Liberalismo e Pena: Montesquieu, Beccaria, Marat

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empregados sem prévia autorização dos editores.
Produção Editorial: Equipe Conpedi
Diagramação: Marcos Jundurian
Capa: Elisa Medeiros e Marcos Jundurian
Impressão:
Nova Letra Gráfica e Editora Ltda.
CNPJ. nº 83.061.234/0001-76
Editora:
Ediciones Laborum, S.L – CIF B – 30585343
Deposito legal de la colección: MU 859-2015
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
E56p
Encontro de Internacionalização do CONPEDI (1. : 2015 : Barcelona, ES)
I Encontro de Internacionalização do CONPEDI / organizadores: Nestor
Eduardo Araruna Santiago, Érika Mendes de Carvalho. – Barcelona : Ediciones
Laborum, 2015.
V. 15
Inclui bibliografia
ISBN (Internacional): 978-84-92602-86-5
Depósito legal : MU 859-2015
Tema: Atores do desenvolvimento econômico, político e social diante do Direito
do século XXI
1. Direito – Estudo e ensino (Pós-graduação) – Congressos. 2. Direito penal.
3. Criminologia 4. Seguridade pública I. Santiago, Nestor Eduardo Araruna.
II. Carvalho, Érika Mendes de. III. Título.
CDU: 34
Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071
1º Impressão – 2015
EDICIONES LABORUM, S. L.
CIF B-30585343
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3
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4
Apresentação
Este livro condensa os artigos aprovados, apresentados e debatidos no
Iº ENCONTRO DE INTERNACIONALIZAÇÃO DO CONSELHO
NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO –
CONPEDI, realizado entre os dias 08, 09 e 10 de outubro de 2014, em parceria
com a Faculdade de Direito da Universidade de Barcelona – Espanha. O evento teve
como tema os “Actores del Desarrollo económico, político y social frente al Derecho
del siglo XXI”. Para o evento foram submetidos e avaliados mais de quinhentos
artigos de pesquisadores do Brasil e da Europa. Após as avaliações foram aprovados
em torno de trezentos artigos para apresentação e publicação.
O principal objetivo do evento foi o de dar início ao processo de
internacionalização e fundamentalmente, o de construir espaços para a inserção
internacional e divulgação de pesquisas realizadas pelos Pesquisadores dos
Programas de Pós-Graduação em Direito do Brasil, associados ao CONPEDI. A
realização deste primeiro evento procurou estimular o debate e o diálogo sobre
questões atuais do Direito envolvendo a realidade brasileira e espanhola.
Os artigos apresentados analisaram o papel dos “Actores del Desarrollo
económico, político y social frente al Derecho del siglo XXI” praticamente em todas
as áreas do Direito. Considerando a amplitude do tema, as diversas abordagens
e buscando uma aproximação entre as áreas de conhecimento optou-se pela
organização de seis grupos de trabalhos (GTs), que foram constituídos da seguinte
forma: a) Derecho Constitucional, Derechos Humanos e Derecho Internacional;
b) Derecho Mercantil, Derecho Civil, Derecho do Consumidor e Nuevas Tecnologías;
c) Derecho del Trabajo y de la Seguridad Social; d) Derecho Administrativo, Derecho
Tributario e Derecho Ambiental; e) Teoría del Derecho, Filosofía del Derecho e
História del Derecho; f) Derecho Penal, Criminología e Seguridad Pública.
Além da promoção do intercambio entre as Instituições e profissionais da área
do Direito do Brasil e Europa, a possiblidade de ampliar e difundir a produção
cientifica no âmbito internacional e a melhoria dos indicadores dos Programas
de Pós-graduação brasileiros, com a realização do primeiro evento internacional
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a atual Diretoria do CONPEDI também cumpre com um de seus compromissos
assumidos quando eleitos. A transcendência da realização deste primeiro evento
internacional para os pesquisadores brasileiros da área do Direito se reflete no
resultado final obtido. A publicação de 15 livros, através da Ediciones Laborum
da Espanha em parceria com o CONPEDI, com todos os artigos apresentados
e debatidos nos GTs representa uma expressiva conquista que trará importantes
resultados para os programas de Pós-graduação brasileiros e, fundamentalmente,
para a área do Direito.
Barcelona/Florianópolis, março de 2015.
Os Organizadores
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i encontro de internacionalização do conpedi
Sumário
A (In) Constitucionalidade dos Tipos Penais Abertos: Crimes Omissivos Impróprios, Delitos Culposos e Normas Penais em Branco
Analisados sob a Ótica do Princípio da Legalidade Penal
Helvécio Damis de Oliveira Cunha........................................................9
A Constituição como Limite Positivo ao Direito Penal
Geilza Fátima Cavalcanti Diniz e Raquel Tiveron................................27
A Criminalização da Homofobia e suas Contradições
Marilia Montenegro Pessoa de Mello e João Paulo Allain Teixeira...........55
A Criminologia Positivista de Nina Rodrigues e sua Influência no
Tratamento dos Portadores de Sofrimento Psíquico Submetidos ao
Sistema de Justiça Criminal Brasileiro
Thayara Castelo Branco e Álvaro Oxley da Rocha ..................................79
Controle Epistêmico Sobre a Interceptação das Comunicações Telefônicas e de Dados: Uma Subversão dos Papeis dos Atores do Sistema
Penal
Antonio Eduardo Ramires Santoro.........................................................113
Garantismo, Estado Democrático de Direito e Princípio da Legalidade Penal: Limitações ao Poder Regulamentar do Conselho de
Controle de Atividades Financeiras (COAF)
Bruno Queiroz Oliveira e Nestor Eduardo Araruna Santiago..................137
Justiça Restaurativa como Via de Minimização do Processo de Vitimização
Daniela Portugal e Geovane Peixoto.......................................................161
Liberalismo e Pena: Montesquieu, Beccaria, Marat, Romagnosi,
Feuerbach e Carrara
Ellen Rodrigues e Mara Conceição Vieira de Oliveira..............................193
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i encontro de internacionalização do conpedi
Política No Criminal y Proceso Penal: La Intersección a Partir de las
Falsas Memorias del Testigo y su Posible Impacto Carcelario
Gustavo Noronha de Ávila e Érika Mendes de Carvalho.........................227
Psicopatia e Responsabilidade Penal: Novos Desafios Diante dos Avanços Neurocientíficos
Mirentxu Corcoy Bidasolo e Denise Hammerschmidt..............................253
Regulação Econômica e Direito Penal Econômico: Eficácia e Desencontro no Crime de Evasão de Divisas
Thiago Bottino......................................................................................275
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i encontro de internacionalização do conpedi
a (in) constitucionalidade dos tipos
penais abertos: crimes omissivos
impróprios, delitos culposos e normas
penais em br anco analisados sob a ótica
do princípio da legalidade penal
Helvécio Damis de Oliveira Cunha1
Resumo
O princípio da legalidade, garantia fundamental do ser humano, vem sendo
objeto de estudo pela ciência penal por mais de dois séculos. Porém, mesmo com
todo este tempo de análise, o princípio por vezes é relativizado por importantes
institutos aplicados concretamente no Direito Penal. Os denominados tipos penais abertos e seus desdobramentos são exemplos dessa relativização do princípio
da legalidade, vez que ampliam a abrangência do tipo penal exigindo complementações por outras normas jurídicas de qualquer natureza (leis ordinárias
ou normas de direito administrativo), mas, também, por indefinidos critérios de
interpretação. Por esta razão, mister se faz uma análise ainda que perfunctória, a
partir do ponto de vista do princípio da legalidade (taxatividade da norma penal),
dos delitos omissivos impróprios, dos tipos culposos e das normas penais em
branco, para, ao final, compreendermos que parte da doutrina penal os considera
como violadores daquele princípio, sendo o presente artigo, apenas uma breve
introdução a seu respeito.
Palavras-chave
Relativização do Princípio da Legalidade; Crime Omissivo Impróprio; Tipo
Culposo; Normal Penal em Branco.
1 Professor Adjunto nível II da Universidade Federal de Uberlândia. Professor de Direito Penal
III no Curso de Graduação e Docente Colaborador do Curso de Mestrado em Direito Público
da UFU. Mestre em Direito das Relações Sociais, subárea Direito Penal pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Doutor em Educação pela Universidad de la
Empresa de Montevidéu - Uruguai (UDE/UY). Endereço Eletrônico: damishelvecio@yahoo.
com.br
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i encontro de internacionalização do conpedi
Abstract
The principle of the legality, human being’s fundamental guarantee, is an
object that has been studied by Criminal Science for more than two centuries.
However, throughout this period of analysis, that principle has been relativized
by important institutes applied concretely by the Criminal Law. The penal norms
and its ramifications are examples of this relativization of the Principle of the
Legality, since they increase the range of the penal norm, asking complementation
through other legal norms from any origin (ordinary laws or administrative law
norms), but through undefined criteria of interpretation too. For this reason, an
analysis is necessary, even if it is perfunctory, from the perspective of Principle
of Legality (specifically of the penal norm), offenses by neglect, culpable penal
norms and unregulated criminal norms. After this analysis it is clear that part of
the penal doctrine considers these penal norms as violators of that principle. This
present article is just a brief introduction to this argument.
Key words
Relativization of Principle of the Legality; Offenses by Neglect; Culpable
Penal Norms; Unregulated Criminal Norms.
1.introdução
O estudo do fato delituoso e sua estrutura alcançaram ares de cientificidade
a partir do século XIX. Isto não significa, entretanto, que o crime e seus desdobramentos não foram objetos de estudo por vários pensadores desde o início das
relações sociais humanas.
A ciência penal como um sistema teórico-normativo e que tem como escopo a
solução de conflitos sociais, passou por diversas fases até culminar na que vivemos
no presente.
No início ela foi utilizada como instrumento de vingança (privada, religiosa e
pública); depois passou a ser estudada como um ramo efetivo da ciência jurídica
e explicada por inúmeras correntes teórico-científicas (ex.: Escolas Clássica e
Positivista e outras Escolas de naturezas híbridas). Encontramos, inclusive, teorias
que defendem a substituição do Direito Penal por outros ramos da ciência jurídica
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i encontro de internacionalização do conpedi
mais eficientes (ex.: Escola da Nova Defesa Social). Também existem teorias que
propõem sua total dissolução, como é defendido pelas teorias definidas como
abolicionistas (ex.: Louk Hulsman).
Após este pequeno introito a respeito das fases da ciência jurídica penal, mister se
faz abordar-se os fundamentos históricos do tema objeto do nosso texto.
No ano de 1764, Cesare Bonesana (conhecido como o Marquês de Beccaria)
escreve uma obra que consideramos ser o divisor de águas do Direito Penal não
científico e científico. Esse importante texto denominado “Dos Delitos e das Penas”
(Bonesana, 1993) foi elaborado por Beccaria e teve como inspiração os ideais e valores
iluministas nascentes em seu tempo. Ele descreve de forma bastante lúcida os abusos
e arbitrariedades que ocorreram na Itália, e de uma maneira geral, em toda Europa
nos séculos XVIII e anteriores.
Em uma das passagens deste relevante livro, Beccaria aborda sobre a necessidade
e aplicação do princípio da legalidade, afirmando que somente as leis podem fixar penas, inclusive não se admitindo ao juiz interpretá-las ou aplicar sanções
arbitrariamente. Ainda concernentemente ao aspecto da legalidade, ele afirma que as
leis devem ser de conhecimento geral do povo e que suas elaborações necessitam ser
claras e precisas, a fim de que todos possam conhecê-las e obedecê-las adequadamente.
A partir das ideias apresentadas pelo filósofo italiano, os estudiosos da ciência
penal passam a tratar da legalidade penal como uma condição obrigatória para a
concretização do corolário do princípio da segurança jurídica e, proteção do cidadão
frente ao arbítrio e abusos praticados pelo Estado.
Posteriormente no século XIX, com P. J. A. von Fuerbach, autor do livro Tratado
de Direito Penal (1801), nasce a moderna ciência do Direito Penal na Alemanha. Ele
inicialmente se filia ao imperativo categórico kantiano, entendendo que a sanção
era uma medida de caráter retributivo. Posteriormente, modifica seu pensamento,
passando a tratar a pena como uma medida preventiva, elaborando a partir disso,
a teoria da “coação psicológica” de concepção determinista. Fuerbach também
defendia fervorosamente o princípio da legalidade, elaborando um brocardo latino
que continua a ser utilizado na atualidade e que se tornou um símbolo para expressar
o princípio: nullum crimen, nulla poena sine lege (Bitencourt, 2000, p. 53).
Desde então o princípio da legalidade passa a ser adotado na maioria dos ordenamentos jurídicos ocidentais, aparecendo no ordenamento jurídico pátrio pela
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primeira vez no Código Criminal de 1830 (Pierangelli, 1980, p. 167). A atual Parte
Geral do Código Penal brasileiro, vigente desde 1984, também prevê a exigência da
legalidade no seu artigo primeiro. Nossa Constituição de 1988, no inciso XXXIX do
art. 5°, elege o princípio como um direito fundamental do indivíduo.
2.o princípio da legalidade e os crimes omissivos
impróprios: discussão acerca de sua (in) constitucionalidade
O princípio da legalidade ou da reserva legal constitui, nos dias atuais, uma
efetiva limitação ao poder punitivo estatal, servindo como um instrumento de
proteção do princípio da segurança jurídica.
A partir da universalização do corolário da legalidade, é possível afirmar que
a descrição de normas penais incriminadoras e não incriminadoras torna-se
função exclusiva da lei, isto é, nenhuma conduta poderá ser considerada crime e
nenhuma pena deverá aplicada, sem que antes do fato a ser apreciado, exista uma
lei em sentido estrito definindo-o como delito e cominando-lhe a correspondente
sanção penal (reserva e anterioridade da lei penal).
A principal justificativa para que o princípio da legalidade possua a força
jurídica que contém, encontra-se no fato de que existem direitos inerentes às
pessoas humanas que não são e nem precisam ser outorgados ou legislados pelo
Estado. Ou seja, é completamente inviável a vida em sociedade se os cidadãos
quedarem adstritos a um ilimitado poder ou arbítrio estatal. As leis penais criadas
em face da exigência da legalidade são definidas como a principal fonte formal
ou de exteriorização do Direito Penal, isto é, através da lei penal é possível dar
ciência (publicidade) e exigir de toda a sociedade o seu devido cumprimento
(caráter coativo).
Ocorre que mesmo com a obrigatoriedade da observância do princípio da
legalidade pelo Estado Democrático de Direito, algumas teorias e institutos
elaborados e estudados pela ciência penal padecem de sérias dificuldades, sob
o ponto de vista teórico-normativo para se enquadrarem no suprarreferido
princípio. Essa situação ocorre, por exemplo, com os denominados tipos penais
abertos. Estes tipos penais são aqueles em que a tipificação de um determinado
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fato jurídico penalmente relevante, só ocorrerá com o auxílio de outro tipo penal
de extensão (ou secundário) ou de um critério de extensão (ou hermenêutico).
Podem ser indicadas como espécies normativas que se enquadram nesses tipos
penais: as normas penais em branco, os crimes culposos e os delitos comissivos por
omissão (também chamados de omissivos impróprios).
Mas por que isso ocorre? Para elucidar nossa análise introdutória, apreciaremos algumas características e elementos teóricos dos crimes omissivos impróprios
ou comissivos por omissão.
As condutas humanas a partir do exame das formas de execução são definidas
como comissivas ou omissivas.
A conduta é comissiva quando for praticada por meio de uma ação (comportamento comissivo). Podemos citar como exemplos os verbos núcleo do tipo
nos delitos de homicídio (matar), furto (subtrair) e bigamia (contrair).
De outro lado, a conduta é definida como omissiva quando for realizada
através de uma omissão (comportamento negativo). Doutrinariamente as
condutas omissivas são classificadas como próprias ou impróprias (comissivas por
omissão).
Na omissão própria, o agente tem o dever legal de agir, isto é, nos tipos que descrevem condutas omissivas próprias, o legislador estabelece a obrigatoriedade de
um dever de praticar o ato que o tipo penal em seu preceito interno determina.
Por exemplo, no “delito de omissão de notificação de doença”, artigo 269 do
Código Penal (Deixar o médico de denunciar à autoridade pública doença cuja
notificação é compulsória)2, o legislador determina que dentro do prazo legal,
o médico que tomar conhecimento por meio de sua atuação profissional de
uma doença em que seja obrigatória a sua comunicação para as autoridades
2 O tipo penal do art. 269 do CPB é também classificado como uma norma penal em branco
em sentido lato/estrito, ou seja, ele é complementado por leis ordinárias ou normas de mesma
hierarquia jurídica (ex.: Lei n.º 6.259/75), mas, também, por atos normativos ou normas de
menor hierarquia ou que não são leis em sentido estrito (ex.: Portaria do Ministério de Estado
da Saúde n.º 1.100/96). A administrativização demonstrada na segunda situação (norma
penal em branco em sentido estrito) expõe o risco direto que o corolário da legalidade sofre,
pois permite que parte do conteúdo do tipo penal esteja fora dos limites e taxatividade que a
lei penal em sentido estrito e o princípio da segurança jurídica exigem.
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de saúde, o faça a fim de evitar a sua responsabilização penal em virtude da
inatividade de comportamento. Fica nítido no presente tipo penal, o dever de
agir daquele profissional da saúde com o escopo de permitir às autoridades
sanitárias a possibilidade de se preparar para uma possível disseminação da
doença diagnosticada.
Os delitos omissivos próprios têm as seguintes características fundamentais:
a) possuem tipologia própria, isto é, todos eles são descritos expressamente no Código Penal (ex.: arts. 135 e 269);
b) inexigibilidade do resultado naturalístico, o que significa que são todos
definidos como crimes de mera conduta; e,
c) o dever legal de agir, ou seja, o sujeito ativo precisa praticar uma ação
para impedir a tipificação de sua conduta. Deve-se observar que nos delitos em análise, o legislador exige o comportamento positivo, independentemente de impedir um possível ou provável resultado naturalístico
que nem chega a ser previsto na modalidade típica.
A outra modalidade de crimes omissivos é denominada de omissivos impróprios
ou comissivos por omissão. Estes delitos para a doutrina majoritária (Masson,
2012, p. 195) não possuem tipologia própria3, por isso exigem uma norma penal
de extensão ou complementar (§ 2° do artigo 13 do Código Penal brasileiro)
aplicada em conjunto com o tipo de delito que o sujeito ativo visa praticar. Neste
caso há uma adequação típica mediata (ex.: a mãe que mata o filho por inanição
responde pelo art. 121 – homicídio – combinado com a alínea “a” do dispositivo
supracitado – “tenha por lei obrigado de cuidado, proteção ou vigilância”).
Os delitos omissivos impróprios, além da não previsão típica imediata ou direta,
possuem os seguintes requisitos:
3 Em nosso entendimento (corrente minoritária) existem alguns crimes omissivos impróprios
previstos no Código Penal e na legislação especial, que possuem tipologia própria não
dependendo da aplicação do art. 13, § 2° do CPB (ex.: o art. 168 – apropriação indébita –
pode ser realizado por “negativa de restituição”, em que o agente nega-se ou se abstém de
restituir a coisa recebida de forma lícita ao seu legítimo proprietário ou possuidor).
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a) exigibilidade do resultado naturalístico, isto é, são crimes que se consumam com a necessária ocorrência do resultado (materiais). Rogério
Greco (2013, p. 875) ao tratar do tipo penal descrito no art. 288-A
(“Constituição de Milícia Privada”), que é classificado quanto ao resultado naturalístico como um delito formal, também entende que ele
pode ser comissivo por omissão. Conforme analisaremos no próximo requisito desta espécie de crime, eles não podem ser aplicados em delitos
formais em face da inexistência da exigência do resultado naturalístico;
b) o agente tem o dever de agir e evitar o resultado naturalístico, o que faz
com que seja exigida uma obrigação por parte do sujeito ativo que não
é extensível a qualquer pessoa. Zaffaroni e Pierangelli (2002, p. 537)
afirmam que o agente não tem apenas uma obrigação jurídica de evitar
o resultado, mas sim um dever especial de garantia do autor em face da
vítima.
O rol dos indivíduos que possuem o dever de agir ou o dever especial de
garantia é trazido no Código Penal no § 2° do art. 13, que define a função do
“garante” ou “garantidor”. Diz assim o dispositivo legal:
§ 2º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia
e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a
quem:
a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;
b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o
resultado;
c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência
do resultado.
A crítica existente para uma corrente minoritária da doutrina, a qual nos
filiamos, é que o tipo penal descrito padece do vício da inconstitucionalidade,
pois viola o princípio da legalidade ou da reserva legal, por tratar-se de um tipo penal aberto, que traz a definição do que é “garantidor” de forma bastante ampla,
permitindo um excessivo arbítrio judicial para o enquadramento típico do agente
nessa condição jurídica.
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i encontro de internacionalização do conpedi
A respeito dessa amplitude não permitida e da aparente inconstitucionalidade
da definição legal do “garante” comentam Zaffaroni e Pierangelli (2002, p. 541542):
Cria-se, com isso, uma questão extremamente séria porque, por
um lado, é verdade que é praticamente impossível prever todas as
hipóteses em que o autor se encontre numa posição jurídica tal, que
a realização de uma conduta distinta da devida seja equivalente à
realização de uma conduta causadora do resultado típico; mas,
por outro lado, também é verdade que a segurança jurídica sofre
um sério menosprezo com a admissão dos tipos omissivos não
expressos. Tem-se a impressão de que o princípio da legalidade
passa a sofrer uma importante exceção, embora, de outra parte,
também se tenha a impressão de que a admissão dos tipos omissivos
impróprios não expressos não faz mais do que esgotar o conteúdo
proibitivo do tipo ativo, que de modo algum quis deixar certas
condutas fora da proibição. Nesse último sentido, parece quase
óbvio que quando o CP comina com pena gravíssima a morte do
pai, não quer deixar fora dessa tipicidade a conduta da mãe que, ao
invés de estrangular seu bebê, o deixa morrer de inanição.
De qualquer maneira, com isso não pretendemos que se tenha
esgotado todas as dúvidas que a doutrina ainda tem a respeito
desse problema, particularmente quanto à sua constitucionalidade.
Cremos que essa é uma das matérias em que a dogmática jurídica
penal tem ainda aberta uma série de interrogações que é necessário
seguir investigando.
Diante de tais explicações e, a partir do exemplo dos crimes omissivos impróprios, constata-se que a existência de tipos penais abertos cria uma insegurança
jurídica que é inadmissível no âmbito da ciência penal moderna, em face do
rigor requerido pelo princípio da legalidade, garantia fundamental do indivíduo
perante o arbítrio/poder estatal.
Desta feita, o estudo mais aprofundado das normas penais em branco, crimes
omissivos impróprios e tipos penais culposos, que possuem como requisito essencial
a “flexibilização” ou indeterminação do corolário da legalidade, é essencial para
o desenvolvimento e aperfeiçoamento do Direito Penal como um todo, vez que
eles permeiam vários de seus conceitos e institutos fundamentais. Por isso é
importante analisarmos a (in) constitucionalidade dos tipos penais que englobam
esses institutos jurídicos.
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3. consider ações teóricas a respeito da (in) constitucionalidade dos tipos penais abertos: análise dos
tipos culposos e das normas penais em br anco em
face do princípio da legalidade penal
Para compreendermos como o princípio do nullum crimen, nulla poena sine
lege (legalidade) desempenha suas principais funções (garantia da lei penal, segurança jurídica e individualização das penas), é mister compreender que parte
da doutrina penal brasileira o desdobra em quatro sub-princípios que precisam
ser aplicados concomitantemente (Toledo, 1994, p. 30):
a) nullum crimen, nulla poena sine lege praevia;
b) nullum crimen, nulla poena sine lege scripta;
c) nullum crimen, nulla poena sine lege scricta;
d) nullum crimen, nulla poena sine lege certa.
A lex praevia diz respeito a necessidade da anterioridade da lei penal para a
criação de delitos e penas. Além disso, ela também veda a edição de crimes e/ou
penas por outras espécies normativas, sendo restrita à lei penal em sentido estrito.
A lex scripta veda a fundamentação, agravamento ou punibilidade do fato
concreto não previsto em um tipo penal, através do uso dos costumes contra
legem.
A lex scricta define a proibição da fundamentação, agravamento ou punição
da situação fática não prevista tipicamente com o emprego de analogia in malam
partem.
A lex certa proíbe a edição de normas penais ou leis com o conteúdo indeterminado, impreciso ou contraditório.
A aplicação concomitante de todos estes sub-princípios derivados, permite o
conhecimento da integralidade do princípio da legalidade e a incidência plena de
seus efeitos jurídicos na aplicação das normas penais.
Devido à essencialidade do corolário da legalidade para a ciência penal, a
doutrina penal de maneira uniforme, aponta a lei em sentido estrito, como a sua
principal fonte de exteriorização. Destaca-se, porém, que apesar da lei ser uma
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fonte direta ou primária do Direito Penal outras fontes do Direito podem ser
aplicadas a este, desde que tenham como função beneficiar a situação jurídica do
autor do fato jurídico.
Os costumes, os princípios gerais de Direito e a analogia (in bonam partem)
são fontes indiretas ou secundárias aplicáveis apenas ao Direito Penal não
incriminador, isto é, incidem nos casos de ausência de previsão legal (função de
integração) e em benefício do sujeito ativo do fato.
Temos como exemplo de aplicação integrativa dos princípios gerais de Direito na lacuna da norma penal não incriminadora, o consentimento do ofendido,
que é admissível nos crimes em que o bem jurídico tutelado pode ser por ele
disponibilizado4. A autonomia da vontade é um princípio geral de Direito derivado
do princípio da dignidade da pessoa humana e, ela permite ao indivíduo dispor
de bens jurídicos em face de determinadas condições especiais que possuem. A
honra, a liberdade sexual e o patrimônio são bens jurídicos que a vítima pode
dispor de interferência da tutela penal.
A lei em sentido estrito é definida como a fonte originária da norma penal5.
No estudo das normas penais encontramos três espécies que são classificadas da
seguinte forma: normas penais incriminadoras, normas penais não incriminadoras
ou permissivas e normas penais complementares ou explicativas.
As normas penais incriminadoras estabelecem as condutas penalmente relevantes e suas respectivas sanções (ex.: art. 121 do CP – Homicídio). As normas
penais não incriminadoras são aquelas que dispõem de algum benefício ao
agente que pratica uma conduta “potencialmente” relevante (ex.: excludentes
da tipicidade, ilicitude ou culpabilidade). Por fim, existem as normas penais
complementares ou explicativas que esclarecem o conteúdo de outras normas
jurídicas ou delimitam o âmbito de sua aplicação (ex.: art. 327 CP – conceito de
funcionário público e equiparado).
4 Defendemos que o consentimento do ofendido é uma excludente supralegal da ilicitude.
5 É relevante destacar que o Código Penal não é a única fonte das normas penais, pois as
encontramos em textos legais que contém conteúdo predominantemente vinculado a outros
ramos do Direito. Cita-se, como exemplo, o Código de Defesa do Consumidor que possui um
título dedicado à previsão dos crimes contra as relações de consumo.
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Dentro das três modalidades de normas penais que acabamos de estudar é
possível encontrarmos os tipos penais abertos6.
Além do exame das normas penais é importante abordarmos a respeito do
tipo penal e suas funções7. Podemos definir o tipo penal como a descrição abstrata
de um comportamento proibido, permitido ou explicativo com todas as suas
características subjetivas, objetivas/descritivas ou normativas.
Conforme descreve Masson (2012, p. 254), o tipo penal possui cinco funções
imprescindíveis para a tutela da dignidade humana perante ao arbítrio estatal.
São elas: função de garantia; função fundamentadora; função indiciária da ilicitude;
função diferenciadora do erro e; função seletiva.
A função de garantia fundamenta-se na previsão constitucional e legal do
princípio da legalidade ou da reserva legal, permitindo que apenas a lei em
sentido estrito possa criar os tipos penais incriminadores. Por isso, a reserva
legal e a anterioridade da lei penal garantem ao indivíduo o conhecimento
prévio das condutas ilícitas e, afasta qualquer possibilidade de sanção para um
comportamento que não esteja previamente estabelecido.
A função fundamentadora significa que uma conduta somente será penalmente
relevante se ela estiver fundamentada na lei e passível de sanção por parte do
Estado. Ela se vincula a ideia do exercício do direito de punir no caso de violação
da norma penal.
A função indiciária da ilicitude estabelece que o tipo penal possua o
condão de delimitar a norma penalmente ilícita. O fato de uma ação ser
típica indica a probabilidade de sua antijuridicidade. Bitencourt (2000,
p. 260) afirma que a tipicidade é a ratio cognoscendi da ilicitude, isto é, a
adequação típica (fato-norma) faz surgir o indício de que a conduta também
pode ser antijurídica. O fato típico não será ilícito se estiver presente uma
excludente de antijuridicidade (ex.: estado de necessidade). Na análise da
função indiciária encontramos uma das vicissitudes que os tipos penais abertos
causam ao princípio da legalidade, isto é, em face da descrição incompleta ou
6 A seguir os tipos penais abertos serão confrontados com o princípio da legalidade.
7 Entendemos que as expressões “tipo penal” e “norma penal” são sinônimas, porém, em alguns
momentos uma ou outra poderá ser utilizada em um contexto teórico diferente.
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i encontro de internacionalização do conpedi
excessivamente ampla dos elementos do tipo há uma dificuldade de verificação
do caráter indiciário da ilicitude.
A função diferenciadora do erro estabelece que o dolo do agente deva abranger
no plano concreto todos os elementos descritos no tipo penal. Caso este pratique
a conduta com o desconhecimento de alguma das circunstâncias fáticas que
constitua o tipo, o delito será completamente afastado, em face do erro de tipo
essencial que tem o condão de sempre excluir o dolo.
