necesario tenerse en cuenta el hecho del experimento haber contado con participantes entrenados a la observación que, cuando puestos en situación de relatar el evento, tienden a presentar informaciones diversas/equivocadas en relación al ocurrido. 10 LIPPMANN, Walter. Public opinion. 50. ed. New Jersey: MacMillan, 1991, p. 82. 11 V. CLARK, Steven E.; LOFTUS, Elizabeth F. The Construction of Space Alien Abduction Memories. Psychiological Inquiry, v. 7, n. 2, p. 140-143, 1996. 12 Véase LOFTUS, Elizabeth F. Memory faults and fixes. Issues, p. 41-50, 2002. 13 V. SEAMON, John G.; PHILBIN, Morgan M.; HARRISON, Liza G. Do you remember proposing marriage to the Pepsi machine? False recollections from a campus walk. Psychonomic bulletin & review, v. 13, n. 5, p. 752-756, 2006. volume 15 231 i encontro de internacionalização do conpedi Llamamos de proceso “todo lo que se refiere a la prueba”14 y, etimológicamente, esta palabra evoca un examen o una selección de algo. Los procesos son “máquinas retrospectivas”, así, basados en varias hipótesis históricas, propuestas por las partes. Es necesario, entonces, verificarlas. Las pruebas son la manera por la cual realizaremos esa tarea15. Para Taruffo16, la noción de prueba se encuentra en la fundamentación de esta concepción. La dificultad de evaluarse la prueba y su voluntad de verdad17, especialmente a través del testigo, ya eran preocupaciones de Carnelutti. Dice el autor que “las pruebas son, por lo tanto, los objetos con los cuales el juez obtiene las experiencias que le sirven para juzgar”18. Más allá de la concepción narrativa, ya se había percibido la preocupación de que el testimonio constituyera mucho más de que describir: constituía, sí, una verdadera manera de transmitir una experiencia19. Como forma de trascender su objetificación, se haría necesario también entender menos el contenido en comparación al que podría traerse al proceso añadido a su vivencia y como esta puede influenciar su forma de interpretar el mundo. La posibilidad de ocurrencia de las falsas memorias también puede actuar de forma precaucional, impidiendo al magistrado que imponga condenas, como corolario de los principios del in dubio pro reo y estado de inocencia. La calidad de la prueba puede estar comprometida también cuando del transcurso excesivo entre la recopilación de las declaraciones de policiales y los testimonios judiciales, favoreciendo la producción de memorias falsificadas. Fue lo que reconoció el Juez de Segunda Instancia del Tribunal de Justicia, Estado do Rio Grande do Sul, Gaspar Marques Batista: “Parte de la prueba oral tomada en juicio, cinco años después, seguramente se ha comprometido por la acción 14 CORDERO, Franco. Procedimiento penal. Tomo II. Bogotá: Themis, 2000, p. 4. 15 En un sentido extrajurídico, “sería todo lo que nos convence de la existencia de un hecho, de alguna cosa o de algún ser, sea del presente, sea del pasado” (TOVO, Paulo Cláudio. Estudos de direito processual penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, v. 2, p. 202). 16 TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos. 3. ed. Madrid: Trotta, 2009, p. 327-328. 17 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 2003, p. 142. 18 CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o processo penal. Campinas: Bookseller, 2004, v. 1, p. 275. 19 Ibidem, p. 289. 232 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi del tiempo, que contribuye para el olvido de los hechos e incluso para las falsas memorias”20. Sobre el testigo y su memoria del evento, los efectos del tiempo son nefastos. El intervalo entre la declaración en investigación policial y el interrogatorio, como testigo en el proceso, puede tardar años. Así, “la correspondencia entre lo que el testigo vio, el imagen que registró en su consciencia y lo que va a narrar al juez sufren fuerte influencia del tiempo”21. Mirar, a través de los ojos del testigo: he aquí uno de los desafíos comunes al juez durante el proceso penal. A pesar de esta dificultad y de todas las posibles “impurezas”, advenidas de este tipo de prueba, no es posible prescindir de su existencia22. Esto porque hay crímenes, especialmente los materiales, que difícilmente podrán ser analizados de otra forma que no por el testigo. El homicidio es un claro ejemplo de esta situación. Pero, ¿cómo el juez podría utilizarse de esta experiencia del testigo? La respuesta, inicialmente, nos parece bastante compleja. La simple relación causal, base do cartesianismo, será absolutamente insuficiente para contornar la cuestión. El Derecho es heredero directo de la tradición racionalista, que reduce el conocimiento al mundo binario de la validad/invalidad. De este modo, la acción será procedente/improcedente, una medida legal/ilegal (constitucional/inconstitucional). Con base en la naturalizada igualdad, el Derecho intencionalmente intenta forjar un mundo para allá de las impurezas, muy lejos de la verdad, ya que el falso sólo sirve de modo a confirmarla. Respecto a la utopía del “mundo perfecto”, afirma Gauer que “la modernidad ha disciplinado no solo a los hombres, sino también a todas las cosas que puedan estar fuera de su sitio”23. Todas las impurezas deberían ser higienizadas, y la razón 20RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Apelação criminal 70020430146/RS. Juzgado en: 29/11/2008. Diário de Justiça do Rio Grande do Sul, em 08/11/2007. Acesso em: 15 nov. 2008. Disponible en: <http://www.tj.rs.gov.br/site_php/consulta/exibe_documento<. php?ano=2007&codigo=1382594>. Aceso en: 3 fev. 2014. 21 THUMS, Gilberto. Sistemas processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 51. 22 CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o processo penal. Campinas: Bookseller, 2004, v. 1, p. 292. 23 GAUER, Ruth Maria Chittó. Da diferença perigosa ao perigo da igualdade: reflexões em torno do paradoxo moderno. Civitas, v. 5, n. 2, p. 401, 2005. volume 15 233 i encontro de internacionalização do conpedi era la forma de filtrar, binariamente, los conocimientos válidos e inválidos. Así siendo, “el mundo perfecto, la utopía de los iluministas, sería totalmente limpio e idéntico a él mismo, transparente y libre de contaminaciones”24. Al presenciar el ocurrido, seguramente, el testigo lo interpreta, de acuerdo con su propia vivencia que, en la mayoría de las veces, no es la misma del juez. Alexandre Morais da Rosa nos plantea una posibilidad interesante: “La mejor manera de juzgar un proceso penal es imaginar el guión sin el acto violento o criminalizado”25. Luego, hace falta un cierto alejamiento para conseguirlo26. Aquí lo dejamos bastante evidente que no es el caso de sólo evaluar las actuaciones del organismo acusatorio y de la magistratura, pero, necesariamente, de todos ellos que tendrán participación activa en la (re)construcción del hecho pasado. Por lo tanto, procesos que generen falsas memorias no dependerán solamente de quien tiene la función de acusar y a quien juzga, sino también, de aquellos defensores que, en contradictorio, se valdrán de las mejores estrategias para evitar distorsiones. El sistema de oír a los testigos, adoptado en la legislación brasileña, a partir de la reforma procesal de 2008, es semejante al cross examination (o examen directo y cruzado27) norteamericano, ya que, en ambos, la acusación y la defensa hacen sus preguntas directamente a los testigos. En esta forma, las partes se encuentran sujetadas al contrainterrogatorio de su oponente. Sin embargo, existe importante diferencia: el proceso penal brasileño no ha limitado la actuación del juez, en el sentido de sólo presidir el acto, sino también le ha permitido a él la posibilidad de complementar la inquisición acerca de los puntos no aclarados28. 24 Ibidem, p. 401. 25 MORAIS DA ROSA, Alexandre. Quando se fala de juiz no novo CPP de que juiz se fala? In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. O novo processo penal à luz da Constituição (Análise crítica do Projeto de Lei nº. 156/2009, do Senado Federal). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 128. 26 Ibidem, p. 128. 27 GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Provas. In: MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis (Coord.). As reformas no processo penal: as novas Leis de 2008 e os projetos de reforma. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 284. 28 DI GESU, Cristina Carla. Prova penal e falsas memórias. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: 2008, p. 102. 234 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi El artículo 212 del CPP presenta algunas limitaciones a las preguntas realizadas. Estas no podrán inducir respuesta, ni tener relación con la causa e importar en repetición, siendo el magistrado responsable por fiscalizar la inquisición29. En este punto, constatamos importante dificultad de nuestro reglamento legal: no existen definiciones de lo que serían preguntas que inducen a la respuesta. Como posible forma de atenuación del problema se apuntan medidas de reducción ante la imposibilidad de otra solución30. Para tanto, se presentan las siguientes sugerencias: a) la toma de los testimonios en un plazo razonable, con el objetivo de disminuir la influencia del tiempo (olvido) en la memoria; b)la adopción de técnicas de interrogatorio y de la entrevista cognitivas, con el objetivo de obtener informaciones cuantitativas y cualitativamente superiores a las de las entrevistas tradicionales, altamente sugerentes; c)la grabación de las entrevistas, lo que permite al juez de segunda instancia conocer el modo como las cuestiones han sido elaboradas, además de las reacciones de los entrevistados; d) la realización de las preguntas por las partes mismas, después del relato libre del entrevistado (víctima o testigo), complementando, el magistrado, ulteriormente, las cuestiones; e) el rechazo de los relatos (testimonios) contaminados directa e indirectamente; f ) la formación multidisciplinar de los profesionales encargados de la realización de los interrogatorios, con actualizaciones constantes; g)la explotación de otros supuestos, distintos del acusatorio, por parte del entrevistador, que puede plantear otros aspectos presentados por la víctima o por los testigos, en el momento de los testimonios31. 29 GIACOMOLLI, Nereu José. Reformas (?) do processo penal – Considerações críticas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 57. 30GIACOMOLLI, Nereu José; DI GESU, Cristina Carla. Fatores de contaminação da prova testemunhal. In: GIACOMOLLI, Nereu José; MAYA, André Machado (Orgs.). Processo penal contemporâneo. Porto Alegre: Núria Fabris, 2010, p. 23. 31 Ibidem, p. 38-39. volume 15 235 i encontro de internacionalização do conpedi Primeramente, trabajar con la idea de lo que sería plazo razonable parece bastante movediza. El contenido dependerá siempre de un referencial, dificultando de forma determinante la aplicación de los postulados universalizadores del Derecho. Con relación a las prácticas de entrevista cognitiva, se hacen necesarias algunas consideraciones. Los diez problemas más comunes de los entrevistadores forenses fueron relacionados a seguir: 1) no explicar el propósito de la entrevista; 2) no explicar las reglas básicas de la sistemática de la entrevista; 3) no establecer rapport (la empatía con el entrevistado); 4) no solicitar el relato libre; 5) basarse en preguntas cerradas y no hacer preguntas abiertas32; 6) hacer preguntas sugestivas/ confirmatorias; 7) no acompañar lo que dijo recién el testigo; 8) no permitir pausas; 9) interrumpir al testigo cuando este se encuentra hablando; y 10) no promover el cierre de la entrevista33. El objetivo principal de la entrevista cognitiva es obtener mejores declaraciones, o sean, ricas en detalles y con mayor cantidad y precisión de informaciones. Está basada en los conocimientos científicos de dos grandes áreas de la psicología: psicología social e psicología cognitiva. Respecto a la psicología social, integran los conocimientos de las relaciones humanas, particularmente el modo de comunicarse efectivamente con un testigo y, en el campo de la psicología cognitiva, se suman los saberes que los psicólogos adquirieron sobre la manera como nos acordamos de las cosas, o sea, como nuestra memoria funciona34. A pesar de que las técnicas cognitivas sean importantes aliadas en países donde las pesquisas sobre testimonio tienen mayor tiempo de desarrollo, no es posible afirmar el alejamiento de los protagonistas/entrevistadores de concepciones punitivistas del sistema y que influencian también la forma de obtención de esas 32 Preguntas abiertas permiten que la persona que está contestando dé más informaciones (e.g. “¿qué ha visto cuando entró en la tienda?”. Las cerradas, generalmente, solamente presentan dos alternativas posibles de respuesta: “sí” o “no” (e.g. “¿era mañana, tarde o noche cuando el crimen ocurrió?”) (FEIX, Leandro da Fonte; PERGHER, Giovanni Kuckartz. Memória em Julgamento: técnicas de entrevista para minimizar as falsas memórias. In: STEIN, Lilian Milnitsky (Org.). Falsas memórias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010, p. 220). 33 FEIX, Leandro da Fonte; PERGHER, Giovanni Kuckartz. Memória em Julgamento: técnicas de entrevista para minimizar as falsas memórias. In: STEIN, Lilian Milnitsky (Org.). Falsas memórias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010, p. 211. 34 FEIX, Leandro da Fonte; PERGHER, Giovanni Kuckartz. Memória em julgamento: técnicas de entrevista para minimizar as falsas memórias. In: STEIN, Lilian Milnitsky (Org.). Falsas memórias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010, p. 210. 236 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi informaciones. Esta observación también sirve para el carácter multidisciplinar de la formación de los actores: de nada resuelve si no hay comprometimiento con garantías fundamentales dentro del proceso penal. Tampoco se puede ignorar la existencia de una cultura autoritaria tocante a las policías y a la dificultad de implementación de las estrategias de inquisición. La comprobación de eso son los resultados tímidos de la incorporación de valores constitucionales, a despecho de más de 25 años de vigencia de nuestra Constitución Federal. La grabación de las entrevistas nos parece mecanismo bastante interesante, de forma a ampliar el debate en segunda instancia. Problema fundamental, sin embargo, es identificar la insuficiencia del método para las instancias superiores en virtud de la vigencia del paradigma de relación jurídica de acción penal. Aquí, distinguimos hecho y derecho, como si fuera posible el juzgamiento relativo a solamente una de esas circunstancias. Luego, la eficacia de la estrategia también podría estar limitada. El relato libre de víctima y testigo es fundamental. Pero, la complementación de los cuestionamientos por parte del magistrado revela flagrante ofensa al principio acusatorio. Además: es bastante temeraria la hipótesis, admitiéndose la posibilidad de preguntas de carácter confirmatorio por parte de alguien (o que debería ser) visto por el inquirido como un tercero imparcial. De otra parte, es necesario que nos preguntemos si ¿una concepción de política criminal conservadora (como la del Derecho Penal del Enemigo) no puede permitir un sistema más propicio a la sugestionabilidad mientras se oigan las declaraciones de las personas (en fase policial y judicial) y que puede materializarse en falsas memorias? Importante indicativo podemos tener, a partir de las encuestas de Azevedo en relación a la actuación de los procuradores públicos en Rio Grande do Sul y de los miembros del Ministerio Público Federal. Con relación a los primeros, 54% consideraron que poseían más afinidad con la política criminal de “Tolerancia Cero” como forma de contestar a los índices de criminalidad. La concepción garantista apareció con solamente 8% de adeptos35. 35 AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. Ministério Público Gaúcho: quem são e o que pensam os promotores e procuradores de justiça sobre os desafios da política criminal. Porto Alegre: Ministério Público do Rio Grande do Sul, 2005. volume 15 237 i encontro de internacionalização do conpedi Respecto a la encuesta realizada con os miembros del Ministério Público Federal (Ministerio Fiscal)36, 67,6 % de los entrevistados consideran la legislación penal y procesal penal brasileña blanda o excesivamente blanda. Aún: en relación a las concepciones de política criminal, 34,7% de los miembros están de acuerdo con los dictámenes de la “defensa social” y 12,6%, con la “Tolerancia Cero”. Con todo, 13,2% se dicen adeptos al garantismo penal y 0,6 % al abolicionismo penal. Por cierto, estos datos son de gran relevancia, sin embargo revelan solamente el actuar penal de una de las partes implicadas en el sistema penal. Provisionalmente, sería posible pensar que encuestas en este sentido pueden ser importantes no solo para los titulares de la acción penal (por excelencia), como también, para los jueces, abogados (que igualmente pueden justificar su actuación con base en concepciones político-criminales conservadoras) y comisarios de policía. Las falsas memorias existen, tienen repercusión crucial (incluso judicial, como ya visto) y son de difícil identificación, pues quien relata cree verdaderamente en su versión. A pesar de existir métodos/técnicas para intentar atenuar sus efectos, tenemos que la grande cuestión debe ser afrontada no solo con la promoción de garantías procesuales penales, sino principalmente por un debate político criminal sobre la necesidad de existencia del proceso de criminalización mismo. Solamente de esta forma, tal vez podremos efectivamente impedir errores judiciales traducidos en insoportables privaciones de libertad. 3. política criminal br asileña: rumbo a un millón de presos? Si los procesos de criminalización son los responsables primeros por la exposición a la una falsa memoria, cabe discutir el papel de la política criminal brasileña en este contexto. Para Delmas-Marty política criminal significa “el 36 AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. Perfil socioprofissional e concepções de política criminal do Ministério Público Federal. Brasília: Ministério Público Federal, 2009. Disponible en: <http:// escola.mpu.mp.br/linha-editorial/outras-publicacoes/Perfil_ebook.pdf>. Ac. en: 14 Jan. 2014. 238 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi conjunto de los procedimientos por los cuales el cuerpo social organiza las respuestas al fenómeno criminal”37. No hay, actualmente, en Brasil, estadística de cuál sería el número de presos por prueba contaminada con falsas memorias. A pesar de la dificultad de comprobar la distorsión, podríamos pensar en la utilización de la prueba técnica (DNA) para desmentir la construcción procesal pasada. Esta comparación se viene haciendo en Estados Unidos de América, por medio de una acción denominada Innocence Project. A través de una acción llamada de “exoneración”, se hace la comparación entre el material encontrado en la escena del crimen (para aquellos ocurridos cuando no había tecnología disponible) y de la persona condenada, no raro a la muerte. Actualmente, hay 258 casos de exoneración38 en Estados Unidos, basados en DNA. En promedio, la persona exonerada pasa trece años en la prisión antes de ser liberada. En 70% de los casos, la persona exonerada formaba parte de un grupo de minoría racial. Los errores de identificación de los testigos oculares contribuyen en más de 75% para los casos de encarcelamiento indebido, en Estados Unidos39. Es posible percibir la tendencia de una política criminal expansionista en nuestro país. Aunque el fracaso histórico de las prisiones haya sido exhaustivamente denunciado por los más diversos sectores de la doctrina penal, la gana de segregación sigue igual. Nuevos bienes jurídicos, surgimiento de nuevos riesgos, institucionalización y sensación social de inseguridad, descrédito de las instancias de protección, gestores atípicos de la mortal (ecologistas, feministas, consumidores, vecinos, etc.) y la llamada izquierda punitiva son frecuentemente presentados40 como una de las causas para políticas criminales represivas. 37 DELMAS-MARTY, Mireille. Os Grandes Sistemas de Política Criminal. São Paulo: Manole, 2004, p. 16. 38 Acción semejante a nuestra revisión criminal, es decir, una forma de intentar alterar el resultado de una decisión definitiva. 