A última função do tipo penal é a seletiva. Conforme descreve Masson (2012,
p. 256): Cabe ao tipo penal a tarefa de selecionar as condutas que deverão ser
proibidas (crimes comissivos) ou ordenadas (crimes omissivos) pela lei penal, levando
em conta os princípios vetores do Direito Penal em um Estado Democrático de Direito
(grifo no original).
Após estabelecermos as funções do tipo cumpre-nos definir e estudar os
tipos penais abertos, verificando suas características principais e desdobramentos teórico-práticos.
Antes, porém, necessário se faz traçar uma diferenciação entre os tipos penais
abertos e os tipos penais fechados, que são duas categorias que tratam a respeito da
extensão e delimitação do conteúdo dos tipos penais.
Os tipos penais abertos são aqueles em que a tipicidade só pode ser avaliada
com o auxílio de outro tipo de extensão ou secundário (ex.: Parte Geral – art. 18,
II – definição de crime culposo / Parte Especial: art. 155 – elementar “coisa alheia
móvel” no delito de furto) ou através de um critério especial de extensão (ex.: no
delito de difamação – art. 139 do CPB – o tipo penal trás a elementar “reputação”
que depende necessariamente de valoração jurídica para a sua definição). Esta
modalidade de tipo, portanto, padece sempre de uma indeterminação relativa
quanto à delimitação ou à extensão de seu conteúdo.
Em contrapartida, os tipos penais fechados são aqueles em que a norma descreve
completamente a conduta proibida ou permitida, sendo desnecessária a utilização
de uma norma ou critério especial de extensão (ex.: art. 121 do CPB – “matar
alguém”).
Como apontado acima, os delitos culposos são tipos penais abertos, pois
dependem necessariamente de uma norma de extensão que está descrita no
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i encontro de internacionalização do conpedi
inciso II do art. 18 do CPB8. Pode-se citar como exemplo o § 3º do art. 121 do
Codex que tipifica a conduta do homicídio culposo (“Se o homicídio é culposo”).
A redação do homicídio culposo é relativamente indeterminada, vez que não
expressa claramente o seria “matar alguém culposamente”.
Somente com a junção do art. 121, § 3º e o art. 18, II ambos do Código
Penal é possível ocorrer a adequação típica e a punição do agente pela prática do
homicídio culposo. Isto significa que o homicídio culposo é “matar alguém como
consequência de uma conduta negligente, imprudente ou imperita”.
Diante da imprescindibilidade de aplicação do art. 18, II do CPB como
norma penal complementar ou de extensão, observa-se que os delitos culposos
realmente se enquadram na categoria dos tipos penais abertos. As elementares
típicas imprudência, negligência e imperícia expressam a indeterminação relativa
que estes delitos possuem, visto que é extremamente difícil ao operador do
Direito e ao indivíduo sujeito à persecução penal, defini-las de maneira segura.
Entendemos, portanto, que a indeterminação de conteúdo apontada desrespeita
frontalmente o princípio da legalidade (lex certa) e coloca em xeque o corolário
da segurança jurídica.
Por sua vez, as normas penais em branco são definidas como normas que
possuem a sanção determinada, mas o conteúdo indeterminado. Em relação
a elas também pairam dúvidas a respeito de sua constitucionalidade, por dependerem de uma complementação oriunda de uma norma de mesma fonte
material e formal (norma penal em branco em sentido amplo) ou por uma norma
ou ato normativo de diferente fonte material e formal (norma penal em branco
em sentido estrito).
As normas penais em branco também se enquadram na categoria dos tipos
penais abertos, pois exigem necessária complementação de conteúdo, em virtude
de sua indeterminação relativa.
8 No estudo dos crimes culposos verifica-se que este é composto por alguns elementos objetivos,
subjetivos e normativos que são necessários para a sua configuração São elementos dos crimes
culposos: comportamento humano voluntário (positivo ou negativo); descumprimento do dever
objetivo de cuidado manifestado através da imprudência, negligência e imperícia; previsibilidade
objetiva do resultado naturalístico; inexistência de previsão subjetiva do resultado; resultado
naturalístico involuntário; e, tipicidade da conduta.
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Apenas a título de exemplificação, podemos indicar o art. 33 da Lei n.
11.343/2006 que trata do crime de tráfico de drogas, em que se afirma que o
objeto material (droga) envolvido em qualquer das condutas típicas “não é
autorizado ou está em desacordo com determinação legal ou regulamentar”. O tipo
em destaque não trás em seu bojo o rol dessas substâncias proibidas, exigindo a
utilização de uma ou mais normas complementares oriundas de normativas do
Ministério da Saúde para a sua efetiva incidência (Portaria SVS-MS n. 344/1998
c/c Resolução – RDC n. 6/2014).
Juarez Cirino dos Santos (2007, p. 50-51) analisando as normas penais em
branco, assim se expressa sobre as consequências trazidas por elas no ordenamento jurídico penal:
As leis penais em branco exprimem a tendência moderna de administrativização do Direito Penal, com transferência de poderes
punitivos a funcionários do Poder Executivo, ou a modalidades
inferiores de atos normativos (Decreto, Resolução etc.), com os
seguintes problemas:
a) primeiro, um problema político: a transferência da competência legislativa para definir a conduta proibida para o
Poder Executivo, ou para níveis inferiores de atos legislativos,
infringe o princípio da legalidade, como afirma um setor
avançado da literatura penal – afinal, o emprego instrumental
do Direito Penal para realizar políticas públicas emergenciais
é inconstitucional.
b) segundo, um problema prático – porque a inconstitucionalidade da lei penal em branco não exclui sua eficácia concreta
enquanto integrar a legislação penal: definir se o complemento
posterior favorável ao autor (por exemplo, a doença foi excluída do
catálogo) é retroativo ao fato realizado na vigência de complemento anterior prejudicial ao autor (na época do fato, a doença constava
do catálogo).
A partir do posicionamento de Juarez Cirino, entendemos que as normas
penais em branco também são submetidas aos questionamentos concernentes à sua
inconstitucionalidade, visto que se caracterizam pela indeterminação relativa do
tipo penal potencialmente violadora dos corolários da legalidade e da segurança
jurídica.
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4.conclusões
O princípio da legalidade penal é uma das grandes conquistas do ser humano
no Estado Democrático de Direito. Ele tutela o direito subjetivo de liberdade dos
indivíduos frente ao arbítrio e o excesso de poder estatal.
Ocorre que a dogmática penal dentro das várias temáticas que discute na
aplicação da teoria do crime, faz uso de institutos e modelos teóricos que trazem
desdobramentos que flexibilizam ou relativizam o princípio da legalidade penal,
e que também refletem sobre o corolário da segurança jurídica.
No estudo dos tipos abertos encontramos outros institutos de importância
fundamental no Direito Penal e, que os utilizam como instrumento para
tipificação de condutas penalmente relevantes. Verificamos que os crimes omissivos
impróprios, os delitos culposos e as normas penais em branco têm como característica
comum a indeterminação relativa de seus conteúdos e elementares típicas.
O presente aspecto exposto demonstra um enfraquecimento perigoso e
também uma violação do corolário da legalidade, por apresentar elementares
típicas com os conteúdos excessivamente genéricos. Eles também provocam uma
administrativização dos conteúdos das normas penais e permitem um amplo
espaço para interpretação e o arbítrio judicial. Todos esses vícios apontados
trazem à tona o questionamento de tais institutos sob os prismas da legalidade
penal e da segurança jurídica, admitindo-se o posicionamento favorável acerca
de suas inconstitucionalidades.
Resta-nos dizer que não tivemos neste trabalho o intuito de esgotar o tema,
mas tão somente promover uma breve discussão, considerando-se o fato de que
todos os institutos destacados comportam, a partir dos aspectos examinados, um
longo, pormenorizado e individualizado estudo.
5.referências
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volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
a constituição como limite
positivo ao direito penal
Geilza Fátima Cavalcanti Diniz1
Raquel Tiveron2
Resumo
As relações entre o Direito Penal e a Constituição são delineadas especialmente
pela forma por meio da qual o Estado explicita seu sistema de proteção aos direitos
humanos. Diversas são as teorias que se propõem a explicar essa relação. No
presente artigo, busca-se enfrentar a realidade brasileira, para verificar qual teoria
melhor explica a relação entre o Direito Penal e a Constituição. A partir disso, são
analisados os princípios penais constitucionais, as velocidades do Direito Penal e
a postura da Constituição brasileira como uma Constituição de Terceira Geração.
Palavras-chave
Direito Penal; Constituição; Garantismo; Direitos Fundamentais; Princípios
constitucionais do Direito Penal.
Abstract
The relationship between the Criminal Law and the Constitution are outlined
by particular means by which the state explicitly its system of human rights
protection. There are several theories that purport to explain this relationship. In
this article, we seek to meet the Brazilian reality, to see which theory best explains
the relationship between the criminal law and the Constitution. From this, we
analyze the criminal constitutional principles, the velocities of the Criminal Law
and the posture of the Brazilian Constitution as a Constitution Third Generation.
Key words
Criminal Law; Constitution; Guaranteeism; Fundamental Rights; Constitutional principles of criminal law.
1 Doutora em Direito (UniCeub), Mestra em Direito (UFPE), Professora Universitária
(UniCeub), Juíza de Direito (TJDFT).
2 Doutora em Direito (UniCeub), Mestra em Direito (UniCeub), Professora Universitária
(UniCeub), Promotora de Justiça (MPDFT).
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i encontro de internacionalização do conpedi
1.introdução
As relações entre o Direito Penal e a Constituição são delineadas especialmente pela forma pela qual o Estado de Direito explicita seu sistema de proteção
aos direitos fundamentais. Duas especiais formas de relações são apontadas: da
Constituição como limite negativo ao Direito Penal e da Constituição como
limite positivo ao Direito Penal. A depender da teoria prevalente na ordem
jurídica constitucional de um país, pode a Constituição servir como base, como
fundamento ao poder de punir do Estado ou pode ela ser o principal limite ao
legislador infraconstitucional na tutela dos bens jurídico-penais, por intermédio
da tipificação.
No presente artigo, pretende-se, portanto, analisar as relações entre Direito
Penal e Constituição à luz da teoria dos Direitos Fundamentais. Para tanto, serão
analisadas as gerações de constitucionalismo existentes, a fim de verificar em
qual delas se enquadra a atual Constituição Brasileira e qual o modelo teórico
respectivo que se pode verificar na atividade legiferante penal.
Serão ainda abordadas velocidades do Direito Penal e o modelo constitucional adotado, pois se trata de uma relação necessária, especialmente para se constatar como tem sido previstas as penas atualmente existentes no Brasil, especialmente no que tange à pena privativa de liberdade e as penas restritivas de
direito, que denotam uma opção do legislador e demonstra a velocidade do
Direito Penal do país respectivo.
Abordar-se-ão os princípios penais esposados pela Constituição Brasileira, a
partir da previsão expressa da Carta atual e de uma análise histórica e da influência
filosófica. Por fim, será analisada a teoria do Direito Penal mínimo como anseio
constitucional, concluindo-se com os principais aspectos que delineiam a relação
entre Direito Penal e Constituição.
2.as relações entre constituição, direito penal e
direitos fundamentais
Pode-se conceituar direitos humanos, a partir de uma visão histórica de seu
conteúdo, como um núcleo mínimo de direitos que devem ser tutelados pelo
Estado e que podem servir, ao mesmo tempo, como limites ao poder estatal
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i encontro de internacionalização do conpedi
e como norte a ser seguido para implementação de garantias que devem ser
efetivadas pelo Estado. São direitos, segundo a doutrina clássica, inerentes ao ser
humano, inalienáveis, imprescritíveis, que devem ser necessariamente previstos
na Lei Maior de um país, para que esse possa vir a ser caracterizado como
verdadeiro Estado Democrático de Direito.
Na medida em que tais direitos humanos passam a ser previstos na Constituição, portanto dotados de um status diferenciado em relação aos demais
direitos, fala-se que passam a possuir a característica da fundamentalidade, e
então se fala de direitos fundamentais. Além da previsão constitucional, grande
parte dos direitos humanos é prevista nos principais instrumentos internacionais, formando um sistema internacional de proteção aos direitos humanos. Citese, como um dos principais exemplos, o Pacto de São José da Costa Rica1, do
qual o Brasil é signatário3.
Costuma-se classificar os direitos humanos em gerações ou dimensões, que se
referem ao modelo de Estado, à titularidade e à forma pela qual tais direitos serão
exercidos. Norberto Bobbio4, em sua obra “A era dos Direitos”, faz a classificação,
nesse passo em três gerações de direitos humanos5.
Em relação aos direitos humanos de primeira geração, têm-se os direitos
humanos relativos às liberdades individuais, são direitos negativos, oponíveis
ao Estado, e que se caracterizam, pois, por serem direitos de resistência e de
titularidade individual. Nesse conceito, encontram-se os direitos à liberdade,
3 Quando os direitos humanos são previstos em normas internacionais, sua violação pelo
direito interno poderia ensejar o controle de convencionalidade, mencionado, dentre outros,
por Luiz Flávio Gomes. De se recordar que a Constituição Federal de 1988 trouxe uma
cláusula aberta de previsão dos direitos humanos no art. 5º, §2º. Cf. GOMES, Luiz Flávio.
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Valor dos Tratados Internacionais: Do Plano Legal ao Ápice
Supraconstitucional? (Parte II). Disponível em: http://www.lfg.com.br. Acesso em: 12 jun.
2014.
4 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. Disponível em: http://
direitoufma2010.files.wordpress.com/2010/05/norberto-bobbio-a-era-dos-direitos.pdf.
Acesso em: 12 jun. 2014.
5 Há quem fale ainda em quarta e quinta geração de direitos humanos. Cite-se, nesse sentido,
Paulo Bonavides, que se refere a direitos ligados à informática e à bioética. Para os fins do
presente artigo, trabalharemos com a classificação tradicional de Norberto Bobbio. Cf:
BONAVIDES, Paulo. A quinta geração de direitos fundamentais. In: Direitos Fundamentais
e Justiça, n. 3, abr/jun 2008, pp. 82-93. Disponível em: http://www.dfj.inf.br/Arquivos/
PDF_Livre/3_Doutrina_5.pdf. Acesso em 12 jun. 2014.
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i encontro de internacionalização do conpedi
à propriedade, à vida privada, dentre outros e se referem ao modelo de estado
liberal, pois para o exercício de tal geração de direitos é suficiente o non facere
estatal.
Na segunda geração dos direitos humanos, encontram-se os direitos sociais.
A titularidade já não é mais individual, mas pertencente a grupos sociais
determinados. Relacionam-se tais direitos humanos ao modelo de estado de bemestar social, o chamado welfare state. Para serem concretizados, não basta uma
abstenção do Estado. Pelo contrário, é necessário um agir estatal, o que deve ser
feito não somente por intermédio da previsão normativa de tais direitos6, mas
também por meio de uma prestação material. São exemplos de direitos humanos
de segunda geração o direito à saúde e o direito à educação.
Com relação à terceira geração dos direitos humanos, fala-se em direitos transindividuais, de titularidade difusa, relativo a bens cuja titularidade não é
apenas de um grupo social determinado, mas à coletividade. Relaciona-se ao
estado neoliberal e como exemplo pode ser citado o direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado.
Analisando o modelo normativo penal brasileiro7, seja pela ampla diversidade
dos bens tutelados, seja pela variedade de medidas sancionatórias e de garantias adotadas, é possível afirmar-se que há um padrão eclético, preocupando-se o
sistema penal em garantir e tutelar direitos de primeira, segunda e terceira geração, não sendo, pois, um modelo puramente liberal-individualista e nem somente
social-coletivista.
A Constituição Federal de 1988, ao dispor sobre o Direito Penal, dessa
maneira, e diferentemente de outros modelos constitucionais possíveis, não
buscou lidar apenas com direitos de primeira dimensão, atuando na previsão de
possíveis formas de restrição à liberdade e ao mesmo tempo à tutela da garantia
do direito à liberdade, mas também houve uma preocupação constitucional de
atuação do estado como agente normativo e regulador da atividade penal.
6 A prestação material se refere à efetiva concretização desses direitos. No exemplo do direito
à assistência pré-escolar seria a real construção de escolas, no direito à saúde a construção de
hospitais etc.
7 Refiro-me, neste ponto, não somente à Constituição Federal, mas ao sistema jurídico-penal
como um todo.
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Houve, portanto, quando da redação da chamada Constituição cidadã8,
uma opção político-filosófica tanto em privilegiar a tutela aos direitos e interesses individuais, como em proteger coletividade. Aponta-se, portanto, um
distanciamento do padrão meramente negativo ou de non facere estatal no que
tange à tutela de bens jurídicos, com a ampliação do foco de tutela tanto para os
bens coletivos como transindividuais.
Como exemplo desse último, é possível citar a previsão constitucional de
ampliação da responsabilidade penal além da pessoa física. Nesse passo, previuse a possibilidade de lei ordinária criminalizar condutas da pessoa jurídica em
relação aos crimes contra o meio ambiente9.
Portanto, tem-se que o sistema penal, à luz do modelo constitucional adotado
no país, foi além das funções de garantia individual contra o poder punitivo estatal,
buscando uma função social e transformadora do Direito Penal, mas sem abandonar
o perfil liberal, ou seja, em uma postura eclética. Segundo a teoria da Constituição
Dirigente Aplicada a Países de Modernidade Tardia (TCDAPMT), lecionada
por Lenio Luiz Streck e André Copetti10, a concretização das atribuições penais
interventivas constituem uma das formas de efetivação da teoria da Constituição
Dirigente. Demonstra nosso sistema constitucional, portanto, enquadrar-se no
constitucionalismo de terceira geração, a seguir melhor explicitado.
3. constitucionalismo de ger ações
Em palestra proferida em Brasília, em 15 de outubro de 2013, Luigi Ferrajoli
trouxe importante lição sobre os aspectos relacionais entre Direito Penal e
8 Expressão utilizada pelo Deputado Ulysses Guimarães quando da promulgação do texto
constitucional. Discurso disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=bytTuigty9g.
Acesso em: 13 jun. 2014.
9 Cabe salientar a interpretação que o Superior Tribunal de Justiça deu ao tema, aplicando
a teoria da dupla imputação, prescrevendo, portanto, que além da imputação feita à pessoa
jurídica, faz-se necessária a individualização da conduta à pessoa física responsável pelo ato.
10 COPETTI, André; STRECK, Lenio Luiz. O Direito Penal e os influxos legislativos pósConstituição de 1988: um modelo normativo eclético consolidado ou em fase de transição.
Disponível em: http://www.andrecopetti.net/news/o%20direito%20penal%20e%20os%20
influxos%20legislativos%20pos-constitui%c3%a7%c3%a3o%20de%201988%3a%20
um%20modelo%20normativo%20ecletico%20consolidado%20ou%20em%20fase%20
de%20transi%c3%a7%c3%a3o-/. Acesso em: 13 jun.14.
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Constituição, como acima delineado11. Asseverou que as Constituições dos diversos países, no Século XIX, caracterizaram-se como um freio ao jus puniendi do
poder estatal, referindo-se o professor italiano, portanto, ao modelo de prescrição
relativo aos direitos de primeira geração, já explanados no tópico precedente. Essas
constituições seriam, em um paralelo com os direitos de primeira geração, no que
se refere ao direito penal, Constituições de primeira geração, preocupadas, pois,
em limitar o poder estatal contra eventuais arbitrariedades ou possíveis abusos.
A partir da segunda metade do Século XIX, como fenômeno observável na
maioria dos países ocidentais, houve uma maior preocupação em garantir os
direitos relacionados ao Direito Penal, mas a maioria dessas garantias foi prevista
por meio de leis penais e não na própria Constituição, motivo pelo qual Ferrajoli
caracterizou esse período como sendo a época do poder dos parlamentos e
convencionou chamar as Constituições respectivas de Constituições de Segunda
Geração.
Já as Constituições do Século XX, diversamente, preocuparam-se em ir além
da criação de limites e freios ao poder estatal, ocupando-se também em criar
obrigações políticas respectivas em relação aos cidadãos. Os direitos fundamentais
relacionados à área penal foram elevados ao patamar de direitos constitucionais,
passando assim as Constituições em funcionar como verdadeiras “réguas”12 para a
atuação dos Estados, sendo assim um passo a frente em relação às Constituições
de primeira e segunda geração. É o que Ferrajoli chamou de Constituição de
Terceira Geração, afirmando, em seguida, que a Constituição Brasileira estaria
inserida nesse conceito, sendo uma das mais desenvolvidas da América Latina.
De fato, verifica-se que a Constituição preocupou-se, já em seu art. 1º, inciso
III, em preceituar o princípio da dignidade da pessoa humana, que tem profunda
relação como o direito penal, como fundamento da República Federativa do
Brasil. Em seguida, no art. 5º, ao preceituar os direitos e garantias fundamentais,
preocupou-se em elencar diversos princípios penais, erigindo-os à categoria de
fundamentalidade. Com relação às penas, também se preocupou a Constituição
11Palestra disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-out-16/constituicao-brasileiraavancadas-mundo-luigi-ferrajoli. Acesso em: 13 de jun. 14.
12 Expressão utilizada pro Luigi Ferrajoli na palestra mencionada.
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brasileira em dar um tratamento de fundamentalidade às mesmas, seguindo o
padrão das velocidades do Direito Penal assinalado por Silva Sanches13.
4.as velocidades do direito penal e o modelo constitucional adotado: uma relação necessária
Ao analisar a sistemática pela qual a Constituição brasileira tratou a temática das penas, pode-se verificar que há uma profunda relação entre a realidade
social que se reflete no texto legislativo e o momento do Direito Penal esposado
pela Lei Maior. Analisando sociologicamente essa relação, Silva Sanches traz
importante lição ao classificar o direito penal em três velocidades, a partir da
forma pela qual é tratado o assunto da segregação cautelar.
Nessa seara, na primeira velocidade do Direito Penal, tem-se uma aplicação
predominante da aplicação de penas privativas de liberdade, no que já se chamou
de obsessão pelo cárcere14, mas com respeito às garantias individuais. Muitas
políticas criminais do nosso tempo (em verdade, “políticas penais” ou “políticas
eleitoreiras”) identificam-se com este modelo, pretendendo dissuadir a prática
criminosa mediante a intimidação causada pela imposição de penas severas. Há
uma crença no full enforcement, ou seja, uma convicção de que o aumento da
pena de um crime seja efetivo para evitá-lo. Esta foi a tônica de reformas algumas
penais no Brasil (como a Lei nº 10.972, de 2004, que instituiu o regime disciplinar
diferenciado; a Lei nº 8.072, de 1990, conhecida lei dos crimes hediondos), que,
inspirados no movimento norte-americano law and order, predica o agravamento
das penas, criação de novos tipos penais e uma execução penal rígida, com respeito
aos direitos e garantias fundamentais15.
Na segunda velocidade do Direito Penal, faz-se um escalonamento dos
crimes e, para os chamados crimes de menor gravidade, cria-se a possibilidade
13 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas
sociedades pós-industriais. Trad. Luíz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: RT, 2002.
14 Expressão utilizada por Denival Silva, em Dissertação de Mestrado homônima apresentada
à Universidade Federal de Pernambuco (SILVA, Denival Francisco. Obsessão pelo cárcere: A
renitência dos juízes às penas não privativas de liberdade. Brasilia, 2002).
15GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antônio, GOMES, Luiz Flávio. Criminologia:
introdução a seus fundamentos teóricos: introdução às bases criminológicas da Lei 9.099/95,
lei dos juizados especiais criminais. 3ª ed., São Paulo: RT, 2012, p. 489 e 495.
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i encontro de internacionalização do conpedi
de aplicação de penas restritivas de direito em substituição às penas privativas de
liberdade ou mesmo de forma autônoma, flexibilizando-se, para tanto, algumas
garantias penais. No Brasil, é possível destacar, como exemplo, a previsão dos
crimes de menor potencial ofensivo pela Lei nº 9.099/95 – Lei dos Juizados
Especiais Criminais. Esse mesmo diploma normativo criou a possibilidade de
aplicação, atendidos os requisitos ali previstos, do instituto da transação penal,
pelo qual há imediata aplicação de pena não privativa de liberdade, mas há a
consequente relativização do princípio da presunção de inocência.
Com a edição da referida lei, o ordenamento jurídico brasileiro passou a prever reações quantitativa e qualitativamente distintas para cada espécie de crime,
estabelecendo espaços de conflito e de consenso. Para o que designou “delitos
de menor potencial ofensivo” – atualmente compreendidos aqueles cuja pena
privativa de liberdade máxima seja de dois anos – a lei reservou o procedimento e
institutos despenalizadores da Lei nº 9.099/95 (espaço de consenso), nos quais é
possível autor, vítima e Ministério Público transigirem acerca das consequências
para o crime16.
Luiz Flávio Gomes17 destaca que foi fundamental para esse giro políticocriminal em direção ao consenso, o reconhecimento pelo próprio Estado da
insuficiência (ou mesmo da falência) do modelo clássico de justiça criminal, que
não reúne condições para fazer frente, com sua atual estrutura e organização, a
todas as infrações cometidas e noticiadas18.
Ainda segundo o criminologista brasileiro, o modelo consensual instituído
pela Lei nº 9.099/95 tem por fundamento três princípios: oportunidade regrada
(o que não é consenso entre os autores), autonomia da vontade do imputado e
desnecessidade da pena de prisão. Isso quer dizer que, para que haja concordância
16GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antônio, GOMES, Luiz Flávio. Criminologia:
introdução a seus fundamentos teóricos: introdução às bases criminológicas da Lei 9.099/95,
lei dos juizados especiais criminais. 3ª ed., São Paulo: RT, 2012, p. 486 e 489.
17 GOMES, Luiz Flávio. A impunidade no Brasil: de quem é a culpa? (esboço de um decálogo
dos filtros da impunidade). Revista do Centro de Estudos Judiciários. Brasília, nº 15, p. 3550, set./dez. 2001.
18GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antônio, GOMES, Luiz Flávio. Criminologia:
introdução a seus fundamentos teóricos: introdução às bases criminológicas da Lei 9.099/95,
lei dos juizados especiais criminais. 3ª ed., São Paulo: RT, 2012, p. 489 e 497-498.
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i encontro de internacionalização do conpedi
e se possa aplicá-lo, é necessário que cada um dos envolvidos na persecução
penal abdique de uma parcela dos seus direitos ou poderes tradicionalmente
contemplados no devido processo legal. Por exemplo, o Ministério Público deve
abrir mão da via processual habitual (propositura da ação penal), o acusado deve
abrir mão das suas garantias processuais clássicas (contraditório, provas, recursos
etc.) em troca de alguns benefícios, como evitar a pena e o processo e o Estado
obriga-se a retirar sua forma de reação clássica ao delito que é a prisão de curta
duração, pois executá-la pode trazer a consequência nefasta de desencadear a
“carreira criminal” do ofensor de menor periculosidade19. Trata-se de um arquétipo que desburocratiza a justiça criminal, já que as contravenções e crimes
menores, que antes ocupavam os juízos e tribunais, passaram para os juizados
onde vigora a oralidade, celeridade, informalidade, limitações recursais etc20.
Na terceira velocidade do Direito Penal, tem-se um recrudescimento do
regime relativo à aplicação das penas, com a aplicação de pena privativa de
liberdade, mas, ao mesmo tempo, com a redução de garantias. Essa velocidade do
direito penal se relaciona com a teoria do direito penal do inimigo, de Günther
Jackobs21. O inimigo seria autor de “crimes de alta traição”, que assume uma
atitude de insubordinação jurídica intrínseca, capaz de produzir um estado de
guerra contra a sociedade e perderia a qualidade de pessoa portadora de direitos,
19GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antônio, GOMES, Luiz Flávio. Criminologia:
introdução a seus fundamentos teóricos: introdução às bases criminológicas da Lei 9.099/95,
lei dos juizados especiais criminais. 3ª ed., São Paulo: RT, 2012,p. 489.
20 BOCHENEK, Antônio César. Princípios orientadores dos juizados especiais. 2004, p. 43.
Disponível em: http://www.fdv.br/publicacoes/periodicos/revistadepoimentos/n11/5.pdf.
Acesso em: 16 jun. 14.
21 O penalista alemão apresentou esta teoria em 2004, no clássico artigo Bürgerstrafrecht und
Feindstrafrecht (direito penal do cidadão e direito penal do inimigo), que distingue cidadãos
e inimigos, de acordo com a determinação dos agentes de controle social. O infrator é visto
como um inimigo, ou seja, perigoso, anormal, subversivo, pertencente a grupos ou classes
tidos como intoleráveis (PASSETTI, Edson (org). Curso livre de abolicionismo penal. Rio
de Janeiro: Revan, 2004, p. 21). Isso não significa que os cidadãos comuns não cometam
crimes. Entretanto, explica Juarez Cirino dos Santos, o cidadão seria autor de crimes
“normais” e preservariam uma atitude de fidelidade jurídica intrínseca, sendo capazes de
manter as expectativas normativas da comunidade sem desafiar o sistema social (CIRINO
DOS SANTOS, Juarez. O direito penal do inimigo – ou o discurso do direito penal desigual.
2012, p. 5. Disponível em: http://icpc.org.br/wp-content/uploads/2012/05/direito_penal_
do_inimigo.pdf. Acesso em: 16 jun. 14.)
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15
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i encontro de internacionalização do conpedi
porque desafia o sistema social. Essa distinção, anota Maria Lúcia Karam22, assenta-se no maniqueísmo simplista que divide as pessoas entre boas e más. Aos
bons cidadãos, aplica-se o respeito a todos os direitos. Aos inimigos, esses direitos
costumam ser negados, o que vulnera o princípio de igualdade perante a lei23. Isso
ocorre porque, segundo Louk Hulsman24, somos levados a considerar os “eventos
criminosos” como fatos excepcionais, ou seja, fatos que diferem substancialmente
de outros eventos não definidos como crimes. Assim, sob tal ponto de vista, os
ofensores tornam-se uma categoria especial de pessoas e a natureza excepcional da
conduta criminosa justifica a natureza especial da reação feita contra eles25.
Fala-se ainda em uma quarta velocidade do Direito Penal, que no entanto
não é criação de Silva Sanches. Tem seu berço na Itália e prega tratamento
penal diferenciado a quem já é ou foi chefe de Estado. Essa velocidade estaria
relacionada ao direito penal internacional26, mas especificamente a regras de
extraterritorialidade.
Analisando o sistema constitucional penal brasileiro, é possível se identificar,
embora sem exclusão completa das demais velocidades do direito penal, uma
22 KARAM, Maria Lúcia. Pela abolição do sistema penal. In: PASSETTI, Edson (org). Curso
livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 89.
23 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. O direito penal do inimigo – ou o discurso do direito
penal desigual. 2012, p. 12. Disponível em: http://icpc.org.br/wp-content/uploads/2012/05/
direito_penal_do_inimigo.pdf. Acesso em: 16 jun. 14.
24 HULSMAN, Louk. Alternativas à justiça criminal. In: PASSETTI, Edson (org). Curso livre
de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 43.
25 Alessandro Baratta lembra que, a despeito do “sacrifício simbólico do condenado considerado
como bode expiatório”, a maior parte dos infratores da lei penal, em especial dos crimes
mais graves, permanece impune (BARATTA, Alessandro. Principios del derecho penal mínimo
- para uma teoría de los derechos humanos como objeto y limite de la ley penal – trad.
Francisco Bissoli Filho. Doutrina Penal n. 10-40, Buenos Aires, Argentina: Depalma, 1987,
p. 634. Disponível em: http://danielafeli.dominiotemporario.com/doc/ALESSANDRO%20
BARATTA%20Principios%20de%20direito%20penal%20minimo.pdf. Acesso em: 16 jun.
14). Os reveses desta incongruência são ressaltados por Juarez Cirino dos Santos (2013, p. 4),
o qual lembra que, se a punição do “criminoso” reforça a fidelidade jurídica do povo e reduz
a criminalidade, a não punição do “infrator” reduz a confiança da população na austeridade
do Direito, ampliando a criminalidade (CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Novas hipóteses de
criminalização. 2013. Disponível em: http://icpc.org.br/wp-content/uploads/2013/01/novas_
hipoteses_criminalizacao.pdf. Acesso em: 16 jun. 14).
26 De se ressaltar que, no Brasil, a Emenda Constitucional nº 45/2004 acrescentou o §4º ao art.
5º da CF, dispondo que o Brasil se submete a jurisdição do Tribunal Penal Internacional –
TPI/ Haia.
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i encontro de internacionalização do conpedi
maior preocupação do legislador em aproximar-se da segunda velocidade do
Direito Penal. Com efeito, já se proibiu, no próprio texto constitucional, as penas
de morte27, perpétua, de banimento, cruel e de trabalho forçado, nos termos do
art. 5º, inciso XLVII. Previu-se ainda expressamente a possibilidade de aplicação
de penas restritivas de direitos, cabendo ao legislador infraconstitucional a
individualização das penas (art. 5º, inciso XLVI).
O legislador infraconstitucional, nesse passo, tem escalonado os crimes e as
penas respectivas a partir da gravidade da infração, sendo a pena privativa de
liberdade, na atualidade, restrita à aplicação aos crimes menos ofensivos. Assim, é
possível afirmar que o sistema constitucional penal brasileiro reflete uma segunda
velocidade.
Além dessa previsão relativa à forma de segregação, o legislador constituinte
se preocupou em prever, dotar de fundamentalidade, os princípios penais mais
importantes àquele momento histórico e social, o que se passará a abordar.
5.a adoção dos princípios penais pela constituição
br asileir a: uma análise histórica
Uma característica que se pode observar em diversas Constituições de distintos países, e que no Brasil não foi diferente, é a previsão expressa de princípios
penais consagrados. Nota-se, nessa característica, forte influência do pensamento
de Cesare Beccaria, na obra “Dos Delitos e das Penas”, originalmente publicada
em 1764.
Para chegar ao momento atual do sistema penal constitucional brasileiro,
pode-se ver que um longo caminho foi percorrido. Afirma-se que a maioria das
Constituições tem como base a Magna Carta de João Sem Terra de 1215, mas
o pensamento sobre os direitos fundamentais relacionados ao direito penal e o
respeito à pessoa do criminoso parecem ter grandes reflexos da mencionada obra
de Beccaria.
Nesse sentido, a Constituição brasileira de 1824 preceituou as primeiras regras
sobre direito penitenciário, já se podendo assim fazer relação com os pensamentos
27Salvo hipótese também preceituada no texto, de guerra declarada pelo Presidente da
República.
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i encontro de internacionalização do conpedi
do Iluminismo e da obra de Beccaria, muito embora ainda se tenha permitido
a aplicação das penas de morte, de banimento e penas de galés28. Previu-se, por
outro lado, o princípio da legalidade, tão propalado por Beccaria e também o
do devido processo legal. Segundo o marquês, “para não ser um ato de violência
contra o cidadão, a pena deve ser essencialmente pública, pronta, necessária, a
menor das penas aplicáveis nas circunstâncias dadas, proporcionada ao delito e
determinada pela lei”29.
Na Constituição de 1891 foram abolidas as penas acima, havendo pois um
grande avanço no que tange à segregação e seus mecanismo, mas não inovações
mais importantes em relação aos princípios penais constitucionais.
Na Constituição de 1934 foram preceituadas as garantias do processo criminal, pode-se ainda destacar o surgimento da fiança, o estabelecimento do princípio
da presunção de inocência, entre outros, o que configurou importante avanço.
Em um retrocesso histórico, a Constituição de 1937 efetivou a redução de
garantias processuais, mas a de 1946 consagrou o Estado Liberal, retornando
à previsão de importantes princípios constitucionais penais. Preceituou-se os
princípios da ampla defesa, do contraditório e do duplo grau de jurisdição30.
Estabeleceu-se ainda o júri popular e o princípio da individualização da pena.
A Constituição de 1967 manteve o respeito às garantias anteriores, assim
como a de 1969 também o fez, mas com viés mais severo da censura e cassação de
direitos políticos, face ao momento histórico então vivido.
28 A respeito deste tipo de pena, explica Emanuel Luiz Souza e Silva: “As galés estavam entre
as principais embarcações de guerra europeias até o desenvolvimento da navegação, a partir
do século XVI. Elas possuíam velas que, apesar de serem muito rudimentares, auxiliavam
em sua movimentação. Mas, para que ganhassem os mares, era necessário recorrer à força de
cerca de 250 homens, recrutados de diversas formas. Eles podiam ser escravos condenados
pela Justiça, que trocavam suas penas por trabalhos temporários nas galés, ou voluntários em
busca de salário. Com o passar do tempo, esse recrutamento passou a priorizar os cativos e
aqueles que cumpriam pena, pois não era necessário pagar pelos seus serviços”. SOUZA E
SILVA, Emanuel Luiz. Condenados às galés. In: Revista de história. Disponível em: http://
www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/condenados-as-gales. Acesso em: 14 jun. 14.
29 Beccaria (1764, p. 201)
30 Com relação a tal princípio, de se destacar a atual posição do Supremo Tribunal Federal, no
sentido de que o mesmo não possui previsão constitucional como garantia, embora tenha
previsão expressa no Pacto de São José da Costa Rica.
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i encontro de internacionalização do conpedi
Finalmente, a Constituição de 1988 sistematizou e previu de forma mais completa os princípios penais, como adiante se analisará, e trouxe grande novidade ao
prever os direitos fundamentais como cláusulas pétreas, em seu art. 5º, §4º. Previu,
dentre os princípios já afirmados por Cesare Beccaria, os seguintes princípios:
a. anterioridade,
b. legalidade,
c. responsabilidade pessoal,
d. irretroatividade da lei penal mais maléfica,
e. proporcionalidade das penas,
f. publicidade e
g. presunção de inocência
Dessa forma, as penas seriam aplicadas tendo em conta tais garantias constitucionais, de modo que o autor de um crime não é despejado da condição de
cidadão, a despeito do erro cometido.
6. princípios constitucionais do direito penal
Inicialmente, faz-se necessário afirmar o caráter principiológico dos direitos humanos31. Podendo as normas jurídicas se apresentar como regras ou
princípios32, e tendo estes um maior grau de abstração, caráter normogenético,
menor densidade na aplicação e não se submetendo às regras de revogação,
mas sim convivendo harmonicamente no sistema jurídico, ainda que em
31 Cf., a respeito, Norberto Bobbio, “A era dos Direitos”. O autor, além dessa característica,
aponta o caráter normogenético dos princípios e, portanto, dos direitos fundamentais: são os
princípios (direitos fundamentais) que dão origem às demais normas (BOBBIO, Norberto. A
era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. Disponível em: http://direitoufma2010.files.
wordpress.com/2010/05/norberto-bobbio-a-era-dos-direitos.pdf. Acesso em: 12 jun. 2014).
32 Assim afirma grande parcela da doutrina e os adeptos da teoria clássica da argumentação
jurídica, mas é de se ressaltar que essa opinião não é pacífica e que há entendimentos mais
atuais sobre as possíveis formas de apresentação das normas jurídicas. Para os fins do presente
artigo, que pretende abordar as relações entre Direito Penal e Constituição e não a teoria da
argumentação jurídica adotar-se-á a classificação de normas em regras e princípios.
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i encontro de internacionalização do conpedi
colisão33, os direitos humanos possuem natureza principiológica. Dessa
forma, e na medida em que previstos na Constituição e, portanto, dotados de
fundamentalidade, os princípios penais nela previstos são cláusulas pétreas.
Com essa premissa, tem-se que a teoria dos direitos humanos como objeto
e limite do direito penal, explicitada por Alessandro Baratta34, tem como
paradigma o fato de que os direitos humanos relativos ao direito penal, previstos
na Constituição como princípios, possuem dupla função. Na primeira função
identificável, os princípios penais constitucionais se apresentam com uma carga
negativa, impondo portanto limites à intervenção penal.
Em sua segunda função, os princípios penais constitucionais são dotados de
um aspecto positivo, no sentido de uma possibilidade de definição do objeto da
tutela penal por intermédio do direito penal, à luz das previsões constitucionais.
Pode-se dividir tais princípios constitucionais em princípios intrassistemátivos da mínima intervenção penal e princípios extrassistemáticos. No primeiro
deles, faz-se uma classificação em três grupos:
1. Princípios de limitação formal,
2. Princípio de limitação funcional
3. Princípios de limitação pessoal ou de limitação da responsabilidade penal.
33 Mediante a aplicação da técnica de ponderação de valores em caso de colisão de princípios
ou de direitos fundamentais, muito utilizada pela jurisprudência pátria. Como exemplos de
colisão, pode-se citar a colisão entre liberdade e segurança social, na decisão pelo deferimento
ou não de liberdade provisória; de privacidade e segurança, na decisão sobre interceptação das
comunicações telefônicas, todos com previsão constitucional. Para aplicação da técnica, há a
previsão de três subprincípios, quais sejam: necessidade, adequação e proporcionalidade em
sentido estrito. Sobre o tema, cf. Robert Alexy (Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo:
Malheiros Editores, 2008); Lenio Streck (A dupla face do princípio da proporcionalidade: da
proibição de excesso (Übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermassverbot)
ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. Revista da Ajuris, Ano
XXXII, nº 97, marco/2005) e Suzana de Toledo Barros (O Princípio da Proporcionalidade e
o Controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais. 2ed. Brasília:
Brasilia Jurídica, 2000).
34 BARATTA, Alessandro. Principios del derecho penal mínimo - para uma teoría de los derechos
humanos como objeto y limite de la ley penal – trad. Francisco Bissoli Filho. Doutrina Penal n.
10-40, Buenos Aires, Argentina: Depalma, 1987., p. 634. Disponível em: http://danielafeli.
dominiotemporario.com/doc/ALESSANDRO%20BARATTA%20Principios%20de%20
direito%20penal%20minimo.pdf. Acesso em: 13 jun. 14.
40
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i encontro de internacionalização do conpedi
Dentre os princípios de limitação formal, destaca-se em primeiro lugar o
princípio da reserva da lei ou legalidade em sentido estrito, sob a fórmula “nullum
crimen, nula poena sine praevia lege”, previsto tanto na Magna Carta (art. 5º,
inciso XXXIX), como no Código Penal (art. 1º). Tal princípio estabelece que não
há crime sem lei anterior que o preveja, nem pena sem prévia cominação legal,
relacionando-se de forma direta aos direitos fundamentais de primeira dimensão,
mais especificamente ao direito de liberdade. De se ressaltar que os direitos
humanos não são absolutos e que, portanto, são passíveis de restrição, desde
que respeitado o seu núcleo essencial. Sendo assim, o princípio da legalidade no
Direito Penal estabelece que somente poderá haver restrição do direito à liberdade,
em face do Direito Penal, se houver previsão legal, seja em relação ao crime, seja
em relação à pena cominada.
O segundo princípio desse grupo é o princípio da taxatividade, profundamente relacionado ao princípio da legalidade. A previsão de crimes, pela lei, somente
pode ser feita de forma taxativa, expressa, mediante o processo de subsunção
direta, não se admitindo formas analógicas de criação de tipos penais, senão
mediante previsão taxativa de tipo, pela lei respectiva.
O terceiro princípio é o da irretroatividade da lei penal mais maléfica ou
da extra-atividade da lei penal mais benéfica, previsto no art. 5º, inciso XL, da
Constituição. Por esse princípio, a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar
o réu. O princípio do primado da lei penal substancial é o quarto desse grupo,
e visa assegurar a extensão das garantias contidas no princípio da legalidade aos
três níveis possíveis de aplicação da lei penal: de ações da polícia (inquérito e
investigações), dentro do processo (ação penal e incidentes) e na execução da
pena.
O quinto e último princípio do grupo é o princípio da representação popular,
que preceitua o respeito dos requisitos mínimos do Estado do Direito no que
tange à representatividade da assembleia legislativa e ao seu funcionamento
regular para criação de tipos penais.
Dentre os princípios de limitação funcional, destaca-se o princípio da
resposta não contingente, pelo qual “a lei penal é um ato solene de resposta aos
problemas sociais fundamentais que se apresentam como gerais e duradouros em
uma sociedade”; o princípio da proporcionalidade abstrata, que especifica que
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i encontro de internacionalização do conpedi
somente graves violações ao direito devem ser tuteladas pelo Direito Penal e ainda
que as penas devem guardar proporcionalidade à gravidade da infração praticada.
Em segundo lugar, o princípio da idoneidade preceitua a necessidade de
estudo dos efeitos socialmente úteis que cabe esperar da pena e da tipificação
da conduta. O princípio da subsidiariedade, em complemento afirma que o
Direito Penal deve atuar como ultima ratio, somente se tipificando condutas
que, por outros mecanismos, não poderiam ser coibidas35. O princípio da proporcionalidade concreta ou de adequação do custo social assevera os elevados
custos sociais da pena, de forma que há a necessidade de uma proporcionalidade
concreta na cominação. O princípio da implementação administrativa da lei,
ressaltando a importância da estrita observância do sistema penal como um
todo, estabelece que a aplicação correta da lei bastaria por si mesmo para reduzir
drasticamente ao mínimo a área de intervenção da lei.
Fala-se ainda do princípio do respeito pelas autonomias culturais, no que
se pode citar a importante discussão acerca da tipificação ou não de condutas
de grupos culturais dentro da mesma coletividade de um país (exemplo de
determinadas práticas indígenas, dentre outros) e da relação entre conflitos
culturais e criminalidade. Por fim, nesse grupo, tem-se o princípio do primado da
vitima, que se relaciona às teorias da justiça restaurativa, dentre outras, destacando o importante papel restitutivo e restaurativo que deve ser relacionado ao
sujeito passivo da infração penal36.
35 Nesse sentido, Michel Foucault, na obra “Vigiar e Punir”, estabelece as conhecidas regras a
serem observadas para implementação desse caráter do direito penal:
1. Regra da quantidade mínima;
2. Regra da idealidade suficiente,
3. Regra dos efeitos colaterais,
4. Regra da certeza perfeita,
5. Regra da verdade comum e
6. Regra da especificação ideal.
(FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Rio de Janeiro: Vozes, 2008).
36 Enquanto o sistema de justiça criminal vigente – constituído pelas leis penais, pelas agências
e pelas prisões – é quase que inteiramente voltado ao ofensor, que se preocupa precipuamente
em apurar sua culpa e puni-lo, a justiça restaurativa é sensível às necessidades e interesses de
todos os envolvidos, outorgando a autores e vítimas o protagonismo na solução dos conflitos,
atendendo à sua carência de informações (acerca do processo, das razões e circunstâncias
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i encontro de internacionalização do conpedi
No terceiro grupo, tem-se os princípios de limitação pessoal ou limitativos
da responsabilidade penal; dentre eles o princípio da imputação pessoal ou
personalidade, em relação ao qual a pena não passará da pessoa do condenado,
previsto expressamente em nossa Constituição; o princípio da responsabilidade
pelo fato, que se relaciona às teorias do direito penal do autor e direito penal
do fato, dando preferência a este último; e o princípio da exigibilidade social
do comportamento conforme a lei; que guarda relação com o conceito de
culpabilidade. Ressaltamos ainda a previsão, em nossa Constituição, do princípio
da individualização da pena - art. 5º, inciso XLVI.
Dentre os princípios extrassistemáticos da mínima intervenção penal,
destacam-se os princípios da descriminalização de condutas que não tenham
ofensividade ou lesividade, princípio da não intervenção inútil; princípio da
privatização dos conflitos; princípio da politização dos conflitos; princípio da
preservação das garantias formais.
Outra classificação destacada por Alessandro Baratta diz respeito aos princípios metodológicos da construção alternativa dos conflitos, com maior relação
entre o Direito Penal e a sociologia, visando propiciar uma visão inovadora e
mais diferenciada dos conflitos e problemas sociais; o princípio da subtração
metodológica dos conceitos de criminalidade e da pena, que “propõe o uso, em
uma função heurística, de um experimento metodológico: a subtração hipotética
de determinados conceitos de um arsenal preestabelecido, ou a suspensão (epoché)
de sua validez”37.
No mesmo grupo, menciona-se o princípio de não especificação dos conflitos
e dos problemas, o princípio geral de prevenção e o princípio da articulação
autônoma dos conflitos e das necessidades reais38. Em face dessa sistemática de
previsão constitucional dos princípios penais, é possível afirmar que a Constituição Federal de 1988 traz importantes passos de uma constituição garantista.
do delito etc.); permitindo uma cooperação atuante, espaço de escuta, em busca de uma
compensação material e simbólica.
37 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e crítica del diritto penal. Milino, Bologna,
1982.
38 Cf. BARATTA, Alessandro. Sur la criminologie critique et as fonctions dans la politique
criminalle. Milino, Bologna, 1983 e BARATTA, Alessandro. La teoria dela prevenzioneintegrazione. Uma “nuova” fondazione dela pena all “interno dela teoria sistêmica. In: Dei
Delitti e dele Pene. Milino, Bologna, 1984.
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7. constituição, direito penal e gar antismo
O garantismo penal é uma teoria jusfilosófica que tem como um de seus
principais defensores Luigi Ferrajoli39. Embora melhor desenvolvida no fim do
Século XX, tal teoria tem suas raízes no iluminismo, Século XVIII e pretende
se apresentar como um modelo normativo de direito, ou seja, estabelecendo
um sistema de vínculos impostos ao poder estatal em garantia dos direitos dos
cidadãos, relacionando-se, portanto, aos direitos fundamentais de primeira
geração; uma teoria crítica do direito, que busca questionar o papel do direito
penal no desenvolvimento e concretização da validade e efetividade do direito
e uma teoria de filosofia política, para a qual é necessário ao direito penal,
especialmente ao tipificar condutas, uma justificação ética-política ao estado do
direito, não bastando a justificação jurídica40.
Nessa seara, é possível afirmar que o legislador constituinte brasileiro, ao
optar por erigir ao status constitucional de direitos humanos e, portanto, de
princípios penais constitucionais as principais diretrizes do Direito Penal,
destacando-se, nesse sentido, o princípio da legalidade, da irretroatividade da
lei penal mais maléfica, da individualização da pena, da proibição de penas
especificamente previstas no texto maior, buscou criar um sistema de limitações
ao legislador infraconstitucional, que não pode relativizar tais garantias penais.
Neste contexto, a função do direito penal seria a de impor freio à violência
institucional, com a utilidade de um “funcionalismo redutor”41.
Esse sistema de garantias penais, dessa maneira, funciona não somente com
uma função positiva de criação e efetivação de direitos do cidadão contra o jus
puniendi estatal, mas como uma técnica de limitação ao próprio legislador e ao
aplicador da lei penal, que não poderá descumprir ou não observar esses standards
mínimos previstos pelo constituinte. Nisso se verifica o avanço da Constituição
39 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula
Zomer Sica e outros. SP: RT, 2006.
40 Deve-se anotar aqui a observação feita pela corrente da criminologia crítica no sentido de que
“referir-se a um direito penal garantista em um Estado de direito é uma redundância grosseira,
porque nele não pode haver outro direito penal senão o de garantias” (ZAFFARONI, Eugenio
Raúl. O inimigo no direito penal. 2a. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p 173).
41 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; OLIVEIRA, Edmundo. Criminologia e política criminal. Rio
de Janeiro: GZ Editora, 2010, p. 473).
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brasileira mencionado por Luigi Ferrajoli, ao classificá-la como uma Constituição
de Terceira Geração.
Desta feita, destaca-se a relação entre Direito Penal, Constituição e Direitos
Fundamentais, desempenhando a Constituição brasileira um papel nitidamente
garantidor de direitos, muito embora não se limite a esse papel de garantia, como
já se destacou em linhas anteriores. Com tais axiomas, o garantismo contesta
o discurso maniqueísta de incompatibilidade entre defesa social e direitos individuais. A supremacia do interesse público não seria discordante dos interesses
individuais e tampouco legitimaria qualquer abuso de poder contra os ofensores
ou a vulgarização da resposta estatal42.
É de se analisar, nesse ponto, a relação entre a Carta Magna garantista e os
bens jurídicos penais.
8. constituição e bens jurídicos penais
Ao se falar em bens jurídicos penais, referimo-nos aqueles bens que, à luz dos
princípios da subsidiariedade e da fragmentariedade, foram eleitos pelo legislador
para serem tutelados pelo arcabouço penal, não sendo suficiente, portanto, à
tutela de outros ramos do Direito. O bem jurídico penal funcionada como limite
ao Direito Penal, na medida em que, se não há violação a um bem jurídico penal,
não pode haver a tipificação de condutas e/ou a imposição de penas43.
A Constituição como norma suprema deve refletir esses bens jurídicos penais,
como valores mais caros para a sociedade à qual se relaciona. Para tanto, o
legislador constituinte deve partir de estudos sociológicos, auferindo quais os valores mais importantes para determinada sociedade, elegendo dentre esses valores
quais justificam a imposição da ultima ratio que é o Direito Penal. Enquanto o
42PALADINO, Carolina de Freitas. Minimalismo, abolicionismo ou garantismo: qual a
solução para os problemas no âmbito penal? In: Cadernos da Escola de Direito e Relações
Internacionais, Curitiba, 13: p. 415, vol.1. 2010. Disponível em: http://ufrr.br/nupepa/index.
php?option=com_phocadownload&view=category&download=84:abolicionismo&id=14:di
sciplina-direito-criminologia-e-cidadania. Acesso em: 16 jun. 14.
43 Nessa esteira, cabe colacionar o posicionamento do Supremo Tribunal Federal em relação à
posse de arma desmuniciada, referindo-se ainda aos crimes de perigo concreto e de perigo
abstrato. A norma penal deve cuidar de condutas que tenham ofensividade e lesividade ao
bem jurídico penal tutelado.
volume
15
45
i encontro de internacionalização do conpedi
legislador constituinte deve identificar quais são esses bens na própria sociedade,
o legislador infraconstituinte deve retirar tais valores da própria Constituição
– e aqui se encontra uma das mais importantes relações entre Direito Penal e
Constituição.
O direito penal deve então ser considerado como o último recurso (ultima
ratio) de intervenção estatal, de forma que este ramo do direito não seja utilizado
quando houver a possibilidade de utilizar outros instrumentos jurídicos nãopenais para restaurar a lei violada. Afinal, a pena é um mal irreversível e uma
solução imperfeita, que deve ser usada somente após a falha de outros modos
de proteção. Assim, não basta provar a idoneidade da resposta penal. Mister que
também se demonstre que ela não é substituível por outros modos de intervenção
de menor custo social (necessidade e a utilidade da ingerência penal44).
Neste sentido, oportuna citar a crítica de Winfried Hassemer45 de que, a despeito da reivindicação acadêmica de emprego do direito penal como ultima ratio, o
que se percebe atualmente é um movimento oposto a este, sendo aplicado o direito
penal como sola ou prima ratio para a solução dos problemas sociais. A tendência
é que qualquer conduta lesiva seja tratada por este ramo (crimes de trânsito,
tributários, de porte de arma, contra as relações de consumo, violência doméstica
etc.). É o que chamam de “modernizar” (modernisieren) o Direito Penal, de ampliálo para um instrumento funcional de política interna e de pedagogia popular, a
fim de sensibilizar cidadãos46. Este fenômeno é chamado de “administrativização
do direito penal”, caracterizado pelo uso indiscriminado da tutela penal com o
fim de reforçar o cumprimento de obrigações para com o Estado, expandindo-se
o poder punitivo aleatoriamente. Dessa forma, o direito penal não se distingue
dos outros instrumentos de solução dos conflitos pela sua utilidade ou pela sua
44 BARATTA, Alessandro. Principios del derecho penal mínimo - para uma teoría de los
derechos humanos como objeto y limite de la ley penal – trad. Francisco Bissoli Filho.
Doutrina Penal, n. 10-40, Buenos Aires, Argentina: Depalma, 1987, p. 632.
45 HASSEMER, Winfried. Características e crises do moderno direito penal. In: Revista Síntese
de Direito Penal e Processual Penal – n. 18, Fev-Mar/2003, pp. 149. Disponível em: http://
pt.scribd.com/doc/55381562/Hassemer-Caracteristicas-e-Crise-do-moderno-direito-penalPablo-Rodrigo-Alflen#download. Acesso em: 16 jun. 14.
46 HASSEMER, Winfried. Características e crises do moderno direito penal. In: Revista Síntese
de Direito Penal e Processual Penal – n. 18, Fev-Mar/2003, pp. 144. Disponível em: http://
pt.scribd.com/doc/55381562/Hassemer-Caracteristicas-e-Crise-do-moderno-direito-penalPablo-Rodrigo-Alflen#download. Acesso em: 16 jun. 14.
46
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i encontro de internacionalização do conpedi
gravidade, apesar dos seus instrumentos rigorosos, tornando-se uma soft law, um
meio de manobra (Steuerung) social47. Esta constatação reforça a tese de Paulo de
Souza Queiroz48 em defesa do garantismo e do minimalismo, para quem “um
direito penal mínimo não significa enfraquecer o sistema penal, mas fortalecê-lo”.
Ao analisar a relação entre os valores sociais e a Constituição, pode-se identificar concepções formais do bem jurídico, pela qual o legislador, de forma nem
sempre pautada na realidade social, mas em uma análise meramente formal, elege
ou escolhe os bens que devem ser tutelados pelo Direito Penal. Por outro lado, nas
concepções mais aceitas, as materiais, – o legislador escolhe e cria bens penais por
intermédio da valoração social. É da sociedade, portanto, que devem ser retirados
os bens jurídicos a serem protegidos potencialmente pelo Direito Penal, como
aqueles mais importantes ao convívio social.
Destaca-se, no sentido das concepções materiais do bem jurídico, a noção
de Luigi Ferrajoli em relação à função limitadora do bem jurídico. Para o autor,
a lesão ao bem jurídico potencialmente tutelado é condição necessária, mas
nunca suficiente para a proibição e punição. Pode-se apontar, ainda no sentido
dessas concepções materiais, duas revoluções, a primeira do legalismo formal,
que distancia o Estado de Direito do absolutismo, e a segunda do legalismo
substancial, relacionada à concepção material do bem jurídico e que prega a
necessidade das escolhas legislativas refletirem valores sociais mais importantes.
Após a escolha desses bens, segundo essa concepção, a Constituição é verdadeiro
limite ao Direito Penal, havendo duas principais teorias que justificam o tema.
9.teorias da constituição como limites ao direito
penal
Partindo dos pressupostos da teoria dos garantismo penal e das relações entre
Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Penal, duas principais teorias explicitam como a Constituição desempenha o papel limitador ao direito penal.
47 HASSEMER, Winfried. Características e crises do moderno direito penal. In: Revista Síntese
de Direito Penal e Processual Penal – n. 18, Fev-Mar/2003, pp. 149. Disponível em: http://
pt.scribd.com/doc/55381562/Hassemer-Caracteristicas-e-Crise-do-moderno-direito-penalPablo-Rodrigo-Alflen#download. Acesso em: 16 jun. 14.