39INNOCENCE PROJECT. Eyewitness identification reform. Disponível em: <http://www. innocenceproject.org/Content/Eyewitness_Identification_Reform.php>. Aceso en: 12 jul. 2013. 40 SILVA-SÁNCHEZ, Jesús María. A Expansão do Direito Penal. 3a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 18. volume 15 239 i encontro de internacionalização do conpedi La selección de lo que proteger no siempre está clara o sigue criterios mínimamente científicos41. Ejemplo de esto es la ausencia del homicidio de la redacción original de la legislación de crímenes hediondos42. Editada en el año de 1990, fue una de las grandes responsables por el extraordinario incremento carcelario que tuvimos, conjuntamente a la legislación de drogas (Ley 11.343/2006). El proceso de encarcelamiento desvela aún otras finalidades ocultadas. En las palabras de Bauman: (...) el incremento de la imposición de la prisión en las sociedades contemporáneas se relaciona a la incapacidad de los excluidos de participaren del juego del mercado, de aquellos cuyos medios no están a la altura de los deseos e de aquellos que rechazan la oportunidad de vencer mientras participaban del juego de acuerdo con las reglas oficiales. Bauman destaca que el sistema hoy se resume a separar de modo estricto el ‘desecho humano’ del resto de la sociedad, excluyéndole y neutralizándole. Pues el desecho humano debe encerrarse en un conteiner cerrado, y el sistema penal ofrece dicho conteiner. Las prisiones que teóricamente funcionaban como mecanismos de corrección y resocialización, hoy se conciben como un mecanismo de exclusión y de control. Lo principal y tal vez el único propósito de las prisiones no es ser únicamente un basurero cualquiera, sino el depósito final, definitivo. Una vez desechado, siempre desechado.43 Vivimos la llamada era del Gran Encarcelamiento44, época paradójica por naturaleza. Si, de un lado, tenemos presidios invariablemente apiñados y en condiciones intolerables, de otro existe un sentimiento social generalizado relativamente a las demandas punitivas: penas más severas y construcción de 41 SÁNCHEZ-OSTIZ, Pablo. Fundamentos de política criminal. Madrid: Marcial Pons, 2012, p. 24-48. 42 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 11a ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 21; PINTO, Nalayne Mendonça. Recrudescimento penal no Brasil: Simbolismo e punitivismo. In: MISSE, Michel (Org.). Acusados e acusadores: estudos sobre ofensas, acusações e incriminações. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 250. 43 BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 107. 44 En este sentido: BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 27. 240 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi nuevos establecimientos carcelarios. A estos movimientos, inspirados por teorías identificadas con ideas de defensa social (especialmente el ‘derecho penal del enemigo’ y la ‘law and order’), se ha dado el nombre de populismo punitivo45. Aunque considerada superada teóricamente, esta concepción político-criminal aún encuentra espacio en el sentido común. Por lo tanto, aunque que hay resistencias, la permeabilidad de la política criminal legislativa acaba haciendo con que tengamos el movimiento como de un péndulo46. Este cuadro se ha fomentado por la transición del llamado “estado de bienestar social” para un “estado policial”, es decir: por “el paso del modelo de comunidad incluyente del ‘Estado Social’ para un Estado excluyente, ‘penal’, orientado para la ‘justicia criminal’ o para el ‘control del delito”47. Dentro del paradigma actual, el sistema penal se convierte en “el territorio sagrado del nuevo orden socioeconómico”48. Esto se agrava en países como Brasil, en los cuales la desigualdad social aún constituye gravísimo problema estructural. De este modo, las prisiones acaban por convertirse en grandes depósitos donde los excluidos49 socialmente son abrigados. Producto y a la vez combustible de la lógica punitivista es la cultura del miedo50. Existe un sentimiento generalizado de victimización, reproducido a partir de un maniqueísmo social, según lo cual, 45 LARRAURI, Elena. Populismo punitivo... y como resistirlo. Revista de Estudos Criminais, Sapucaia do Sul, Notadez n.25, abr./jun, 2007. 46 CHRISTIE, Nils. Los limites del dolor. Trad. de Mariluz Caso. Ciudad del México: Fondo de Cultura Económica, 1988, pp. 71 y 95. 47 BAUMAN, Zygmuth. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p. 86. 48 BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 100. 49 PASTANA, Débora Regina. Estado punitivo e encarceramento em massa: retratos do Brasil atual. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 77, p. 316317, mar./abr. 2009. 50 Utilizamos aquí el miedo en los términos trabajados por Débora Pastana: “Entendemos el miedo, en esta investigación, como una forma de exteriorización cultural, principalmente se llevamos en cuenta las transformaciones que él desencadena. Como vimos en el capítulo anterior, hay un cambio en el comportamiento del individuo en casa y en la calle, un cuidado mayor con sus bienes (consumo de pólizas, por ejemplo), la producción y el consumo de los más variados productos de seguridad privada (alarmas, coches blindados y clases de defensa personal, por ejemplo), una falta de confianza generalizada entre los individuos” (PASTANA, Débora Regina. Cultura do medo: reflexões sobre violência criminal, controle social e cidadania no Brasil. São Paulo: IBCCRIM, 2003, p. 92). Véase BAUMAN, op. cit., p. 65-66. volume 15 241 i encontro de internacionalização do conpedi los buenos se transforman en víctimas indefensas de los malos, entre los cuáles se incluyen, en esta última categoría, los supuestos responsables por la seguridad de todos. De ahí las expresiones: impunidad, ineficacia de las normas y del poder judicial. La sociedad se siente víctima del delincuente y el Estado incompetente o poco opresor51. Sospechas se proyectan en privaciones, especialmente de la libertad. Síntoma de este contexto es la población carcelaria brasileña. Hoy, se estima que tengamos más de 715.000,00 (setecientos quince mil) presos52. Y este número sólo crece. Aunque existan medidas político-criminales con finalidad declaradamente desencarcelizadores, las consecuencias prácticas de su aplicabilidad son muy tímidas. Y ello porque el subjetivismo53, en ciertas categorías-clave (como el requisito del “orden pública” en sede de prisión cautelar), convierte fácilmente en reversibles los objetivos originales. Brasil es el cuarto país del mundo en población carcelaria. Se encuentra atrás de EUA, Rusia y China. Datos presentados por el Instituto Avante Brasil54, apuntaron el aumento de 508% en la población carcelaria brasileña entre 1990 e 2012, mientras la población nacional creció 31%. Christie considera el número de presos a cada 100.000 habitantes como un importante dato para medir el nivel de punición de determinado país55. En el nuestro, en 2012, la cifra de presos fue 283 para cada 100.000 habitantes, teniendo en cuenta la población 51 PASTANA, Débora Regina. Cultura do medo: reflexões sobre violência criminal, controle social e cidadania no Brasil. São Paulo: IBCCRIM, 2003, p. 108-109. 52 Véase KAWAGUTI, Luis. Brasil tem 4a maior população carcerária do mundo e déficit de 200 mil vagas. Disponible en: <http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/05/120529_ presos_onu_lk.shtml>. Acceso en: 06 jun. 2012. En el mundo, se estima que tengamos más de 10 millones de personas en prisión: INTERNATIONAL CENTRE FOR PRISION STUDIES. World Prison Population List. Disponible en: <http://www.prisonstudies.org/info/downloads. php?searchtitle=&type=3&month=1&year=2009&lang=0&author=&search=Search>. Acesso em: 12 jun. 2012. 53 Véase especialmente LOPES JÚNIOR, Aury. O novo regime jurídico da prisão processual, liberdade provisória e medidas cautelas diversas: Lei 12.403/2011. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. 54INSTITUTO AVANTE BRASIL. Levantamento do Sistema Penitenciário em 2012. Disponible en: <http://institutoavantebrasil.com.br/levantamento-do-sistema-penitenciariobrasileiro-em-2012/> Acesso em 01 de Fev. de 2014. 55 CHRISTIE, N., Indústria do Controle, p. 40. 242 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi de 193.946.886 habitantes estimada por IBGE para 2012. Mientras la población creció 1/3, la población carcelaria más que sextuplicó56. A pesar de la expansión aturdida del número de encarcelados, esto no significa un mayor sentimiento de seguridad. Al contrario. El primer millón de presos no se encuentra lejos. En este sentido, nunca es demasiado acordarnos de Christie: “en las sociedades modernas, el mayor peligro del delito no es el delito mismo, sino que la lucha contra él conduzca las sociedades hacia el totalitarismo57”. 4.posibilidad de pensar una política no criminal: ¿por dónde? Tal vez la única forma efectiva de disminución de falsas memorias, durante los procesos de criminalización, sea precisamente acotar el catálogo de crímenes disponibles. Desde ahí la necesidad de una política no criminal. Trataremos, en este punto, de las propuestas existentes para la (re)valorización de la libertad aun considerando los resquicios importantes de una sociedad en grande medida disciplinar58. Las elecciones de la política criminal son culturales59, desvelan un área inundada de cuestiones morales profundas, que no pueden resumirse a especialistas y mensajeros de la Verdad. Según Christie, “debe haber un coro de voces que introduzcan inúmeras preocupaciones de difícil solución y sobre las cuales no hay unanimidad. Cuanto más se ve el campo como cultural, menos espacio sobra para soluciones simplificadas60”. 56INSTITUTO AVANTE BRASIL. Levantamento do Sistema Penitenciário em 2012. Disponible en: <http://institutoavantebrasil.com.br/levantamento-do-sistema-penitenciariobrasileiro-em-2012/> Acesso em 01 de Fev. de 2014. 57 CHRISTIE, Nils. La Industria del Control del Delito – La Nueva Forma del Holocausto? Buenos Aires: Editores del Puero, 1993, p. 24 58 No se ignoran los nuevos controles planetarios, de menor repercusión en el sistema penal, pero de gran importancia para entender la transmutación de la biopolítica en ecopolítica. En este sentido, imprescindibles las siguientes lecturas: PASSETTI, Edson. Ecopolítica: procedências e emergência. In: Guilherme Castelo Branco; Alfredo Veiga-Neto. (Org.). Foucault, filosofia & política. Belo Horizonte: Autêntica, 2011, v. 1, p. 127-141, FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008; y DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: 21, 2004. 59 CHRISTIE, Nils. Uma Quantidade Razoável de Crime. Rio de janeiro: Revan, 2012, p. 50. 60 CHRISTIE, Nils. Uma Quantidade Razoável de Crime. Rio de janeiro: Revan, 2012, p. 130. volume 15 243 i encontro de internacionalização do conpedi Existe cierto consenso sobre las (im) posibilidades de la cárcel. En las palabras de Ferrajoli, más relevante es saber cómo castigar es tratar del tema del la substitución de la cárcel, una invención moderna, considerada como una gran conquista de los ideales humanitarios del iluminismo y como alternativa a la pena de muerte, a los suplicios, a la tortura y a otros horrores del derecho penal premoderno. Con la prisión, sigue Ferrajoli, la pena vuelve a los ideales de igualdad y de legalidad pre-determinada, siempre pasibles de medición y de cálculo, aplicada por el juez según la gravedad – en abstracto y en concreto – de los delitos cometidos. Sin embargo, destaca que hoy es posible dar un “salto de civilización”, quitando el protagonismo de la pena de reclusión y reduciendo drásticamente du duración. Así, la prisión se convierte en una sanción excepcional, limitada a las ofensas más graves contra los derechos fundamentales (como la vida, la integridad personal y similares), las únicas que capaces de justificar la privación de la libertad personal (también un derecho fundamental). Luego, concluye que el modelo actual conserva múltiplos elementos de sufrimiento físico, que se extienden durante todo su ejecución61. Como alternativa concreta, Ferrajoli defiende la reducción del límite máximo de la pena privativa de libertad, que debería ser de 10 años62. Malaguti defiende las siguientes propuestas: • cambio radical en la política criminal de drogas, con la elaboración de políticas colectivas de control por la legalidad; • despenalización de los delitos patrimoniales sin violencia contra la persona, como el hurto; • abertura de los muros de las prisiones para su comunicación con el mundo, con sus amores, con sus familias, con sus amigos, con sus cronistas; • no punir a la familia de los prisioneros, que ya sufre con la estigmatización; 61 Véase FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón. 9. ed. Madrid: Trotta, 2009, p. 203-204. 62 FERRAJOLI, Luigi. Democracia y Garantismo. 2. ed. Traducción de Perfecto Andrés Ibáñez. Madrid: Trotta, 2010, p. 416-418. 244 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi • convertir la ideología del combate en grandes mediaciones horizontales en el sentido del desarmamiento; • disminuir el número de policías, desarmándoles y transformándoles en agentes colectivos de defensa civil, con la cambio de sentido de la seguridad pública de la lucha contra los pobres para el amparo a los efectos de las ruinas de la naturaleza sobre el juzgo del capital. • Legalización del segundo empleo de policías y bomberos. • Ampliación y fortalecimiento de la Defensoría Pública. • Fin de la exposición de los sospechosos para la prensa y restricciones al noticiero emocionado de los casos criminales, que aniquila el derecho a un juicio imparcial”63. Son políticas concretas y que tiene como fin último la cárcel. Tal vez se pueda trascender a Ferrajoli y pensar no solamente en el “¿cómo?”, sino también en el “¿por qué?”. Olvidamos nuestro número vergonzoso de presos, las cifras ocultas exorbitantes para crímenes de homicidio, los aturdidos niveles de reincidencia y el simbolismo (sólo para los clientes no habituales) del sistema penal. En un contexto de cifras ocultas significativas, donde la punición se vuelve excepcional, lo que crea un abolicionismo de hecho64, el proceso se convierte en la arena de Kafka. La igualdad moderna no es sino una promesa. Pese a que las cifras ocultas, especialmente para el delito de asesinato, se consideren altas en nuestro país65, es precisamente en el acto formal de la criminalización que una segunda ruptura a la pretensión de igualdad moderna66 puede ocurrir, pues no todos son punidos de la misma forma y es imposible plantear dicha posibilidad. Es necesaria atención para muchas de las alteraciones legislativas. Muchas veces reformar significa mantener como está. Alterar la superficie, sin que se 63 BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 115 64 Cf. HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas: o sistema penal em questão. 2. ed. Rio de Janeiro: LUAM, 1997. 65 FERRAZ, Taís. A investigação de homicídios no Brasil. Disponible en: <http://www.cnmp. mp.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=1264:a-investigacao-dehomicidios-no-brasil&catid=9:destaques&Itemid=229>. Acesso en: 15 de mayo de 2014. 66 GAUER, Ruth M. Chittó. A Fundação da Norma. Porto Alegre: Edipucrs, 2012, p. 168-169. volume 15 245 i encontro de internacionalização do conpedi toque en el fondo. Trascender a la crisis presente, articulándose ya la próxima. Sujetada al control. Preferencialmente penal. Hacer lo posible es tan seductor cuanto el populismo punitivo. Es la salida. La vía de sentido único que justifica la ausencia de libertad del otro con el mantenimiento de la propia libertad. Paradojo del propio sistema penal: al dolor sufrido, dolor impuesto. Se hace necesario pensar sobre la posibilidad de alteraciones estructurales, manifestadas en una deseable política no criminal. Esta seria realizable a partir de la lectura de las categorías del sistema penal desde la reducción de dolor. ¿Cómo? Sólo a través de un amplio debate, solamente posible tras la concientización de los actores político-criminales de los efectos de la cultura punitiva en nuestro medio. Precisamos reflexionar sobre la real utopía: ¿descriminalización de conductas o el autofágico y suicida67 sistema penal (omni) presente? 5.conclusiones Aunque esté todavía bajo los efectos de recesión económica, hablándose globalmente, causados por la crisis del mercado inmobiliario, especialmente desde el año de 2007, la Industria del Control del Crimen sigue en franca expansión. No sólo: presentase como un negocio muy lucrativo. La seguridad es la mercancía de la vez. Impulsada por nuestros miedos y falta de creatividad en contestar al desafío desde hace mucho lanzado por Gustav Radbruch. Esperamos demasiado tiempo. Vidas fueron segadas, familias (de víctimas y ofensores) aniquiladas y el sistema penal sigue su marcha de expansión en ritmo vertiginosamente acelerado. A pesar de las fracturas del sistema penal, entre ellas la fragilidad de los testimonios en función de las sugestionabilidades en las entrevistas policiales y forenses, la marcha punitiva sigue su (dis)curso. Sus rodillas no tienen condiciones de sustentar el cuerpo, sin embargo, la metafísica (en la cual se encuentra basada 67 En este sentido, ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro – Volume 1 – Parte Geral. 9a edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 78. 246 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi grande parte de las justificaciones de la pena) hace con que siga difundiendo dolor y sufrimiento. ¿Hasta cuándo? 6.referencias ÁVILA, Gustavo Noronha de. Falsas Memórias e Sistema Penal: A Prova Testemunhal em Xeque. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. ÁVILA, Gustavo Noronha de; GAUER, Gabriel José Chittó; PIRES FILHO, Luiz Alberto Brasil Simões. Falsas Memórias e Processo Penal: (Re)Discutindo o Papel da Testemunha. Revista do Instituto do Direito Brasileiro da Faculdade de Direito de Lisboa, v. 12, p. 7180-7181, 2012. ÁVILA, Gustavo Noronha de; GAUER, Gabriel José Chittó. Presunção da Inocência, Mídia, Velocidade e Memória - Breve Reflexão Transdisciplinar. Revista de Estudos Criminais, v. VII, p. 105-113, 2007. AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. Ministério Público Gaúcho: quem são e o que pensam os promotores e procuradores de justiça sobre os desafios da política criminal. 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Desenvolve os desdobramentos teóricos que fundamentam a responsabilização criminal atenuada dos psicopatas, indicando, com luzes num futuro não muito distante, a probabilidade dos estudos neurocientíficos justificarem a eliminação de sua imputabilidade penal. Assim, esse recorte do transtorno de personalidade do psicopata contextualizado na temática da responsabilidade penal, oferece elementos instigantes para o debate acadêmico acerca da complexa problemática da ponderação de valores entre a modernidade e os postulados éticos regentes do ordenamento jurídico, alguns dos quais explorados no texto. Permeia toda reflexão justamente nesse substrato 1 Dra. en Derecho. Catedrática de Derecho Penal de la Universitat de Barcelona. Magistrada. Directora del Máster de Bioética de la Universidad Pública de Navarra. Miembro del Observatori de Bioètica i Dret. Profesora del Máster en Bioética y Derecho: Problemas de Salud y Biotecnología, Universitat de Barcelona. 2 Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (1988), mestrado em Direitos da Personalidade pelo Centro Universitário de Maringá (2006) e mestrado em Direito Penal Supra-Individual pela Universidade Estadual de Maringá (2005). Máster Oficial em Criminología y Sociología Jurídico-Penal pela Universidade de Barcelona (Espanha - 2011). Doutoranda em Direito e Ciência Política pela Universidade de Baracelona (2011 - 2015). Especialista en Neurociências pela Universidade de Salamanca (2013). Atualmente é Juíza de direito em 2º grau do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, com atribuições fixas na 3a Câmara Cível. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito, atuando principalmente nos seguintes temas: meio ambiente, biossegurança, transgênicos, intimidade genética, discriminação genética, execução penal, banco de dados de perfis genéticos de criminosos e neurociências. volume 15 253 i encontro de internacionalização do conpedi ético que deve guiar o caminho desses avanços tecnológicos a serviço da ciência jurídico-penal. Palavras-chave Genética; Neurociência; Culpabilidade; Imputabilidade; Vontade humana; Psicopatia; Psicopata. Abstract The study comprises a brief incursion about the advances of biotechnology and, especially, of neuroscience, and its significant contribution to the revision of legal and criminal concepts. Particularly, the theme of criminal responsibility is addressed, highlighting the guilt of the psychopath, treating the psychopathy as a personality disorder which reflects in the behavior of the affected individual. Are developed the theoretical deployments that underlie the attenuated criminal responsibility of psychopaths, indicating, in a soon to be future, a likelihood of the neuroscientific studies justify the elimination of the criminal responsibility in this cases. Thus, this note about the personality disorder of the psychopath, contextualized on the topic of criminal responsibility, covers interesting elements to the academic debate on the complex issue of weighting values between modernity and the predominant ethical principles of the legal system, some of which are explored in the text. All of the reflection on display is permeated on this ethical substratum that should guide the way these technological advances must work in the service of the criminal law science. Key words Genetics; Neuroscience; Culpability; Liability; Human Will; Psychopathy; Psychopath. 1.introdução A humanidade tem experimentado nas últimas décadas de desenvolvimento uma verdadeira revolução provocada pela biotecnologia3, pela psicologia, pela 3 Dividindo-se a palavra nas duas que lhe derem origem, bio e tecnologia, tem-se a seguinte definição: “biotecnologia: uso dos organismos vivos para solucionar problemas ou desenvolver 254 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi ética e pela neuroética que afeta, de modo direto e sem precedentes, diferentes ramos do conhecimento humano, provocando uma série de perguntas e questionamentos antes inimagináveis. O homem começa a interferir em processos até agora monopolizados pela natureza, inaugurando uma nova era que poderá se caracterizar pelo controle de certos fenômenos até esse momento fora de seu domínio. Inicia-se o século XXI já com uma descrição completa do material humano, vale dizer, um “livro de receita para fazer um ser humano”4, o mapa do genoma humano. A cartografia genética permite agora a análise do conhecimento individualmente, de todos e de cada um dos componentes minúsculos que conduzem a novas qualidades e disposições, nossas limitações e defeitos, com o que, em princípio, será possível para a humanidade viver mais e melhor, lutando contra sua própria enfermidade, inclusive antes do nascimento, por meio da engenharia genética. Sem embargo do grande feito da identificação de cem mil genes implicar num gigantesco passo em benefício do gênero humano, esse progresso não está, porém, isento de riscos, já que o estudo da genética, que vem dando muitos frutos positivos para a humanidade, também pode ser utilizado contra ela mesma, se se ignoram os princípios éticos. As inovações genéticas e também neurocientíficas apresentam, com efeito, uma série de problemas específicos, incluídas as questões éticas inerentes à própria investigação biotecnológica. Neste sentido, o Projeto Genoma Humano, ao tempo em que se propõe a obter a designação e a assimilação do mapa genético humano, suscita questões delicadas como a da violação da intimidade e outros direitos produtos novos e úteis” (KREUZER, Helen; MASSEY, Adrianne. Engenharia genética e biotecnologia. 2ª ed, Tradução Ana Beatriza Gorini da Veiga. Porto Alegre: Artmed, 2002, p. 17. Assim, com essa inspiração etimológica, conceitua-se biotecnologia como “ a tecnologia que utiliza as propriedades dos seres vivos para gerar produtos ou modificar processos, ou modificar propriedades dos organismos (microorganismos, plantas ou animais), com fins específicos e determinados’. MUÑOZ, Emilio. Implicaciones socio-econômicas de la biotecnologia: nueva política científica e novos contextos cognitivos. In: BERGEL, Darío Salvador; DIAZ, Alberto (Orgs.). Biotecnologia y sociedad.Buenos Aires: Ciudad Argentina, 2001, p.372 4 Expressão usada por ROMEO CASABONA, Carlos María, em sua primeira obra, Del Gen al Derecho, Bogotá:Universidad Externado da Colombia, 1996. volume 15 255 i encontro de internacionalização do conpedi fundamentais, discriminações, projeções de comportamentos, entre outras que incidem sobre o direito e, em particular, sobre o direito penal. O conhecimento e compreensão dos mecanismos fundamentais da vida abrem novas possibilidades de intervenção dentro dos organismos vivos, de seu funcionamento mental, e, com elas, aplicações em benefício da humanidade, mas estas atuações também podem desenvolver-se de forma a majorar riscos e perigos para o homem e o equilíbrio do mundo vivo. Portanto, os progressos da biotecnologia e das neurociências devem acompanhar-se de uma reflexão ética destinada a garantir os princípios e valores sobre os quais se fundamentam nossa sociedade e a dignidade dos seres humanos, especialmente protegidos, em tese, pelo sistema jurídico-penal. Tem-se, aqui, especial interesse pelos reflexos dos avanços neurocientíficos5 no âmbito forense, em particular na área da responsabilidade penal. Como a utilização dessas modernas técnicas podem afetar as bases teóricas do direito penal, reflexionando em que medida as mais recentes conquistas das neurociências influenciam a administração da justiça penal de forma compatível com os direitos fundamentais é, deste modo, um dos principais focos da investigação científica nessa importante área do saber da psiquiatria penal. No caso deste ensaio, no que toca em especial ao âmbito da responsabilidade e imputabilidade penal6. 5 “Las neurociencias, en gran medida gracias a las enormes posibilidades que ofrecen los nuevos métodos de experimentación y neuroimagen –tomografía axial por emisión de positrones (PET), la tomografía computerizada por emisión de fotones simples, resonancia magnética funcional o nuclear (RM o fMRI), magnetoencefalografía, etc.-, han sufrido un avance espectacular en los últimos años y nos han abierto la ilusionante posibilidad de conocer mejor lo que denominamos ‘naturaleza humana’. De tal manera que algún autor no ha tenido reparos en hablar de una ‘revolución neurocientífica’” (FEIJOO SÁNCHEZ, Bernardo José. Derecho penal y neurociencias. ¿una relación tormentosa?, In: FEIJOO SANCHEZ, Bernardo José (Ed.). Derecho Penal de la Culpabilidad y Neurocienciass. Cizur Menor (Navarra): Ed. Thomson Reuters/Aranzadi/Civitas, 2012. p. 71). 6 “La ciencia del Derecho penal se ve sometida por la discusión de la biología humana a una específica presión e inmersa en una relación asimétrica; ambas cosas no le convienen. Los neurocientíficos han alcanzado con su trabajo conocimientos que, en caso de que sean correctos e idóneos, sustraen la base a buena parte de nuestros puntos de partida sobre el Derecho penal y su mundo; esto explica las características de las reacciones desde la ciencia del Derecho Penal. No es posible ver una línea en ellas. Llegan desde un distanciamiento lúdico en el plano de la teoría de la ciencia, pasando por profundos programas alternativos que quieren establecer un cortafuegos salvador entre los cantos de sirena y la dogmática jurídico-penal de la culpabilidad, mostrando un 256 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi Pontua-se, desde logo, como linha nuclear do desenvolvimento desse tema, a importância da intimidade, como bem de macro grau axiológico, na dimensão hierárquica da dignidade humana. A abordagem neste singelo texto quer apenas lançar ligeiros lampejos sobre as preocupações que os experimentos da neurociência podem causar, através de suas ferramentas de análises, à eventual mudança dos conceitos básicos capazes de aferir e determinar a responsabilidade humana, por vincular-se à estrutura da personalidade ou da conduta dos indivíduos. No caso, recorta-se, para reflexão, a questão referente à imputabilidade do psicopata. 2. responsabilidade penal O real sentido da expressão culpabilidade penal pode ser buscado desde a representação grega da pena, passando pela racionalidade do sistema jurídico romano, até a preocupação atual, nunca ausente, da incessante busca de proporcionalidade entre crime e pena, decorrente da lógica entre o dano causado e sua reparação, daí o permanente esforço dessa mesma racionalidade que se encontra na base de qualquer reflexão moderna acerca do juízo de culpabilidade jurídica. Tem-se, porém, de modo geral, a culpabilidade associada ao conjunto de condições que dão ao sujeito imputado capacidade de lhe ser atribuída responsabilidade penal. Ou seja, em outras palavras, culpabilidade refere-se ao indivíduo, ou melhor, à sua capacidade individual de responder pelas consequências decorrentes de seus atos, de prestar contas pelos efeitos nefastos da conduta que praticou. Diferentemente, pois, do conceito moral, que mais concerne ao foro íntimo da pessoa. Se buscássemos um sentido até mesmo metafísico, poderíamos relacionar a culpabilidade com o indivíduo que compõe, em termos genéricos, a comunidade Desesperado empeño en mantener con vida el Derecho penal de la culpabilidad aun bajo los golpes de la biología humana, hasta llegar a la candorosa exhortación a la ciencia del Derecho penal de “no hacerse artificialmente la ciega y sorda”, sino de “aprovechar la oportunidad de repensar la atribución jurídico-penal de culpabilidad y responsabilidad”(HASSEMER, Winfried. Neurociencias y culpabilidad en Derecho Penal. Revista depara el análisis del Derecho InDret, abril, 2011, p. 4). volume 15 257 i encontro de internacionalização do conpedi humana na trágica categoria de sua finitude ou imperfeição e que, por isso mesmo, lhe impõe o princípio da solidariedade. Culpabilidade, em suma, é reprovabilidade pessoal pela realização de uma ação lesiva, em termos penais, típica e ilícita, ou seja, um juízo de reprovação ou de censura pessoal endereçado ao agente por não ter agido conforme a norma, quando podia fazê-lo. Daí a exigência de se comprovar a capacidade ou possibilidade da pessoa agir de forma diversa, ou seja, de absorver ou assimilar a mensagem normativa. É por isso mesmo que qualquer sistema penal clássico recorre preponderantemente à inevitável constatação, até então contida na cláusula salvadora, de que tanto o determinismo quanto o indeterminismo não podem ser cientificamente comprovados, dispensando à sua legitimação o sistema jurídico-penal de uma verificação empírica do livre-arbítrio humano. Em outras palavras, como esse fundamento não se acha cientificamente consolidado, pouco significado vinha tendo para os padrões do direito, menos como categoria científico-natural, e muito mais como objeto de natureza cultural governado por referenciais diversos. Se bem que isso passa agora a ser desafiado pelos novos postulados da ciência, como já se abordou e adiante se concluirá. De qualquer modo, prevalece a fundamentação da culpabilidade na capacidade humana de poder atuar de maneira diferente. Como anota Régis Prado: É certo que a liberdade humana, como dado real do existir como expressão de um sentido na ordem social, está na base da construção normativa jurídica e tem reconhecimento constitucional expresso. A responsabilidade jurídica não tem nenhum sentido senão em relação à liberdade jurídica7 – indissociável de pessoa livre, única 7 Nessa perspectiva, impende examinar os três sentidos de liberdade: liberdade de eleição; liberdade moral e liberdade social, política e jurídica. A liberdade de eleição ou liberdade psicológica é um dado antropológico da condição humana, que diferencia os homens dos outros animais e que possibilita o ato de escolha entre diversas alternativas ou possibilidades, constitutiva, por isso, da noção de pessoa. De sua vez, a liberdade moral seria a meta do dinamismo da liberdade que arranca da liberdade psicológica e que supõe a eleição livre de planos de vida, de estratégias de felicidade, ou, referido de maneira mais tradicional, de ideias de bem ou de virtude, como a moralidade privada de cada um (PECES-BARBA, Gregório. “La Libertad del Hombre y El Genoma”. Revista del Instituto Bartolome de Las Casas, Madrid: 258 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi capaz de responder por suas ações -, e que vincula reciprocamente o indivíduos. Isso significa, em outro dizer, que a evitabilidade individual (= poder agir de outro modo), de base ontológica, pressupõe sempre e exatamente a liberdade de poder se comportar de acordo com a norma (= liberdade de escolha, livre-arbítrio), visto que não teria sentido formular uma censura jurídica ou moral contra um acontecimento determinado pela lei da causalidade, e que se produz, por isso, de forma necessária. Em consequência, o sentido social do atuar é determinado segundo a direção da vontade e o resultado (...). O conceito de culpabilidade penal é, portanto, de natureza jurídica (ético-existencial-jurídico) e não ético-moral ou religioso8. O desiderato desse critério é o de propiciar o maior grau possível de segurança jurídica, de modo a que se aproxime a teoria do crime quanto mais da realidade para que seus parâmetros não contenham matiz aleatório, ou seja, de mera “conveniência ou de autoridade. Trata-se, na verdade, de um problema epistemológico do que pode ou não pode ser conhecido. A resposta a essa interrogação depende dos mais variados fatores, históricos, culturais, sociais, políticos, de uma postura éticoindividual e de sua relação com os valores ético-sociais”9. A noção moderna de culpabilidade penal, pois, acaba sendo conquista cada vez mais ligada a um direito penal que tem no homem integrado socialmente seu desiderato maior. Universidad Carlos III de Madrid, n. 2, out./mar., 1994, p. 32. Tradução nossa) No que toca à liberdade jurídica, a dialética autonomia-universalidade exige que esse plano de vida, necessite da aceitação de cada sujeito (autonomia) e ao mesmo tempo seja suscetível de generalização, de uma oferta que se possa converter em lei geral (universalização)- noções jurídicas da liberdade. Cumpre notar que a liberdade jurídica é sempre liberdade por meio do Direito. Configura-se juridicamente “como valor ou princípio jurídico e desenvolve-se através dos direitos fundamentais e dos princípios de organização e constitui o que podemos chamar de moralidade pública legalizada, que estabelece como objetivo central do Direito, ele que organiza a sociedade de tal maneira que cada um possa escolher livremente sua ética privada. À luz dessa diretriz, convém destacar que, integrando a ideia de liberdade dentro dessa três dimensões, se preconiza que “a liberdade jurídica é o instrumento para construir na vida social, a liberdade moral de cada homem, fazendo possível o mais pleno e completo exercício da liberdade de eleição” (PECES-BARBA, Gregório. Op.cit, p. 32-33, Tradução nossa). 8 PRADO, Luiz Régis. Curso de direito penal brasileiro. vol. 1, São Paulo: RT, 2010, p. 385. 9 SERRANO MAÍLLO, A. Ensayo sobre el Derecho Penal. p. 337. Apud: PRADO, Luiz Régis. Op. cit., p. 385. volume 15 259 i encontro de internacionalização do conpedi Mas, isso tende a se alterar ligeiramente, quando se integram a esses aspectos conceituais os contributos científicos antes abordados. Desde essa perspectiva e a traspondo ao âmbito estritamente jurídico-penal, se pode afirmar que determinadas técnicas permitem encontrar novas alternativas para uma explicação que normativamente alguns anos antes teríamos tratado definitivamente como delito atribuído a agente imputável, justificando a reação penal e, portanto, social. É porque há meio século, esse homem tido como culpável, havia sido rotulado como “malvado”, como alguém que pode decidir livremente sobre sua conduta e, assim, por ela ser responsável. Talvez, hoje, um neurocientista pudesse afirmar com quase absoluta probabilidade de certeza que aquele pobre homem não passava mais de um enfermo, e que sua suposta maldade, assim, decorria dessa sua enfermidade, pela qual não se lhe podia atribuir responsabilidade, já que seu agir, liberto do claustro psicológico que não atuou como mecanismo de normalidade mental, não foi livre. E se fosse, ao contrário, penalmente responsabilizado, não estaria sendo tratado de maneira justa, quem sabe como as sociedades vinham fazendo, em virtude dos limites de nossos conhecimentos científicos. E aqui está a diferença que pode revolucionar conceitos na área da culpabilidade penal, ou seja, entre a do homem do exemplo e a maioria dos seres humanos, pois neste caso se poderia detectar a principal causa de sua atuação, muito ao reverso da maior parte dos nossos comportamentos que têm sua origem ligada a fatores prévios muito mais difusos e nem sempre sujeitos a uma explicação tão clara e precisa. Mas, é justamente nesta dimensão, em pegadas abertas pelas novas tendências teóricas da neurociência, que se pode desenvolver atenta e madura reflexão sobre muitas das bases filosóficas em cima das quais se vem construindo durante séculos o sistema de imputação jurídico-penal, questionando sua validade ainda que relativa, pois fundadas sobre pressupostos possivelmente errôneos. Como ensina Bernardo Feijoo Sánchez: (...) ostentar que a culpabilidade é uma construção social não significa, desde logo, que o juízo de culpabilidade possa ser incompatível com nossos conhecimentos empíricos, incluindo os provenientes das neurociências, isto é, que aludidos referentes empíricos não determinam nem resolvem diretamente o problema 260 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi normativo, mas que devem ser processados pelo sistema jurídicopenal de acordo com sua função social10. 3. psicopatia e imputabilidade Como se sabe, a psicopatia é um transtorno da personalidade11 que incide indistintamente sobre a população, independentemente de classe social, cor, sexo ou outra qualquer predeterminação. Reputa-se, assim, devido ao perfil comportamental de seus portadores, mais um transtorno de personalidade que propriamente uma doença mental, por não se manifestar por meio de sintomas, mas sim de comportamentos antissociais, isso sem embargo do dissenso científico a respeito do tema. A psiquiatria considera personalidade como “padrões de pensamento, sentimento e comportamento que caracterizam o estilo de vida e o modo de adaptação único de um indivíduo, os quais resultam de fatores constitucionais, do desenvolvimento e da experiência social”, ou ainda “padrões de perceber, relacionar-se e pensar sobre o ambiente e sobre si mesmo”, ocorrendo transtorno da personalidade quando “os aspectos referidos se tornam rígidos, inflexíveis e mal adaptativos”12. De fato, a capacidade de culpabilidade dos psicopatas não é, efetivamente, tema pacífico. No caso do direito brasileiro, dos critérios de aferição da imputabilidade – biológico, psicológico e misto –, adota-se base biopsicossocial para aferição de imputabilidade ao serem previstas circunstâncias especiais nas quais a responsabilidade penal pode ser reputada diminuída, quando afetada por condições pessoais capazes de provocar modificação das capacidades éticas ou de determinação, em graus variáveis. Como se reputa a psicopatia, então, não uma doença mental, mas mais uma forma de ser no mundo, uma certa maneira da pessoa se expressar, podendo tomar a forma de transtornos variados, há quem não a considere capaz de afastar 10 FEIJOO SÁNCHEZ, Bernardo José. Op. cit. p. 124. Tradução nossa. 11 O.M.S. Entidade nosológica codificada pela Organização Mundial da Saúde. CID-10: classificação estatística internacional de doenças e problemas relacionados à saúde. 9ª ed. Revisada. São Paulo: Ed. USP, 2003. 