48 QUEIROZ, Paulo de Souza. Por que defendo um direito penal mínimo. 5 dez. 2007. Disponível
em: http://pauloqueiroz.net/por-que-defendo-um-direito-penal-minimo. Acesso em: 16 jun. 14.
volume
15
47
i encontro de internacionalização do conpedi
Segundo a teoria da Constituição como limite negativo ao Direito Penal, toda a
atividade do legislador infraconstitucional, desde que não desrespeite frontalmente o texto constitucional, será admitida.
Da mesma maneira, poderia o legislador infraconstitucional tipificar, segundo
a teoria dos limites negativos, condutas atentatórias a valores não reconhecidos
pelo legislador constituinte, desde que não fira valores constitucionais49.
Por outro lado, a teoria da Constituição como limite positivo ao Direito
Penal preceitua que o legislador ordinário deve se ater a utilizar a tutela penal
apenas para a proteção de bens jurídicos reconhecidos pela Constituição como
valores precípuos de determinada sociedade50. Para essa teoria, não basta que
a lei penal não fira ou contrarie a Constituição. Além disso, ela deve se ater a
tutelar condutas que firam valores de relevância constitucional, ou seja, extrair
tais valores da Constituição.
Decorrem dessa segunda teoria – do limite positivo – duas subdivisões. Para a
primeira delas, a do Direito Penal como potencial espelho do texto constitucional,
independente da importância que um determinado valor possui dentro da
sistemática constitucional, poderá haver a criminalização da conduta ofensiva a
esse valor. Como exemplo, pode-se citar que, como a família é um valor descrito
no art. 226 da Constituição, é possível, ainda nos dias atuais, tipificar-se o crime
de adultério51, independente da importância desse valor para a sociedade em dado
momento histórico.
Na segunda subdivisão, tem-se o Direito Penal como instrumento de tutela
dos direitos fundamentais. Para essa teoria, para cada preceito penal, para cada
tipificação ou cada crime, deve haver um valor com status de direito fundamental
no texto constitucional. Não basta estar previsto na Constituição Federal, fazendo49 Cf. BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao Direito Penal brasileiro. 11 ed. Rio de Janeiro:
Revan, 2007.
50 Giordio Marinucci e Emilio Dolcini ressaltam que não existem obrigações constitucionais
implícitas de incriminação deduzíveis do caráter dos direitos fundamentais dos bens em jogo
(MARINUCCI, Giordio; DOLCINI, Emilio. Constituição e escolha dos bens jurídicos.
Revista Portuguesa de Ciência Criminal. Coimbra: Aequitas-editorial noticias, ano 4, fasc 2,
abr-jun 1994, p. 185.)
51 A propósito, ressalte-se que o adultério não se encontra mais tipificado como crime, embora o
valor família permaneça intacto no texto constitucional, não tendo havido qualquer alteração
formal em relação a esse valor.
48
volume
15
i encontro de internacionalização do conpedi
se, assim, necessário que o bem jurídico tenha status de direito fundamental, apesar
de nem todo direito fundamental poder ser considerado um bem jurídico penal52,
mas somente aqueles que, segundo análise sociológica, forem mais importantes e
caros à sociedade.
Nessa linha de pensamento, justifica-se, por exemplo, a descriminalização
do crime de adultério, considerando a análise sociológica refletida pela opção do
legislador infraconstitucional. Essa teoria se relaciona com a posição do caráter histórico dos direitos fundamentais53. Note-se, por oportuno, que a descriminalização
nem sempre significa a aceitação da conduta descriminalizada, nem o afastamento
do caráter socialmente negativo da situação ou mesmo uma ausência de qualquer
controle sobre ela. Descriminalizar significa afastar uma das formas pelas quais se
exerce o controle social de condutas – o direito penal – substituindo-a por outras
formas de controle social, formal ou informal, como os juízes cíveis, os programas
de justiça restaurativa dentro dos tribunais ou fora deles, o sistema de saúde ou de
assistência social, a família, a escola, as igrejas, os clubes, as associações etc. Há,
portanto, uma falsa crença de que a intervenção do sistema penal é a única forma
de controle ou enfrentamento de situações negativas ou condutas delituosas54. Verifica-se, destarte, que garantismo, minimalismo e descriminalização são elementos
correlatos e necessários para uma política criminal eficaz.
10. conclusões
As relações entre Direito Penal e Constituição são fortes, marcadas, pela adoção do Estado de Direito, pela presença dos Direitos Fundamentais que denotam
52 Domenico Pulitanò menciona o insolúvel o conflito verificado entre direitos fundamentais
como instrumentos de garantia contra o estado e direitos fundamentais como fundamento e
consequentemente propulsor do poder punitivo desse mesmo estado. A busca de um Direito
Penal mínimo não pode conviver com CF que traz em seu bojo necessidade automáticas e
não concretas de criminalização. Assim, a CF não pode ser tomada como fundamento, mas
sim como limite positivo do direito penal (PULITANÒ, Domenico. Diritto Penale - Tutela
Penale della Persona. Turim: Ed. G. Giappichelli, 2011).
53Há três principais teorias sobre o tema: jusnaturalismo, juspositivismo e historicismo.
Filiamo-nos a esta terceira, que também é compartilhada pelo pensamento de Norberto
Bobbio (BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. Disponível em:
http://direitoufma2010.files.wordpress.com/2010/05/norberto-bobbio-a-era-dos-direitos.
pdf. Acesso em: 12 jun. 2014).
54 KARAM, Maria Lúcia. Pela abolição do sistema penal. In: PASSETTI, Edson (org). Curso
livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 104.
volume
15
49
i encontro de internacionalização do conpedi
valores constitucionais precípuos ao Direito Penal. Analisando a Constituição
brasileira, pode-se verificar que se adotou o modelo de uma Constituição de
Terceira Geração, segundo o qual o Estado não atua apenas com papel negativo,
de abstenção ou de non facere, mas desempenha importante função de definição
dos bens jurídicos penais mais importantes, bens estes que são variáveis no tempo
e no espaço, por se relacionarem ao caráter histórico dos direitos fundamentais.
Conclui-se também que a Constituição pátria demonstra relação com a segunda velocidade do Direito Penal, ocupando-se de dar primazia ao conceito
de dignidade da pessoa humana, que é erigido como fundamento da República
Federativa do Brasil, prevendo não somente penas privativas de liberdade, mas
penas restritivas de direitos e outras, conforme escalonamento dos crimes em
máximo, médio e menor potencial ofensivo.
Segundo uma análise histórica da adoção dos princípios constitucionais penais, é possível verificar a atual opção pelo garantismo penal, cuidando o legislador
constituinte de criar mecanismo de limites ao jus puniendi estatal, efetivando
esses limites por intermédio de garantias ao cidadão, sem descuidar, ao mesmo
tempo, da tutela de direitos sociais (segunda geração) e transindividuais (terceira
geração).
Ao limitar o Direito Penal, apesar da divergência existente na doutrina,
entendemos que a Constituição optou pela teoria dos limites positivos ao Direito
Penal como instrumento de tutela dos direitos fundamentais, de forma que o
legislador infraconstitucional somente deve tipificar condutas que reflitam valores
constitucionais que se relacionem com os direitos fundamentais, até porque, se
interpretada de forma diversa ou extensivamente, justificar-se-ia a incidência
do direito penal em toda e qualquer forma de conduta humana, afastando-se o
sistema constitucional de um Direito Penal mínimo e passando a justificar, em
contrapartida, um Direito Penal máximo.
Qualquer que seja a teoria adotada, de toda forma, o principal objetivo de
delinear as relações entre Constituição e Direito Penal é de delinear os limites ao
poder punitivo estatal, garantia contra arbítrios e retrocessos. É preciso, por fim,
evitar-se a adoção de um Direito Penal do inimigo, evitando o hábito do direito
penal de emergência, fundado na “luta” contra formas de criminalidade, sob pena
de se instituir um Direito Penal simbólico.
50
volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
Portanto, os direitos fundamentais devem ser considerados como instrumentos
de garantia como estado, como limitador do poder punitivo estatal, de forma
que a Constituição é um limite positivo ao Direito Penal, pautando-se este, em
consequência, na necessidade efetiva, e não na necessidade meramente formal, da
tutela penal.
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54
volume
15
i encontro de internacionalização do conpedi
a criminalização da homofobia
e suas contr adições
Marilia Montenegro Pessoa de Mello1
João Paulo Allain Teixeira 2
Resumo
O objetivo do presente artigo é demonstrar, a partir da análise dos
projetos de lei que visam criminalizar a homofobia, que o Direito Penal não
constitui meio idôneo para fazer política social. Dessa forma aponta-se, como
base nos estudos da criminologia crítica, ao movimento LGBTT que não é
possível buscar a sua emancipação através do poder punitivo. A ampliação da
legislação penal para atender as demandas dos movimentos sociais fica muito
nítida no cenário nacional após a Constituição de 1988. Assim demonstrase o papel da mídia na ampliação dessa legislação penal, e como as vítimas
estão sendo expostas nos meios de comunicação como forma de legitimar a
atuação do sistema penal. Após a análise dos projetos de lei em tramitação
para criminalizar a homofobia, conclui-se que a proposta é a da criminalização
meramente simbólica, que não gera efeitos protetivos concretos a vítimas,
podendo inclusive revitimizá-las.
Palavras-chave
Criminalização da Homofobia; Direito Penal Simbólico; Vitimização.
1 Professora de Direito Penal e Criminologia da Universidade Católica de Pernambuco
(UNICAP) e da Faculdade de Direito do Recife (CCJ/UFPE), Professor do Programa de
Pós-Graduação em Direito da Direito da Universidade Católica de Pernambuco (PPGD/
UNICAP). Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Mestre
em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
2 Professor da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), Professor da Faculdade
de Direito do Recife (CCJ/UFPE), Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito
da Universidade Federal de Pernambuco (PPGD/UFPE), Professor do Programa de PósGraduação em Direito da Direito da Universidade Católica de Pernambuco (PPGD/
UNICAP), Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Líder do Grupo de Pesquisa “Jurisdição Constitucional, Democracia e Constitucionalização
de Direitos”. (UNICAP/CNPq)
volume
15
55
i encontro de internacionalização do conpedi
Abstract
The purpose of this article is to demonstrate, through the analysis of proposed
bills to criminalize homophobia in Brazil, that the creation and implementation
of social policy through criminal sanctions is flawed. In this way, based on the
critical criminology literature, it is highlighted that the LGBTT movement
cannot seek emancipation through the punitive power. The expansion of the
Brazilian criminal law, as a means of responding to the demands of several social
movements, which occurred particularly after the 1988 Constitution, is also
noted. The article then discusses the Media’s role in the expansion of criminal law,
and explores how victims are being exposed to the media in order to legitimize
the actions of the criminal justice system. After the analysis of the proposed bills
to criminalize homophobia in Brazil, it is argued that, in general, such proposals
are merely symbolic and do not generate concrete protective effects to the victims,
and quite contrary to that, may even revitctimize them.
Key words
The Criminalization of Homophobia; Symbolic Criminal Law; Victimization.
1.toda forma de amor vale a pena: notas introdutórias
A luta pela liberdade de amar é a questão que será desenvolvida no presente
artigo. Porém, o que vamos expor agora é o reverso do amor, pois será feita uma
análise do sistema punitivo brasileiro para discutir a necessidade da criminalização da homofobia.
A partir da década de 90, especialmente, até o presente, a expansão do direito
penal brasileiro torna a legislação tão ampla que somos todos incapazes de
informar quantos tipos penais existem hoje, ou até quais são as leis que versam,
de alguma forma, sobre a matéria penal ou processual penal.
A criação de leis esparsas que passaram a regulamentar tais matérias é tão
extensa que o Código Penal e o Processual Penal representam muito pouco no
arcabouço legislativo punitivo. Embora esse fenômeno não seja particularmente
brasileiro, pois se pode estudar o mesmo fenômeno em praticamente todo o
56
volume
15
i encontro de internacionalização do conpedi
mundo ocidental, é a partir de legislação pátria e darealidade marginal brasileira
que será feita a abordagem.
A ampliação da legislação penal fica muito nítida no cenário nacional após a
Constituição de 1988, pois foram aprovadas inúmeras leis, algumas tipificando
novas condutas e outras enrijecendo o direito penal e processual penal. Pode-se
citar, por exemplo, a lei de colarinho branco (7.492/89), a lei de preconceito racial
(7.716/89), a lei de prisão temporária (7.960/89), a lei dos crimes hediondos
(8.072/90), o código de defesa do consumidor (8.078/90), a lei dos crimes
contra ordem tributária (8.072/90), a lei dos crimes contra a ordem econômica
(8.176/90), lei do crime organizado (9.034/95), lei do transplante de órgãos
(9.434/97), lei de tortura (9.455/97), o código de trânsito brasileiro (9.503/97),
a lei dos crimes ambientais (9.605/98), a lei de lavagem de dinheiro (9.613/98),
entre muitas outras.
Na virada do milênio surgiram mais leis para “combater” a criminalidade
e “proteger” o cidadão, em especial, o estatuto do torcedor (10.617/2003), o
estatuto do idoso (10.714/2003), o estatuto do desarmamento (10.826/2003),
a lei de violência doméstica ou familiar contra a mulher - lei Maria da Penha
(11.340/2006) e a nova lei antidrogas (11.343/2006) e mais recentemente a lei
que define a organização criminosa (12.850/2013). São tantas leis que versam
direta ou indiretamente sobre a matéria penal que ocupariam facilmente várias
páginas do presente trabalho.
2. a criminalização do cotidiano
O que chama atenção na expansão desenfreada do direito penal é justamente
ser este o direito da ultima ratio, de caráter fragmentário, por declaradamente
restringir direitos, criar estigmas, tanto para vítima como para os agressores. No
direito penal não temos meio culpado ou meio inocente, não existe a compensação de culpas. Por isso, é muito comum que na fase do processo penal sejam
travadas verdadeiras guerras que geram necessariamente mais dor e reproduzem
estigmas às partes envolvidas. Esta situação se estende de um “simples” crime
contra a honra, como a injúria, até um crime contra a vida, como homicídio.
Nos crimes contra a honra, depois de passada a fase preliminar, todo o processo
gira em realmente demonstrar que a vítima provocou ou merecia aquela agressão
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verbal, o mesmo acontece no crime de homicídio, muitas vezes, só resta à defesa
demonstrar que era justo aquela morte, gerando mais reprodução de dor para os
seus familiares.
Dessa forma resta muito pouco, ou absolutamente nada, de restaurativo ou
educativo no processo penal, já que muitas vezes todos saem com o sentimento
que foram imensamente injustiçados.
O padrão de grande parte da doutrina penal é trabalhar com os personagens
“Tício” e “Mévio”, um é o sujeito ativo e o outro é o sujeito passivo. Geralmente
eles não se conhecem, não pertencem à mesma classe social e os exemplos versam
sobre crimes patrimoniais, como furto, roubo, latrocínio, ou, sobre o homicídio,
ou ainda, sobre um crime sexual, como o estupro. Quando a doutrina trabalha
com mais “ousadia” discorre sobre o tráfico ilícito de entorpecente em que temos
a “representação do mal” na figura do traficante como sujeito ativo e toda a
sociedade como sujeito passivo, nos denominados crimes vagos.Na maioria desses
exemplos, declaradamente, é legitimada a criminalização da pobreza.
Então, reafirma-se todo o maniqueísmo declarado na legislação penal. Tanto
é assim que se a vítima não demonstrar ser um “poço de bondade” ela passa a não
legitimar a atuação do direito penal. Como demonstra Lola Anyar de Castro, por
muitas vezes o processo penal revitimiza as vítimas e transforma os delinquentes
em vítimas pela demora processual e os abusos exercidos nas prisões, segundo a
autora:
A vitimação, assim como a criminalidade, também é uma
possibilidade majoritária mas desigualmente distribuída de
acordo com estereótipos de vítimas que operam no senso comum
e jurídico Pois, com efeito, “a intervenção estereotipada do sistema
penal age tanto sobre a ‘vítima’, como sobre o ‘delinqüente’. Todos
são tratados da mesma maneira (CASTRO, 2007, p. 189).
Por isso, toda uma visão minimalista defendida de forma uníssona pela
doutrinapenal, embora seja importante destacar que existem várias formas
de minimalismos, poisos estudos minimalistas podem ser utilizados para
comprovar a deslegitimação do sistema penal como para legitimar sua atuação
(cf. ANDRADE, 2006).
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i encontro de internacionalização do conpedi
Diante do aparato legislativo mencionado anteriormente é muito fácil
demonstrar a ineficácia de todo sistema punitivo, e não poderia ser diferente,
como já afirmado por vários autores3, especialmente da criminologia crítica,
considerando-se todos os tipos existentes e da imensa maioria das pessoas não
ter sofrido nenhum processo de criminalização. Significa afirmar que cada pessoa
existente que nunca foi criminalizada é a prova concreta que vivemos ausentes
do direito penal e que se resolve grande parte dos conflitos, que embora estejam
tipificados como crimes, por outras vias
Dessa forma, diante de tantas condutas que fazem parte do dia a dia das pessoas
estarem tipificadas como crime e praticamente sem aplicação, chega-se facilmente a
conclusão que a regra é a cifra oculta da criminalidade (Cf. MELLO, 2013).
3. o papel da mídia na criminalização primária
Estando a cifra oculta facilmente demonstrada e sendo cada um de nós a
prova incontestável dessa realidade, restam algumas indagações:por que o
aumento crescente da legislação penal? E qual o motivo da legislação penal, que
reforça escancaradamente a desigualdade, está atuando, pelo menos, na forma da
criminalização primária, tão fortemente na defesa da igualdade?
É necessário situar o papel da mídia nessa ampliação da legislação penal, pois é
comum que, quando aconteça um crime de grande repercussão, em seguida venha
um ou vários projetos de lei e, por vezes, ocorrem alterações legislativas. Um
grande exemplo desse fenômeno, sem dúvida, é a lei dos crimes hediondos, que
tanto no seu surgimento como nas suas modificações foram motivadas por casos
que tomaram grande repercussão nos meios de comunicação, como sequestro de
empresário, morte de uma atriz, os problemas da falsificação dos remédios e mais
recentemente a prostituição infantil, que vem como uma resposta simbólica às
exigências dos eventos internacionais como a Copa do Mundo eas Olimpíadas. O
primeiro motivou a criação da lei e os últimos motivaram as suas modificações4.
3 Essa abordagem é feita por vários autores, entre eles ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca
das penas perdidas. Trad. Vânia Romano Pedrosa e Almir Lopes da Conceição. Rio de
Janeiro: Revan, 1991.
4 Vale destacar que, em todas essas situações, as vítimas foram pessoas de classe média ou médiaalta. Mesmo no caso da falsificação de remédio, a grande parte das vítimas eram usuárias de
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A mídia dá tanto destaque à criminalidade violenta que cria uma representação infiel da realidade que deságua em uma política social extremamente punitiva
(Cf. HÜGEL, 2000, p. 40), de modo que não se discute com a profundidade
necessária os problemas estruturais mais graves que afetam a sociedade, como
a miséria, a péssima distribuição de renda, a falta de escolas e hospitais, e se
produz a sensação que as leis atuais não combatem a criminalidade, precisando,
consequentemente, de novas leis para a resolução dos problemas sociais.
Os meios de comunicação podem livremente filmar ou fotografar um
suspeito, e assim as tevês e os jornais ditam a sentença antes mesmo da existência
do processo. Conforme Eduardo Galeano: “Os meios de comunicação condenam
previamente, e sem apelação, os pobres perigosos, como previamente condenam os países perigosos” (1999, p. 298).
Dos meios de comunicação, é a televisão5 que apresenta a maior capacidade
de confundir a ficção com a realidade. A narrativa sensacionalista da história da
vítima apresentada pela televisão desperta os medos e a ira dos telespectadores6,
consequentemente surge um desejo de vingança não só da vítima mais de toda
sociedade, que também se sente diretamente vitimizada com um ato de tamanha
violência. O sensacionalismo é utilizado através de instrumentos dramáticos e
estratégias sofisticadas para a promoção da insegurança e propagação das medidas
de caráter punitivo, de preferência a pena privativa de liberdade, como a principal
forma de combate à criminalidade (Cf. MATHIESEN, 2003). No Brasil não
podemos deixar de mencionar as novelas e a força que estas apresentam, inclusive,
no campo legislativo.
Outros exemplos que podem ser citados como forma de enrijecimento da
legislação penal e que tiveram grande repercussão na mídia são o Código de
pílulas anticoncepcionais, e como se sabe esse tipo de medicamento muito é utilizado pela
classe média. No caso mais recente, que foi a Exploração sexual infantil, pode ser apontado
como o legado mais objetivo da Copa do Mundo.
5 Alguns programas televisivos se propõem, inclusive, a “resolver o que a lei e a justiça não
resolvem”, como fazia o programa Linha Direita, da Rede Globo de televisão. Sobre o tema
conferir (Cf. MENDONÇA, 2002).
6 Em março de 2008, o caso do assassinato da menina Isabella Nardoni causou uma
repercussão enorme nos meios de comunicação; por conta desse crime foram aprovadas várias
alterações das leis penais e processuais penais. Uma interessante reflexão desse caso é feita por
Luciano Oliveira. O caso Nardoni e a justiça do populacho. Disponível em: www.jc.uol.com.
br/2008/05//19/not_169/25.php. Acesso em 20/05/2008.
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trânsito, o crime de assédio sexual7, o regime disciplinar diferenciado, entre tantos
outros. Mas até então nenhuma dessas modificações receberam, após a vigência
da lei, uma grande vinculação com o nome de pessoas, que tanto no pólo ativo ou
passivo, motivaram essa situação. Tal é a situação da lei Maria da Penha.
4.leis penais com nome de vítimas: uma nova forma
de legitimação
Em 1983, Maria da Penha Maia sofreu duas tentativas de homicídio sendo
imputada a autoria ao seu esposo. A primeira agressão foi um tiro que a deixou
paraplégica; já na segunda recebeu uma descarga elétrica durante um banho. Em
2002, após 19 anos da prática do crime, o seu marido passou 2 (dois) anos preso.
O caso tomou tanta repercussão que chegou ao conhecimento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão da Organização dos Estados Americanos (OEA), sediada em Washington, Estados Unidos, que acatou, pela primeira
vez, a denúncia de um crime de violência doméstica 8.
Dessa forma, Maria da Penha, que inclusive escreveu um livro sobre a sua
trajetória para conseguir a punição do marido (Cf. FERNANDES, 1994),
tornou-se símbolo da luta contra violência doméstica em todo o Brasil9. Com
a edição da lei 11.340/06, a mídia divulgou amplamente o seu sofrimento e
como a sua história de vida exerceu influência direta na criação e aprovação do
referido diploma legal10. Maria da Penha, desde a edição da lei, viaja por todo
7 Sobre o crime de assédio sexual, Nilo Batista destaca o programa Globo Repórter, da emissora
Rede Globo televisão, que foi ao ar no dia 30/03/2001. O tema do referido programa era o
limite entre a paquera e o assédio sexual, e o apresentador Sérgio Chapelin afirmava que: “o
assédio causa constrangimento e muita dor”. O programa narra alguns casos reais de pessoas
que foram “vítimas” do assédio sexual e, por fim, fala da impunidade pela ausência de um
tipo penal. Depois do apelo do programa, em 15 de maio do mesmo ano a lei foi publicada e
entrou imediatamente em vigor. In: Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Discursos
sediciosos: crime, direito e sociedade.Rio Janeiro,n. 7, p. 271-288. 2. sem, 2002.
8 As informações foram extraídas do site: http://www.contee.org.br/secretarias/etnia/mate
ria_23.htm. Acesso em 08/08/2007.
9 Maria da Penha tornou-se tema de música gravada por Alcione no disco “De tudo eu gosto”,
no ano de 2007, assim como teve sua história narrada na literatura de Cordel (ALVES, 2007).
10 É, mais uma vez, importante destacar que os casos de violência doméstica que sensibilizam
a mídia e, conseqüentemente, “os lares” brasileiros são sempre de mulheres de classe
média, “independentes” e “inteligentes” que foram mortas, ou sofreram tentativa, por seus
companheiros, pessoas extremamente possessivas como é o caso de Sandra Gomide, que foi
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Brasil proferindo palestras e discutindo a aplicação do diploma legal que leva o
seu nome.
Essa mesma vinculação foi feita, de alguma forma, com relação ao projeto de
lei 122 e Alexandre Ivo, adolescente de 14 anos que foi brutalmente assassinado
na cidade de São Gonçalo, no Rio de Janeiro, por ser homossexual. O fato foi
amplamente divulgado pela mídia e a sua mãe Angélica está na luta pela prisão
dos assassinos do seu filho e existe um movimento denominado Alexandre (V)Ivo
que circula nos meios de comunicação e que fazem uma vinculação da projeto de
lei 122 como a Projeto de Lei Alexandre Ivo11.
Uma lei que apresenta um nome de uma pessoa pode ser interpretada de várias
formas. Primeiramente, de uma forma simbólica, um marco de um movimento
social, no caso da lei Maria da Penha como um grande marco do movimento
feminista (Cf. HERMAN, 2007, p. 18).
Por outro lado, a lei perde uma das suas principais características que é a
impessoalidade. Exige-se que todas as mulheres sejam percebidas como Maria da
Penha, vítimas dos seus algozes, quase sempre seus maridos ou companheiros, e
que desejam, a todo custo, a sua punição, para poder continuar a sua vida com
tranquilidade. É importante ressaltar que, casos como esses, são exceções e não
regra no diaadia, pois, em grande parte das agressões, as mulheres não querem a
prisão do marido ou companheiro, mas apenas que a agressão não se repita (Cf.
MELLO, 2008).
Atrelar a lei a uma pessoa também apresenta um estereótipo de vitima que
geralmente sensibiliza parte da população. No caso de Maria da Penha, uma
mulher, mãe de duas filhas, professora universitária, no caso de AlexandreIvo um
jovem, branco, estudante de classe média.
O sofrimento das vítimas, em casos como o de Maria da Penha, ou de
Alexandre Ivo está sendo usado como uma nova forma de legitimar as leis penais.
assassinada em 2000 pelo seu namorado, o jornalista Pimenta Neves, e Patrícia Ágio Longo,
que foi assassinada em 1998 pelo seu marido, o promotor de justiça Igor Ferreira e Silva.
Quando se fala de violência doméstica, esses dois casos, mais o de Maria da Penha, são uma
das formas de justificar a necessidade do enrijecimento da lei penal para acabar com esse tipo
de crime.
11As informações estão disponíveis em: http://alexandrevivo.blogspot.com.br/2011/05/atoalexandre-vivo-em-basilia-e-iv.html
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As vítimas, cada vez mais, estão sendo expostas nos meios de comunicação e a sua
imagem começa a ser vinculada conjuntamente com a de políticos que prometem
apoiá-las com o intuito de evitar que surjam novas vítimas nessa mesma situação.
Algumas vítimas são selecionadas pelos meios de comunicação e, dessa forma,
deixam de ser um elemento oculto no crime, passam a ser alvo tanto da mídia
como dos políticos, que, por vezes, exploram o sofrimento delas para atingir
interesses próprios.
Em 2012, o Senador José Sarney prestou uma “homenagem” às vítimas
dedicando o projeto do Código Penal a duas crianças que foram mortas. O
primeiro caso, em 1997, na cidade de São Paulo, Ives Ota, vítima de um sequestro
que resultou morte e o segundo caso o de João Hélio, em 2007, na cidade do
Rio de Janeiro, vítima de um assalto que resultou morte. Essas duas situações
tiveram ampla divulgação na imprensa e são revividos até hoje como situações
justificadoras do enrijecimento da lei penal12.
Segundo Garland:
A figura santificada da vítima que sofre se converteu em um
produto desejado nos circuitos de intercâmbio político e da mídia
e colocam-se indivíduos reais diante das câmeras ao mesmo tempo
que lhes convidam a assumir esse papel, muitas vezes convertendose, durante o processo, em celebridades da mídia ou ativistas de
movimentos de vítimas (2005, p 214).
Um caso famoso de uma lei que leva o nome de uma pessoa é a lei Megan,
que teve origem no Estado da Califórnia, Estados Unidos, mas hoje é uma lei
federal naquele país e assumiu o nome da vítima. Megan Kanka foi sexualmente
violentada e depois morta em Nova Jersey por um pedófilo em liberdade
condicional que morava em frente à casa dos seus pais, gerando uma grande
comoção em todo país. Com base nesse caso, que ocorreu em 1994, surgiu uma
onda de legislação nos Estados norte-americanos para tratar dos casos de abuso
de sexual, causando um verdadeiro terrorismo penal, estigmatizando os homens e
12 No site da associação Ives Otta existe um link pelo fim da impunidade http://www.ivesota.
org.br/index.php/textos/5/quem-somos.html. É importante destacar que tanto no caso Ives
Ota, como no de João Hélio os responsáveis foram rapidamente presos e foram condenados a
penas superiores a 40 anos de privação de liberdade.
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ampliando demasiadamente o poder punitivo estatal, apresentando todos os tipos
de presunções e, consequentemente, graves injustiças. Todos aqueles taxados como
pedófilos eram equiparados ao estuprador de Megan, e se não tinham feito algo
parecido poderiam estar prestes a fazer (Cf. WACQUANT, 2001, 113-132)13.
A atribuição do nome de um indivíduo a uma lei é uma forma de neutralizar
as objeções que essa lei possa sofrer. Após o processo de santificação da vítima,
geralmente uma mulher ou uma criança, de um crime violento, passa a existir
uma invalidação das preocupações com o delinquente, pois este deve ser punido
de forma rígida e exemplar, para que possa “pagar pelo que fez”. Qualquer menção
aos direitos do delinquente ou a humanização do seu castigo pode ser facilmente
considerado como um insulto às vítimas e aos seus familiares (Cf. GARLAND,
2005, p. 240-243).