12 BERTOLOTE, J.M. (org) Glossário de Termos de Psiquiatria e Saúde Mental da CID-10 e seus derivados. Porto Alegre: Ed. ArtMed, 1997. volume 15 261 i encontro de internacionalização do conpedi a capacidade de culpabilidade do sujeito. É que o psicopata sequer seria portador de doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado, porquanto sua perturbação psíquica não teria o condão de afastar ou diminuir sua capacidade ética ou de determinação. Sabe-se, contudo, que mesmo alguns transtornos de personalidade podem adquirir maior relevância no âmbito da psiquiatria forense, por reconhecidamente colocarem seus portadores em situações de direto confronto com os códigos legais e, em consequência com o sistema de justiça. E estudos mais recentes demonstram que indivíduos que padecem desses transtornos de personalidade do tipo antissocial, ou que apresentam uma estrutura de personalidade conhecida como psicopatia, tendem a adotar comportamento criminal, que é multidimensional. E é por isso mesmo que se tem assistido ao crescimento do interesse por pesquisas psiquiátricas na crescente busca por uma maior compreensão desse fenômeno, ou seja, o das características de condutas propensas à violência, ao cometimento de crimes, à insensibilidade à dor alheia e à aparente indiferença às punições e sanções penais. Essa certa confusão conceitual, envolvendo o encaixe da psicopatia ou do transtorno antissocial da personalidade na categoria de causas de afetação da responsabilidade criminal, tem suscitado o debate e a revisão dos mais recentes estudos tendentes a discutir o estágio atual de conhecimento do tema, especialmente diante dos recentes avanços das neurociências. A evolução da metodologia de pesquisa tem tornado possível, assim, a criação de instrumentos padronizados na tentativa de quantificar e classificar tais afetações psíquicas, sendo certo que, até agora, a tendência da psiquiatria forense é a de considerar os TPs – transtornos de personalidade – como uma perturbação da saúde mental, condição clinicamente menos grave que a doença mental. Advertese, com efeito, que a apresentação de um transtorno mental nem sempre é tão óbvia, podendo passar despercebida por pessoas leigas em psiquiatria, o que leva à manutenção de muitos indivíduos em ambientes prisionais sem receber a devida atenção psiquiátrico-forense13. 13 TABORDA, José G.V; ABDALLA FILHO, Elias; CHALUB, Miguel. Psiquiatria Forense. 2ª ed, Porto Alegre: Artmed, 2012, pp. 431-449. 262 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi Importante, aqui, a referência a respeito do tratamento psiquiátrico indicado. O consenso internacional é que, até hoje, não há tratamento eficaz que leve à cura dos transtornos de personalidade antissocial ou da psicopatia. É que esses transtornos psíquicos representam fator prognóstico negativo em muitos contextos, embora isso não signifique que algumas técnicas terapêuticas não possam gerar algum benefício. Desse modo, mesmo que a eficácia para a psicopatia ainda não esteja clara, comportamentos antissociais podem responder favoravelmente a várias intervenções programáticas, como diversos tipos de psicoterapia e tratamento medicamentoso, embora, repita-se isso esteja distante do que pudesse ser considerado cura14. Independentemente, porém, dessas abordagens terapêuticas, o fato é que tais transtornos, porque situados numa região de fronteira entre a doença mental e a mera perturbação psíquica, representam um grande desafio no âmbito da responsabilidade penal, criando enormes dificuldades ao psiquiatra forense. É que seus portadores não apresentam alterações significativas do funcionamento mental, como, por exemplo, o esquizofrênico agudo. É que o psicopata não tem o mesmo prejuízo na avaliação da realidade como tem, por exemplo, o esquizofrênico. Antes, ele (psicopata) continua sendo capaz de entender e distinguir, entre suas ações, as que são consideradas lícitas e as que não o são. Assim, se ele possui capacidade de entender e aprender regras sociais, tal qual indivíduos capazes e racionais, sua decisão de se comportar em desacordo com as normas, por não ser considerada doença mental, ainda que associada à criminalidade, poderia ser vista como mais uma inclinação, da mesma forma que outras características predispõem outras pessoas a serem religiosos ou leigos, por exemplo. E tal seria tratada como uma escolha, de domínio não público, própria das sociedades liberais. Ou seja, indivíduos humanos que vivem em sociedade, basicamente se dividem em dois grupos: aqueles que têm restrições morais suficientes para não se engajar em ações criminosas e os que não têm. A pena criminal é desnecessária para os 14 HESSE, M. What should be done with antisocial personality disorder in the new edition of the Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-V)?. BMC Medicine, v. 8; 2010. p. 66. volume 15 263 i encontro de internacionalização do conpedi primeiros e inútil para os últimos, desde que estes sejam considerados incapazes por falta de motivação moral. Esse argumento em favor da responsabilização dos psicopatas defende que todos os criminosos têm, para o crime específico que cometeram, diminuição das restrições morais. Contudo, as pesquisas mais atuais apontam características genéticas, além de morfológicas e funcionais, do sistema nervoso central e periférico, associadas à psicopatia15. Uma das mais importantes implicações práticas dessa literatura referente aos avanços neurobiológicos comportamentais é a possibilidade de usar seus resultados como atenuantes da responsabilidade dos indivíduos afetados, por se concluir que tais pessoas, por serem portadoras de determinadas características biológicas, deveriam receber tratamento terapêutico em lugar de pena criminal. Mas, é de suma importância ressaltar, a esta altura, como os autores a seguir citados o fazem peremptoriamente, não ter nenhum estudo, até o momento, identificado uma relação causal entre estas alterações e as características do comportamento desses indivíduos. Além disso, estas diferenças (biológicas, anatômicas, funcionais) encontradas entre psicopatas e não psicopatas são modestas, apresentam grande área de intersecção de resultados e são baseadas em estudos com base que no número de indivíduos, o que não permite a generalização dos resultados. Assim, tanto psicopatas como não psicopatas podem apresentar estas alterações. Tal perspectiva nos remete a um risco de (mal) utilizar as medidas de estruturas anatômicas cerebrais como uma reedição de uma 15 “O exame de neuroimagem funcional em indivíduos normais engajados na efetuação de julgamentos morais revela a ativação das mesmas áreas cerebrais que, quando lesadas, dão origem à condição de sociopatia adquirida. Essas áreas compreendem o polo e a base dos lobos frontais e a parte mais anterior dos lobos temporais, principalmente o direito. Tais resultados, embora ainda preliminares, indicam que o cérebro humano é dotado de redes neurais diretamente envolvidas com o julgamento moral (Raine, 2002) Estudos cada vez mais recentes mostram o envolvimento do córtex pré-frontal no comportamento antissocial, indicando redução do metabolismo em regiões frontais. Além do envolvimento do lobo frontal, especialmente regiões mediais e laterais, também têm sido descritas reduções do metabolismo em estruturas subcorticais do sistema límbido, amígdala, hipocampo e núcleo caudado” (TRINDADE, Jorge. Manual de Psicologia Jurídica para operadores de direito. 5ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011, p. 165). 264 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi avaliação ‘lombrosiana’ dos indivíduos, agora intracerebral e revestida de tecnologia contemporânea16. Em síntese, embora a psicopatia não pertença ao núcleo duro de enfermidades ou anomalias mentais que têm sido à exaustão investigadas e plenamente descritas pela ciência médica, no dizer de Manuel Cancio Meliá17, quase toda investigação estritamente médica sobre o fenômeno é muito recente e está em acesa discussão e suas bases empíricas ainda não submetidas, totalmente, à comprovação. No momento, portanto, o diagnóstico e, em consequência, a definição da psicopatia depende de instrumentos de análise externa da conduta, em particular da “psychopathy checklist/revised (PCL-R)”, elaborada pelo psicólogo canadense Hare, mediante a qual se obtém uma pontuação (em princípio, sobre 20 itens), em atenção a que concorram na pessoa determinadas características de personalidade que se expressam em sua conduta18. Não se pretende, neste espaço, entrar nos pormenores deste método diagnóstico, nem nas características específicas da psicopatia. Para o que aqui interessa, basta referir-se a que a psicopatia consiste em uma completa ausência de empatia, o que conduz o psicopata a uma disposição anormal que se pode qualificar como uma espécie de “daltonismo moral”, na feliz expressão do mesmo autor espanhol citado Cancio Meliá: “os psicopatas apresentam uma completa ausência de freios inibitórios a respeito da realização de comportamentos socialmente desvalorados”19. E segundo parece, a psicopatia é uma constante antropológica, incidente em percentual estável em todas as épocas e em todas as culturas. Todas essas novas características da psicopatia, descobertas e aclaradas, mesmo que ainda em debate e sem embargo de sua identificação como doença mental, 16 SCHOPP, R.F.; SLAIN, A. J. Psychopathy, Criminal Responsibility and Civil Commitment as a Sexual Predator. Behav, Sci. Law, 2000. FELTHOUS, A; HENNING, S. Introduction to this issue: Internacional Perspectives on Psychopathi: an update. Behav, Sci. Law, 28, 2010, pp. 121-128 Tradução nossa.. 17CANCIO MELIÁ, Manuel. Psicopatía y Derecho Penal: algunas consideraciones introductorias. FEIJOO SANCHEZ, Bernardo José (Ed.). Op. cit. pp. 261-285. 18 HARE, R.D.; NEUMANN, C.S. Psychopathy: Assessment and Forensic Implications. The Canadian Journal of Psychiatry, v. 54, n. 12, 2009, pp. 791-802. 19 CANCIO MELIÁ, Manuel. Op. cit. pp. 261-285. volume 15 265 i encontro de internacionalização do conpedi na mais recente bibliografia filosófica e psicológica em inglês, estão dotadas de fundamentos para conduzir à conclusão de que se tratam, os psicopatas, de agentes quase irracionais, devido à sua incapacidade para interiorizar valores, e que, por isso, não existe a possibilidade de se formular um juízo de reprovação moral, uma vez identificada com precisão a base neurofisiológica da psicopatia e, assim, uma vez explicada a origem de sua conduta desviada. Como entende Cancio Meliá: Ora, em princípio, se pensássemos a culpabilidade como expressão do caráter da pessoa ou uma emanação de sua personalidade, o modo de ser do psicopata é o que lhe faz não ter em conta os demais, não considerar os interesses alheios, e, portanto, delinquir por uma insignificância contanto que seu interesse egoísta se quede satisfeito. Sem embargo, desde este ponto de vista aqui adotado – e com as cautelas antes referidas acerca dos necessários níveis de certeza no diagnóstico que ainda se devem alcançar -, é necessário ao menos apresentar outra solução. Mas, se partirmos para a construção social da culpabilidade – o conceito funcional de culpabilidade, de acordo com este ponto de vista, a culpabilidade é uma magnitude que deriva das necessidades de prevenção geral positiva, vale dizer, a culpabilidade significa que a explicação da infração da norma ocorrida é fixada ao infrator, por ausência de uma explicação alternativa. A consequência é a imposição de uma pena ao infrator como mecanismo de estabilização contrafática da norma. Pois bem, se se parte deste conceito funcional da culpabilidade, desenvolvido por JAKOBS, portanto, esta queda definitiva pela missão que cumpre. Sua função é a de identificar a motivação defeituosa do autor como razão do conflito. Sua falta de assunção do ordenamento é o que explica a existência da violação da norma. Nesta construção teórica, a superposição do normativo ao pretendidamente fático-biológico mostra que se deve avançar até uma definição mais clara das categorias de culpabilidades implicadas, que tenha em conta o caráter normativo – devido às condicionantes sociais reais do sistema de imputação penal – do conceito de culpabilidade, vale 266 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi dizer, até um conceito funcional de culpabilidade. Não importa a potência do estímulo, senão a competência para ele, e esta se define em função das necessidades do sistema social. Então, o que se pode dizer sobre estas bases para nosso problema, o maior conhecimento das bases neurifisiológicas da psicopatia e sua possível relevância para a imputabilidade? Parece claro, em síntese, que, a quem padece psicopatia, não se pode dissociar de sua conduta e atribuir esta a sua falta de capacidade de sentir a infração da norma. Não são iguais aos demais. Se pensamos, como fazem Erickson e Vitacco, que ‘psychopaths presumably obey conventional norms for the same reason most other people do: they understand that the law is fundamental about regulating conduct´, afirmamos que o direito penal sempre significa e só significa elevar o famoso mastro de Hegel frente ao injusto. E sabemos que as implicações da afirmação de culpabilidade neste plano do sistema social vão muito além desse mecanismo20. 4.conhecimentos neurocientíficos – novos par adigmas? Posto que apontadas as características do funcionamento cerebral de pessoas diagnosticadas como psicopatas, seria possível afirmar que recentes avanços das neurociências21 embasariam alguns dos postulados de determinadas concepções de base antropológica da criminalidade22. Estariam os deterministas situados em premissas mapeadas em estruturas psicossomáticas de atuações inevitáveis? É possível afirmar, com base em investigações modernas contempladas em estudos de neurociência cognitiva, que essas desfuncionalidades comprometem aspectos comportamentais numa espécie de determinismo neurobiológico? 20CANCIO MELIÁ, Manuel. Psicopatía y Derecho Penal: algunas consideraciones introductorias. FEIJOO SANCHEZ, Bernardo (Ed.). Op. cit. pp. 281-282. Tradução nossa. 21 Neurociências ou ciências do cérebro, representam o conjunto das ciências que têm por objeto o estudo do sistema nervoso. (HOTTOIS, Gilbert; MISSA, Jean-Noël. Nouvelle encyclopédie de bioéthique. Bruxelas: De Boeck Université, 2001). 22 Interessantes estudos sobre a conexão das neurociências com o direito penal podem ser encontrados no livro DEMETRIO CRESPO, Eduardo (Dir.); MAROTO CALATAYUD, Manuel (Coord.). Neurociencias y derecho penal – nuevas perspectivas em el ámbito de la culpabilidade y tratamento jurídico-penal de la peligrosidad. Montevideu/Buenos Aires: Bdef. 2013. volume 15 267 i encontro de internacionalização do conpedi Se isso pode soar exagero, não se pode olvidar que tais especulações científicas já nos permitem, definitivamente, explorar melhor a incompletude do conceito de responsabilidade penal, reivindicando uma maior compreensão biopsicossocial capaz de permitir avanços nessa mesma discussão, lançando novas bases sobre os limites da base de imputabilidade. Como assentam Silvio José Lemos Vasconcellos et alli23, (...) afirmar, por exemplo, que um comportamento é neurobiologicamente determinado não é o mesmo que afirmar que esse mesmo comportamento seja geneticamente determinado. Com base na primeira afirmação, infere-se que ocorrências cerebrais específicas geram, por si só, comportamentos específicos. Mas, ao contrário do que pode ocorrer diante da segunda afirmação, não se infere que ocorrências cerebrais só possam ser geradas por uma cadeia de eventos genéticos. Em outras palavras, determinismo neurobiológico não é o mesmo que determinismo genético e nem o mesmo que determinismo ambiental. A primeira afirmação nos remete ao fato de que tudo aquilo que acontece no cérebro é condição necessária e presumivelmente suficiente para gerar um comportamento. Independe, por sua vez, do próprio fato de que os acontecimentos cerebrais tenham sido anteriormente determinados por fatores genéticos e/ou ambientais. Constata-se apenas, com base nessas considerações, que todo e qualquer comportamento é gerado no sistema nervoso central e em nenhum outro lugar. ... De forma mais peremptória, cabe destacar, portanto, que os achados científicos apresentados não permitem concluir que psicopatas nasçam psicopatas. Sugerem, de outra forma, que, tanto por influências genéticas, como por influências ambientais, os indivíduos com esse transtorno consolidam, ao longo de seu desenvolvimento, formas mais precárias de processar e fazer uso das informações que fundamentam os processos de interação social. Portanto, abstraída a questão ainda irrespondida pelo estágio atual das neurociências - embora o debate em acesa discussão sobre novas bases teóricas -, em relação aos psicopatas, de um suposto determinismo neurobiológico, o certo é que determinados psicopatas podem e devem beneficiar-se de um possível diagnóstico 23VASCONCELLOS, Silvio José Lemos; et al. A semi-imputabilidade sob o enfoque da neurociência cognitiva. Revista de Estudos Criminais, ITEC, nº 38, 2010. 268 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi de seu transtorno da personalidade, de modo a torná-los passíveis nessa categoria nosológica da condição de semi-imputáveis, mesmo os reconhecendo capazes no que se refere aos dois postulados clássicos da imputabilidade (intelectivo e volitivo ou ético e de determinação), e isso quando o grau de descontrole comportamental em suas interações sociais estiver em relação a uma neuroconectividade alterada de modo a determinar uma capacidade de autodeterminação efetivamente diminuída nessas pessoas. E isso não importará, propriamente, se esses padrões de neuroconectividade estão ligados a uma carga genética exclusivamente, ou também a um fato ambiental concorrente. Portanto, à pergunta: o que fazer com o psicopata?, a qual ainda, psicólogos, sociólogos, psiquiatras e juristas não alcançaram uma resposta definitiva, caberia acrescentar a reflexão sobre o que há de errado ou aparentemente diferente nele, posto serem suas características cerebrais essencialmente humanas24. 5.conclusões Como bem pondera Cancio Meliá25, como sabido, “nos últimos anos assistimos a um verdadeiro vendaval no marco da discussão filosófico-moral e jurídico penal, vendaval que tem sido gerado pelos mais recentes avanços nas investigações das neurociências(...) Como também sabemos, alguns dos protagonistas da investigação neurocientífica, e alguns penalistas, pensam que o que se está descobrindo nestes últimos anos acerca do funcionamento do cérebro, especificamente, acerca de como têm lugar os processos de tomada de decisões, revelam que nossos pontos de partida fundamentais na hora de estabelecer a responsabilidade penal estariam errados. Desde este ponto de vista, o vendaval seria o anúncio de uma tormenta, de um furacão que transformará toda nossa imagem sobre a noção de responsabilidade, e, com ela, modificará para sempre o conjunto do sistema de reação frente 24 HARRIS, Judith R. Não há dois iguais: natureza humana e individualidade. São Paulo: Globo, 2007. 25CANCIO MELIÁ, Manuel. Psicopatía y Derecho Penal: algunas consideraciones introductorias. FEIJOO SANCHEZ, Bernardo (Ed.). Op. cit. pp. 261-262. Tradução nossa. volume 15 269 i encontro de internacionalização do conpedi ao comportamento desviado, levando-se consigo o direito penal tal e como o conhecemos. Sintética e simplificadamente: a noção jurídico-penal de culpabilidade se assenta na ideia de que o sujeito que consideramos responsável por seus atos, ao o considerarmos culpado, é reprovável pelo que fez porque podia atuar de outro modo. Então, se é certo, como afirmam alguns neurocientistas, que, na realidade as decisões não se tomam naquele extrato do cérebro que chamamos “eu”, vale dizer, por parte das estruturais neurais que configuram a consciência, senão que a decisão na verdade se acomoda a processos neurais não conscientes, em suma, se é certo que não “fazemos o que queremos”, senão que “queremos o que fazemos”, todo o edifício da responsabilidade jurídico penal deveria cair em sua base e, com ele, todo nosso sistema penal baseado na liberdade de escolha, a reprovação e a culpabilidade, e dar seguimento a um novo modo de tratar o comportamento desviado, assentado sobre a periculosidade e seu tratamento, e não sobre a culpabilidade e seu castigo”. E essa advertência, como resposta a esse tão grande desafio, desde a perspectiva histórica da natureza e dos fins da pena, pode levar à afetação dos pilares essenciais do direito penal e, em particular, remover os fundamentos do conceito clássico da culpabilidade. E aqui, em especial, encaixa-se o conceito funcional de culpabilidade que a fundamenta no princípio da prevenção geral positiva e, assim, busca imunidade às dúvidas semeadas pelas neurociências em torno da existência de uma liberdade humana no sentido enfático-empírico. Sem embargo dessa perspectiva ainda não permitir que se formule a grande questão da abolição da culpabilidade, não significa que todo esse avanço no conhecimento do funcionamento do cérebro humano resulte irrelevante para o conceito jurídico-penal de culpabilidade. Muito ao contrário, pode acender – e está, efetivamente, a lançar – novas e ofuscantes luzes aos seus postulados clássicos, orientando estandares paradigmáticos na definição da psicopatia e formulando agudas especulações sobre as consequências que poderão derivar para a prática forense das investigações neurocientíficas atualmente em curso. E tudo a ponto de alguns autores, tal como assenta Adrián Marcelo Tenca26, afirmarem, em seu entendimento, “conforme o atual conceito de enfermidade 26 TENCA, Adrián Marcelo. Imputabilidad del psicópata. Buenos Aires: Astrea. 