Esse também é o sentimento com a lei 11.340/2006. Toda crítica dirigida a
esta lei soa como um ato de insensibilidade em relação ao sofrimento de Maria da
Penha e, de certo modo, uma indiferença à questão da violência contra a mulher
e da dominação do masculino sobre o feminino (Cf. MELLO, 2008).
O mesmo se procura com o projeto de lei 122, atrelando a lei a um adolescente que foi vítima de um homicídio por conta da sua opção sexual. E vale
ressaltar que nem a lei Maria da Penha e nem o projeto de lei 122 tratam do crime
de homicídio, versam sobre outras condutas, porém adquirem suas justificativas
em crimes violentos, mesmo quando não tutelam o bem jurídico vida. O que
dizer de um Senador da República que faz uma dedicatória no projeto do Código
Penal a duas crianças que foram assassinadas, quando os responsáveis foram
imediatamente presos e rapidamente condenados, quando o Código Penal não
faz nenhuma mudança no crime de homicídio.
5.falsas promessas: os movimentos sociais em busca
da função simbólica do direito penal
Cada vez mais, segundo Elena Larrauri, os novos movimentos sociais como
grupos ecológicos, feministas e pacifistas, buscam o Direito Penal como uma
13 Sobre a “caça” aos delinqüentes sexuais nos Estados Unidos a partir da lei Megan cf.
(WACQUANT, 2001, p. 113-132).
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forma de defender os tidos como fracos(1991, p. 192). Essa maneira equivocada
de ampliação do Direito Penal é muito nítida também no Brasil, como por
exemplo, a lei dos crimes ambientais, o Estatuto do idoso, a própria lei Maria
da Penha, entre outras. A justificativa para tamanha ampliação é a denominada
função simbólica do Direito Penal14. Os defensores dessa função do Direito Penal
acreditam que o Estado, ao legislar, teria a força de inverter a simbologia, já
existente na sociedade, atuando como uma forma de persuasão sobre os indivíduos
para que eles obedeçam a uma conduta mínima de comportamento, sob pena de
serem taxados de delinquentes15. No caso específico da violência doméstica, o
Direito Penal poderia inverter o poder onipotente do marido sobre a mulher,
trazendo à tona o equilíbrio na relação doméstica (Cf. LARRAURI, 1991, p. 20).
Sob a perspectiva da Teoria geral do Direito, é possível identificar, em
decorrência da expansão da legislação, fortes componentes simbólicos,
viabilizando a distinção entre os sentidos manifestos e os sentidos latentes da
normatização16. Interessa-nos mais de perto, a discussão dos efeitos simbólicos
da expansão legislativa.
14 Segundo Larrauri: Los nuevos movimientos partidarios de la criminalización hablan de
las funciones simbólicas del derecho penal, pero guardan un embarazoso silencio acerca
de la aplicación de este «símbolo» (1991, p. 214). Sobre o direito penal como um meio de
estabelecerprincípios gerais (SHEERER, 1989,p. 32-33).
15 Defendendo a função simbólica da pena não como uma retribuição mais como uma
reafirmação do Estado (Cf. RAMÍREZ; MALARÉE, 2004, p. 57-59).
16 É o que ocorre com o modelo de legsilação de Harald Kindermann: “Na tipologia de
Kindermann encontraremos três tipos de legislação: legislação como confirmação de valores
sociais; legislação como fórmula de compromisso dilatório e legislação-álibi. Subjacente à
legislação como confirmação de valores sociais, podemos vislumbrar o embate de grupos
políticos, pela prevalência de seus pontos de vista sobre os demais. Para os atores ativos do
discurso político, é irrelevante a utilidade instrumental desta espécie de legislação. Que o
resultado legislativo final, resultante do discurso político, seja realmente aplicado com eficácia
à realidade social é questão de interesse secundário. O interesse simbólico predominante é o
da afirmação da própria “supremacia política”, através das influências exercidas nas atividades
legiferantes. Uma segunda espécie de legislação simbólica é a chamada legislação como
fórmula de compromisso dilatório. O compromisso dilatório aqui caracteriza-se com ênfase
principalmente no aspecto de afastamento e adiamento das decisões destinadas a solução
dos conflitos sociais para um momento posterior, restando a ilusão de que a matéria é
legalmente regulada. Na terceira categoria de legislação simbólica está a legislação-álibi. Com
a legislação-álibi, típica dos “nominalismos” constitucionais, pretende-se reforçar a confiança
do cidadão na estrutura de poder vigente. Aqui não se cogita exatamente de um embate
político de grupos divergentes, mas do próprio relacionamento entre governo e cidadão. Na
legislação-álibi, a dimensão simbólica pode ser encontrada quando verificamos a aprovação
de leis em atendimento a pressões populares, como forma de identificação do governo com
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O Direito Penal simbólico não gera efeitos protetivos concretos, e geralmente é utilizado para atender às manifestações de grupos políticos ou ideológicos
quando desejam declarar determinados valores ou repudiar determinadas atitudes
consideradas lesivas aos seus interesses. De fato, com o Direito Penal simbólico,
segundo Roxin: “comumente não se almeja mais do que acalmar eleitores, dandose, através de leis previsivelmente ineficazes, a impressão de que está fazendo algo
para combater ações e situações indesejadas”(ROXIN, 2006, p.47).
Por sua vez, o Direito Penal simbólico17 também tem uma forte ligação
como os meios de comunicação, pois são eles que apresentam hoje os problemas
sociais vistos como mais importantes, bem como se colocam como os agentes
mais significativos de controle social nas sociedades modernas, já que possuem
uma capacidade ímpar de generalizar pontos de vista e atitudes do corpo social
(RIPOLLÉS, 2003).
O uso simbólico do Direito Penal foi sem dúvida um forte argumento do
movimento feminista, e agora do movimento LGBTT18, para justificar a sua
demanda criminalizadora. É certo que as normas penais simbólicas causam, pelo
menos de forma imediata, uma sensação de segurança e tranqüilidade, iludindo
os seus destinatários por meio de uma fantasia de segurança jurídica sem trabalhar
as verdadeiras causas dos conflitos. Daí a afirmação que mais leis penais, mais
juízes, mais prisões, significa mais presos, mas não menos delitos (Cf. QUEIROZ,
2005, p. 52).
os anseios do povo. Na maioria dos casos, não há uma mudança substantiva da realidade
social, antes pelo contrário, a legislação-álibi proporciona aos grupos políticos que compõem
o governo uma espécie de “prestação de contas” frente à opinião pública. Nesta hipótese, ao
encobrir a realidade da práxis constitucional, a legislação-álibi tem como sentido principal
proporcionar a manutenção do status quo”. TEIXEIRA, João Paulo Allain. Idealismo e
Realismo Constitcuional em Oliveira Vianna: Análise e Perspectivas. Brasília, Revista de
Informação Legislativa, 1997, nº 135; p. 111
17 Sobre a impossibilidade de o direito penal apresentar funções promocionais ou simbólicas
conferir: DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais do direito penal revisitadas.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 72-75; PASCHOAL, Janaina Conceição.
Constituição, criminalização e direito penal mínimo. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2003, p. 123-128.
18 Desde o dia 28 de junho de 1969 que marcou o episódio de Stonewall problema com a nota e
início do movimento LGBT. A maior importância de Stonewall foi ter criado um fato político
que despertou a comunidade LGBT para dar capilaridade as suas lutas. Existia uma pauta
comum: viver livremente, definindo uma resistência de um grupo que vivia silenciosa na
clandestinidade.
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6.em busca de novos inimigos: as propostas legislativas par a criminalização da homofobia
O Direito Penal não constitui meio idôneo para fazer política social (Cf.
CAPELLETTI, 1998, 161) e as mulheres e os homossexuais não podem buscar
a sua emancipação através do poder punitivo e sua carga simbólica. Punir pessoas determinadas para utilizá-las como efeitos simbólicos para os demais significa a coisificação dos seres humanos19. A própria mulher, historicamente, foi
vítima dessa carga simbólica do Direito Penal, quando só poderia ser considerada
vítima de determinados crimes quando fosse honesta, ou seja, quando se portasse
da maneira adequada na visão masculina. Vale ainda destacar que a própria pratica
de relações sexuais foi considerada crime até a década de 70 em alguns estados
norte-americanos.
O sistema punitivo na construção do seu discurso trabalha com os ditos
inimigos. A partir dessa visão fica muito fácil aceitarmos a ideia do sujeito ativo
como a representação do mal social. Hoje inclusive a dogmática penal retoma
esses parâmetros declaradamente através da teoria do “direito penal do inimigo”20.
Fica claro vislumbrar que hoje esses inimigos são os traficantes e os terroristas,
porém aolongo da história os inimigos foram as mulheres, na condição de
bruxas, os judeus, os homossexuais e os diferentes de uma maneira geral (Cf.
ZAFFARONIl, 2007).
Vale ainda destacar que a própria prática de relações sexuais foi considerada
crime até a década de 70 em alguns estados norte-americanos (Cf. WACQUANT,
2001). Já no Brasil,a sodomia deixa de ser tipo penal com o Código Penal de
1830, porém a lei de contravenção penal com os tipos penais de vadiagem,
importunação ofensiva ao pudor, perturbação da tranquilidade e o Código Penal
com o crime de ato obsceno serviram para criminalização dos homossexuais.
19 Sobre a coisificação do ser humano para servir de exemplo aos demais cf. ZAFFARONI,
Eugenio Raúl. El discurso feminista y el poder punitivo. In PIERANGELI, José Henrique
(coord.). Direito criminal. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, v. III, pp.76-77; Las imágenes del
hombre en el derecho penal moderno. In Abolicionismo penal. Buenos Aires: Ediar, 1989,
p.132-133.
20 Para uma crítica marginal do direito penal do inimigo conferir o livro O inimigo no direito
penal. (ZAFFARONI, 2007).
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Cada vez mais se criamleis penais que protegem aqueles que outrora tiveram
suas perseguições legitimadas pelos discursos punitivos. A partir dessa constatação, podemos indagar: será que essas novas formas de criminalização poderão
ocasionar novos preconceitos ou entrar em uma produção de novos inimigos?
A proposta do projeto de lei 122 era de ampliar a lei de racismo, lei 7.716/89,
e o crime de injúria por preconceito localizado no Código Penal. Esta lei trata
única e exclusivamente da matéria penal, e praticamente não apresenta aplicação
prática, pois poucos são os casos que chegam a delegacia, e praticamente não
existem condenações e nem pessoas presas pela prática de tais condutas.
Será que isso significa que o Brasil não é um país racista? O que essa lei mudou
até o ano de 2010, quando foi instituído o Estatuto da Igualdade Racial, que versa
sobre uma série de políticas públicas exigindo ações afirmativas das três esferas de
governo e do corpo social de uma maneira geral? Quantas pessoas conhecem os
crimes que estão naquela lei, quantas praticaram aquele tipo de conduta? Será
que a criminalização desse tipo de conduta apresentou alguma forma de inclusão
social dessas pessoas?
Analisando a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça de 1989 até
agora foram encontrados apenas poucos julgados, que no final afastam a lei
de racismo e tipificam a conduta nos crimes contra a honra estipulados no
Código Penal, especificamente a injúria por preconceito (art. 140 § 3º)21. Foi
essa inclusive a motivação paraocorrer, em 2009, a mudança da ação penal da
injúria por preconceito que deixar de ser ação privada e passa a ação pública
condicionada à representação.
Em 17/12/2013, o Senado Federal aprovou o apensamento do projeto
de lei 122 à proposta do projeto donovo Código Penal, para que pudessem
21 Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
[…]
§ 3o Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião,
origem ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: (Redação dada pela Lei nº
10.741, de 2003)
Pena - reclusão de um a três anos e multa.
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tramitar conjuntamente22. Depois dessa decisão o pastor Silas Malafaia dá várias
declarações entre elas:
PLC 122 acaba de ser enterrado no Senado. A Deus seja a glória.
Parabéns aos senadores Renan Calheiros, Magno Malta, Lindberg
Farias e outros. Não adianta chorar ou xingar o PLC 122 foi para
o ‘espaço’. Nada de privilégios para ninguém. Homo, hetero,
religioso ou não, lei é pra todos [...] Vitória do povo de Deus que
esta aprendendo a usar os direitos da cidadania.Valeu o bombardeio
de emails para os senadores. Ainda tem mais [...] 7 anos de lutas
incluindo processos, calúnias, difamação e etc. Vitória da família,
bons costumes e da criação pela qual Deus fez o homem. Ainda
tem muita coisa que precisamos estar atentos. São mais de 800
projetos no Congresso para destruir os valores cristãos. Não vão
nos calar”, escreveu o pastor em seu perfil23.
No dia 21 de maio de 2014, a deputada federal Maria do Rosário protocola o
projeto de lei 7582/2014, que visa tornar crime os atos de intolerância contra os
LGBTT, segundo a deputada:
Essas pessoas estão desprotegidas diante da violência por que o
Estado não lhes dá segurança e nem igualdade na sua cidadania.
Então é preciso sim assegurar essa igualdade ao segmento dos
LGBT24.
Não resta dúvida que é preciso se posicionar contra todos os atos de intolerância contra o movimento LGBTT, agora resta saber quais serão os aliados e se o
sistema punitivo, depois que tudo foi apontado no presente artigo, é uma boa
estratégia ou pode reforçar o discurso do ódio em uma guerra de quem criminaliza
mais.
Vale destacar que na busca de direitos antidiscriminatórios, o movimento
LGBTT brasileiro ganha repercussão na medida em que o Poder Judiciário, na
22http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/2013/12/17/projeto-que-criminaliza-homofo
bia-vai-tramitar-em-conjunto-com-novo-codigo-penal
23 Essa e várias outras falas do pastor podem ser encontradas na internet e também existem vários
vídeos no youtube em que o pastor faz uma verdadeira campanha contra a PL 122. Cf: http://
noticias.gospelmais.com.br/silas-malafaia-comemora-pl-122-jean-wyllys-lamenta-63497.tml
24 A notícia e a entrevista da deputada podem ser encontradas no seguinte endereço eletrônico:
http://www.revistaforum.com.br/blog/2014/05/deputada-protocola-novo-projeto-para-crimi
nalizar-homofobia-leia-entrevista/
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15
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i encontro de internacionalização do conpedi
perspectiva do ativismo judicial e ante a ausência de marcos legais, alcança espaços
de conquista às demandas de igualdade material. Assim, o reconhecimento da
união estável com reflexos em direitos sucessórios e previdenciários é o mais
significativo entre os demais, incluídas as questões de realização de cirurgias
transexuais no sistema público de saúde, a mudança de registro civil para
correspondente identidade de gênero, a adoção de crianças por casais homossexuais,
a licença à natalidade. (AMARAL; MELLO, 2013)
Todos estes reconhecimentos são marcos efetivos no sentido da diminuição
do preconceito, incrementando as ações de “resistência e ruptura da cultura
homofóbica determinada pela lógica heteronormativa” (CARVALHO, p. 187,
2012). Não obstante as conquistas, ainda existem outras demandas, como a
despatologização da homossexualidade entre outras.
São muitos espaços de lutas que devem ser buscados, inclusive no campo do
legislativo, mas o caminho da criminalização simbólica além de ineficiente pode
acarretar um total desvirtuamento da luta emancipatória do movimento LGBTT,
pois não restam dúvidas, a partir dos estudos da criminologia de fundamento
crítico, que o que realmente pretende o poder punitivo não é combater (reduzir e
eliminar) a criminalidade, protegendo bens jurídicos universais gerando segurança
pública e jurídica, mas ao revés, é construí-la seletiva e estigmatizadamente, reproduzindo, material e ideologicamente, as desigualdades e assimetrias sociais (de
classe, gênero, raça)(Cf. ANDRADE, p. 270, 2004).
7. a criminalização do meu próximo
Um fato que não pode passar despercebido é que as pesquisas realizadas em
paradas do orgulho LGBTT, entre os anos de 2003 e 2006, demonstram que
a maior parte das agressões aos homossexuais acontecem entre pessoas que se
conhecem e, frequentemente, ocorrem na esfera da própria casa, na vizinhança,
nas redes familiares e conjugais e de forma notável nas escolas e faculdades. Significa dizer que boa parte das vítimas dessas agressões mantem relações com os
discriminadores, pois são pessoas do seu convivo diário, quando não pertencentes
à mesma família (SIMÕES; FACCHIN, 2009).
70
volume
15
i encontro de internacionalização do conpedi
O projeto de criminalização é do próximo, e isso precisa ficar bem claro25. Será
que as vítimas desejarão criminalizar os seus familiares, os seus amigos? Será que
é através dessa criminalização que iremos chamar atenção dos preconceitos que
essas pessoas produzem? Podemos inclusive analisar essa peculiaridade à luz da
violência doméstica e no frequente processo de revitimação das mulheres nesse
contexto ao explicar o porquê de muitas mulheres não quererem que se inicie
um processo criminal contra o agressor, mostrando que a via criminal não é a
mais apropriada para resolver a situação. Não é difícil entender que, no caso concreto, o princípio da pessoalidade não é verificado. Ou seja, a pena imposta
não vai atingir apenas o réu, mas sim toda a família, principalmente a vítima.
Assim, o sistema penal não será uma instância que vá contemplá-las, mas punilas indiretamente. Neste sentido, Larrauri preconiza que: “Todo o sistema parece
estar mais interessado em servir sua própria lógica interna do que servir às
vítimas”(2008,p. 101).
Assim, nos casos selecionados para o sistema poderemos encontrar ao fim do
processo, entre as vítimas e os agressores, um total sentimento de dubiedade,
ocorrendo por vezes que a vítima sinta-se uma violadora, já que vislumbra o
mal causado ao agressor muito mais gravoso que aquele que ele lhe causou
(ALENCAR; MELLO, 2011). A lógica do direito penal e processual penal é de
reduzir o conflito ao laboratório da dogmática, promovendo uma assepsia sóciocultural (BARATTA, 1998) dentro de uma alienação política de seus efeitos, e
isto implica em efeitos gravíssimos entre as partes envolvidas (BARATTA, 1998).
Não se pode deixar de destacar, assim como acontece na lei de racismo, as
dificuldades de se encontrar a figura do sujeito ativo (agressor), pois o processo de
rotulação (BECKER, 1971) de quem é (ou não) delinquente é condicionado pelas
diversas reações sociais as quais, por sua vez, são guiadas por valores imperantes
na sociedade, já que afinal, o poder de definição é capitaneado por apenas uma
classe social, que partilha, conservadoramente, valores relativos à moralidade, à
sexualidade, à classe social etc (MACHADO, 2010).
Dessa forma, acredita-se necessariamente que toda forma de amor vale a pena
e nos avanços que o movimento LGBTT já conseguiu, a luta deve ser incessante
25 Art. 14. Impedir ou obstar, por qualquer meio ou forma, o casamento ou convivência familiar
e social.
Pena: reclusão de dois a quatro anos.
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i encontro de internacionalização do conpedi
por políticas de ações afirmativas, de conscientização, de sensibilização para a
percepção de quanto é pequeno e mesquinho a visão do preconceito do dia a dia
diante da felicidade do outro e não utilizar a estratégia de “empoderamento”26 do
movimento LGBTT através da criminalização da homofobia.
8.na procur a de um fechamento emancipatório e
libertário
É preocupante a luta dos movimentos sociais na busca desse tipo de legislação,
pois toda essa força poderia ser usada em outras frentes que promovessem paz
social e consciência das ditas diversidadescomo foi feita até agora no campo do
direito constitucional e do direito civil, como, por exemplo, na luta do casamento
igualitário.
Embora a Lei Maria da Penha tenha atuado em várias frentes e seja uma lei
que apresenta poucos artigos relacionados ao direito penal e processual penal,
apresenta uma forte crença no poder punitivo na resolução dos conflitos sociais.
Já a lei de racismo, que é uma lei penal na pureza de sua acepção, basicamente
nunca foi aplicada no Brasil e a pouca jurisprudência dos Tribunais Superiores,
que diz respeito a tal lei, é para afastar sua aplicação em nome do Código Penal,
pela dificuldade da comprovação do dolo específico na prática do crime. Mesmo
diante dessa realidade fática, vive-se hoje um verdadeiro embate e enfrentamento
do movimento LGBTT para ampliar essa lei, na crença que isso irá gerar uma
ampliação de direitos e seria o ápice do grito: NÃO À HOMOFOBIA!
Nos processos de emancipação, as minorias sociais têm sido capazes de se
mobilizar, agregando as suas pautas de ativismo político agendas teóricas da
academia, convidando o saber crítico à reflexão. É neste sentido que a criminologia
de base crítica se apresenta como aliada aos movimentos sociais, não para com
eles tensionar, mas dialogar no sentido de construção de estratégias mais ricas para
26 “Esse vocábulo, cujo uso está consagrado no meio dos movimentos feministas e das minorias
em geral, é uma tentativa de tradução do termo inglês emporwerment.Pode ser entendido
como o processo pelo qual o sujeito conquista autonomia pela participação ativa na
construção de sua própria história. Apesar do uso comum nos movimentos mencionados , o
termo permanece como um neologismo na língua portuguesa, visto que não há registro dele
em dicionário”. (RORIZ, 2010).
72
volume
15
i encontro de internacionalização do conpedi
todos os envolvidos que buscam a superação da cultura sexista, racista, machista,
excludente e violenta.(AMARAL; MELLO, 2013).
Desse modo, seria o processo de criminalização, seja pela ampliação da Lei
Maria da Penha, seja pela criminalização da homofobia, o mecanismo mais
adequado para a luta política dos movimentos LGBTT?
Vale salientar que a lei 11.340/2006 apresenta grandes méritos no que diz
respeito às medidas de prevenção e de proteção da mulher, mas apresenta falhas
no campo penal. Infelizmente, a lei se tornou mais conhecida pelos seus aspectos
penais com o slogan midiático: “homem que bate em mulher agora é preso”, e
como sempre as medidas de caráter penal, por serem simbólicas e extremamente
seletivas, são mais facilmente aplicadas do que as medidas de caráter preventivo
ou educativo.
É importante mais uma vez destacar que o Direito Penal ignora por completo
a violência estrutural e as suas causas, pois o seu discurso é simplesmente punitivo,
procurando apenas atribuir a culpa a alguém, seja ao homem que bateu na boa
mãe de família ou a própria mulher, que por não ter sido tão boa assim mereceu
apanhar. Termina, portanto, estigmatizando os sujeitos envolvidos, oferecendo
falsas soluções, e não satisfazendo a vítima, que, muita vezes, pode deixar a Justiça
com o rótulo de que gosta de apanhar.
Por fim, tornar essa matéria de domínio do sistema punitivo pode ser um retrocesso dentro de um movimento prioritariamente emancipatório e que busca,
de qualquer forma, a liberdade será que não estamos dando força a um sistema
reacionário e historicamente discriminatório. Afinal, há sempre de se buscar algo
melhor do que o Direito Penal (ZAFFARONI, 2001).
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77
i encontro de internacionalização do conpedi
a criminologia positivista de nina
rodrigues e sua influência no
tr atamento dos portadores de
sofrimento psíquico submetidos ao
sistema de justiça criminal br asileiro
Thayara Castelo Branco1
Álvaro Oxley da Rocha (orientador)2
Resumo
O ensaio trata da recepção do paradigma etiológico no Brasil a partir dos
estudos de Raimundo Nina Rodrigues, demonstrando quais as contribuições do
médico maranhense no que tange aos “tratamentos” destinados aos portadores de
sofrimento psíquico submetidos ao Sistema de Justiça Criminal brasileiro.
Palavras-chave
Criminologia positivista; Controle social; Tratamento; Portador de sofrimento
psíquico.
Abstract
This essay deals with the reception of the etiological paradigm in Brazil, from
the studies of Raimundo Nina Rodrigues, highlighting the contributions of
the physician the Maranhão, regarding the “treatments” for the patients with
psychological distress, submitted to the Brazilian Criminal Justice System.
Key words
Positivist criminology; Social control; Treatment; Bearer of psychological
distress.
1 Advogada. Especialista em Ciências Criminais pelo CESUSC (Brasil). Mestra e Doutoranda
em Ciências Criminais pela PUCRS (Brasil). Email: [email protected]
2 Professor titular do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS (Brasil).
Doutor em Direito pela UFPR. Pós-doutor em Criminologia pela Univ. Kent – UK.
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i encontro de internacionalização do conpedi
1.introdução
Em meados do século XIX a biologização dos comportamentos humanos produziu inúmeras orientações teóricas e práticas nas mais diversas áreas3, consolidando
assim o paradigma etiológico-determinista, impulsionado pelo nascimento do
evolucionismo, da antropometria, da frenologia, da antropologia criminal, do
racismo científico, dentre outros.
Entre as teorias etiológicas sobre as doenças mentais, dominaram as concepções organicistas. A estes estudos, agregou-se a teoria da “degenerescência”
ou “degeneração” ligadas à questão racial, baseada no pressuposto de que haveria
progressiva degeneração mental em casos de miscigenação racial. Tal teoria foi
redefinida à luz do evolucionismo, considerando que os desequilíbrios físico e
mental do indivíduo degenerado interromperiam o progresso natural da espécie;
ou seja, todo degenerado seria um desequilibrado mental (ODA, 2001, p. 01).
É no período novecentista que a apreensão das diferenças transforma-se na
proposta teórica universal e globalizante: naturalizar as diferenças. “O projeto grandioso que pretendia retirar a diversidade humana para localizá-la na moradia
segura da ciência determinista do século XIX, deixava pouco espaço para o arbítrio
do indivíduo” (SCHWARCZ, 2008, p. 65). Esse modelo populista e convincente
foi absorvido completamente pelos pesquisadores brasileiros.
Nessa linha, o texto busca compreender a recepção do paradigma etiológico
no Brasil a partir dos estudos do médico maranhense Raimundo Nina Rodrigues,
que tinham como foco as análises da raça negra (e dos mestiços) como fator
relevante de desenvolvimento da população, bem como fator criminógeno. Nina
consolidou a Criminologia Positivista em “terrae brasilis”, com toques muito
particulares, reafirmando o discurso legitimador das desigualdades e do controle
social, pela via biológica-orgânica-racial-determinista. O ponto nevrálgico desse
ensaio é demonstrar quais foram as contribuições de Nina Rodrigues - enquanto
formação do pensamento jurídico-penal e consequências político-criminais - no
que se refere ao controle dos portadores de sofrimento psíquico submetidos ao
Sistema de Justiça Criminal brasileiro.
3 Como exemplo: direito, psiquiatria, sociologia, antropologia, psicologia, política, etc.
80
volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
Para isso, trabalhar-se-á inicialmente com o surgimento do termo raça, a teoria
da degenerescência e a influência desses quesitos na auto-imagem brasileira, como
também a tese evolucionista da população, que tinha o negro como objeto científico
e o branqueamento como forma de purificação e viabilidade da nação. O segundo
ponto tratará da fundação da Escola Nina Rodrigues no Brasil: seus fundamentos e
suas contribuições no âmbito médico-jurídico. As investigações de Nina Rodrigues sobre degenerescência, os efeitos em termos de criminalidade e o controle
social dos degenerados são questões fundamentais para a compreensão histórica
e a importância desse autor na construção do que se reconhece como controle
social (e disciplina) destinado ao portador de sofrimento psíquico no Brasil.
2. a questão das r aças: diferenças e miscigenação
Até o final do século XVIII os diversos grupos sociais, em sua origem, não eram
definidos como “raças”, mas sim como “povos” ou “nações”, fruto da noção de
igualdade que foi o ideário da Revolução Francesa. A partir do século XIX, o termo
“raça” foi introduzido na literatura por Georges Cuvier e a visão do homem branco
em relação aos outros povos (primitivos), passou a ser determinada pelo racismo
científico. “Tratava-se de uma investida contra os pressupostos igualitários das
revoluções burguesas, cujo novo suporte intelectual concentrava-se na ideia de
raça”, que cada vez mais se aproximava da noção de “povo” (SCHWARCZ, 2008,
p. 47). Essa, portanto, era uma crença compartilhada com o paradigma científico,
que teve uma importante articulação com a teoria da degenerescência4. Cuvier apresentou duas características importantes sobre a concepção de raças
nesse período, são elas: 1) a representação das raças como uma hierarquia, com
brancos no topo e negros na base; 2) as diferenças de cultura e qualidade mental
produzidas pelas diferenças no físico. Logo, os caucasianos ganhariam o domínio
4 Morel dedicou-se a estudar sobre a história das doenças mentais e a resumir as contribuições
de diversos países europeus a tal história. Fundamenta com critérios da etiologia uma nova
classificação das loucuras, o que lhe ensejou a formulação da teoria da degenerescência
(entendida como resultado último da mistura das diferentes espécies humanas). A
degenerescência para Morel é muito mais uma petição de princípio que uma teoria deduzida
rigorosamente de fatos comparáveis (não heterogêneos). A simples constatação de incidências
mórbidas na ascendência de alguém não implica, necessariamente, qualquer transmissão
genética da loucura (ou de algum gérmen). (PESSOTTI, 1999, pp. 82-84)
volume
15
81
i encontro de internacionalização do conpedi
sobre o mundo, pois os negros eram escravizados, embora fossem sensíveis e
racionais (BANTON, 1977).
O positivismo estático deu lugar ao dinâmico – ideia de evolução5 que dominou
o pensamento europeu a partir de 1852. O mundo do devir, do movimento, do
progresso, assumiu seu posto entre cientistas e antropólogos, muito embora os
franceses preferissem o termo “transformismo” ao evolucionismo.