2009, pp. 182183. Tradução nossa. 270 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi mental, aos aportes das ciências da conduta, que permitem conhecer hoje muito melhor as características e ilimitadas capacidades dos psicopatas e, particularmente, frente a um conceito normativo da culpabilidade penal, não me cabe dúvida de que o psicopata nunca pode ser considerado imputável”. Acrescentando, parece que as ciências da conduta humana, que outrora haviam entendido a enfermidade mental como sinônimo de loucura, vale dizer, como disfunção da esfera individual, e, assim, caído em um critério de enfermidade só determinado pela inteligência e seu funcionamento, como derivado de uma visão do mundo pretensamente cientificista, fundada em um materialismo ingênuo e mecanicista, em que o primordial era sempre o entendimento causal dos fenômenos e, por aí, tendiam a ver como enfermo mental só o incapaz de captar esse processo. Já hoje as ciências da conduta humana avançaram e esta ideia errônea foi superada, como também a cosmovisão positivista, não é menos certo que a “atitude” de muitas pessoas segue arrastando esta visão do materialismo ingênuo como substrato inconsciente. Daí que frequentemente seja difícil explicar que tão enfermo é o que padece de uma disfunção de sua esfera intelectual como o que padece de uma disfunção de sua esfera afetiva, sem contar com que a separação resultante de outrora é hoje posta em séria discussão. Quem sabe, então, possamos chegar ao final deste ligeiro ensaio com a mesma sensação a que Cancio Meliá chegou, no sentido de que, sobre essa base jusfilosófica, se poderá formular a tese antes anunciada: ao menos em alguns casos, no sentido de que a psicopatia atuará como causa de inimputabilidade em um futuro não demasiadamente longo. 6.referências BERGEL, Darío Salvador; DIAZ, Alberto (Orgs). Biotecnologia y sociedad. Buenos Aires: Ciudad Argentina, 2001, p.372 BERTOLOTE, J.M. (org) Glossário de Termos de Psiquiatria e Saúde Mental da CID-10 e seus derivados. Porto Alegre: Ed. Artes Médicas, 1997. CANCIO MELIÁ, Manuel. Psicopatía y Derecho Penal: algunas consideraciones introductorias. FEIJOO SANCHEZ, Bernardo (Ed.). Derecho Penal volume 15 271 i encontro de internacionalização do conpedi de la Culpabilidad y Neurociencias, Cizur Menor (Navarra): Ed. Thomson Reuters/Aranzadi/Civitas, 2012. pp. 261-285. DEMETRIO CRESPO, Eduardo (Dir.); MAROTO CALATAYUD, Manuel. (Coord.). Neurociencias y derecho penal – nuevas perspectivas em el ámbito de la culpabilidade y tratamento jurídico-penal de la peligrosidad. Montevideu/ Buenos Aires: Bdef. 2013. FEIJOO SANCHEZ, Bernardo (Ed.). Derecho Penal de la Culpabilidad y Neurociencias. Cizur Menor (Navarra): Ed. Thomson Reuters/Aranzadi/Civitas, 2012. ______. Derecho penal y neurociencias. ¿una relación tormentosa? FEIJOO SANCHEZ, Bernardo (Ed.). Derecho Penal de la Culpabilidad y Neurocienciass. Cizur Menor (Navarra): Ed. Thomson Reuters/Aranzadi/Civitas, 2012. pp. 71-124. HARE, R.D.; NEUMANN, C.S. Psychopathy: Assessment and Forensic Implications. The Canadian Journal of Psychiatry, v. 54, n. 12, 2009, pp. 791-802. HARRIS, Judith R. 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Manual de Psicologia Jurídica para operadores de direito. 5ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011. VASCONCELLOS, Silvio José Lemos et al. A semi-imputabilidade sob o enfoque da neurociência cognitiva. Revista de Estudos Criminais, ITEC, nº 38, 2010. volume 15 273 i encontro de internacionalização do conpedi regulação econômica e direito penal econômico: eficácia e desencontro no crime de evasão de divisas Thiago Bottino1 Resumo O artigo aponta o descompasso entre o direito penal econômico e a realidade econômica brasileira relativamente ao crime de evasão de divisas e sustenta haver incongruência na punição dessa conduta à luz das normas administrativas que regulam essa mesma atividade econômica. Dividido em quatro partes, o texto aborda a questão do bem-jurídico supraindividual relacionado à evasão de divisas; analisa o tipo penal previsto no art. 22 da Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional; indica os pontos em que a realidade econômica modificouse desde a edição da referida Lei; e, por fim, propõe soluções de interpretação do art. 22 da Lei 7.492/1986 para a adequação entre o plano dos fatos e o plano das normas. Palavras-chave Evasão de divisas; Direito penal econômico; Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional; Reservas cambiais; Crimes econômicos. Abstract The article points out to the gap between criminal law for white- collar crimes and the Brazilian economy, especially in regards to tax evasion crimes. It argues that there is an inconsistency in the criminal punishment of this conduct in light of the administrative rules governing the same economic activity. The paper is divided in four sections, it addresses the issue of diffuse legal interests; it examines the offense contained in the art. 22 of the White Collar Crime Law; it also 1 Doutor e Mestre em Direito Constitucional pela PUC-Rio. Professor-adjunto e Coordenador de Graduação da FGV Direito Rio. Professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Membro efetivo da Comissão Permanente de Direito Penal do IAB. volume 15 275 i encontro de internacionalização do conpedi mentions in which points the economic reality has changed since the enactment of this law and finally proposes a new interpretation of art. 22 so that facts and norms are compatible. Key words Tax evasion; Criminal law for white-collar crime; Crimes against the National Financial System; Foreign exchange reserves; Financial crimes. “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades Muda-se o ser, muda-se a confiança; Todo o mundo é composto de mudança, Tomando sempre novas qualidades” Luís Vaz de Camões (Sonetos). 1. introdução2 O tema não é novo,3 mas é atual. E vem ganhando cada vez mais importância. Há alguns anos os juristas e os economistas vêm alertando para a incongruência do crime de evasão de divisas no atual cenário econômico.4 2 Esse artigo é produto das discussões iniciais realizadas no âmbito do projeto “Reforma da Legislação Penal Econômica”, um dos vários projetos desenvolvidos pelo grupo de pesquisa “Direito Penal, Economia, Governança e Regulação”. Agradeço integrantes do grupo, em especial a Luiz Francisco Mota Santiago Filho, Luciana dos Reis Frattini, Heitor Campos Guimarães e Mariana Barbosa. O grupo desenvolve diferentes pesquisas, todas relacionadas aos aspectos que aproximam a política econômica, as regras administrativas, as regras de mercado e o direito penal. 3 Destacam-se, dentre vários outros, os trabalhos inovadores de Nilo Batista (Consumação e tentativa no crime de evasão de divisas. In: Shecaira, Sérgio Salomão (org.). Estudos criminais em homenagem a Evandro Lins e Silva. São Paulo: Método, 2001), Ricardo Pieri (Evasão de divisas? RBCCrim 62/134. São Paulo: Ed. RT, set-out., 2006), Luciano Feldens e Andrei Zenker Schmidt (O crime de evasão de divisas: a tutela penal do Sistema Financeiro Nacional na perspectiva da política cambial brasileira. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006) e José Carlos Tortima e Fernanda Lara Tortima (Evasão de divisas: uma crítica ao conceito territorial de saída de divisas contido no parágrafo único do art. 22, da Lei 7.492/1986. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009). 4 Exemplo disso são os recorrentes artigos e editoriais de jornais sobre o tema do repatriamento de valores, a crescente entrada de dólares na economia brasileira e a descriminalização da evasão de divisas: José Carlos Tórtima (O Globo, 23.10.2008), Carlos José Marques (IstoÉ Dinheiro, 03.06.2009), Fausto Martin de Sanctis (Folha de S. Paulo, 06.10.2009, p. A3), José 276 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi Já há, inclusive, projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional5 prevendo anistia para aqueles que repatriarem depósitos mantidos no exterior e nunca declarados às autoridades brasileiras (mantendo, porém, a incriminação da conduta para depósitos não repatriados). Se, por um lado, a discussão avança lentamente no plano legislativo, por outro, a discussão parece inexistir no plano judicial. Isso quando, há muito tempo, o tema está pacificado no plano econômico. A inutilidade de se manter a punição pelo crime de evasão de divisas (art. 22 da Lei 7.492/1986) nos mesmos moldes em que foi concebida na década de 1980 do século passado se insere, obviamente, dentro de um problema mais amplo, relacionado à necessária reforma da legislação penal econômica em seu conjunto. Assim como o crime de evasão de divisas, várias outras figuras delitivas perderam o sentido e a atualidade ou precisam se adaptar aos novos tempos. E não precisa ser especialista para entender o porquê: a economia brasileira transformouse radicalmente nos últimos 25 anos! Os fantasmas de década de 1980 (dívida externa, hiperinflação) não são os mesmos de hoje. Mas ainda estamos amarrados à legislação daquela época.6 Mentor (Folha de S. Paulo, 14.10.2009), Antenor Madruga (Valor Econômico, 10.12.2009, p. A14), O Estado de São Paulo (A inundação de dólares continua, 11.03.2011), IBCCrim (Boletim IBCCrim 221, abr. 2011), Carlos Alberto Sardenberg (O Globo, 02.06.2012). 5 No Senado: PL 354/2009, de autoria do senador Delcídio Amaral (PT-MS). Na Câmara: Lei 113/2003, do deputado Luciano Castro (PR/RR) e PL 5.228/2005, do deputado José Mentor (PT-SP). 6 Ao comentar os 20 anos da Lei 7.492/1986, Luiz Carlos dos Santos Gonçalves apontou a “morte” da Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional: “A lei não se mostrou maleável para responder a novas demandas de proteção. Exemplificamos com os seguintes itens: (a) a falta de transparência na gestão de instituições financeiras e na atuação dos órgãos de fiscalização; (b) as auditorias negligentes, imperitas ou fraudulentas; (c) a relação incestuosa entre órgãos governamentais e instituições financeiras públicas ou com capitais públicos, como bancos oficiais ou fundos de pensão; (d) a gestão de recursos vindos de agências internacionais de fomento; (e) as taxas extorsivas de juros e o abuso na concessão de empréstimos; (f) as condutas praticadas por pessoas jurídicas, às vezes, com sede no exterior, dificultando a individualização da responsabilidade penal; (g) a garantia de ressarcimento dos poupadores e investidores, quando lesados pela gestão inescrupulosa de instituições financeiras” (Gonçalves, Luiz Carlos dos Santos. Exame necroscópico da Lei do Colarinho Branco. In: Rocha, João Carlos de Carvalho et alii (orgs.): Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional – 20 anos da Lei n. 7.492/1986. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 2). volume 15 277 i encontro de internacionalização do conpedi Essa situação ensejou a criação de projeto denominado “Reforma da legislação penal econômica” (cujo objetivo é identificar as principais dicotomias entre a legislação e a realidade econômica que a lei pretende regular) no âmbito do grupo de pesquisa denominado “Direito Penal, Economia, Governança e Regulação”7 desenvolvido pela Escola de Direito do Rio de Janeiro da FGV. O horizonte de trabalho é vasto e não faltam desafios. Podemos citar, apenas a título de exemplo, a necessidade de melhor definir as condutas que caracterizam os crimes de gestão fraudulenta e temerária; a uniformização do tratamento legal dos crimes tributários; e o aprimoramento das figuras de insider trading e manipulação de mercado de capitais, dentre várias outras. Entretanto, dentre tantos temas existentes, a evasão de divisas se sobressai. No caso desse delito, a dicotomia entre o plano normativo (leis e portarias) e o plano fático (a política econômica na gestão e controle das reservas cambiais) é tão gritante que não havia como iniciar os trabalhos senão por esse tipo penal. Afinal, se o direito se descola completamente da realidade que pretende regular, ele perde a capacidade de se justificar perante a sociedade e se torna uma retórica vazia; por outro lado, concebido apenas como formalização normativa imutável, o direito deixa de contribuir na construção de um projeto político de transformação social. Nesse ponto, o crime de evasão de divisas é, talvez, hoje o exemplo mais claro de instrumentalização do direito penal para auxiliar a regulação do sistema financeiro que, ao logo do tempo, desconectou-se da política econômica que pretendia defender, transformando-se em norma inócua do ponto de vista do bem jurídico que visava a proteger, restando apenas o efeito perverso inerente a qualquer norma penal consistente na possibilidade de punição e privação de liberdade.8 7 O grupo desenvolve diferentes pesquisas, todas relacionadas aos aspectos que aproximam a política econômica, as regras administrativas, as regras de mercado e o direito penal. 8 “O delito de evasão de divisas tende a desaparecer, perante os interesses do capitalismo financeiro transnacional que hoje dá as cartas, sendo substituído pela nova estrela da pauta de políticas criminais do empreendimento econômico internacionalmente dominante: a lavagem de dinheiro. Enquanto não sobrevém a abolitio criminis, uma aplicação dogmaticamente correta da lei recomendaria aprofundar a reflexão sobre diversos aspectos técnicos polêmicos, entre os quais está a tentativa do delito” (Batista, Nilo, op. cit.) 278 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi A proposta do presente trabalho é apresentar uma solução jurídica que compatibilize os planos da realidade e da legalidade, no que tange ao crime de evasão de divisas. O texto está dividido em quatro partes: na primeira, é feita uma breve apresentação sobre o crime econômico e a noção de bem jurídico supraindividual; a segunda parte dedica-se a apresentar o tipo penal de evasão de divisas tal como definido no plano normativo (a lei e demais instrumentos normativos que o complementam) e jurisprudencial (como os tribunais superiores têm aplicado a lei); na terceira parte, aponta-se a incongruência da norma penal face à realidade econômica atual; por fim, a quarta e última parte desse trabalho propõe soluções de interpretação do art. 22 da Lei 7.492/1986 para a adequação entre o plano dos fatos e o plano das normas. 2. o crime econômico O conceito de “direito penal econômico” tem sido longamente discutido nos últimos anos. Surgido no âmbito da criminologia estaduniedense,9 fortemente associado às características dos seus autores e a problemas de seletividade do sistema penal,10 o direito penal econômico pode ser definido hoje sob duas 9 A terminologia “crime de colarinho branco” (white collar crime) foi utilizada pela primeira vez pelo sociólogo estadunidense Edwin H. Sutherland, em 1939 durante a 34.ª conferência anual da Sociedade Americana de Sociologia. Naquele ano a conferência foi realizada em conjunto com a 52.ª conferência anual da Associação Americana de Economia. O objetivo da palestra inaugural proferida por Sutherland era chamar atenção para o exame de uma categoria de ilícitos que até então era solenemente ignorada nos estudos conduzidos pelos sociólogos e criminólogos: os crimes praticados por diretores das grandes corporações (Sutherland, Edwin H.: White collar crime – The uncut version. New Haven: Yale University Press, 1983). 10Uma das questões importantes em relação aos crimes econômicos diz respeito ao funcionamento do sistema penal. Os meios de comunicação e a sociedade em geral têm a percepção de que o sistema penal opera de forma seletiva, privilegiando os autores de crimes econômicos e atuando de forma mais grave e intensa sobre a população sem recursos econômicos. Esse traço de funcionamento diferenciado já fora identificado por Sutherland, que explicava que a aplicação diferenciada da lei pode ser debitada a três fatores: (1) status: o poder imuniza os “homens de negócio” em relação aos crimes, já que incriminá-los poderá trazer problemas para o incriminador no futuro; (2) homogeneidade cultural: juízes, administradores, legisladores e homens de negócios possuem a mesma formação cultural, muitas vezes partilham as mesmas origens sociais e essa homogeneidade faz com que não seja uma tarefa fácil caracterizar os criminosos econômicos dentro do estereotipo do criminoso comum; (3) a relativa desorganização na reação aos crimes de colarinho branco: as violações das leis pelos homens de negócios são complexas e produzem efeitos difusos. Não se tratam volume 15 279 i encontro de internacionalização do conpedi diferentes perspectivas. A primeira, de cunho criminológico,11 observa as condutas praticadas, seus agentes, suas causas e finalidades, além das características objetivas desses delitos e, por esse critério, define o direito penal econômico como o ramo do direito penal voltado para a identificação e criminalização de condutas praticadas nas relações comerciais ou na atividade empresarial, pelos administradores, diretores ou sócios de empresas, geralmente de forma não violenta e envolvendo fraude ou violação da relação de confiança.12 No entanto, é possível outra definição, relacionada à dogmática penal,13 tomando por base o bem jurídico protegido, entendido como bem individual ou coletivo que merece e recebe proteção jurídica e que, quando é especialmente valioso, pode ser protegido por meio do direito penal.14 11 12 13 14 de agressões simples e diretas de um indivíduo contra outro. Além disso, podem permanecer por muitos anos sem serem descobertas (Sutherland, Edwin H. op. cit.) “La criminalidad económica constituye um fenômeno complejo que requiere el conoscimento de aspectos que no son jurídico penales em sentido estricto” (Bacigalupo, Enrique: Derecho penal econômico. Buenos Aires: Hammurabi, 2004. p. 29). “Otra aproximación de carácter clásicamente criminológico acentúa las particularidades del autor, a quien Sutherland describió como una persona de alta reputación y de ‘cuello blanco’. Esta explicación basada específicamente en el autor del white collar crime fue ampliada por la criminología reciente hacia una perspectiva, ya indicada por Sutherland, de la realización de la conducta en el ejercicio de una profesión (occupational crime). Este tipo de aproximaciones criminológicas no parecen ser aptas para el derecho penal y, en general, para todo derecho debido a que, por razones constitucionales de seguridad jurídica, es imprescindible la descripción legislativa del hecho y no la definición del autor” (Tiedmann, Klaus. Manual de derecho penal económico. Valencia: Tirant lo Blanch, 2010. p. 57). “Partindo da teoria criminológica para a teoria da conduta, pode-se afirmar que o direito penal Econômico representa muito mais do que uma mera especialização do direito penal clássico ou comum. Na verdade, em torno dele aglutinam-se importantes problemas dogmáticos, cuja solução se faz relevante para todo sistema normativo penal” (Souza, Arthur de Brito Gueiros. Da criminologia à política criminal: direito penal econômico e o novo direito penal. In: ______ (org.). Inovações no direito penal econômico – Contribuições criminológicas, políticocriminais e dogmáticas. Brasília: Escola Superior do Ministério Público da União, 2011. p. 118). “A noção de bem jurídico, já por muitos tratada, constitui o marco que delimita os extremos daquilo que legitimamente pode e não pode ser criminalizado. Esta é hoje uma concepção generalizada. Para a política criminal, é a tutela dos bens jurídicos que simultaneamente define a função do direito penal e marca os limites da legitimidade da sua intervenção. A dogmática vê nesta categoria o critério de uma interpretação teleológica assim como o fundamento da ilicitude material” (Sousa, Susana Alves de: Direito penal das sociedades comerciais. In: Faria Costa, José de et alii. Direito penal económico e europeu: textos doutrinários. Coimbra: Coimbra Ed., 2009. p. 436). 