A evolução abria novas frentes na luta entre ciência e teologia; envolvia o
próprio homem. Todas as coisas pareciam estar num fluxo perpétuo... isso era
resultado da Revolução Darwiniana. Darwin6 (2004) trouxe em suas pesquisas
novos elementos ao pensamento evolucionário já iniciado por Herbert Spencer
e Henry Huxley. Como não lera muito sobre a história do pensamento
evolucionário, apostou nas suas pesquisas empíricas, sobretudo nas realizadas
na América do Sul (Ilhas Galápagos) durante a viagem do Beagle (1831-1836),
regressando convicto da infinita divergência da natureza. Não foi o primeiro
a basear-se na seleção natural, mas o primeiro a torná-la central e considerá-la
um mecanismo essencialmente progressivo, que se combinava com as variações
biológicas. (BAUMER, 1977, pp. 97-101)
Para Darwin, a desigualdade humana estava diferenciada em três áreas principais: raças humanas, nações e indivíduos. Distinguia as raças com base na cor
da pele, formato do crânio, nádegas ou relacionava o comportamento mental e
moral com a estrutura física, reforçando a questão das raças inferiores e superiores.
5 Baumer (1977, p. 98) chama atenção de que “a ideia de evolução, Darwiniana ou não, de
nenhum modo era nova. Herbert Spencer escreveu um ensaio sobre este assunto em 1852
em que compara modos de pensamento estático e dinâmico e defende a evolução. (...) A
consciência da vida num mundo de permanente mudança, constantemente em evolução, no
século XIX não dependia da doutrina da evolução. Muito antes de Darwin, Matthew Arnold
preocupou-se com o tempo, quando comparou a correria doentia da vida moderna com a vida
estável da velha Inglaterra”.
6 A Origem das Espécies é o livro de Charles Darwin que apresenta a Teoria da Evolução. A
primeira edição saiu em 1859, cujo título era (em inglês) On the Origin of Species by Means of
Natural Selection, or the Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life (Sobre a Origem
das Espécies por Meio da Selecção Natural ou a Preservação de Raças Favorecidas na Luta
pela Vida). Somente na sexta edição, de 1872, que o título foi abreviado para The Origin of
Species (A Origem das Espécies), como é popularmente conhecido. No trabalho, utilizou-se a
edição em português de 2004.
82
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Darwin combinou as teorias monogenistas e poligenistas7, que estavam na moda,
afirmando que as várias raças humanas podiam descender de um tronco comum,
mas que a partir de um determinado ponto, desenvolveram-se diferentes grupos
ou variedades e seguiram rotas diferentes. Existia uma subsequente competição
moral e mental entre as raças, sendo vitoriosa a classe de homens mais evoluída.
(BAUMER, 1977, p. 112)
O Homo Europaeus ficou identificado como o tipo ariano, ou seja, como a espécie mais promissora e mais inteligente da raça branca, encontrando o seu representante supremo entre os alemães, os franceses ou qualquer outro grupo regional.
Segundo Baumer (1977, pp. 113-114), Darwin vinculou-se aos eugenicistas,
acentuando mais as diferenças entre os indivíduos que os grupos. Acreditava,
embora achasse utópico, “que a eugenia8 era o único meio de melhorar a raça
humana, de controlar o coeficiente de natalidade dos ‘incapazes’ e favorecer os
‘capazes’ através de casamentos entre jovens e do cultivo da saúde dos seus filhos”.
Como contemporâneo de Darwin, destaca-se o Conde de Gobineau9, que por
muitos, é considerado um dos autores principais da afirmação das teorias racistas e
7 Segundo Skidmore (1976, pp. 67-68), no século XIX havia três escolas de teorias raciais, são
elas: 1) Etnológico-biológica - afirmava a poligenia. Sustentava a criação das raças humanas
por meio das mutações de várias espécies. Seu maior representante nos EUA foi Louis Agassiz.
Sua Journey in Brazil foi largamente citada no Brasil e deu curso entre à elite às ideias de
diferenças raciais inatas e de degenerescência mulata; 2) Escola histórica, bem representada
por Gobineau. Esses pensadores afirmavam que as raças humanas – as mais diversas – podiam
ser diferenciadas uma das outras – com a branca permanentemente e inerentemente superior
a todas.; 3) Darwinismo social. Darwin defendia um processo evolutivo que por definição,
começava com uma única espécie.
8 “Criada no século XIX por Francis Galton, a eugenia é um conjunto de ideias e práticas
relativas a um ‘melhoramento da raça humana’ ou, como foi definida por um de seus
seguidores, ao ‘aprimoramento da raça humana pela seleção dos genitores tendo como base o
estudo da hereditariedade. (...) A hereditariedade determinaria o destino do indivíduo. (...) O
movimento eugenista, ao procurar melhorar a raça, deveria sanar a sociedade de pessoas que
apresentassem determinadas enfermidades ou características consideradas indesejáveis (tais
como doenças mentais ou impulsos criminosos), promovendo determinadas práticas para
acabar com essas características nas gerações futuras. Todavia, esse quadro não era aplicado
apenas a indivíduos, mas principalmente, às raças, baseando-se num determinismo racial (se
pertence a tal raça, será de tal forma) fazia com que a hierarquia social fosse traduzida por
hierarquia racial.” (MACIEL, 1999, p. 121)
9 Para Baumer (1977, p. 112), “a obra mais influente sobre o pensamento da raça no século XIX
é a do Conde de Gobineau, Ensaio sobre a Desigualdade das Raças, que apareceu em 1853, e a
que se seguiu, em 1859, sobre o mito ariano, de Adolph Pictet, ‘As Origens Indo-Europeias’”.
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i encontro de internacionalização do conpedi
pessimistas entre os séculos XIX e XX. O autor entendia cruzamentos raciais como
combinação de heranças, mas não de forma igualitária. Olhava a raça superior
- especialmente a ariana - como um agente catalítico, destruidor da genética
mais fraca, e a miscigenação, sob uma óptica pessimista do racismo. Inaugurou
o conceito de “degeneração da raça” e cortou os últimos laços com a monogenia
e o evolucionismo social, quando da impossibilidade do progresso de algumas
sociedades compostas por sub-raças, mestiças e incivilizadas (BANTON, 1977).
Gobineau entendia que o cruzamento entre as raças diversas levaria à
degeneração dos tipos mais nobres e, portanto, à decadência do gênero humano.
Em resumo, os mestiços eram uma sub-raça, decadente e degenerada.
Durante 14 meses (abril de 1869 a maio de 1870), o Conde de Gobineau foi
Ministro da França junto à Corte de D. Pedro II, Imperador constitucional do
Brasil e por isso também a sua importância em relação aos estudos raciais neste
país. Era clara a sua indignação quanto à função designada e por isso resmungava
que “o Brasil foi o túmulo de sua atividade política”. Nas suas extravagantes
teses racistas, afirmava que “no Brasil a mestiçagem estaria, como em qualquer
outro lugar, fadada a debilitar a raça. Logo, os brasileiros viam-se condenados
a desaparecer, prevendo a data do atestado de óbito coletivo brasileiro para dali
a 270 anos” (READERS, 1988, pp. 09-15). Gobineau não hesitou em tirar
conclusões drásticas em relatório oficial sobre a escravidão e exaltava que “os
nativos brasileiros não eram nem trabalhadores, nem ativos, nem fecundos”.
(SKIDMORE, 1976, p.46)
A “teoria das raças” instaurou um determinismo racial e um ideário político,
que via de forma altamente pessimista a questão da miscigenação. As raças
constituiriam fenômenos finais, resultados imutáveis e o cruzamento era enten-
“O Conde de Gobineau foi uma pessoa polêmica e controvertida. Nasceu em 14 de julho de
1816, no vilarejo de Ville d´Avray, entre Versailles e Paris. Enquanto exercia funções menores,
escrevia poesias e romances folhetinescos e publicava na imprensa crítica literária e artigos de
política nacional. Ocupou a chefia de gabinete de Alexis de Tocqueville, então Ministro das
Relações Exteriores. Foi Embaixador em Atenas, no Brasil e Estocolmo. Fez-se conde em
1853. Seus méritos diplomáticos eram questionados. Os colegas o consideravam um intruso
que pouco interesse demonstrava pela carrière. Este homem franzino, de monóculo e suíças,
tinha fama de arrogante e ranzinza, o que explica talvez sua transferência para o Brasil –
castigo que muito ofendeu o seu orgulho” (READERS, 1988, pp. 09-10).
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i encontro de internacionalização do conpedi
dido como um grande erro. Os postulados eram claros: a) enaltecer a existência dos
tipos puros – não sujeitos a processos de miscigenação; b) compreender a mestiçagem
como sinônimo de degeneração racial e social. A intolerância cega aos inferiores
converteu-se na “prática avançada do darwinismo social”: a eugenia. Esta, por sua
vez, tinha uma meta definida que era intervir na reprodução das pessoas, evitando
a degeneração das espécies ditas “puras”. (SCHWARCZ, 2008, pp. 56-60).
A eugenia enquanto ciência visava o nascimento de pessoas perfeitas (de
raça pura), desejáveis e controladas; enquanto movimento social preocupava-se
em promover casamentos adequados – entre grupos determinados –, evitando
uniões nocivas ao pleno desenvolvimento da sociedade. O movimento acabou
dando lugar ao termo degeneração (em detrimento à evolução) e o pensamento
era de que o progresso estaria restrito às sociedades puras, livres de miscigenações,
deixando de lado o evolucionismo enquanto processo social obrigatório. A teoria
das raças fez com que a naturalização dos diferentes fosse um projeto universal de
correlações entre atributos físicos e morais (SCHWARCZ, 2008, pp. 60-65).
A ciência do século XIX originou uma nova dimensão temporal. A rigidez,
a fixidez, as particularidades, tudo que fora considerada eterno, tornou-se
transitório. Alguém ainda duvidava de que a ciência era a grande salvadora do
mundo e que nada mais fizera senão o bem, pelo menos nas suas aplicações
práticas?
3.o “labor atório r acial” - análise evolucionista da
população br asileir a
As certezas científicas foram disseminadas em território brasileiro com muita
intensidade. A partir da segunda metade do século XIX, a questão racial deu um
salto de importância na formação da auto-imagem do país: “o Brasil passou a ser
definido pela raça”. (ODA, 2001, p. 02)
A noção de raça impulsionou de forma significativa o regime escravista,
que continuou sua domesticação sobre os corpos negros e mestiços mesmo
após a abolição10. Destaca Lobo (2008, p. 193) que o movimento fomentou
10 “As três grandes leis abolicionistas – Ventre livre (1871), Saraiva Cotegipe ou dos Sexagenários
(1885) e Áurea (1888) – revelam o andamento moderado do processo. Com efeito, a Lei Rio
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i encontro de internacionalização do conpedi
também outras contribuições: a) a normalização de todos os comportamentos;
b) a disciplinarização dos trabalhadores livres (em especial imigrantes, brancos e
operários).
As elites brasileiras queriam livrar-se do “negro moralmente pernicioso”, “intelectualmente carente” e manter a hierarquia social. Para isso, interpretaram a
nacionalidade exclusivamente pela raça, fornecendo as justificativas para o atraso
brasileiro perante os países europeus (civilizados e evoluídos). Quanto mais
ascendiam socialmente, mais repudiavam negros e mestiços (não os queriam como
empregados, nem como criados domésticos). Mais do que preconceito, a questão
era científica (LOBO, 2008, p. 215). Ora, o perigo estava na contaminação dos
imigrantes com a indisciplina, a vadiagem e a afronta aos bons costumes.
A maioria dos abolicionistas percebia o processo “evolucionista”, com o triunfo gradual do homem branco11. Eram favoráveis à imigração europeia por dois
Branco (mais conhecida como a Lei do Ventre livre) foi acima de tudo uma manobra política
para acalmar a oposição, logo após o final da Guerra do Paraguai. (...) A lei representava um
ato importante na política imperial. (...) A ideia era prorrogar o cativeiro, ao mesmo tempo
em que se tornava o processo de abolição mais lento e controlado. A segunda lei, de tão
vergonhosa, foi contestada já na época de sua promulgação. A Lei dos Sexagenários dava
liberdade aos escravos maiores de 60 anos e previa a possibilidade de o prazo ser estendido até
os 65. Sabemos que a média de vida dos trabalhadores no campo variava de 10 a 15 anos, a lei
era um instrumento a favor dos senhores e não dos cativos. Por fim, a Lei Áurea selava uma
sorte que já estava determinada faz algum tempo. Na verdade, quando em 13 de maio de 1888
a princesa Isabel aboliu a escravidão, muito cativos já haviam concretizado sua liberdade. O
resultado imediato dessa versão organizada e pretensamente cordata de nossa libertação dos
escravos foi jogar uma imensa população, despreparada e pouco instruída, num processo de
competição desigual, sobretudo com a mão-de-obra imigrante que afluía ao país desde os
anos de 1870. O certo é que a abolição era vendida como um presente e, enquanto tal, uma
dádiva não negociada. O problema foi que se dissimulou um processo de confronto, para se
investir numa imagem de superação lenta, ordenada, gradual e controlada pelo Estado. Além
disso, no país se projetou a imagem de uma democracia racial, corolário da representação de
uma escravidão benigna, extinta de forma ‘harmoniosa’”. (SCHWARCZ, 2001, pp. 44-46)
11 Por outro lado, alguns abolicionistas - com o pensamento divergente e preocupados com
a questão étnica - partilhavam a crença (elitista e de efeito simbólico) de que a “sociedade
brasileira não detinha preconceito racial, vide os debates das leis abolicionistas, que revelavam
a prevalência de tal convicção no seio de todas as facções políticas” (SKIDMORE, 1976, p.
38). Para eles, a opinião aceita entre a elite era clara: o Brasil soubera evitar o preconceito
da raça. Segue o discurso do então deputado por Minas Gerais, Perdigão Malheiro (1871),
de reconhecida autoridade em matéria escravagista, em que condenava as injustificadas
e caluniosas críticas à harmonia racial no Brasil: “Desde que para o Brasil vieram negros
da Costa d´África, nunca houve esse desprezo pela raça africana, que aliás, se notava em
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i encontro de internacionalização do conpedi
grandes motivos: a) os europeus ajudariam na escassez da mão de obra, em virtude do
fim do trabalho escravo; b) a imigração ajudaria na aceleração do branqueamento do
Brasil (SKIDMORE, 1976, p. 40). Como é sabido, o pensamento abolicionista
nasceu do liberalismo europeu do século XIX, que seguiu a Revolução Industrial,
a urbanização e o crescimento econômico, restando claro que a lógica do país
“mais branco” trazia um objetivo mercadológico/patrimonial/produtivo evidente
- “os abolicionistas queriam que os europeus trouxessem para o país uma corrente
de sangue caucásico vivaz, enérgico e sadio, que pudéssemos absorver sem perigo”.
A dificuldade do movimento de “branqueamento” da raça brasileira, acreditase, foi enfrentar o sistema multirracial12. Não se tinha sectarismo no Brasil, muito
por conta dos surtos de produção de açúcar (nordeste), ouro e diamante (centrosul) e café (sul). Em todos esses lugares tinha-se uma população significativa de
escravos. “Em 1819, segundo estimativa oficial, nenhuma dessas regiões tinha
menos de 27% de escravos na população total” (SKIDMORE, 1976, p. 59).
Como falar em branqueamento no Brasil?
Curiosamente, percebeu-se um aumento da população branca no Brasil entre
1890 e 1950. Os dados oficiais demonstravam que a porcentagem de brancos
passou de 44% em 1890 para 62% em 1950. A imigração avassaladora de brancos
(a partir de 1890, três milhões de europeus radicaram-se no Brasil), a baixa taxa de
natalidade da população negra, a alta taxa de mortalidade dos filhos negros (pelas
péssimas condições de sobrevivência), foram contribuintes para esse aumento.
O “ideal de branqueamento, assim como o sistema social tradicionalista, ajudou
outros países, principalmente nos Estados Unidos. A escravidão se tornara menos perniciosa,
principalmente depois de 1850. Preconceito de cor no Brasil? Senhores, eu conheço muitos
indivíduos de pele escura que valem mais do que muitos de pele clara. Esta é a verdade.
Não vemos nas escolas, nas academias, nas igrejas, ao nosso lado, homens distintos, bons
estudantes, de pele de cor? Não vemos no parlamento, no governo, no Conselho de Estado,
em missões diplomáticas, no exército, nas repartições públicas, gente de pele mais ou menos
escura, de raça mestiça mesmo com a africana?” (SKIDMORE, 1976, p. 39)
12 “E quais as origens do sistema multirracial? O Brasil já tinha antes da abolição grande número
de homens de cor. Os escravos eram provavelmente, em maior número que os homens livres
(brancos e de cor) no Brasil do século XVIII. Aparentemente a população livre de cor crescera
muito depressa no século XIX. (....) A fertilidade diferencial foi um segundo fator na criação
do sistema multirracial. (...) Os dados demográficos concluíram quem que a população preta
reproduziu-se num ritmo mais lento depois da Abolição do que a branca e a mulata. (...) A
relativa ausência de sectarismo no Brasil foi outro fator que ajudou a produzir um sistema
multirracial”. (SKIDMORE, 1976, pp. 55-59)
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a definir também a escolha das fêmeas em relação à raça dos parceiros, optando
assim, sempre pelos mais claros” (SKIDMORE, 1976, p. 61-62).
“Quanto mais branco, melhor; quanto mais claro, superior” (SCHWARCZ,
2001, p. 49). O branco representa(va) muito mais que uma cor, mas uma
qualidade social de muito valor; simboliza(va) progresso, limpeza, normalidade,
aceitação, inclusão social e vias de cidadania. Os negros (e miscigenados) eram
(e ainda são) animalizados e estigmatizados (sobretudo pela ciência) como sujos,
degenerados, anormais, criminosos, etc; precisa(vam) ser excluídos de forma
eficaz para não comprometer ainda mais o progresso do país.
Vivia-se a complexa passagem da escravização à ordem do trabalho “livre”,
que agora possuía novos personagens: de um lado negros (ex-escravos), de outro,
imigrantes (brancos “livres”), que necessitavam de novas formas disciplinares. O
trabalhador branco deveria estar sempre pronto para enfrentar o trabalho árduo e
não estava isento dos efeitos racistas, ou seja, novas dinâmicas de relações sociais
e de controle. O Estado, por sua vez, enfrentava a dificuldade do controle de
pessoas livres (brancos imigrantes, negros e mestiços) sem trabalho, desocupadas,
doentes, e com isso, desse novo corpo proveio “o modelo de fardo social, a produzir
os sentidos do que passou a ser chamado de ‘deficiência’, objeto de novas coerções
eugênicas ou sanções normalizadoras médico-pedagógicas”. (LOBO, 2008, pp.
216-217)
O pensamento racial que gerava discussões abertas no mundo europeu foi
absorvido (mimeticamente) pelos teóricos brasileiros de pacote fechado, sem
nenhum senso crítico. Essa nova percepção de mundo era, portanto, devedora da
lupa europeia de análise.
Do ponto de vista intelectual, o negro era o menos evoluído, retardado mental,
sem capacidade de aprendizagem; moralmente, era pervertido, degenerado, com
tendências criminosas e violentas; no aspecto físico, era o mais sujeito às doenças.
Ou seja, os negros levariam à degeneração da raça “produtiva” brasileira. Por isso
o apoio à imigração de brancos europeus. Era preciso substituir a mão de obra
do trabalhador escravo negro por europeus brancos (de preferência do norte da
Europa), para que assim o Brasil melhorasse a raça (sem doenças físicas e mentais) e
garantisse uma boa produtividade no mercado de trabalho (LOBO, 2008, p. 197).
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i encontro de internacionalização do conpedi
Nessa linha, Rodrigues (2010, pp. 14-15) destaca:
A Raça Negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seus
incontestáveis serviços à nossa civilização, por mais justificadas
que sejam as simpatias de que a cercou o revoltante abuso da
escravidão, por maiores que se revelem os generosos exageros dos
seus turiferários, há de constituir sempre um dos fatores da nossa
inferioridade como povo. (...) Este juízo obedece, na sua emissão
franca e leal, não só ao mais rudimentar dever de uma convicção
cientifica sincera, como aos ditames de um devotamento respeitável
ao futuro da minha pátria.
Com o racismo científico e o evolucionismo houve um deslocamento na
observação: o negro passou a ser um objeto da ciência. E como tal, possuía feições
múltiplas: “uma do passado, — estudo dos negros africanos que colonizaram o
país; outra do presente: — Negros crioulos, Brancos e Mestiços; a última, do
futuro: — Mestiços e Brancos crioulos” (RODRIGUES, 2010, p. 18).
“Futuro e valor social do Mestiço ário-africano no Brasil: tal, pois, a fórmula
do nosso problema ‘O Negro’”. Rodrigues (2010, p. 17) entendia que o problema
era de natureza complexa ao extremo e que demandava investigações em domínios
das mais variadas competências, mas que acabava sendo muito difícil a observação
num país governado sem estatísticas, e consequentemente sem estrutura para
executar tais pesquisas.
Para Nina Rodrigues, a miscigenação resultaria em indivíduos desequilibrados, híbridos fisicamente, degenerados intelectualmente e com desvios
comportamentais, sendo fatal para o progresso da nação. A imagem da
miscigenação constituía o ponto inicial para o entendimento da situação sóciopolítica do país, e por isso, tanta preocupação.
A saída digna para garantir o futuro da nação era “purificar” o sangue dos
brasileiros. A solução defendida por João Batista Lacerda, no I Congresso
Internacional das Raças (em 1911) era prática: o embranquecimento da população.
O objetivo principal não estava focado em aguardar a melhoria da raça pelo
embranquecimento, nem tampouco em coibir os cruzamentos. O movimento
eugênico brasileiro no início do século XX, apostava em medidas preventivas:
(a) higienizá-los por meio do exame e do certificado pré-nupcial; (b) esterilização dos
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i encontro de internacionalização do conpedi
anormais. E não eram só negros e mestiços que ofereciam riscos para o futuro
da nação, mas os “anormais” e todos os pobres, que sempre foram responsáveis
pela miséria moral e material e agora, pela degeneração da espécie. Em resumo,
a grande preocupação dos médicos cientistas era com as elites, na reformulação
da organização familiar (de origem colonial). O projeto científico evolucionista
era assegurar uma prole sadia, evitando a reprodução das taras13 hereditárias que
também degeneravam as raças (LOBO, 2008, pp. 203-204).
O foco era o progresso da nação e a justificativa era romper com o atraso. Ordem
e progresso! Era o lema moderno. Na hierarquia racial brasileira em que o branco
europeu ocupava a alta cúpula social (como civilizado, superior e sadio), que o
negro e o indígena eram classificados como selvagens, primitivos e inferiores, e que
os miscigenados eram degenerados, o projeto político de salvação nacional – por
critérios “científicos” – era a prática eugênica (que ia da discriminação até a exclusão
dos seres subjulgados inferiores). Fazia-se necessário salvar o Brasil, com urgência...
4.a escola nina rodrigues: por uma antropologia
criminal à br asileir a
Raimundo Nina Rodrigues é reconhecido como o grande nome da Medicina
Legal brasileira. Fundador do que se denominou de “Escola Nina Rodrigues14”,
13 “A palavra tara, dicionarizada como defeito físico ou moral e degeneração, depravação,
tem sua origem na palavra árabe tarah: ‘o que se rejeita (das mercadorias)’. De fato, podese depreender que os assim chamados ‘tarados’ (como cegos, surdos-mudos e outros) eram
considerados refugo e, assim, rejeitados e excluídos”. (MACIEL, 1999, p. 136)
14 Os dois grandes nomes da Escola Nina Rodrigues são Afrânio Peixoto e Arthur Ramos. Seu
primeiro e maior discípulo, o médico (romancista, político e crítico literário) Afrânio Peixoto,
tornou a obra do médico maranhense nacionalmente reconhecida, difundindo o pensamento
da Escola e proporcionando reformas promissoras. Era contra a imigração de negros no
Brasil, exatamente por compactuar com a teoria da degenerescência e considerar todas as
consequências desastrosas na população oriundas da miscigenação. Em 1897 escreveu sua
tese inaugural “Epilepsia e crime”, trabalho que abordava a “persistência das percepções e
da consciência, até nas grandes crises convulsivas”, derrubando assim os velhos dogmas da
psiquiatria sobre a inconsciência das crises de qualquer gênero. Em 1907 reformou o serviço
médico-legal do Distrito Federal, dando continuidade ao legado de Nina (CORRÊA, 1982,
p. 189). Arthur Ramos foi outro discípulo de destaque da referida Escola. Estudou medicina
na Bahia, onde ficou famoso pelo seu interesse em psicanálise. Junto com Afrânio Peixoto deu
início às reedições dos livros esgotados de Nina Rodrigues. Estava em busca da solução mais
científica e mais humanizada para a mistura de raças e culturas. Foi o pioneiro dos modernos
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i encontro de internacionalização do conpedi
trouxe como nexo comum na sua extensa obra os estudos sobre perícia médicolegal e antropologia das relações raciais, contribuindo intensamente para o
desenvolvimento das ciências sociais no Brasil.
Um dos focos de Nina Rodrigues e seus seguidores era a definição da sociedade
brasileira enquanto povo e do país enquanto nação, colocando as relações raciais
como questão principal. Seus trabalhos impregnados de teorias científicas e de
interesses políticos procuravam respostas para estas questões, bem como critérios
de acessos à plena cidadania e à construção de imagens ideais do país.
As pesquisas de Nina Rodrigues15 sobre a diversidade étnico-cultural e social
do Brasil estruturaram-se na linha racial-evolucionista (advinda dos estudos
antropológicos europeus), visando estratégias que possibilitassem compreensões
e soluções sobre a questão da unidade nacional. E nessa época o saber médico
passara a regular, de forma muito mais intensa, a vida individual das populações
e das instituições urbanas. No período de produção científica de Nina Rodrigues,
esse caráter regulador da medicina, embora estabelecido, necessitava de maior
consolidação e esse autor trabalhou em tal sentido (MACHADO et al., 1978).
Apoiado na teoria da degenerescência (ou degeneração) Nina criou uma
antropologia criminal, que deveria ser aplicada como elemento purificador e
preventivo dos processos de degeneração, que para ele, encontravam-se ativos na
população brasileira.
4.1.nina rodrigues e os estudos sobre degenerescência: quais as causas e as consequências?
Nina exibia claramente a sua filiação à escola italiana. As novas ideias de
Lombroso, Ferri e Garófalo - que buscavam as causas do crime e da criminalidade
em âmbitos individuais, físicos e sociais e compunham a base da Criminologia
Positivista - ampliaram-se no Brasil e foram absorvidas por este e outros
estudos brasileiros de antropologia social, história cultural e social. Na concepção de Ramos
(1937, p. 188), Nina Rodrigues “foi um sábio que criou um nome científico que ultrapassou
fronteiras do nosso país, impondo-se à consideração dos circuitos internacionais, sem haver
saído da província, sem intervenções diplomáticas e sem recomendações oficiais”.
15 Não só Nina Rodrigues, mas vários autores da época debruçaram-se sobre o tema, tais como
Juliano Moreira, Arthur Ramos, dentre outros.
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pesquisadores nacionais. Na concepção de Duarte (2006, p. 138), a criminologia
Positivista, atrelada às teorias raciais, gerava uma aliança entre técnica e ciência,
possibilitando o deslocamento da problemática das diferenças entre as raças e da
superioridade da raça branca, desde um problema de justificação da ordem atual
para a implementação de uma política de controle social efetivo.
Sobre a inviabilidade social do mestiço, com o reconhecimento de uma
influência degenerativa nos cruzamentos humanos, Nina considerava que
foi a psicologia criminal que afirmou a possibilidade dessa consequência do
cruzamento. “No segundo Congresso de Antropologia Criminal, em Paris, em
1889, Clémence Royer invocou pela primeira vez a influência degenerativa da
mestiçagem na etiologia do crime” (RODRIGUES, 2008, pp. 01-03). Bom, em
tais condições, fazia-se necessário resolver o problema através da observação direta
e imediata da sociedade.
Rodrigues (2008, pp. 05-07) entendia que a observação voltada para todo
um povo ou para casos muito específicos não poderia trazer provas “com as luzes
soberanas da verdade”. Num país sem o recurso a estatísticas era quase impossível
distinguir a influência da mestiçagem entre as outras causas complexas, suscetíveis
de produzir sua decadência. Para evitar esses problemas, em suas pesquisas
empíricas procurou preencher duas condições fundamentais: “(a) estudar pequenas
localidades, (pois seria mais fácil distinguir as diferentes causas degenerativas);
(b) completar o estudo da capacidade social da população através do exame de sua
capacidade biológica escalonada sobre sua história médica”.
Dessa forma, resolveu pesquisar a comarca de Serrinha (Bahia). Este lugar
era conhecido por apresentar índices significativos de tuberculose pulmonar.
Não havia endemias sérias, mas a malária se destacava na época. A população era
composta predominantemente de mestiços, mas se encontrava, de forma geral,
três tipos raciais: o pardo (que reunia as três raças, branca, negra e amarela), os
negros (em grande maioria) e os brancos (em pequeno número). Os curibocas
também se faziam presentes; eram descendentes diretos dos índios, mas encontrados muito raramente16 (RODRIGUES, 2008, pp. 06-07).
16 Para Nina Rodrigues (1957, pp. 84-86), podia-se distinguir na população brasileira (em geral)
uma grande maioria de mestiços dos mais variados cruzamentos e uma minoria de elementos
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Propôs-se a verificar se a população tinha o vigor e a atividade que se podia
esperar de uma população nova, saudável e fortificada pelo cruzamento. Partindo
dessa hipótese17, constatou que a tendência à degenerescência era tão acentuada
em Serrinha quanto poderia ser num povo decadente e esgotado. “A propensão às
doenças mentais, às afecções graves do sistema nervoso, à degenerescência física e
psíquica era das mais acentuadas” (RODRIGUES, 2008, p. 8).