280 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi O Direito penal teria o encargo de proteger a sociedade salvaguardando os bens jurídicos relevantes aos interesses sociais. Além disso, a noção de bem jurídico também estabeleceria limites a serem observados pelo jus puniendi do Estado, que não poderia produzir normais penais as quais não tivessem por escopo proteger bens jurídicos anteriormente assimilados pelo ordenamento. Sendo assim, o objeto de proteção penal deveria ser prontamente delimitado, pois a falta de definição do bem jurídico tutelado acarretaria, indubitavelmente, a ilegitimidade da própria norma. O direito penal orienta a escolha dos bens jurídicos a merecerem sua tutela através da aplicabilidade dos princípios da subsidiariedade e fragmentariedade. O princípio da subsidiariedade estabelece que o direito penal só deva atuar na defesa dos bens jurídicos imprescindíveis à coexistência pacífica dos homens e que não podem ser eficazmente protegidos de forma menos gravosa. Desse modo, a lei penal só poderá intervir quando for absolutamente necessário para a sobrevivência da comunidade, como ultima ratio. Já com o postulado da fragmentariedade, tem-se que a função maior de proteção de bens jurídicos atribuída a lei penal não é absoluta. O que faz com que só devam eles ser defendidos penalmente ante certas formas de agressão, consideradas socialmente intoleráveis. Isso quer dizer que apenas as ações ou omissões mais graves endereçadas contra bens valiosos podem ser objeto de criminalização.15 Tradicionalmente, a proteção de bens jurídicos por meio do direito penal sempre esteve restrita a elementos materiais e individuais. Fruto do paradigma moderno caracterizado pelo racionalismo subjetivista (que coloca a razão humana como único meio legítimo para explicar a realidade) e pelo cientificismo (que impôs a prevalência do raciocínio lógico-formal), aliados à lógica utilitarista (de prevalência dos interesses individuais na atuação social), o direito penal iluminista era fortemente influenciado pela noção de direitos individuais exigíveis frente ao Estado. 15 Nas palavras de Miguel Reale Jr: “(...) o direito penal tem caráter subsidiário, devendo constituir a ultima ratio e por isso ser fragmentário, pois o antijurídico penal é restrito em face do antijurídico decorrente do ordenamento, por ser obrigatoriamente seletivo, incriminando apenas algumas condutas lesivas a determinado valor, as de grau elevado de ofensividade” (Reale Jr., Miguel: Instituições de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2002. vol. 1, p. 25). volume 15 281 i encontro de internacionalização do conpedi Segue daí que o direito penal foi utilizado como instrumento para limitar o poder punitivo do Estado e estabelecer garantias em defesa da liberdade individual contra projetos estatais que a limitassem em virtude de “interesses sociais” excludentes e autoritários. A elaboração de um conjunto de regras e princípios penais (hoje associado ao garantismo)16 visava a afastar a tipificação de condutas penais por meio de normas que não estejam relacionadas a fatos, mas a pessoas, “Como as normas que, em terríveis ordenamentos passados, perseguiam as bruxas, os hereges, os judeus, os subversivos e os inimigos do povo; como as que ainda existem em nosso ordenamento, que perseguem os ‘desocupados’ e os ‘vagabundos’, os ‘propensos a delinquir’ (...)”.17 Não obstante as mudanças socioeconômicas e tecnológicas nos últimos séculos tenham sido avassaladoras, tanto a soberania popular como a noção de garantias invioláveis dos indivíduos são construções teóricas herdadas da modernidade que não devem ser solapadas em nome de uma pretensa pós-modernidade,18 sobretudo porque nenhum avanço científico, econômico ou tecnológico foi capaz de colocar em xeque a justificação racional do poder estatal ou a concepção ilustrada e democrática de Estado de direito, em que o Estado não é um fim em si mesmo, mas um meio que tem como fim a tutela da pessoa humana, de seus direitos fundamentais, de sua liberdade e da segurança coletiva. Partindo da premissa de que há elementos constitucionais que desempenhariam a função de proteger a comunidade de seus próprios excessos, sem que isso 16 No plano do direito penal material, o sistema garantista impõe as seguintes regras: Nulla poena sine crimine (retributividade); Nullum crimen sine lege (legalidade); Nulla lex (poenalis) sine necessitate (necessidade); Nulla necessitas sine injuria (lesividade ou ofensividade do evento); Nulla injuria sine actione (materialidade); Nulla actio sine culpa (culpabilidade ou responsabilidade pessoal). 17 Ferrajoli, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Ed. RT, 2002. p. 31. 18 “Como quiera que los ideales de la modernidad fueron los valores ilustrados de la razón, la libertad, la igualdad y la fraternidad universal, deberíamos ser conscientes que la negociación posmoderna de la tradición ilustrada comporta un abandono de esos valores que siguen siendo básicos. Tiene razón Habermas cuando indica que la modernidad constituye un proyecto inacabado y que, en lugar de abandonar ese proyecto como una causa perdida, deberíamos aprender de los errores de aquellos programas extravagantes que trataron o tratan de negar la modernidad” (Perez Luño, Antonio-Enrique. Derechos humanos y constitucionalismo en la actualidad: ¿Continuidad o cambio de paradigma? In: Perez Luño, Antonio Enrique (org). Derechos humanos y constitucionalismo ante el tercer milenio. Madri: Marcial Pons, 1996. p. 13). 282 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi signifique impedi-la de construir sua própria história e de exercer sua autonomia política, defende-se o necessário atrelamento dos bens supraindividuais, notadamente a ordem econômica e o sistema financeiro, a bens individuais. Já há alguns anos, no entanto, autores defendem a possibilidade de tutela penal de bens imateriais, do qual seria exemplo a ordem econômica.19 A proteção da ordem econômica (e, por consequência, do sistema financeiro) seria uma característica das transformações socioeconômicas pelas quais passaram as democracias ocidentais nas últimas décadas. O final do século XX e o princípio do século XXI são caracterizados por forte expansão nos processos de integração econômica, social e cultural. As grandes distâncias geográficas foram demolidas pelo avanço da tecnologia de comunicação, pelo acesso irrestrito à informação disponibilizada na rede mundial de computadores e na integração dos sistemas financeiros globais. Essa integração ocorre no âmbito dos governos nacionais, dos blocos regionais e de forma muito mais incisiva nas transações comerciais entre indivíduos. A sociedade capitalista entre em uma nova fase denominada sociedade pós-industrial. Nesse sentido, os diversos fatores ligados ao complexo funcionamento do mercado mundial acabaram criando um ambiente fértil para a proliferação dos crimes econômicos. São características dessa sociedade pós-industrial, além da globalização, da integração supranacional e dos avanços tecnológicos e científicos, também o crescimento de um sentimento de insegurança. Os riscos inerentes à nova 19 “A superação da razão moderna há-se passa, primacialmente, pela assunção de uma nova ética social, dirigida para a vida, para a dignidade da pessoa humana e para a solidariedade. Os renovados desafios ecológicos, técnicos e sociais – colocados pela pós-modernidade – tiveram o mérito de elucidar a inadequação da resposta oferecida pela racionalidade técnico-instrumental. Hoje, porventura mais do que nunca, revela-se de suma importância uma adequada articulação entre ética, economia e ecologia” (Simões, Pedro Coelho. A supraindividualidade como factor de superação da razão moderna. In: Costa, José de Faria. Temas de direito penal económico. Coimbra: Coimbra Ed., 2005. p. 307-308). No mesmo sentido, afirmava o falecido Prof. João Marcello de Araújo Jr.: “(...) os bens jurídicos a serem selecionados pela lei penal não se limitam mais aos ‘naturais’ e ao patrimônio individual. A inserção social do homem é muito mais ampla, abrangendo todas as facetas da vida econômica. Daí um novo bem jurídico: a ordem econômica, que possui caráter supraindividual e se destina a garantir a política econômica do Estado, além de um justo equilíbrio na produção, circulação e distribuição de riqueza entre os grupos sociais” (Araujo Jr., João Marcello. O direito penal econômico. RBCCrim 25/142. São Paulo: Ed. RT, jan.-fev. 1999). volume 15 283 i encontro de internacionalização do conpedi organização econômica e financeira são incomensuráveis e imprevisíveis. É nesse ambiente global tão hostil a valores como a previsibilidade e a certeza, que o risco se tornou uma variável a ser considerada no âmbito do direito penal, dado o sentimento generalizado que marca as sociedades contemporâneas.20 O advento da sociedade de risco ocasionou sérias modificações no tratamento oferecido à noção de bem jurídico penal. Tal fato está intimamente ligado à expansão do direito penal e a sua crise. A sociedade contemporânea clama por um Estado mais enérgico, pelo combate aos crimes econômicos, ambientais e políticos. Assim sendo, podemos considerar que o direito penal está em crise, mas ao mesmo tempo, em expansão, como resposta jurídica aos problemas sociais. Logo, uma característica do direito penal econômico será criminalização de condutas que não afetam um bem jurídico individual determinado (como vida, patrimônio, honra), mas conceitos indeterminados e classificados como bens jurídicos supraindividuais, relacionados à previsibilidade dos comportamentos, ou ainda, à conformidade dos comportamentos individuais às regras que regulam a atividade econômica (bom funcionamento do sistema financeiro nacional, boas condições de concorrência e livre iniciativa, transparência nas operações financeiras, fiscalização e accountability dos atores econômicos etc.). Evidencia-se, assim, para alguns autores, o caráter supraindividual do bem jurídico atingido.21 No entanto, a lesão a tais bens jurídicos supraindividuais, por sua natureza difusa e imaterial, não pode ser mensurada, avaliada e provada senão por critérios abstratos ou por presunções. Nesse ponto, a forma de avaliar se houve, ou não, a lesão a tais bens jurídicos se desloca para a observância do próprio direito, nesse caso o direito administrativo. Em outras palavras, o direito penal econômico se transforma em instrumento de reforço das normas administrativas que orientam as atividades econômicas. 20 “Na sociedade de risco, por múltiplas causas os indivíduos experimentam maior intensidade na dimensão subjetiva dos riscos do que em sua dimensão objetiva” (Pereira, Flávia Goulart. Os crimes econômicos na sociedade de risco. RBCCrim 51. São Paulo: Ed. RT, nov.-dez. 2004). A respeito do tema, veja-se ainda: Silva Sanchez, Jesús-Maria. A expansão do direito penal; aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. São Paulo: Ed. RT, 2002. 21“En un sentido dogmático-penal se aprecia hoy en día la peculiaridad de los delitos económicos y del derecho penal económico, principalmente, en la protección de bienes jurídicos supraindividuales (sociales o colectivos, intereses de la comunidad)” (Tiedmann, Klaus, op. cit., p. 58) 284 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi O alvo de tutela penal nesses crimes é o regular funcionamento do mercado empresarial e, sobretudo, a observância das regras administrativas22 que regulam determinada atividade econômica.23 Nessa linha de raciocínio, mesmo os comportamentos não repercutam diretamente em aspectos individuais, mereceriam a resposta penal do Estado porque atentariam contra a ordem econômica ou sistema financeiro, afetação mensurada a partir da violação daquelas regras voltadas que orientam e regulam a atividade econômica, seja do Estado, seja do indivíduo.24 Em outras palavras, não se protegem necessariamente interesses individuais (ou que podem ser individualizados e quantificados), mas sim o próprio 22 Essa aproximação é especialmente relevante para o objeto de estudo desse trabalho, qual seja, o crime de evasão de divisas, como anotam Luciano Feldens e Andrei Schmidt: “Essa mudança cultural colaborou para uma significativa ruptura na política criminal contemporânea, pois a inconveniência (e gradual supressão) dos controles estatais prévios sobre os fluxos econômicos globais sobrecarregou a missão desempenhada pelos mecanismos jurídicos sancionatórios, que atuam posteriormente à verificação do desvio. Ao lado do direito administrativo, ganhou expressão um novo direito penal que, em vez de orientar-se à tutela dos interesses individuais, veio a reforçar a proteção de interesses difusos. (...) estamos nos referindo a um direito penal secundário, que sanciona, com penas, violações próprias do direito administrativo, sendo compreensível, dessarte, que a sanção penal relacionada a delitos econômicos tenha frequentemente finalidade constitutiva de uma ética-social” (Feldens, Luciano e Schmidt, Andrei Zenke. O crime de evasão de divisas: a tutela penal do sistema financeiro nacional na perspectiva da política cambial brasileira. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 149-150). 23 “La criminalidad económica como criminalidad de empresa afecta a la regulación jurídica de la producción, distribución y consumo de bienes e servicios en cuanto entraña a la actividad de la empresa como célula esencial en la actividad de carácter económico, y ésta se puede presentar sin necesidad de la intervención del Estado. La crítica de que esta caracterización del derecho penal económico es excesivamente amplia y meramente descriptiva porque carece de la determinación de un bien jurídico protegido no tiene en cuenta la necesaria referencia político-criminal a la criminalidad económica: el esfuerzo para la contención o la supresión de la criminalidad en el ámbito de la vida económica.” (Del Valle, Carlos Perez. Introduccion al derecho penal económico. In: , Enrique. Derecho penal económico. Buenos Aires: Hammurabi, 2004. p. 33). 24 Por outro lado, há autores que somente admitem que os bens jurídicos supraindividuais sejam considerados penalmente relevantes caso estejam, na hipótese concreta da ação do agente, violando simultaneamente bens jurídicos individuais concretamente mensuráveis: “A consequência prática dessa concepção é que a tipicidade material dos crimes contra o Sistema Financeiro Nacional exige a existência de lesão ou exposição a perigo concreto dos interesses individuais patrimoniais protegidos juridicamente. (...) A rigor, a ‘boa execução da política econômica do governo’; a ‘credibilidade do sistema financeiro e de suas instituições’; ‘a boa execução do Sistema Financeiro Nacional’ etc. não constituem o objeto de tutela penal, e sim a razão (ratio legis) dessa tutela” (Malan, Diogo. Bem jurídico tutelado pela Lei. 7.492/86. In: Bottino, Thiago; Malan, Diogo (orgs.). Direito penal e economia. São Paulo: Elsevier, 2012. p. 50). volume 15 285 i encontro de internacionalização do conpedi sistema financeiro, ao punirem-se comportamentos que podem ou não gerar dano individual, mas que têm potencial de prejudicar o “sistema”. O objeto de proteção pelo direito penal são as normas administrativas que orientam aquele setor da economia, numa modalidade chamada “crimes de perigo”.25 A partir daí, o direito penal surge como importante meio de reforço das regras que regulam o funcionamento dos sistemas econômico e financeiro,26 com vistas a assegurar a “normalidade econômica”. Indispensável, nesse ponto, o alerta de Heloisa Estellita: “Ao se pensar na proteção penal de um bem jurídico de caráter econômico, é imperioso o questionamento acerca do conteúdo deste bem jurídico e, além disso, de quais seriam os ataques violentos que as normas sancionatórias de caráter não penal falharam em evitar. Enfim, é preciso saber da ideal normalidade econômica para chegar aos desvios causadores da anormalidade econômica. Enfim, o que se quer evitar e/ou corrigir com a proteção penal neste campo? Ocorre que esta normalidade ideal é contingente, historicamente determinada. Trata-se de um valor, uma aspiração, que sofre contínua mutação influenciada pelos 25 “Os bens jurídicos protegidos em sede de direito penal econômico afastam-se, sem dúvida, dos clássicos bens jurídicos. É assim, desde logo, numa perspectiva ontológica na medida em que a sua dignidade não reside numa essência axiológica mas antes numa sedimentação histórica e social, sendo directamente determinados por uma orientação político-económica. Também do ponto de vista do titular nos confrontamos, na maioria das vezes, perante bens supra-individuais. A própria construção da incriminação releva com frequência o privilegiar do perigo de conduta face à lesão efectiva do bem jurídico”. (Sousa, Susana Alves de, op. cit., p. 440). 26 Como bem registra Guilherme Guedes Raposo: “E é exatamente nesse contexto que o Estado, como ente regulador da vida em sociedade, tem sido chamado a atuar positivamente a fim de garantir um mínimo de estabilidade social e um sistema de produção de riquezas que assegure a existência de um futuro para a humanidade. E o direito em geral, por ser um conjunto de normas de que o Estado se vale para organizar a vida em sociedade com o objetivo de atender aos anseios de seus integrantes, tem refletido algumas dessas transformações sociais ocorridas nas últimas décadas. Mais especificamente na teoria do bem jurídico-penal, tem sido possível verificar que todo esse conjunto de transformações sociais está repercutindo, de forma direta, na escolha dos interesses merecedores de proteção pelo sistema penal. De fato, se em período anterior o núcleo do sistema penal era marcado essencialmente por comportamentos lesivos a bens individuais e concretos, como a vida e o patrimônio, nos últimos anos tem havido um considerável aumento da tipificação de condutas lesivas a interesses transindividuais e abstratos” (Raposo, Guilherme Guedes. Teoria do bem jurídico e estrutura do delito. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2011. p. 142). 286 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi valores de cada sociedade: o que é bom economicamente num momento não o é em outro.”27 Especificamente quanto ao Sistema Financeiro Nacional, a Lei 7.492/1986, atualmente em vigor, foi objeto de duras críticas desde o momento de sua promulgação, seja pelas falhas de técnica legislativa, pela atribuição de responsabilidade penal objetiva, pelo uso exacerbado de tipos penais em branco e de perigo abstrato.28 Seguindo a linha daqueles que admitem a proteção de bens jurídicos “administrativos” defende Luiz Regis Prado29 que o sistema financeiro nacional constitui um “conjunto de instituições (monetárias, bancárias e sociedades por ações) e do mercado financeiro (de capitais e valores mobiliários)” que “tem por objetivo gerar e intermediar créditos (e empregos), estimular investimentos, aperfeiçoar mecanismos de financiamento empresarial, garantir a poupança popular e o patrimônio dos investidores, compatibilizar crescimento com estabilidade econômica e reduzir desigualdades, assegurando uma boa gestão da política econômico-financeira do Estado, com vistas ao desenvolvimento equilibrado do País”. O bom funcionamento do Sistema Financeiro Nacional é, sem dúvida, fundamental para o desenvolvimento das finanças públicas e da economia 27 Tipicidade no direito penal econômico. RT 725/407. São Paulo: Ed. RT, mar. 1996. Para uma interessante crítica ao conceito de bem jurídico supra individual ou “espiritualizado”, veja-se o magistério de Renato de Mello Jorge Silveira: “(...) por um lado, afirma-se pela dificuldade de determinação do grau de lesividade necessário a cada bem jurídico. Por outro, que não se está a tratar de uma antecipação da tutela penal de bens essenciais, mas tão só de uma proteção de bens que, por sua peculiar natureza, já exige o emprego de técnica abstrata. (...) Caso se venha aceitar uma obrigatoriedade de construção penal para tais situações (com o que aqui, indiscriminadamente, não se concorda, dando-se preferência a outros postulados), parece fundamental que, ao lado destes bens, quer espiritualizados, como pressupõe Schunemann, quer outras tantas interpretações, mesmo restritivas,como sugere Roxin, sejam, por igual, utilizados critérios de imputação objetiva caso a caso” (Silveira, Renato de Mello Jorge. A construção do bom jurídico espiritualizado e suas críticas fundamentais. São Paulo: IBCCrim 122, jan. 2003, p. 14). 28 A criação de tipos penais de perigo abstrato vem gerando desconforto e está na pauta do dia nas principais discussões acerca da expansão do direito penal. Os crimes de perigo abstrato presumem de forma absoluta a criação do perigo pelo autor da conduta prevista no tipo respectivo. Isto quer dizer que o agente é punido pela mera desobediência da letra da lei, sem que se comprove a existência de qualquer lesão ou ameaça de lesão ao bem tutelado, ou seja, de qualquer resultado jurídico/normativo. 29 Prado, Luiz Regis. Direito penal econômico. São Paulo: Ed. RT, 2010. p. 212. volume 15 287 i encontro de internacionalização do conpedi nacional. Ao tutelar o regular funcionamento do Sistema Financeiro Nacional, as normas penais incriminam comportamentos que violam as regras destinadas a garantir transparência no funcionamento das instituições (e, por conseguinte, maior segurança dos investimentos e operações realizadas), ações estas que, pelas suas características, poderiam repercutir de forma sistêmica na própria estabilidade econômica do país. Quando se fala em crimes contra o Sistema Financeiro Nacional é fundamental ter em mente que a objetividade jurídica das condutas incriminadas é o prejuízo ao adequado funcionamento do sistema; logo, é tarefa igualmente fundamental entender e definir quais as características desse regular funcionamento. José Paulo Baltazar Jr.30 relaciona como condições para o bom desenvolvimento das operações financeiras: “(a) confiança nas instituições; (b) reforço no cumprimento das regras, como aquelas que tratam da manutenção de reservas técnicas; (c) transparência dos riscos; (d) baixos custos de transação; (e) fragmentação da propriedade; (f ) formação eficiente dos preços”. No entanto, para as finalidades do presente trabalho, não é necessário aprofundar as discussões acerca da constitucionalidade da política criminal que admite o uso do direito penal como “instrumento de regulação”.31 Independente de aceitarmos ou não a transformação da concepção moderna de bem jurídico que admite a supraindividualidade e as modalidades de perigo abstrato, o fato é que há uma questão muito mais evidente quando falamos do crime de evasão de divisas, constante na Lei 7.492/1986: como se demonstrará abaixo, a tutela penal ali prevista não mais se coaduna, hoje em dia, com a normalidade econômica a que aludiu Heloisa Estellita. 3. a evasão de divisas O crime de evasão de divisas foi tipificado pela Lei 7.492/1986, a chamada Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional (também conhecida pela alcunha de “Lei dos Crimes de Colarinho Branco”). 30 Baltazar Jr. José Paulo. Crimes federais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 269. 31 Malan, Diogo, op. cit. 288 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi É unanimidade na literatura especializada que a motivação da criminalização da evasão de divisas era o reforço do controle estatal sobre as reservas cambiais: “O fundamento do controle cambial e, por consequência, da incriminação, é que as divisas estrangeiras são necessárias para o pagamento das dívidas contraídas no exterior e para o equilíbrio das reservas cambiais. Por isso é privativo do Bacen o direito de guardar moedas e divisas estrangeiras, bem como a administração exclusiva da operação de ingresso e saída dessas do país”.32 Na década de 1980, o controle cambial era tema de suma importância para a economia brasileira. O milagre econômico da década anterior alimentara-se de sucessivos empréstimos internacionais, criando dívidas que deveriam ser pagas ou, ao menos, administradas mediante o pagamento dos juros. Paralelamente, as reservas cambiais minguavam à medida em que, ao pagamento dos juros dos empréstimos, somava-se a elevação do preço da principal matérias-primas para o desenvolvimento industrial brasileiro: o petróleo. As crises do petróleo ocorridas em 1973 e 1979 transformaram as divisas (e principalmente o dólar) em um bem escasso e extremamente valioso no Brasil. Importações eram limitadas, remessas de lucros ao exterior proibidas, viagens internacionais um luxo para poucos. Qualquer ação que diminuísse as reservas cambiais brasileiras colocava em risco a possibilidade de pagamento da dívida externa e o custeio da importação de petróleo. A Lei 7.492/1986, promulgada em junho de 1986, antecipou em alguns meses a decretação da moratória (suspensão unilateral do pagamento) da dívida externa brasileira ocorrida em 1987. Naquele contexto, parecia ser muito apropriada a criminalização das condutas de quem retirasse divisas do país fora dos canais autorizados. Vejamos o tipo penal: “Evasão de divisas Art. 22. Efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do País: 32 Baltazar Jr. José Paulo, op. cit., p. 325. No mesmo sentido, afirmam José Carlos Tortima e Fernanda Lara Tortima: “O alvo da tutela jurídica são as reservas cambiais do País” (Tortima, José Carlos e Tortima, Fernanda Lara, Evasão de divisas: uma crítica ao conceito territorial de saída de divisas contido no parágrafo único do art. 22, da Lei 7.492/1986. 2. ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009), p. 41). Já para Luiz Regis Prado (Direito penal econômico. São Paulo: Ed. RT, 2012, p. 217) o tipo penal também tutela o erário. volume 15 289 i encontro de internacionalização do conpedi Pena – Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, a qualquer título, promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior, ou nele mantiver depósitos não declarados à repartição federal competente.” O tipo penal de evasão de divisas prevê três diferentes modalidades do crime. Embora possam ser vistas como etapas de um mesmo “processo” (obter divisas no mercado paralelo; retirar divisas do país; manter ocultas divisas no exterior), a escolha do legislador foi fazer recair a punição sobre cada momento de forma independente. Ao “partir” a evasão de divisas em três crimes autônomos, ampliaram-se as possibilidades de punição. A primeira modalidade, prevista no caput do art. 22 da Lei 7.492/1986, consiste na realização de operação de câmbio não autorizada (elemento objetivo) com a finalidade de promover a evasão (elemento subjetivo). Por operação não autorizada, entende-se qualquer troca de moeda por divisas em estabelecimento que não tenha sido autorizado pelo Bacen para realizar esse tipo de atividade, ou qualquer operação realizada fora das hipóteses autorizadas. O exemplo mais simples é quando alguém compra dólares com um “maleiro” no aeroporto antes de embarcar para o exterior.33 O crime está configurado com a simples operação de câmbio (troca de moeda por divisa), não se exigindo a efetiva saída da divisa. Basta que a finalidade seja comprovada para a consumação do crime. Por sua vez, o parágrafo único prevê como formas equiparadas do crime outras duas modalidades: (a) a saída de moeda ou divisa para o exterior, a qualquer título; e, (b) a manutenção de depósito no exterior, não declarado à repartição federal competente. Mais uma vez a péssima técnica legislativa empregada na 33 Veja-se que não há crime se a situação for inversa, de venda ao maleiro dos dólares excedentes da viagem logo depois de desembarcar, vindo do exterior. Embora presente o elemento objetivo (realizar operação de câmbio não autorizada) resta ausente o elemento subjetivo do tipo “com o fim de promover a evasão de divisas”: “De outro lado, no caput do art. 22, a incriminação só alcança quem ‘efetuar operação de câmbio não autorizada’: nela não se compreende a ação de quem, pelo contrário, haja eventualmente, introduzido no País moeda estrangeira recebida no exterior, sem efetuar a operação de câmbio devida para convertê-la em moeda nacional”. STF, HC 88.087/RJ, 1.ª T., j. 17.10.2006, rel. Min. Sepúlveda Pertence. 290 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi Lei 7.492/1986 se fez presente, misturando em um único tipo penal condutas absolutamente diferentes. A primeira figura do parágrafo único, (promover, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior) é entendida como a saída física do numerário. Dessa forma, ainda que não seja possível determinar quando/onde/como ocorreu a operação de câmbio não autorizada, ou ainda que as divisas tenham sido adquiridas de forma autorizada, a lei criminaliza a conduta de quem, efetivamente, retira do controle brasileiro as divisas, levando-as para o exterior. A imagem associada a essa modalidade da evasão de divisas é a do sujeito embarcando em um avião com uma mala cheia de dólares.34 Por outro lado, há outras formas pelas quais as divisas podem ser afetadas que não estão abrangidas pela lei. Uma das hipóteses é aquela que envolvem operações de importação e exportação, cujos contratos de câmbio não são honrados ou são fraudulentos. Haveria evasão de divisas na conduta do exportador que não internaliza o dinheiro recebido pelas mercadorias exportadas, ou seja, é possível equiparar a saída de divisas da sua “não entrada” no Sistema Financeiro Nacional? A jurisprudência pátria entende que essa interpretação extensiva viola a taxatividade e considera a conduta atípica.35 Finalmente, a segunda figura do parágrafo único (terceira modalidade de evasão de divisas) consiste na manutenção de depósito no exterior, sem a devida 34 Hoje em dia, com a facilidade de telecomunicações e os avanços da informática, a quantidade de serviços financeiros apropriados diversificou-se. É cada vez mais raro ver casos como o do casal Sonia e Estevam Hernandes, fundadores da Igreja Renascer em Cristo, presos em 09.01.2007, no Aeroporto de Miami, tentando ingressar nos EUA vindos do Brasil com 56,5 mil dólares sem declaração. Nos EUA, o casal foi condenado a 10 meses de prisão (sendo cinco meses em prisão domiciliar e cinco em penitenciária, de forma alternada), ao passo que no Brasil a pena aplicada foi de 4 anos de reclusão. Disponível em: [www1.folha.uol.com.br/ folha/especial/2007/prisaonarenascer/]. Acesso em: 21.06.2012. 35 “Não pode o intérprete estender o sentido da norma contida na primeira parte do parágrafo único da lei em comento, a fim de considerar típica a ausência de internalização do pagamento recebido, sob pena de absoluto desvirtuamento do comando normativo, o qual apenas criminaliza a saída de divisas do território nacional.” STJ, REsp 914077/RS, 5.ª T., j. 07.12.2010, rel. Min. Jorge Mussi,. “O mero fato de não ter sido liquidado no Brasil o contrato de câmbio é incapaz de gerar a presunção de que a empresa exportadora recebeu o pagamento objeto do acordo e o mantém em instituição financeira situada fora do país”. STJ, REsp 914077/RS, 5.ª T., j. 07.12.2010, rel. Min. Jorge Mussi,; STJ, HC 43688/PR, 6.ª T., j. 05.06.2006, rel. Min. Paulo Medina. volume 15 291 i encontro de internacionalização do conpedi comunicação às autoridades brasileira. Trata-se da parte final do “processo” de evasão. Mesmo que não se consiga identificar o momento em que o sujeito conseguiu fazer a operação de câmbio irregular com a intenção de evadir divisas ou, de qualquer modo, conseguiu retirar as divisas do país, bastará que se prove a existência do depósito para que se caracterize o crime. Explicada assim, a aplicação do crime de evasão de divisas parece simples. Contudo, quando se dirige um olhar mais atento à letra da lei, percebe-se que se trata de tipo penal em branco, isto é, um crime que depende da existência de outras leis (ou no caso normas administrativas) sem as quais se perde a possibilidade de impor pena.36 Veja-se os trechos em negrito na redação do tipo penal: “Art. 22. Efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do País: Pena – Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, a qualquer título, promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior, ou nele mantiver depósitos não declarados à repartição federal competente.” No primeiro caso, já tratado acima, para que haja crime é preciso que a operação de câmbio ocorra sem autorização. Isso inclui o caso de uma operação realizada fora dos estabelecimentos fiscalizados pelo Bacen, bem como uma operação realizada fora das hipóteses ou dos limites autorizados pela autoridade monetária nacional. Fica evidente, aqui, que a finalidade subjacente na criminalização (além da proteção das divisas) é o controle, por parte do Bacen, da própria atividade financeira realizada pelas instituições autorizadas a operar com câmbio e que podem compreender não somente bancos, mas ainda casas de câmbio, agências de viagem e hotéis. 36 “Parece não existir dúvida de que o art. 22 da Lei 7.492/1986, ao definir o delito de evasão de divisas e manutenção de depósito no exterior, possui a natureza de norma penal em branco, principalmente porque as elementares especiais de antijuridicidade ‘não autorizada’ (caput), ‘sem autorização legal’ (1.ª parte de parágrafo único) e ‘repartição federal competente’ (parte final do parágrafo único) transferem para a legislação extrapenal um dos pressupostos da ação típica. Significa afirmar, nesse sentido, que parte do conteúdo do art. 22, da Lei 7.492/1986 é dado por normas administrativas editadas pelo Bacen, a ponto de ser-nos possível antecipar que o delito de evasão de divisas pressupõe um ilícito cambial, apesar de nem todo ilícito cambial configurar um delito de evasão de divisas” (Feldens, Luciano; Schmidt, Andrei Zenker, op. cit., p. 155). 292 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi Os mais velhos devem se lembrar: há alguns anos, para se comprar dólares era preciso apresentar uma passagem aérea, justificando a compra. Dependendo do destino do viajante, variava o limite de dólares (ou de qualquer moeda estrangeira) que poderia ser adquirido. Daí a necessidade de punir quem obtivesse divisas de forma fraudulenta, seja adquirindo fora dos estabelecimentos autorizados, seja adquirindo com base em documentos falsos. No segundo caso, o vocábulo “autorização legal” refere-se ao regime existente até 1998, segundo o qual era preciso dirigir-se ao Bacen antes de promover a saída das divisas. Dependendo da hipótese, a saída poderia ser autorizada, negada ou limitada. Tratamentos de saúde no exterior, muitas vezes, eram custeados graças ao mercado paralelo de dólares, pois o Bacen não autorizava saídas expressivas para gastos com pessoas físicas. Foi a partir da Res. Bacen 2.524, de 01.07.1998, que se aboliu a necessidade de prévia autorização,37 adotando-se o regime da simples declaração. Por sua vez, a terceira modalidade de evasão de divisas “manutenção de depósito sem declaração” também depende da existência de norma administrativa que discipline a conduta do agente. No plano administrativo, a obrigatoriedade de declaração dos recursos mantidos no exterior remonta ao Dec.-lei 1.060/1969,38 o qual exigia que fossem 37 Res. Bacen 2.524: “Estabelece normas para declaração de porte e de transporte de moeda nacional e estrangeira. O Bacen, na forma do art. 9.º da Lei 4.595, de 31.12.1964, torna público que o CMN, em sessão realizada em 30.07.1998, e tendo em vista o disposto no art. 65, § 2.º, da Lei 9.069, de 30.06.1995, resolveu: “Art. 1.º As pessoas físicas que ingressarem no país ou dele saírem com recursos em moeda nacional ou estrangeira em montante superior a 10 mil reais ou ao seu equivalente em outras moedas, nos termos do inc. III do § 1.º do art. 65 da Lei 9.069/1995, devem apresentar à unidade da SRF que jurisdicione o local de sua entrada no país ou de sua saída do país, declaração relativa aos valores em espécie, em cheques e em “traveller’s cheques” que estiver portando, na forma estabelecida pelo Ministro de Estado da Fazenda.” 38 Dec.-lei 1.060/1969: Dispõe sobre a declaração de bens, dinheiros ou valores, existentes no estrangeiro, a prisão administrativa e o sequestro de bens por infrações fiscais e dá outras providências. Os Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar, usando das atribuições que lhes confere o art. 3.º do Ato Institucional 16, de 14.10.1969, c/c o § 1.º do art. 2.º do Ato Institucional 5, de 13.12.1968, decretam: “Art. 1.º Sem prejuízo das obrigações previstas na legislação do imposto de renda, as pessoas físicas ou jurídicas ficam obrigadas, na forma, limites e condições estabelecidas pelo CMN, volume 15 293 i encontro de internacionalização do conpedi declarados ao Bacen os bens e valores existentes no exterior. Esse dispositivo foi complementado pela Res. CMN 139 que previa a competência do Ministério da Fazenda na definição de como seria feita a declaração. Essa lacuna só foi efetivamente preenchida em 1981, por meio do Ato Declaratório 7, da Receita Federal, o qual previa que as declarações mencionadas no Dec.-lei 1.060/1969 e na Res. CMN 139 estariam supridas pela declaração de imposto de renda. Posteriormente, a MedProv 2.224/2001 mudou o regime de declaração. A informação deveria, a partir de então, ser prestada ao Bacen. A MedProv 2.224/2001 foi complementada por nova Res. CMN 2.911/2001 e por uma circular do próprio Bacen (3.071/2001), a qual estabelecia forma (modelo de declaração disponível na Internet), prazo (15.04.2002) e limite mínimo (só seria necessário realizar a declaração de bens de valores superiores a 100 mil dólares americanos A partir de então, ano após ano o Bacen edita nova circular alterando as datas e valores mínimos para declaração,39 os quais já variaram entre 100 mil dólares americanos, 200 mil dólares americanos, trezentos 300 mil dólares americanos.40 A partir de 2010, foi estabelecida uma obrigatoriedade adicional, de declaração trimestral para valores acima de 100 milhões de dólares. Como se vê, o crime de evasão de divisas está intimamente ligado aos instrumentos de regulação econômica. 4. dilemas de aplicação do crime de evasão de divisas Nos últimos vinte anos, a economia brasileira sofreu uma transformação radical: abertura para investimentos internacionais, estabilização da moeda, a declarar ao Bacen, os bens e valores que possuírem no exterior, podendo ser exigida a justificação dos recursos empregados na sua aquisição. Parágrafo único. A declaração deverá ser atualizada sempre que houver aumento ou diminuição dos bens, dinheiros ou valores, com a justificação do acréscimo ou da redução.” 39 Circulares Bacen 3.110/2002, 3.181/2003, 3.225/2004, 3.278/2005, 3.313/2006, 3.345/2007, 3.384/2008, 3.442/2009, 3.854/2010 (Resolução), 3.523/2011 e 3.574/2012. 40 Em se tratando de norma penal em branco, a jurisprudência mantém posicionamento no sentido de que vige a regra da ultratividade, segundo a máxima do tempus regit actum. Sendo assim, as alterações não retroagem para tornar atípicas condutas que, tendo em vista aquele contexto anterior, eram danosas ao bem jurídico tutelado. STJ, RHC 16172 SP, 5.ª T., j. 22.08.2005, rel. Min. Laurita Vaz; TRF-3.ª Reg. ACR 2003.61.81.004682-0, 2.ª T., j. 23.02.2010, rel. Des. Cotrim Guimarães; TRF-4.ª Reg., ACR 2005.70.00.008903-5/PR, 8.ª T., j. 11.02.2009, rel. Des. Paulo Afonso Brum Vaz; TRF-4.ª Reg., ACR 2003.70.00.0515398/PR, 8.ª T., j. 06.05.2009, rel. Des. Paulo Afonso Brun Vaz. 294 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi controle da inflação e equacionamento da dívida externa talvez sejam os exemplos mais evidentes. Tais mudanças tiveram grande impacto na regulação da economia brasileira e as regras cambiais não ficaram alheias a essa modificação. Exemplo concreto desse novo cenário nacional é a evolução das reservas cambiais brasileiras. Se nas décadas de 1980 e 1990 do século passado era possível falar em reservas negativas, devido aos pagamentos do serviço da dívida, hoje o Brasil pode se dar ao luxo de fazer empréstimos ao Fundo Monetário Internacional. O gráfico abaixo, elaborado a partir de dados fornecidos pelo Bacen,41 mostra o crescimento das reservas brasileiras que, em março de 2013, superavam 375 bilhões de dólares. 400 350 300 250 200 150 100 50 Esse crescimento decorre de inúmeros fatores, dentre os quais podemos citar a elevação do preço das commodities que o Brasil exporta e a diminuição das importações de petróleo.42 41 Bacen. Disponível em: [www.bcb.gov.br/?RED-SERIERIH]. 