E quais eram as causas e as condições originárias que fomentavam tal quadro?
Nina concluiu que as condições locais, climáticas, higiênicas, sanitárias e
de consanguinidade eram as respostas mais importantes, mas destacou que
especialmente esta última era a causa maior dessas manifestações:
As causas reais das manifestações mórbidas ou de degenerescência
estudadas na população de Serrinha devem ser mais longínquas
e mais poderosas, e essas causas não são outras senão as más
condições nas quais se efetivaram os cruzamentos raciais dos
quais saiu a população da localidade analisada. O cruzamento
de raças tão diferentes antropologicamente, como são as raças
branca, negra e vermelha, resultou num produto desequilibrado e de
frágil resistência física e moral, não podendo se adaptar ao clima do
Brasil nem às condições da luta social das raças superiores. Rodrigues
(2008, p. 18) (grifo nosso)
antropológicos puros não cruzados, são eles: “ (1) a raça branca - representada pelos brancos
crioulos não mesclados e pelos europeus, ou de raça latina, principalmente portugueses e
hoje italianos em São Paulo, Minas, etc, ou de raça germânica, os teuto-brasileiros do sul
da república; (2) a raça negra - representada pelos poucos africanos ainda existentes no
Brasil, principalmente Estado, e pelos negros crioulos não mesclados; (3) a raça vermelha,
ou indígena - representada pelo brasilio-guarani selvagem que ainda vagueia nas florestas dos
grandes estados do oeste e extremo norte. (...) Os mestiços brasileiros carecem de unidade
antropológica e também podem ser distribuídos por um número variável de classes ou grupos,
compreendem: (1) os mulatos – produto do cruzamento do branco com o negro, grupo muito
numeroso, constituindo quase toda a população de certas regiões do país e divisível em: a)
mulatos dos primeiros sangues; b) mulatos claros, de retorno à raça branca e que ameaçam
absorvê-la de todo; c) mulatos escuros, cabras produtos do retorno à raça negra, uns quase
completamente confundidos com os negros crioulos, outros de mais fácil distinção ainda;
(2) os mamelucos ou caboclos – produto do cruzamento do branco com índio; (3) curibocas ou
cafusos – produto do cruzamento do negro com índio. Este mestiço é extremamente raro na
população. (4) Pardos – produto do cruzamento das três raças e proveniente principalmente
do cruzamento do mulato com o índio ou com os mamelucos caboclos”.
17 Sobre detalhes metodológicos da pesquisa, ver Rodrigues (2008).
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Por um viés diferente de Morel, o médico maranhense chegou à ligação
da degenerescência-enfermidade, cuja análise é fundamental para o presente
trabalho. Com estas pesquisas, pela primeira vez18 um autor brasileiro aproximou
categorias distintas (raciais, biológicas e psiquiátricas), sobretudo a questão racial
na identificação do criminoso. Eis a formação fundamental para a análise sobre
controle social no Brasil, o quarteto quase-fantástico: NEGRO/MESTIÇO →
DEGENERADO → DOENTE MENTAL → CRIMINOSO.
Qual era, então, o efeito da mistura de raças na natureza mental e em termos de
criminalidade?
Essa certamente era uma pergunta fundamental para os novos propósitos dos
estudos de Nina que agora estavam voltados para a garantia da ordem social.
Parece que a mistura entre raças de homens muito diferentes produzia um
tipo mental sem valor, que não servia nem para levar a vida da raça superior, nem
da inferior, e não era apropriada a nenhum gênero de vida, afirmava Rodrigues
(2008, p. 23). A dissolução do caráter provinha dos desdobramentos de tendências
hereditárias opostas, que criavam no mesmo indivíduo motivos de deliberação e
de ação, diferentes ou contraditórios.
No que se refere à questão da criminalidade dos povos mestiços, Nina julgava
estar suficientemente demonstrada a alta violência. A impulsividade das raças
inferiores representava um fator de primeira ordem na criminalidade, mas
compreendia-se facilmente que a impulsividade criminal poderia ser, em grande
medida, uma simples manifestação da anomalia que fazia com que os criminosos
não conseguissem adaptar-se ao meio social. Concluiu que o crime, como as outras
manifestações de degenerescência dos povos mestiços - tais como a teratologia
e a degenerescência-enfermidade - “estava intimamente ligado, no Brasil, à
decadência produzida pela mestiçagem defeituosa de raças antropologicamente
muito diferentes e cada uma não adaptável, ou pouco adaptável, a um dos climas
extremos do país: a branca ao norte, a negra ao sul” (RODRIGUES, 2008,
18 Faz-se interessante destacar que Lombroso trabalhou a tese do criminoso nato, procurando
as causas do crime no criminoso, utilizando paradigmas biológicos, mas não trabalhou
especificamente a questão das raças (mestiçagem e degenerescência). Sobre o assunto ver,
Lombroso (1896).
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i encontro de internacionalização do conpedi
pp. 27-44). A associação do crime às manifestações degenerativas e seu retorno
aos sentimentos indomáveis (dos instintos bárbaros ou selvagens), não deixava
qualquer dúvida a esse respeito.
Essa associação criada e “cientificamente” identificada nas pesquisas de
Nina gerou e ainda gera consequências diretas na construção do pensamento
jurídico-penal, nas práticas político criminais, no senso comum teórico (que são
microssistemas penais individuais) e em todo o funcionamento do Sistema de
Justiça Criminal brasileiro. Ou seja, o controle social formal e informal é até hoje
baseado com ênfase nessa equação perpetuada desde o final do século XIX, que
diariamente é (re)legitimada como uma das grandes justificativas (científicas) dos
mecanismos de punição (de todas as ordens).
O estereótipo dos etiquetados como criminosos no Brasil engloba (de forma geral) as características observadas por Nina e, posteriormente, foi sendo
complementado por outras categorias: criminoso/homem = doente = degenerado =
violento = negro/mestiço = pobre/excluído.
Ressalta Andrade (2003, p. 21) que nessa lógica matemática o código
hegemônico da violência não casualmente coincide com a descrição de alguns
crimes (contra os corpos e patrimônio) no Código Penal, com as lições manualescas
da Criminologia tradicional e com a seletiva clientela do sistema penal. “O senso
comum da criminalidade coloniza inteiramente, submetendo ao seu reduto o
senso comum da violência”.
Os portadores de sofrimento psíquico que estão submetidos ao controle social
formal (sistema de justiça criminal) também se encaixam perfeitamente a essa
moldura construída para controle e regulação. Na realidade, Nina quando fez
essas aproximações estabeleceu que o criminoso era fruto de uma degenerescência
(racial), que levaria à uma debilidade (mental), tornando-o potencialmente
perigoso e consequentemente criminoso. Por isso também, tem-se de forma
corriqueira, sobretudo em casos de crimes sanguinários com apelos midiáticos
intensos, a aproximação entre crime e doença mental, como forma de justificar
(“cientificamente”) as causas do ocorrido.
Nina Rodrigues conseguiu então um glorioso feito para a escola positiva
brasileira: identificar de forma mais precisa - atendendo as particularidades da
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15
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i encontro de internacionalização do conpedi
sociedade e diferenciando-se nisso das pesquisas lombrosianas – as origens do
potencial de periculosidade social, indevidamente associada pelos positivistas ao
conceito de anormalidade, justificando assim, a pena privativa de liberdade e as
medidas de segurança como meios de defesa social.
Com o foco em saúde pública e ordem social, Nina Rodrigues também admitiu
que, além das práticas criminosas serem manifestações de degenerescência dos
povos mestiços, os brancos também cometiam crimes. Ambos eram ameaças
sociais e os dois deveriam ser retirados da vida em sociedade, mas por razões
diferentes: “os negros porque estavam historicamente defasados em relação a ela,
os brancos por não terem se adaptado às normas de conduta que eles próprios
produziram” (CORRÊA, 1982, p. 08).
Para o mesmo fim (cometimento de delitos), e com soluções aparentemente
semelhantes (retirada do indivíduo do convívio social), o autor construiu
justificativas muito bem definidas e distintas, com ênfase racista e biológica,
buscando as causas (científicas) desses impulsos criminais.
Pode-se exigir que todas estas raças distintas respondam por seus
atos perante a lei com igual plenitude de responsabilidade penal?
Pode-se conceber que a consciência do direito e do dever que
têm essas raças inferiores, seja a mesma que possui a raça branca
civilizada? Ou que, pela simples convivência e submissão, possam
aquelas adquirir, de um momento para outro, essa consciência, a
ponto de se adotar para elas conceito de responsabilidade penal
idêntico ao dos italianos, a quem fomos copiar nosso código?
(RODRIGUES, 1957, p. 106)
Realmente responder a essas questões exigiria um bom conhecimento em
ciências biológicas. Destacava que o Código Penal brasileiro, até então, longe
desses estudos, refletia um ensino religioso arcaico (pelo princípio da igualdade),
que do ponto de vista do livre arbítrio, devia ser tão injusto nos domínios penais,
quanto nos domínios sociais. Em resumo, a grande dificuldade estava em avaliar
a responsabilidade do índio e do negro (já incorporados à nossa sociedade)
gozando dos mesmos direitos dos brancos e colaborando na civilização do país
(RODRIGUES, 1957, pp. 107-108).
Sem abandonar a hereditariedade, a consequência mais relevante dessa nova
perspectiva penal e política foi o deslocamento da questão da responsabilidade.
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i encontro de internacionalização do conpedi
“A liberdade de vontade, a intenção de atuar conscientemente de determinada
maneira, deixava de ser relevante no julgamento de um ato, uma vez que cada um
estava predeterminado pela sua pertinência a certas classes biológicas” (CORRÊA,
1982, p. 65). A questão da responsabilidade não girava mais em torno do livrearbítrio (como considerava a escola clássica), passando-se a investigar quais as
medidas de defesa social seriam mais adequadas para lidar com aquelas ameaças.
No modelo liberal contratualista a responsabilidade penal do autor era
avaliada pela sua capacidade volitiva e de cognição. O pressuposto da punição
era exatamente a possibilidade de conhecimento da norma incriminadora e sua
violação voluntária. Logo, a culpabilidade19 (estruturada no conceito de livrearbítrio) fundamentava e legitimava a aplicação da pena. Com o surgimento da
criminologia positivista o conceito de periculosidade entrou em cena, colocando
em xeque a ideia de reprovabilidade penal pautada na culpabilidade. O positivismo criminológico negava a culpabilidade ao sustentar como evidência empírica
“não ser o crime ato humano resultado de vontade livre do sujeito, mas derivado
de causas alheias, de fatores endógenos ou exógenos que anulam qualquer vontade,
pois determinantes” (CARVALHO, 2010, p. 156).
A periculosidade passou a ser entendida, desde então, como o grau de
probabilidade do impulso criminal do indivíduo. Quanto maior a chance de
cometer crimes (devidamente comprovado pelas ciências?), maior a periculosidade
do agente. Nessa ordem, fez-se necessário aprimorar as perícias médico-legais para
promover diagnósticos e prognoses futuras confiáveis.
4.2.a luta por uma medicina judiciária
O crime já não era uma entidade simplesmente teórica, uma abstração
jurídica, mas um fato concreto, “jogado à mercê de rijos determinismos”. Era
preciso um estudo investigativo forte sobre as causas da criminalidade, como
meio de assegurar uma defesa social eficaz. Os estudos raciais, por si só, não
sustentavam tais propósitos, então, era preciso avançar por outras vias: o estudo
antropo-psicológico dos delinquentes (que sucedeu ao lombrosionismo puro das
19 Sobre o tema, consultar: Tangerino (2011).
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i encontro de internacionalização do conpedi
simples anomalias morfológicas) passou a ser a preocupação absorvente de todos
os criminologistas! (RAMOS, 1937, p. 167).
Utilizando uma teoria que deslocava a ênfase da saúde ou da doença para
o doente, transformava-o em objeto individualizado de um saber autorizado e
autoritário, pautado no paradigma etiológico. Os modelos (jurídico e médico)
deixavam de ser heterogêneos, passando a fundir-se (em saberes específicos), na
produção de mecanismos técnicos que pudessem diagnosticar (quando necessário)
e punir os indivíduos que causassem danos à sociedade. A intersecção dos saberes
médicos e legais produziria um terceiro tipo de conhecimento, o qual observaria
a sociedade como um corpo a ser conhecido em todas as suas etapas (nascimento,
desenvolvimento, enfermidades e mortificação). Assim, se a medicina (clínica)
curava ou prevenia (higiene), a sua versão médico-legal20 seria fundamental para
diagnosticar e indicar o tratamento adequado - dentro dos ditames médicojurídicos -, em casos de atentados contra a normalidade da vida social (CORRÊA,
1982, p. 68).
Ramos (1937, p. 201) destacava que Nina alargou demasiadamente o
campo teórico e prático da medicina legal, não restringindo as investigações aos
problemas de laboratório, autopsia ou clínica forense, mas estendendo às questões
de psicologia patológica, antropologia criminal, etnografia religiosa, sociologia,
entre outros campos de conhecimento.
Nina Rodrigues sustentava a necessidade de uma assistência médico-judiciária
aos alienados, bem como os estudos científicos do crime e do criminoso, juntamente
com todas as formas modificadoras da responsabilidade. Para ele, deveria existir
uma clínica psiquiátrica junto à Faculdade de Medicina, exigindo para todos os
estudantes da área um estágio na psiquiatria, e para os médicos peritos de asilos e
prisões, uma frequência mais prolongada nesses estabelecimentos. Nesse período
da Faculdade médica baiana, Nina associou a Criminologia à Medicina Legal. Esta
obteve uma função mais ampla que a simples tarefa pericial: deixou a modesta
20 “A medicina legal foi uma das primeiras disciplinas a conquistar um espaço institucional
próprio e a definir seu agente: o perito. Tempos depois a perícia médico-legal se fragmentará
nas mãos de muitos especialistas, mas sua metodologia e alguns dos objetos que Nina
Rodrigues definiu ao enfatizar sua autonomia nacional, serão apropriados pela Antropologia”
(CORRÊA, 1982, p. 69)
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i encontro de internacionalização do conpedi
ciência dos médicos auxiliares da justiça e passou a guiar também os legisladores
(RAMOS, 1937, pp. 197-199). Os peritos passaram a ocupar o famoso lugar dos
“operadores secundários do direito”, como diria Lopes Jr. (2007).
Indagava-se agora a via higiênica e social; esse seria o caminho para corrigir a
natureza a aperfeiçoar o homem. A medicina legal, com a nova figura do perito,
ao lado da polícia (e do judiciário) explicaria a criminalidade e determinaria a
loucura (Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife, 1919, p. 54).
A constituição da medicina legal como disciplina autônoma era uma luta de
Nina pela preservação da medicina institucional. Essa especialização, segundo
Corrêa (1982, p. 103), serviria tanto como organização interna do saber médico,
como para cumprir uma função ideológica.
Com as especialidades e duas Faculdades médicas em destaque, em outro
nível de avaliação, gerou uma disputa pela hegemonia na medicina. Os médicos
da Faculdade do Rio de Janeiro buscavam sua originalidade nas descobertas
de doenças tropicais, que deveriam ser sanadas pelos programas higiênicos. Os
médicos baianos seguiram a mesma rota afirmando que o cruzamento racial era
o grande mal do país e, ao mesmo tempo, a maior diferença. Os cariocas tinham
a doença como foco de combate e os baianos tinham o doente como ponto
de análise. “Era a partir da miscigenação que se previa a loucura e entendia a
criminalidade, ou, nos anos 20, se promoviam programas eugênicos de depuração”
Schwarcz (1993, p. 190).
Mas apareceu um novo debate. A medicina quando deparada ao Direito tentava
se afirmar enquanto saber superior. “O objetivo era curar um país enfermo, tendo
como base um projeto médico-eugênico, amputando a parte gangrenada do país,
restando uma população de possível perfectibilidade” Schwarcz (1993, p. 190).
O homem do direito seria um assessor que colocaria na lei o que o perito médico
indicasse e com o tempo sanaria o problema. Nas faculdades de Direito o discurso
era outro. Cabia ao jurista codificar e dar uma forma unificada ao país, sendo o
médico apenas um técnico que auxiliaria no desempenho daquele profissional.
Uma proposta diferente estava em questão. Ao elemento racial de investigação,
agregavam-se as pesquisas sanitaristas, os modelos de educação e os moldes disciplinares. Os “novos olhares” aproximavam-se, com saberes científicos diversos,
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i encontro de internacionalização do conpedi
com ditas “novas” explicações, causas, diagnósticos, tratamentos e controles, mas
com velhos ranços do passado.
4.3.o controle social dos degener ados
O médico Nina Rodrigues enfatizava que se faziam necessários, no mínimo,
dois códigos no país; um para negros e um para brancos, tamanha era a diferença
entre as raças. Como a questão nacional passou a ser entendida pela raça,
anulava-se a discussão sobre cidadania no contexto da nova República. Nessa
ordem, passou a criticar a legislação penal brasileira, “sugerindo ao Legislador
o preenchimento de lacunas, em busca de uma defesa social com atenção aos
modificadores da imputabilidade”, recaindo diretamente sobre a garantia eficaz
da ordem social21 (CORRÊA, 1982, p. 132).
A adoção de um código penal único era um grande equívoco na concepção
de Nina Rodrigues, por não corresponder à realidade social e não atentar aos
princípios mais elementares da natureza humana, ou seja, não levava em
consideração as diversidades étnicas. Devido às acentuadas diferenças (inclusive
climáticas) do Brasil, para efeitos de legislação penal, sugeria uma divisão entre as
quatro grandes regiões do país e diferentes formas de punição.
Em crítica à Escola Clássica, entendia que esta não só era irracional e
insustentável por se firmar em contradições, como insuficiente. E argumentava:
21 As ideias de Nina de tratamento diferenciado para as diferentes raças e para os alienados são
oriundas de Philippe Pinel, na França. Este, por sua vez, após uma disposição normativa
de 1793 – que exigia o recolhimento de desviantes das ruas aos asilos e hospícios – foi
nomeado o primeiro diretor de um hospital exclusivo para alienados. Pinel foi o fundador da
psiquiatria, não apenas por sua atuação em prol das reformas dos hospícios de alienados, mas,
sobretudo, por introduzir uma diferenciação metodológica entre a observação dos fenômenos
psicológicos e a tentativa de explicá-los. Defendeu que era preciso separar os loucos dos
marginais, enfatizando que era necessário reconhecer os alienados pela sua condição de
doentes, mesmo tendo cometido algum tipo de injusto. A solução para esses casos seria o
asilo em instituições psiquiátricas. “Entregues aos cuidados médicos, receberiam a devida
assistência no controle de sua doença, através da promoção do tratamento moral em seu corpo
sensível. A ideia era reprimir a violência natural dos alienados. Nesse sistema terapêutico criado
por Pinel, o confinamento e o isolamento eram fundamentais e visavam, ao mesmo tempo,
afastá-lo do ambiente costumeiro, oferecer medidas de segurança à sociedade e ao próprio
alienado e melhor observá-lo para melhor tratá-lo” (PINEL, 2007, pp. 15-27). O impacto do
tratado de Pinel (em 1800) reformulou o Código Penal Francês de 1810. Pela primeira vez a
loucura obteve uma importância significativa, e esta condição de diferente gerou um “estado
de exceção” (BARROS-BRISSET, 2011, pp. 11-12).
100
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i encontro de internacionalização do conpedi
Infelizmente o Brasil é país em que a Constituição republicana
cometeu o grande duplo erro em adotar, com a unidade do
código penal, a dualidade da magistratura; (...)em que a execução
das penas, os meios penais, nunca obedecem ainda hoje, a um
sistema racional qualquer; (...) em que os alienados, a não ser no
Rio de Janeiro, estão em condições mais precárias do que os da
França antes de Pinel; em que além da ausência completa de meios
educativos de eficácia real, a infância se acha de todo sem proteção
contra a aprendizagem e a educação do crime (RODRIGUES,
1957, pp. 165-166).
O negro tinha caráter instável como o da criança, e por isso, possuía uma
“cerebração incompleta”. Num meio de civilização adiantada ele destoava dos
demais. “As suas impulsividades são tanto melhor e mais frequentemente para o
ato anti-social, quanto as obrigações lhes aparecem mais vagas e menos adaptáveis
às condições da sua moralidade e do seu psíquico”, sustentava Rodrigues (1957,
pp. 117-118). Tinha-se uma presunção lógica: a responsabilidade penal, fundada
na liberdade do querer, das raças inferiores, não poderia ser equiparada a das raças
brancas civilizadas. No entanto, o problema requereria sempre uma apreciação
das individualidades no caso concreto, e não deveria ser solucionado em termos
gerais de raça.
Seu argumento fundamental era a negação do livre-arbítrio. Apoiado em
Spencer, Haeckel, Ribot, Clóvis Beviláqua, ele contestava a liberdade da vontade,
afirmando que a escolha de motivos era “tão somente a resultante da organização
psico-fisiológica do indivíduo” (RODRIGUES, 1957, p. 55). Era simples na
visão do referido médico, ou punia sacrificando o livre-arbítrio, ou respeitava tal
princípio em detrimento da segurança social.
Além dos presos comuns, sua preocupação perpassava pelos alienados em
geral. Pontualmente sobre os “alienados baianos”, Nina Rodrigues por várias vezes
manifestou-se quanto à insalubridade dos alojamentos do hospital destinados ao
setor, denunciando práticas indevidas numa série de artigos no Jornal de Notícias
(1904). Clamava por um hospital de alienados modelar, com o emprego de
métodos psiquiátricos mais delicados e modernos (CORRÊA, 1982, p. 121). E
chamava a atenção de que o Brasil tinha (tem) um péssimo hábito de transplantar
modelos que só se adapta(vam) às condições muito particulares de outros povos;
ou seja, não funciona(ria) no Estado brasileiro.
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i encontro de internacionalização do conpedi
Apesar das críticas ácidas ao sistema, Nina Rodrigues tinha uma proposta
prática: criar (ainda na Bahia) um pequeno asilo-hospital, onde seriam
incorporados todos os asilos conhecidos. Corrêa (1982, p. 123) informa que
este modelo inicial (vinculado a uma proposta de legislação estadual) permitiria
uma expansão gradual do sistema, proporcionando à cidade a assistência asilar
satisfatória, é ela: o hospital para os casos graves; a colônia para os crônicos
que pudessem trabalhar e o hospício para os alienados incorrigíveis e inválidos.
Explicando que o asilo-hospital poderia funcionar com uma dinâmica aberta ou
fechada e que funcionaria também como escola técnica para médicos. Assim,
defendia esse sistema asilar diferenciado como contraponto à prisão, “que servia
como segregação desumana e perigosa dos pobres”.
Ergueram-se assim, dois grandes importantes sistemas formais de controle:
um sustentado pelo discurso jurídico-penal; outro apoiado pelos saberes médicospsiquiátricos. Apesar da intersecção e das relações de dependência entre eles, seus
fundamentos, suas técnicas e seus procedimentos eram diferentes. Entretanto,
a meta do discurso prático e funcional era uma só: eficácia e (re)legitimação do
controle social formal.
5.o fantasma de nina rodrigues nos “tr atamentos”
destinados aos portadores de sofrimento psíquico submetidos ao sistema de justiça criminal
br asileiro
A conexão entre os saberes jurídico-penal e médico-psiquiátrico fortaleceu
os discursos e as técnicas de guerra de um sistema de justiça criminal voltado
para o controle e regulação social dos sujeitos indesejáveis, que numa estrutura
maniqueísta representam o mal social. No polo demonizado (cujo estereótipo já
é conhecido desde o século XIX) encontra-se também o indivíduo portador de
sofrimento psíquico, que por si só já representa “perigosidade social”. Isto porque,
esta dita “perigosidade” é entendida ameaçadora para a própria comunidade no
qual está inserido e para o próprio indivíduo.
O indivíduo portador de sofrimento psíquico que comete um injusto penal
é engolido (de forma voraz) pelo Sistema Penal. Este se apropria do problema
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(de forma narcísica como salvador da pátria22) manifestando a dupla função de
proteção já mencionada - e exerce toda sua força de “guerra” ao racionalizar a
vingança comunitária. Aqui a rotulação da “periculosidade” cumpre um duplo
papel: imantar a necessidade de tratamento via imposição de diagnóstico de doença
mental e também contemplar a necessidade de neutralização penal, via exclusão.
“A periculosidade torna-se o principal atributo do louco e paradoxalmente vai
produzir a necessidade de segregação por meio da defesa social e o aparecimento
das medidas de segurança no final do século XIX”. (MATTOS, 2006, p. 57)
O projeto científico então é claro e inegociável: realizar análise empírica
individual (microscópica) entre os indivíduos integrantes dos grupos que apresentam
características delituais, com o intuito de identificar (diagnóstico) a origem causal
patológica (etiologia), de forma a projetar tratamento (prognóstico) para anular ou
reprimir o impulso criminal do indivíduo (periculosidade). (CARVALHO, 2010,
P. 157)
A atuação do Estado continua sendo de controle social através do uso de
uma violência institucionalizada23, desenvolvida dentro do sistema penal24. As
medidas de internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico (antigo
manicômio judiciário) são vistas como forma de inocuização, segregação e
neutralização. Como função oculta, funciona como estufa para mudar pessoas;
cada uma é um experimento natural sobre o que se pode fazer ao eu (GOFFMAN,
2005, p. 22).
As instituições totais não têm interesse na preservação da relação do doente
com o meio externo. Pelo contrário, as relações familiares, culturais, interpessoais,
22 Sobre o assunto ver, Carvalho (2010).
23 Por violência institucionalizada entendemos a violência do Estado em sua forma mais concreta
– a violência da polícia e dos diversos sistemas de encarceramento e tutela de que se tornam
alvo alguns segmentos da população. É a violência exercida sobre o corpo e portanto sobre a
mente, que é também corpo, conforme Rauter (2001, p. 03).
24 Seguindo o entendimento de Zaffaroni e Pierangeli (2002. p.70), chamamos “sistema penal”
ao controle social punitivo institucionalizado, que na prática abarca a partir de quando se
detecta ou supõe detectar-se uma suspeita de delito até que se impõe e executa uma pena,
pressupondo uma atividade normativa que cria a lei que institucionaliza o procedimento, a
atuação dos funcionários e define os casos e condições para esta atuação. Esta é a ideia geral
de “sistema penal” em sentido limitado, englobando a atividade do legislador, do público, da
polícia, dos juízes, promotores e funcionários e da execução penal.
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educacionais - geralmente já fragilizadas antes da internação25 -, em virtude da
barreira e dos muros do “hospital”, acabam por desaparecer pelo processo de perda
gradual e mortificação da essência daquele ser segregado. A irreversibilidade dessa
morte traz consigo a destruição do ser enquanto indivíduo. “A desqualificação
como inferior, louco, criminoso ou pervertido consolida a exclusão e é a perigosidade
pessoal que a justifica” (SANTOS, B., 2006, p. 281).
As mulheres, os homossexuais, os loucos, os toxicodependentes foram
objeto de várias políticas todas elas vinculadas ao universalismo
antidiferencialista, neste caso sob a forma de normatividades
nacionais e abstratas quase sempre traduzidas em lei. (...) A gestão
controlada da exclusão tratou de diferenciar entre as diferenças,
entre as diferentes formas de exclusão, permitindo que algumas
delas passassem por formas de integração subordinada, e outras
fossem confirmadas no seu interdito. (grifo nosso)
Torna-se evidente que o Sistema de Justiça Criminal utiliza-se da Criminologia tradicional, com bases organicistas, para diagnosticar e encarcerar pura e
simplesmente, mas do que para tratar ou individualizar a pena.
No campo processual a inadequação torna-se clara: não se trata mais da
averiguação do crime cometido pelo indivíduo, mas sim da sua inocuização
imediata a partir do conhecimento da existência de um sofrimento psíquico
(anterior). O perito, ao realizar o exame psiquiátrico, pressupõe como culpado
um sujeito pela prática de um fato delituoso do qual a materialidade e a
imputabilidade não foram ainda juridicamente comprovadas (SOUTO, 2007,
p. 579). Os peritos - “operadores secundários” – acabam formulando sobre o
crime e o criminoso um discurso biopsicopatológico para justificarem a punição.
Tem-se um direito penal do autor em pleno funcionamento, com as estruturas
do final do século XIX cada vez mais (re)legitimadas e fortalecidas. Na perspectiva
de Nina Rodrigues, a partir da miscigenação era possível detectar a degeneração,
prever a loucura, entender as causas da criminalidade e estabelecer formas de
controle (e punição) eficazes. E o que de fato mudou após 100 anos?
25 Nas palavras de Goffman (2005, p. 24): “As instituições criam e mantêm um tipo específico
de tensão entre o mundo doméstico e o mundo institucional, e usam essa tensão persistente
como uma força estratégica no controle dos homens.”
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Nada. Pelo contrário, o retrocesso predominou tendo em vista a vigência de
um Estado Democrático de Direito, onde nunca se falou tanto em proteção de
direitos e garantias fundamentais e ao mesmo tempo nunca se exaltou tanto a
tortura e as violações, sob a justificativa de proteção da coletividade.
Parece que a única conexão determinista feita por Nina Rodrigues, até então
exposta neste trabalho, que foi abandonada (ao menos temporariamente) foi
a estabelecida entre a miscigenação racial e a degeneração/doença mental. Ou
seja, não seria mais possível detectar a degeneração e prever a loucura a partir da
miscigenação26. No entanto, várias análises e aproximações feitas pelo médico
maranhense insistem permanecer vivas e legítimas nas engrenagens penais.