42 Anuário Estatístico ANP 2007. Gráfico constante da apresentação realizada por Edson Silva durante o XI Seminário nacional de petróleo e gás natural no Brasil: desafios e oportunidades, no dia 25.04.2010, em Brasília/DF. Disponível em: [www.acaoresponsavel.org.br]. volume 15 295 i encontro de internacionalização do conpedi Importação líquida de derivados Mil bep/d 2.000 Curva de Dependência Externa 1.800 Dep. Externa 100% 1.600 80% 1.400 60% 1.200 1.000 40% 800 Importação líquida de Petróleo 600 400 20% Produção Nacional 200 0% 2006 2004 2002 2000 1998 1996 1994 1992 1990 1988 1986 1984 1982 1980 1978 1976 1974 1972 -20% 1970 0 Ano Dependência Externa = Importação Líquida de Petróleo e Derivados/Consumo Aparente Consumo Aparente = Produção Nacional de Petróleo + Importação Líquida de Petróleo e Derivados Fonte: Anuário Estatístico ANP, 2007. Ora, dado o atual cenário econômico, não há como pretender aplicar a Lei de 1986 – elaborada, como se viu, para reforçar a política econômica desenvolvida na época – sem que se promova ao menos uma adaptação à realidade atual. Nesse sentido, o presente texto propõe a discussão de novas interpretações para as figuras típicas de evasão de divisas. Importante que se diga que o presente texto não advoga a revogação do crime de evasão de divisas, nem tampouco sustenta que a realidade impôs um comportamento que não merece punição. Por outro lado, o poder judiciário não pode tapar os olhos para o fato de que esse crime (como tantos outros da “família” do direito penal econômico) só se justifica enquanto gera, efetivamente, riscos concretos ou danos para a ordem econômica e o sistema financeiro. Do ponto de vista normativo, é preciso e saudável que haja tipos penais que criminalizem condutas que atentam contra tais bens jurídicos supraindividuais. Contudo, do ponto de vista judicial, tais tipos penais não podem ser aplicados e interpretados à revelia da realidade, ou mais precisamente da política econômica vigente. As normas administrativas que integram tais tipos penais dão “corpo” (tipicidade) e “alma” (função social) a esses crimes. Sem elas resta apenas um formalismo inócuo e incapaz de assegurar o bem social. 296 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi Comecemos pela modalidade constante do caput do art. 22: “Efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do país”. Considerando que qualquer indivíduo pode deixar o país com o equivalente a 10 mil reais em divisas sem sequer precisar comunicar ao Estado, ainda faz sentido punir quem adquire quantia equivalente (ou menor) foram dos estabelecimentos autorizados a operar com câmbio? Afinal, ao transportar tais divisas ao exterior, o indivíduo sequer será instado a declarar tal fato, tornando inútil qualquer preocupação de como foram obtidas as referidas divisas. Nem se diga que a punição se justifica para o controle da atividade de câmbio, pois quem vende ou compra as divisas sem a intenção de promover a evasão de divisas pratica o crime do art. 16 da Lei 7.492/198643 e não o do art. 22 da mesma Lei.44 Com efeito, pune-se de forma diferenciada aquele que opera (inclusive câmbio) fora das regras e da autorização do Bacen com pena de 1 a 4 anos de reclusão. Completamente diferente (e mais grave) era a punição para quem adquiria divisas no mercado negro para evadi-las do país, com reclusão de 2 a 6 anos. Todavia, se na época da edição da lei qualquer aquisição era controlada e precisava de prévia autorização, hoje a situação é completamente diversa. Além de ser lícita a aquisição de qualquer quantia, é inócua (já que expressamente autorizada) a saída de divisas equivalentes a R$ 10.000,00 sem qualquer tipo de formalidade, mesmo que seja uma simples declaração. Por conseguinte, impõe-se a aplicação da norma administrativa (Res. Bacen 2.524/1998) no que tange ao valor de 10 mil reais como marco de relevância penal para a modalidade prevista no caput. Em outras palavras, adquirir dólares em qualquer situação e para qualquer finalidade, desde que em valor inferior a 10 mil reais é um indiferente penal do ponto de vista das reservas cambiais. 43“Art. 16. Fazer operar, sem a devida autorização, ou com autorização obtida mediante declaração falsa, instituição financeira, inclusive de distribuição de valores mobiliários ou de câmbio: Pena – Reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.” 44 Nesse sentido, vejam-se as recentes decisões do STJ: HC 118992/SP, 5.ª T, rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 03.11.2009 e HC 95487/DF. 5.ª T., rel. Min. Laurita Vaz. DJe 03.08.2009. volume 15 297 i encontro de internacionalização do conpedi Resta saber se haveria alguma outra razão que justificasse a punição dessa conduta. O bem jurídico “controle da informação” ou “controle do fluxo de capitais” não nos parece atender ao requisito de relevância penal. O atual marco normativo para operações de câmbio é a Res. 3.568, de 29.04.2008 (dispõe sobre o mercado de câmbio e dá outras providências), onde está expressamente autorizada a aquisição de divisas em qualquer quantidade.45 A mesma resolução prevê que a operação de câmbio deverá ser registrada no SISBacen (sistema de informações do Bacen), bem como identificado o comprador/vendedor. Porém, tanto o registro46 como a identificação47 são flexibilizados para operações de valor até 3.000 mil dólares. Da mesma forma, a movimentação ocorrida em conta de depósito de pessoas físicas ou jurídicas residentes, domiciliadas ou com sede no exterior só precisa ser registrada no SISBacen quando os valores excederem 10.000 mil reais (art. 26, da Res. 3.568/2008). Portanto, fica evidente que não interessa ao “controle” das informações dos fluxos cambiais operações de baixo valor. A padronização da relevância penal no patamar de dez mil reais atende aos interesses de segurança jurídica e objetividade na construção da tipicidade penal. A aquisição de dólares fora dos estabelecimentos autorizados pode também decorrer da intenção do agente de obter uma cotação melhor, em razão do não pagamento do IOF cobrado pelas casas de câmbio, o que caracterizaria modalidade de sonegação fiscal (art. 1.º da Lei 8.137/1990, com pena de 2 a 5 anos de reclusão). Assim, uma vez caracterizada a aquisição de dólares sem pagamento de IOF, cabe a instauração de ação penal pelo crime de sonegação 45 “Art. 8.º As pessoas físicas e as pessoas jurídicas podem comprar e vender moeda estrangeira ou realizar transferências internacionais em reais, de qualquer natureza, sem limitação de valor, sendo contraparte na operação agente autorizado a operar no mercado de câmbio, observada a legalidade da transação, tendo como base a fundamentação econômica e as responsabilidades definidas na respectiva documentação” (Res. 3.568/2008). 46 “Art. 9.º As operações no mercado de câmbio devem: (...) II – ser registradas no Sistema de Informações Bacen (SISBacen); Parágrafo único. O Bacen pode definir formas simplificadas de registro para as operações de compra e venda de moeda estrangeira de até 3 três mil dólares americanos, ou do seu equivalente em outras moedas.” 47 “Art. 8.º (...) § 5.º Sem prejuízo do dever de identificação dos clientes de que trata o art. 18 desta resolução, nas operações de compra e de venda de moeda estrangeira até 3 três mil dólares americanos, ou do seu equivalente em outras moedas, é dispensada a apresentação da documentação referente aos negócios jurídicos subjacentes às operações de câmbio.” 298 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi fiscal, mas não não se justificaria a punição dessa conduta por evasão de divisas, eis que já há norma específica para combater a sonegação.48 Já no que tange à segunda modalidade, o caso é de completa perda de eficácia da norma penal. Afinal, até 1998, a retirada de divisas do país estava submetida à prévia autorização pelo Bacen. A partir, contudo, da edição da Res. Bacen 2.524/1998, a saída das divisas passou a prescindir de prévia autorização, bastando a simples declaração (e mesmo assim, somente para valores superiores a 10 mil reais).49 A mudança de nomenclatura não é meramente estilística, já que se trata de normas jurídicas e não literárias. Ao dispensar o cidadão de autorização, fica evidente a diminuição da importância das divisas como instrumento de política econômica. Não se poderia falar de afetação das reservas cambiais pela saída das divisas. No entanto, o destinatário da informação não é o Banco Central, mas sim a Receita Federal,50 evidenciando que não se trata de proteger reservas, mas de 48 Na verdade, sequer se justificaria a punição da sonegação fiscal ficaria prejudicada, tendo em vista o entendimento do STF de que os crimes tributários (sonegação fiscal e descaminho) de valor inferior a 10 mil reais são insignificantes. HC 102935/RS, 1.ª T., rel. Min. Dias Toffoli, DJe 22.11.2010 (“1. Nos termos da jurisprudência consolidada nesta Suprema Corte, o princípio da insignificância deve ser aplicado no delito de descaminho quando o valor sonegado for inferior ao montante mínimo de 10 dez mil reais legalmente previsto no art. 20 da Lei 10.522/2002, com a redação dada pela Lei 11.033/2004. 2. Ordem concedida.”). No mesmo sentido: HC 104407/DF, 2.ª T., rel. Min. Ayres Britto, DJ 05.12.2011 e HC 97257/ RS, 2.ª T., rel. Min. Marco Aurélio, DJ 02.12.2010. 49 Importante frisar que mesmo antes de 1998, o art. 65 da Lei 9.069/1995 (lei que instituiu o Plano Real) já previa que valores em moeda nacional ou estrangeira que entrarem ou saírem do país não precisariam ser realizadas por meio de estabelecimento bancário e nem necessitariam que fosse identificado o beneficiário: “Art. 65. O ingresso no País e a saída do País, de moeda nacional e estrangeira serão processados exclusivamente através de transferência bancária, cabendo ao estabelecimento bancário a perfeita identificação do cliente ou do beneficiário. § 1.º Excetua-se do disposto no caput deste artigo o porte, em espécie, dos valores: I – quando em moeda nacional, até R$ 10 (dez) mil reais; II – quando em moeda estrangeira, o equivalente a 10 (dez) mil reais.” 50 Res. 2.524/1998: “Art. 1.º As pessoas físicas que ingressarem no país ou dele saírem com recursos em moeda nacional ou estrangeira em montante superior a 10 dez mil reais ou ao seu equivalente em outras moedas, nos termos do inc. III do § 1.º do art. 65 da Lei 9.069/1995, volume 15 299 i encontro de internacionalização do conpedi dificultar a ocultação de recursos não tributados. Mais uma vez, não se justifica a punição pelo crime de evasão de divisas, que protege as reservas cambiais, em detrimento da punição própria, que é a sonegação fiscal.51 Nesse caso, apreendem-se os valores, lavra-se um auto e inicia-se um procedimento administrativo para apurar a licitude dos recursos. Caso se demonstre a inexistência de atividade lícita que tenha gerado os recursos, punese por sonegação. Mas a evasão de divisas não é mais um comportamento lesivo aos interesses do Estado na condução da política econômica e muito menos às reservas cambiais. Não é demais exigir coerência do Estado na aplicação do direito penal e não se pode punir por um crime quando na verdade se pretende punir outro. Em resumo, o fato é que quando a norma administrativa deixou de impor a necessidade de autorização, a norma penal deixou de contar com um instrumento normativo que a complementasse.52 Não se pode esquecer que o parágrafo único devem apresentar à unidade da Secretaria da Receita Federal que jurisdicione o local de sua entrada no país ou de sua saída do país, declaração relativa aos valores em espécie, em cheques e em ‘traveller’s cheques’ que estiver portando, na forma estabelecida pelo Ministro de Estado da Fazenda”. 51 O STF inclusive já admitiu relação entre o crime de evasão de divisas e os crimes contra a ordem tributária: “(...) Considerados os arts. 22, parágrafo único, da Lei 7.492/1986 e 1.º, § 1.º, da Lei 9.613/1998, está umbilicalmente ligado à acusação decorrente do que estabelecido na Lei 8.137/1990. Em síntese, vale dizer que a conclusão do processo administrativo fiscal quanto às infrações versadas nessa lei, sendo acolhida a defesa dos envolvidos, repercutirá relativamente aos demais crimes, ou seja, a evasão e a conversão de ativos líquidos e a aquisição, recebimento, troca, negociação, implemento de garantia, guarda em depósito, movimento ou transferência de valores. Logo, encontrando-se esta em fase de apuração no campo administrativo fiscal, não se pode partir para a sequência da persecução criminal”. STF, HC 105.293/RJ, 1.ª T., j. 04.09.2010, rel. Min. Marco Aurélio. 52 Veja-se, a respeito, trecho do excelente trabalho de José Carlos Tórtima e Fernanda Lara Tórtima: “Agregado ao tipo encontra-se o elemento normativo constituído pela expressão sem autorização legal, referente à antiga necessidade de permissão oficial, que vigorava à altura da edição da lei, para que o interessado promovesse a saída do país de importâncias superiores a determinados limites, fixados de acordo com a natureza da operação e que variavam ao sabor das vicissitudes cambiais do governo. Naquela época, se alguém pretendesse adquirir moedas estrangeiras além dos limites estabelecidos pelo Bacen, deveria a este se dirigir, requerendo autorização especial que poderia ser concedida ou, como quase sempre ocorria, indeferida” (p. 23-24) (...) “Mas suprimidos, como se viu aqueles limites, desaparece logicamente o instituto da antiga autorização legal e, inexistindo esta, requisitada no tipo penal como seu elemento normativo, torna-se a conduta, ipso facto, penalmente irrelevante (...) Nada impediria, todavia, que uma vez restaurados pela autoridade monetária os antigos controles e restrições, que o 300 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi prevê a necessidade de autorização (“Incorre na mesma pena quem, a qualquer título, promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior”) e não a simples declaração. Isso não significa que a norma penal tenha sido revogada.53 Ela apenas não pode ser aplicada (perda de eficácia) enquanto não for editado novo ato normativo que a complemente. O mesmo ocorre, por exemplo, com os dispositivos que incriminam a venda de mercadorias em desrespeito às tabelas oficiais,54 os quais só têm eficácia se houver norma que fixe preços. Revogada a tabela de preços, a norma penal perde eficácia, mas continua válida, aguardando que seja novamente necessária tal intervenção na economia, quando, então, tornará a ter relevância penal a conduta de violar a tabela de preços. Por fim, chegamos à terceira modalidade da evasão de divisas, prevista na parte final do parágrafo único do art. 22, consistente na manutenção de depósito sem a correspondente declaração à autoridade competente. Trata-se de norma de plena eficácia (ao contrário da figura anterior) já que complementada pela MedProv 2.224/2001, pela Res. CMN 2.911/2001, e pelas normas anuais do Bacen que especificam forma, prazo e valores que devem ser declarados. Aqui, as discussões estão relacionadas à incriminação de comportamentos que não constem das obrigações impostas pelas normas administrativas. Tomemos como exemplo a Res. Bacen 3.854/2010 que estabelece as seguintes obrigações: rigor da Lei 7.492/1986 fosse, infelizmente para o país, plenamente restabelecido” (p. 51). (Tortima, José Carlos; Tortima, Fernanda Lara, op. cit.). 53 Fernanda Lara Tortima, contudo, defende tratar-se de hipótese de abolitio criminis: “Por tudo o que foi exposto, pode-se afirmar que a manutenção das reservas cambiais em níveis satisfatórios deve ser perseguida através de políticas econômicas bem planejadas. É possível também afirmar que poucas são as condutas, causadoras de baixas nesses estoques de divisas, que poderiam, em um Estado que se queira intitular democrático e de direito, vir a ser coibidas pelo direito, mormente pelo direito penal.(...) A otimização do controle deve ser perseguida através de fiscalização eficiente por parte dos órgãos administrativos e nunca por meio do direito penal, que só deve, como se sabe, atuar subsidiariamente” (Tortima, José Carlos; Tortima, Fernanda Lara, op. cit., p. 30-31). 54 Lei 1.521/1950, “Art. 2.º (...) VI – transgredir tabelas oficiais de gêneros e mercadorias, ou de serviços essenciais, bem como expor à venda ou oferecer ao público ou vender tais gêneros, mercadorias ou serviços, por preço superior ao tabelado, assim como não manter afixadas, em lugar visível e de fácil leitura, as tabelas de preços aprovadas pelos órgãos competentes”. volume 15 301 i encontro de internacionalização do conpedi (a)pessoas físicas e jurídicas, residentes, domiciliadas ou com sede no país, que possuam quantia igual ou superior a 100 mil dólares americanos, ou seu equivalente em outras moedas, na data-base de 31 de dezembro de cada ano estão obrigadas a declarar tais valores ao Bacen, por meio de formulário disponível na internet. (b)na hipótese dos valores excederem 100 milhões de dólares americanos, ou seu equivalente em outras moedas, nas datas-base de 31 de março, 30 de junho e 30 de setembro de cada ano, essa mesma declaração deverá ocorrer a cada trimestre, por meio do mesmo formulário. Tomando-se essa norma administrativa como complemento da norma penal, a punição não pode alcançar hipóteses como (a) a não declaração de valores inferiores a cem mil dólares em 31 de dezembro,55 (b) a não declaração desses depósitos à Receita Federal,56 (c) a não declaração bens e direitos não especificados na Resolução.57 5.conclusões Ao longo desse trabalho, demonstrou-se que o direito penal econômico é fruto de transformações na sociedade contemporânea e se respalda na vertente dogmática que aponta a existência e necessidade de tutela penal de bens jurídicos supraindividuais. Conceitos como ordem econômica, bom funcionamento do sistema financeiro nacional, boas condições de concorrência e livre iniciativa, transparência nas operações financeiras, fiscalização e accountability dos atores econômicos, adequado desenvolvimento das finanças públicas e da economia nacional, confiança nas instituições se transformam em bens jurídicos cuja afetação é capaz de gerar danos irremediáveis e incomensuráveis. 55 Aliás, a própria Res. Bacen 3.854/2010 deixa isso claro: “Art. 2.º (...) § 3.º Estão dispensadas de prestar a declaração de que trata esta resolução as pessoas que, nas datas referidas no caput e no § 1.º deste artigo, possuírem bens e valores em montantes inferiores aos ali indicados”. 56 Sem embargo da eventual possibilidade de punição pelo crime de sonegação fiscal, se for o caso. 57 A resolução prevê, em seu art. 3.º, para efeito de bens e valores que devem ser considerados na informação: I – depósito; II – empréstimo em moeda; III – financiamento; IV – arrendamento mercantil financeiro; V – investimento direto; VI – investimento em portfólio; VII – aplicação em instrumentos financeiros derivativos; e VIII – outros investimentos, incluindo imóveis e outros bens. 302 volume 15 i encontro de internacionalização do conpedi No entanto, dado o caráter difuso e muitas vezes invisível desse bem jurídico, a tutela penal não exige a efetiva ocorrência de tais danos, mas é antecipada de modo a recair sobre o risco criado, criminalizando-se figuras de perigo abstrato. Revela-se, portanto, a opção de criação de tipos penais que punem o mero descumprimento de regras administrativas, bem como o uso do direito penal como instrumento de regulação. Quanto ao crime de evasão de divisas, evidenciou-se a utilização do direito penal como mecanismo de reforço das normas administrativas que dão densidade à política econômica e, especificamente, à proteção das reservas cambiais. Contudo, passados mais de 25 anos da edição da Lei 7.492/1986, que introduziu o crime de evasão de divisas no ordenamento, não se pode negar as enormes transformações pelas quais passou a economia brasileira e, especificamente, as reservas cambiais (volume, condições de formação, regras de controle etc.). Nesse ponto, expresso o caráter acessório do crime de evasão de divisas às regras que definem a política econômica nacional – pois o crime se justifica e se esgota na proteção específica de uma norma de regulação econômica – é razoável e adequada uma interpretação que vincule a aplicação do tipo penal a essas mesmas normas. Em outras palavras, não é possível levar o alcance da norma penal para além do alcance da regulação administrativa. Não obstante a indiscutível validade da norma penal no plano jurídico, uma vez que se apresente sua incompatibilidade com a realidade que a norma buscava proteger, é necessário que a interpretação jurídica respeite também a interpretação econômica. Isso significa declarar a falta de eficácia do tipo penal sempre que houver ausência de correspondência dos comportamentos proibidos e aqueles dotados de relevância econômica, assim aferidos a partir das normas administrativas que regulam a atividade econômica. Parafraseando Camões, “mudam-se os tempos, mudam-se as leis”. volume 15 303