A ideia de doença mental/anormalidade, social-política-psiquiatricamente
construída e difundida, associada ao sistema de justiça criminal (quando do
cometimento de um injusto) tem a capacidade de difundir uma perigosidade,
que é avaliada pelos saberes psi, saberes estes que acreditam (equivocadamente)
ter condições de prever comportamentos futuros de alguém.
Acrescenta Santos, J. (2005, p. 193) que o problema está na falta de credibilidade do prognóstico de periculosidade criminal:
se a medida de segurança pressupõe prognose de comportamento
criminoso futuro, então inconfiáveis prognósticos psiquiátricos
produzem conseqüências destruidoras, porque podem determinar
internações perpétuas - em condições ainda piores do que as de
execução penal. Na verdade, parece comprovada a tendência de
supervalorização da periculosidade criminal no exame psiquiátrico,
com inevitável prognose negativa do inimputável - assim como,
por outro lado, parece óbvia a confiança ingênua dos operadores
jurídicos na capacidade do psiquiatra de prever comportamentos
futuros de pessoas consideradas inimputáveis, ou de determinar e
quantificar a periculosidade de seres humanos.
Na “ideologia da insanidade moderna” – expressa através dos jargões científicos dos diagnósticos, prognósticos e tratamentos psiquiátricos – incorporada aos
26 Porém, vale ressaltar, que a questão racial esteve e ainda está permanentemente vinculada às
questões criminais como fator criminógeno.
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Sistemas de Controle Formal e Informal, “a ideologia é médica, a tecnologia é
clínica e o perito é psiquiatra” (SZASZ, 1977, p. 13).
Parece claro que as penas detentivas desproporcionais e indeterminadas (medidas de segurança) dos textos que acompanham o código italiano de 1930 (códigos
uruguaio e brasileiro) estão destinadas à eliminação de inimigos (criminosos
graves, por um lado, e indesejáveis, por outro). Para o autor, por mais que se
relativize a ideia, quando se faz a distinção entre cidadãos (pessoas) e inimigos
(não pessoas), está-se referindo a seres humanos que são privados de certos direitos
fundamentais em razão de não serem mais considerados pessoas. Esta distinção não
é uma invenção gratuita de Jakobs nem de nenhum outro doutrinador moderno,
mas sim uma consequência necessária da admissão das medidas de segurança e
outras medidas excludentes (ZAFFARONI, 2007, p. 98 - 162).
A abertura e a visibilidade das relações que se estabelecem nas instituições totais realizadas pela criminologia crítica (cárcere) e pela antipsiquiatria (manicômios)
possibilitam perceber as formas físicas e simbólicas de violência exercidas nos
espaços institucionais de controle social. No primeiro aspecto (violências físicas),
a forma asilar de tratamento revela-se absolutamente ofensiva aos direitos
humanos fundamentais mínimos (seja pela estrutura física dos manicômios ou
pelas práticas terapêuticas). No segundo aspecto (simbólico), o efeito estigmatizador da internação manicomial revela a impossibilidade do tratamento, ou seja,
demonstra ser a prática isolacionista antagônica à própria ideia de recuperação e
de reinserção do paciente na comunidade (CARVALHO, 2010, p. 168).
O injusto continua sendo um problema jurídico sim, por isso a manutenção
do indivíduo sob a custódia do Estado Penal, mas a justificativa técnica do perito
que traz consigo a carga da dita cientificidade, é fundamental para consubstanciar
a manutenção da medida. O modelo declarado das Medidas de Segurança
detentivas (como ressocialização e tratamento) no Brasil não reflete em nada
suas funções ocultas. Tendo em vista que foram inicialmente pensadas como
complemento de pena (ainda no sistema do duplo binário), com a reforma do
Código Penal em 1984 o que houve foi o desmembramento de penas e medidas,
tornando estas como sanções independentes, mas em sua gênese os fundamentos
(ocultos) continuaram exatamente os mesmos (ou até piores) dos da pena privativa
de liberdade.
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i encontro de internacionalização do conpedi
O que se tem - e pelo visto vai permanecer por muitos anos considerando
que o sistema funciona muito bem na sua pseudoprecariedade – é um fascismo
psiquiátrico que o Direito Penal se apropriou por total conveniência. Saberes
médicos que justificam “cientificamente” a permanência dos portadores de
sofrimento psíquico em hospitais de custódia e tratamento ou em estabelecimentos
com condições análogas cumprem o papel que foi designado pelo Estado.
O movimento antimanicomial (legalmente estabelecido pela lei 10.216/01)
não conseguiu movimentar as estruturas seculares do sistema penal psiquiatrizado. Isso porque se tem um indivíduo portador de sofrimento psíquico, que
simbolicamente utiliza o sistema de saúde pública, mas que originariamente
pertence ao Estado Penal. Isso é o bastante e define as bases de resistência ao
movimento libertador e desinstitucionalizador proposto pela Reforma Psiquiátrica.
Nina(s) Rodrigue(s) vivem e permanecem em todas as esferas e instituições
gritando bem alto que as justificativas médicas, biológicas e psiquiátricas são
capazes de neutralizar quase que eternamente um indivíduo.
6. inquietações finais
A recepção da Escola Positiva italiana juntamente com os estudos sobre raça
desenvolvidos de forma particular e diferenciada no Brasil foram fundamentais
para a formação do pensamento jurídico-penal no país.
Tratando da aproximação entre os saberes médicos e jurídicos, destacou-se
o maranhense Raimundo Nina Rodrigues que se debruçou sobre os estudos da
raça negra e degenerescência como análise social e criminológica. A antropologia
criminal de Nina contribuiu para legitimar problemas sociais como questões
biológicas e orgânicas, decorrentes de um subdesenvolvimento das raças humanas.
Dessa forma, legitimava-se o tratamento desigual dos desiguais. Seria inadmissível
a manutenção da falsa igualdade jurídica em detrimento dos avanços da ciência
que veementemente demonstrava a desigualdade entre as raças.
A cientificidade médica parece realmente ter vencido a batalha. Bem fortalecida na esfera penal, é ela considerada capaz de justificar a permanência de
indivíduos portadores de sofrimento psíquico internados no Sistema de Justiça
Criminal. Os saberes psi, numa construção e (re)legitimação sofisticada, mantêm
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i encontro de internacionalização do conpedi
no senso comum várias concepções fortes e problemáticas: 1) conceito de
doença mental; 2) conceito de perigosidade; 3) noção de criminoso-doente;
4) necessidade de medidas detentivas na maioria dos casos de portadores de
sofrimentos psíquicos envolvidos em questões penais. A máquina estatal-penal,
com a sua rota punitiva e seu potencial genocida de criminalização utiliza esses
argumentos que caem como uma luva para justificarem todas as suas práticas de
controle e extermínios velados.
Os estudos e argumentos novecentistas estão cada dia mais vivos e dinâmicos.
As justificativas punitivas avançaram e os retrocessos nas práticas democráticas e
vitais de cidadania foram desastrosos.
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i encontro de internacionalização do conpedi
controle epistêmico sobre a
interceptação das comunicações
telefônicas e de dados: uma subversão
dos papeis dos atores do sistema penal
Antonio Eduardo Ramires Santoro1
Resumo
O avanço tecnológico introduziu no processo penal novas formas de obtenção
de informações, a interceptação das comunicações telefônicas é uma delas.
Sua execução carece de adequada regulamentação que permita à defesa, alijada
de sua produção, elementos para rastrear a fonte de prova. A Lei no 9.296/96
trouxe novos atores para esse subsistema probatório, absolutamente inexistentes
no sistema penal tradicional, que interferem diretamente na cadeia de custodia
das provas obtidas. Com objetivo de verificar a possibilidade de exercer um
controle epistêmico sobre a prova, analisamos a Resolução no 59/2008 do
Conselho Nacional de Justiça que pretende disciplinar e uniformizar as rotinas do
procedimento de interceptação, bem como analisamos os sistemas de Tecnologia
da Informação utilizados pelos órgãos públicos de persecução para receber e
armazenar os dados obtidos das interceptações.
1 Professor Adjunto de Direito Processual Penal e Prática Penal da Faculdade Nacional de
Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro - FND/UFRJ. Professor Adjunto do
Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado) da Universidade Católica de Petrópolis UCP. Professor Adjunto do IBMEC. Professor da Escola de Magistratura do Rio de Janeiro.
Membro da Banca de Orientação de projeto de dissertação e tese de mestrado, doutorado
e pós-doutorado do Instituto de Educação Superior Latinoamericano. Pós-Doutor em
Direito Penal e Garantias Constitucionais pela Universidad Nacional de La Matanza Argentina. Doutor e Mestre em Filosofia pela UFRJ. Mestre em Direito Penal Internacional
pela Universidad de Granada - Espanha. Especialista em Direito Penal Econômico pela
Universidade de Coimbra - Portugal. Especialista em Direito da Economia pela Fundação
Getúlio Vargas. Graduado em Direito pela UERJ. Licenciando em História pela UNIRIO.
Membro da Associação Internacional de Direito Penal. Membro do Instituto Brasileiro de
Ciências Criminais. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal. Membro da
Sociedade Internacional de Criminologia. Membro da Sociedade Americana de Criminologia.
Membro do Instituto de Direito Comparado Luso-brasileiro. Membro do Conselho Nacional
de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito. Advogado criminalista. Tem experiência na área de
Direito, com ênfase em Direito Penal e Processo Penal.
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i encontro de internacionalização do conpedi
Palavras-chave
Interceptação das comunicações; Controle epistêmico; Cadeia de custodia.
Astratto
I progressi tecnologici introdotti nel processo penale nuovi modi di ottenere
informazioni, l’intercettazione delle comunicazioni telefoniche è uno di loro.
L’intercettazione delle comunicazioni non ha un regolamento appropriato.
Così, la difesa, che non partecipa, non può rintracciare la fonte di prova. La
Legge 9.296/96 ha portato nuovi attori per questo sottosistema probatorio,
assolutamente inesistente nel sistema di giustizia penale tradizionale, che
interferiscono direttamente nella catena di custodia delle prove acquisite.
Per verificare la possibilità di esercitare il controllo epistemico su una prova,
analizziamo la risoluzione n 59/2008 del Consiglio Nazionale di Giustizia,
che intende unificare la disciplina e le routine di procedura de l’intercettazione
e analizzare i sistemi del TI utilizzati per ricevere e archiviare i date ottenuti
dall’intercettazione.
Parole chiave
Intercettazione delle comunicazioni; Controllo epistemico; Catena di custodia.
1.introdução: o processo como modelo epistemológico de controle da obtenção de informações
por métodos ocultos
Nos últimos anos o processo penal vem sofrendo mudanças práticas nos
métodos de obtenção de informações, sobretudo com a introdução em ritmo
acelerado de novas tecnologias, que põem em xeque o respeito aos direitos
fundamentais.
Inobstante este trabalho tenha por referência o processo penal brasileiro, não
são poucos os autores estrangeiros que apontam essa tendência de utilização
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i encontro de internacionalização do conpedi
de métodos não tradicionais para formação do conhecimento sobre os fatos na
Espanha2, Alemanha3, Itália4, Portugal5, Argentina6, entre outros.
É bem verdade que há hoje mais aparelhos celulares que habitantes no Brasil e
os dados do Conselho Nacional de Justiça indicam que em média há autorização
judicial de monitoramento de mais de vinte mil linhas telefônicas por mês, o que
pode dar ideia da profusão da utilização da interceptação telefônica como método
de coleta de elementos cognitivos.
Não se pode olvidar que no sistema de valoração de provas forjado pela Lei no
11.690/2008, que alterou o Código de Processo Penal, esse meio de prova inverte
a lógica do sistema acusatório, entre outros, por dois motivos.
Em primeiro lugar, a despeito da regra geral segundo a qual o juiz não pode
fundamentar sua sentença exclusivamente nos elementos informativos colhidos
na investigação, há uma ressalva para a possibilidade de justificar uma eventual
condenação apenas nas provas cautelares, não repetíveis e antecipadas, dentre
as quais está a interceptação telefônica. Essa previsão malogra, na prática, o
direito fundamental ao contraditório, pois este, no sentido objetivo, implica
na possibilidade de que as partes participem na formação da prova, sendo que,
2 MUÑOZ CONDE, Francisco. De las prohibiciones probatorias al derecho procesal penal
del enemigo. Buenos Aires: Hammurabi, 2008. Ainda do mesmo autor: Valoración de las
grabaciones audiovisuales en el proceso penal. 2ª ed. Buenos Aires: Hammurabi, 2007. ABEL
LLUCH, Xavier e RICHARD GONZÁLEZ, Manuel. Estudios sobre prueba penal volumen
III: Actos de investigación y medios de prueba en el proceso penal: diligencias de instrucción,
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recurso. Madri: La Ley Actualidad, 2013. BACIGALUPO, Enrique. El debido proceso penal.
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3 ROXIN, Claus. La prohibición de autoincriminación y de las escuchas domiciliarias. Buenos
Aires: Hammurabi, 2008. Mais especificamente sobre as investigações genéticas como meio
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4 CONTI, Carlotta e TONINI, Paolo. Il diritto delle prove penali. Milão: Giuffrè, 2012.
5 COSTA ANDRADE, Manuel da. Sobre as Proibições de prova em processo penal. Coimbra:
Coimbra, 2006; AGUILAR, Francisco. Dos Conhecimentos Fortuitos Obtidos Através de
Escutas Telefónicas. Coimbra: Almedina, 2004. VALENTE, Manuel Monteiro Guedes.
Escutas Telefónicas: da excepcionalidade à vulgaridade. 2a ed. Coimbra: Almedina, 2008.
6 HENDLER, Edmundo S. Las garantías penales y procesales: enfoque histórico-comparado.
Buenos Aires: Editores del Puerto, 2004. PASTOR, Daniel (Diretor) e GUZMÁN, Nicolás
(coordenador). Neopunitivismo y neoinquisición: un análisis de políticas e prácticas penales
violatorias de los derechos fundamentales del imputado. Buenos Aires: Ad Hoc, 2008.
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segundo Paolo Tonini, “a verdadeira prova não é aquela que se obtém sob sigilo,
por meio de pressões unilaterais, mas aquela cuja formação ocorre de modo
dialético”7, dialética ausente na interceptação telefônica.
Em segundo lugar, as regras de determinação da competência no Brasil
implicam em que o juiz que tenha deferido o pedido de interceptação telefônica
ou determinado sua realização de ofício (o que é estarrecedoramente possível de
acordo com o art. 3o da Lei no 9.296/96) será competente para a ação principal.
Aliás, a rigor, o que o art. 1o da Lei no 9.296/96 diz é precisamente que o juiz
competente para a ação principal será competente para deferir ou determinar
a medida de interceptação telefônica. Isso, para falar o mínimo, coloca a
imparcialidade do juiz em situação constrangedora. André Machado Maya faz
um bom apanhado sobre a jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos
Humanos e da Corte Constitucional da Espanha sobre a utilização da prevenção
como regra de exclusão da competência em razão da violação do princípio da
imparcialidade8, o que, lamentavelmente, não é acolhido pelos tribunais brasileiros. Essa regra brasileira da prevenção como determinadora da competência
implica na exposição do juiz aos elementos cognitivos que possibilitam a formação
da convicção e antecipam na consciência do julgador a decisão a ser tomada, de
tal sorte que novos conjuntos de elementos cognitivos acabam por se submeter a
procedimentos psicológicos de afastamento ou redução da dissonância cognitiva
com a prevalência dos elementos conhecidos previamente9.
Portanto, diante da profusão de medidas cautelares probatórias que afetam
diretamente direitos fundamentais do cidadão, pois impedem o exercício
completo do direito ao contraditório e, em razão de regras de determinação
da competência, comprometem a imparcialidade pela submissão do juiz ao
7 TONINI, Paolo. A prova no processo penal italiano. Tradução Alexandra Martins e Daniela
Mróz. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 27.
8 MAYA, André Machado. A prevenção como regra de exclusão da competência no processo penal:
uma (re)leitura necessária a partir da jurisprudência do tribunal europeu de direitos humanos e da
corte constitucional da Espanha. Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional
do CONPEDI, realizado em Brasília – DF, nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008.
9 Nesse sentido vale a leitura de FESTINGER, Leon. Teoria da dissonância cognitiva. Tradução
Eduardo Almeida. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1975. Sobre a influência que os elementos
cognitivos da investigação exercem sobre a formação da convicção judicial SCHÜNEMANN,
Bernd. O juiz como um terceiro manipulado no processo penal? Uma confirmação empírica dos
efeitos perseverança e aliança in Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do
direito. Tradução Luís Greco. São Paulo: Marcial Pons, 2013.
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conhecimento de elementos cognitivos prévios e unilaterais, faz-se necessário
questionar até que ponto as decisões penais nessas circunstâncias são legítimas.
Para Luigi Ferrajoli, tanto do ponto de vista epistemológico, como político,
como jurídico, o que se exige é “que a legitimidade das decisões penais se
condicione à verdade empírica de suas motivações”10.
O processo, segundo Michele Taruffo, sob uma perspectiva metodológica,
pode ser analisado pela sua dimensão epistêmica “como um ‘modelo epistemológico’ do conhecimento dos fatos com base nas provas”11. E ressalta:
Em todo e qualquer procedimento de caráter epistêmico tem
importância decisiva o método, ou seja, o conjunto das modalidades com que são selecionadas, controladas e utilizadas
as informações que servem para demonstrar a veracidade das
conclusões. No âmbito do processo isso equivale a fazer referência
sobretudo às regras que disciplinam a produção das provas e sua
utilização, ou seja, ao “direito das provas” e à equivalente noção
anglo-americana da law of evidence.12
Portanto, resta claro que o processo penal se legitima pela busca do
conhecimento da verdade com base nas provas. Certo de que os fatos estão
no passado, as provas nada mais são do que signos transmitidos, são materiais
semióticos que representam a única via de acesso ao conhecimento13 e que, como
em todo procedimento de caráter epistêmico, devem ser obtidas com estrita
observância do método de produção e utilização.
Ignorar a dimensão epistêmica do processo pode gerar distorções insanáveis
como reduzir um meio de prova a outro cujas condições típicas de obtenção são
menos exigentes. Vejamos:
A prova pericial, após os exames (do perito oficial e dos assistentes técnicos),
resulta em um laudo pericial e, possivelmente, em pareceres técnicos. Tomar o
10 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal 4a ed. Tradutores Ana Paula
Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2014, p. 70.
11 TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. Tradução Vitor de
Paula Ramos. São Paulo: Marcial Pons, 2012, p. 160.
12 Ibid, p. 164.
13 ANDRÉS IBÁÑEZ, Perfecto. Prueba y convicción judicial en el proceso penal. Buenos Aires:
Hammurabi, 2009, p 49.
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laudo pericial e os pareceres técnicos como prova documental, apenas porque se
apresentam em forma de documento é um grave erro.
A prova testemunhal resulta em uma declaração em folha de papel assinada
ou em um fonograma gravado em mídia. Tomar o papel do depoimento assinado
ou o fonograma como prova documental é, igualmente, um erro.
A prova de quebra de sigilo bancário e fiscal resulta em uma determinada
quantidade de papéis impressos com as informações obtidas dos bancos ou da
Receita Federal. Tomar esses papéis como prova documental é um erro.
A busca e apreensão pode resultar na arrecadação de documentos guardados no
domicílio devassado. Tomar os documentos apreendidos como prova documental é, claramente, um erro.
A interceptação telefônica resulta em páginas de papéis contendo transcrições
das conversas gravadas ou em fonogramas gravados em mídia digital. Tomar esses
papéis ou os fonogramas como prova documental é um erro.
O que caracteriza o meio de prova é seu procedimento, não seu resultado.
O rito probatório caracterizador do meio de prova vai desde o requerimento de
produção, passando pela sua admissão e produção, até sua valoração. O completo
ritual de obtenção da prova confere natureza a ela.
É precisamente o caminho pelo qual a prova deve seguir, com suas regras
específicas, legitimadas pela submissão ao contraditório e à ampla defesa, que
precisam ser observados idiossincraticamente, sob pena de, transformando o
resultado de qualquer meio de prova em prova documental, bastar submetê-los a
um contraditório diferido, em que a outra parte deve apenas sobre ele falar.
A elaborada ritualística da prova não está na lei processual para satisfazer
caprichos ou tornar o processo um complexo emaranhado de atos enfadonhos.
Cada regra de produção probatória cumpre sua função de garantia e deve ser
respeitada.
Há meios de prova, de outro lado, que são obtidos por métodos ocultos, vez
que a surpresa é parte condicionante do sucesso da empreitada. Todavia, na maior
parte destes casos, em especial a interceptação das comunicações telefônicas e as
escutas ambientais, carecem de uma regulamentação metodológica de obtenção.
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Essa omissão legislativa pode implicar na adoção de uma alternativa epistemológica autoritária pela aplicação de um subjetivismo inquisitivo14, a menos
que se definam mecanismos de estabelecimento prévio das “regras do jogo”, às
quais todos os atores do sistema penal, inclusive o juiz, devam se submeter.
Como muito bem observou Geraldo Prado, quando a legislação silencia sobre
o procedimento probatório, a exigência de motivação da “decisão que defere o
emprego de métodos ocultos de investigação importa”15 não apenas na indicação
dos elementos que convencem acerca da sua adequação, mas “ainda, na definição
dos meios de sua execução e fiscalização”16.
Essa foi a técnica utilizada pelo legislador pátrio no que concerne ao
procedimento para execução da diligência. Basta ver que a Lei no 9.296/96, que
regulamentou o art. 5°, XII CRFB/88, para tratar dos casos de autorização da
interceptação telefônica e telemática como meio de prova no processo penal
brasileiro dispôs no art. 5o que cabe ao juiz, na decisão que defere ou determina a
medida, definir “a forma de execução da diligência”.
De se observar que é a autoridade policial quem deve conduzir os procedimentos de interceptação, cientificando o ministério público, que poderá acompanhar
a sua realização, segundo o art. 6o da referida Lei.
Assim, inobstante não se possa deixar de relembrar o atropelo dos princípios
do contraditório e da imparcialidade da jurisdição, estão definidas as posições
(porém não totalmente as tarefas de cada um) dos atores tradicionais do sistema
penal, com o devido alijamento da defesa.
A novidade é que a Lei no 9.296/96 traz à cena dois novos atores para este
subsistema probatório: (1) as concessionárias de serviço público de telefonia e
provedores de acesso e (2) o sistema de tecnologia da informação (TI) que trata
os dados colhidos dos monitoramentos das comunicações (e seus operadores
privados). Isso ocorre, respectivamente, no artigo 7o e no parágrafo 1o do art. 6o,
ambos da Lei no 9.296/96.
14 FERRAJOLI, op. cit., p. 46/47.
15 PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia
das provas obtidas por métodos ocultos. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 78.
16Ibid.
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O art. 7o afirma que a autoridade policial (não é a autoridade judicial, nem
o ministério público) poderá requisitar serviços e técnicos especializados às
concessionárias de serviço público.
O parágrafo 1o do art. 6o apenas afirma que “no caso de a diligência possibilitar
a gravação da comunicação interceptada, será determinada sua transcrição”.
Muito embora este dispositivo nada fale sobre sistemas de TI, quando faz menção
à possibilidade de gravação, torna esse procedimento obrigatório sempre que tiver
sido possível. Acontece que em 1996, quando a Lei entrou em vigor, poderia não
ser possível em todos caso, mas hoje, com o avanço tecnológico, isso é sempre
possível e entra em cena o sistema de TI utilizado para realizar a tarefa como parte da engrenagem probatória no processo penal.
Todavia, essas parcas menções legais às concessionárias de serviço público de
telefonia e ao sistema de tecnologia da informação que trata os dados colhidos
dos monitoramentos das comunicações, não são suficientes para descrever
com precisão o papel que devam desempenhar. Falta regulamentar de maneira
uniforme os procedimentos de execução dessas medidas invasivas, incluindo
a atividade de cada um dos atores do sistema penal e dos novos atores desse
subsistema probatório.
Isso fez com que o Conselho Nacional de Justiça, criado pela Emenda
Constitucional no 45/2004 para controlar a atuação administrativa e financeira
do Poder judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, entre
outras, tais como, elaborar relatório semestral estatístico sobre processos e
sentenças prolatadas, criasse o Sistema Nacional de Controle de Interceptações
Telefônicas e editasse a Resolução no 59, de 09 de setembro de 200817, com o
objetivo de disciplinar e uniformizar as rotinas visando ao aperfeiçoamento do
procedimento de interceptação telefônica nos órgãos jurisdicionais do Poder
Judiciário.
Essa providência, tomada por um órgão que não tem atribuições legislativas,
desvela o vácuo deixado no ordenamento pelas normas que disciplinam a
interceptação telefônica.
17 Disponível em http://www.cnj.jus.br/images/stories/docs_cnj/resolucao/rescnj_59consolidada.
pdf. Acesso em 16 de junho de 2014.
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i encontro de internacionalização do conpedi
Ora, não se pode esquecer que o sistema penal é capaz de destruir relações
sociais, vilipendiar reputações, devassar a intimidade e eliminar a privacidade,
mesmo que o cidadão a ele submetido não seja condenado, o que importa em
reconhecer a capacidade sancionatória que o processo penal por si só representa.
A principal contribuição para esse quadro se encontra no âmbito das medidas
cautelares, sejam as de natureza pessoal como as prisões provisórias, sejam as de
natureza real como os sequestros de bens, sejam as de natureza probatória como a
busca e apreensão e a interceptação das comunicações.
Tais medidas, uma vez executadas, expõem a pessoa sujeita a qualquer delas à
execração pública e, não apenas, mas também por isso, devem ser regulamentadas
com o maior rigor de detalhes possível, atribuindo a cada ator do sistema penal o
seu preciso papel e coibindo arbitrariedades.
Aduza-se a isso a necessidade de dar ao menos parcial cumprimento ao
contraditório. É bem verdade, como se viu anteriormente, que o contraditório
no sentido objetivo, entendido como a possibilidade de que as partes participem
na formação da prova, está definitivamente alijado do subsistema probatório de
interceptação das comunicações, como método oculto de obtenção de prova que
é. Entretanto, deve se respeitar o contraditório sob o ponto de vista subjetivo,
entendido como o direito ao confronto com a acusação.
Ora, confrontar-se com a acusação não pode ser reduzido à mera possibilidade
de “falar sobre” algo que “já é”, mas que não contribuiu para existir, tampouco
pôde rastrear os pressupostos de validade de sua existência.
A preservação de cada uma das etapas da operação que realizou a interceptação das comunicações de um cidadão é a única maneira de assegurar a
integridade do procedimento probatório, ou seja, deve ser preservada a cadeia de
custodia para permitir à defesa rastrear as fontes de prova e exercer, ao menos, o
aspecto subjetivo do direito ao contraditório.
Essa preservação das evidências das medidas de interceptação das comunicações não pode estar restrita à apresentação da mídia em que se encontram
gravados os arquivos de áudio, mas deve incluir a preservação do próprio sistema
de TI, bem como dos registros de atividades de todos os atores do sistema penal,
tradicionais (como polícia e ministério público), mas também os novos (como
as concessionárias de serviço público de telefonia e os operadores do sistema de
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i encontro de internacionalização do conpedi
tecnologia da informação que trata os dados colhidos dos monitoramentos das
comunicações).
Geraldo Prado já havia assinalado essa necessidade ao afirmar que “os suportes
técnicos que resultam da operação, portanto, devem ser preservados. A razão
adicional, de natureza constitucional, está vinculada ao fato de que apenas dessa
maneira é possível assegurar à defesa, oportunamente, o conhecimento das fontes
de prova.”18
Porém, como já foi dito, a legislação não descreve o procedimento utilizado
na execução da diligência, sendo deixado ao magistrado a tarefa de delinear como
isso deve ocorrer. O que existe de mais próximo a uma norma sobre o assunto é a
Resolução no 59/2008 do Conselho Nacional de Justiça. De outro lado, à falta de
procedimentos técnicos legais para execução da interceptação das comunicações,
o que mais se aproxima de um padrão uniforme para monitoramento são os
manuais produzidos pelas empresas desenvolvedores dos sistemas de TI utilizados
pela autoridade policial para execução da diligência.
Assim, cumpre analisar se são válidos os instrumentos anteriormente
aludidos. Afinal a Resolução no 59/2008 do Conselho Nacional de Justiça se
presta à disciplinar e uniformizar as rotinas do procedimento de interceptação
telefônica? Essa Resolução conflita com o ordenamento legal ou apenas cria regras
de funcionamento administrativo do Poder Judiciário e rotina de seus membros?
Os manuais dos sistemas de TI que captam e armazenam os dados colhidos dos
monitoramentos das comunicações estão em conflito com o ordenamento legal?
Esses manuais revelam que o sistema de TI funciona de acordo com a Constituição e a legislação federal sobre o assunto?
2.a resolução no 59/2008 do conselho nacional de
justiça
A Resolução no 59 de 2008 do CNJ, já com as alterações introduzidas pela
Resolução no 84 de 2009, também do CNJ, tem por finalidade disciplinar
e uniformizar as rotinas visando o aperfeiçoamento do procedimento de
interceptação telefônica e de sistemas de informática e telemática nos órgãos
jurisdicionais do Poder Judiciário.
18 PRADO, op. cit., p. 79.
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i encontro de internacionalização do conpedi
De fato, a Seção I destina-se a regulamentar a distribuição e o encaminhamento dos pedidos de interceptação, ao passo que a Seção II cria uma rotina
para recebimento de envelopes lacrados pela serventia judiciária, criando
procedimentos que permitam uniformizar o processamento dos pedidos de
interceptação telefônica.
Ocorre que a Seção III determina qual deve ser o conteúdo da decisão judicial que
defere a medida cautelar de interceptação, o que ultrapassa as funções e finalidades
atribuídas constitucionalmente ao CNJ e invade esferas de regulamentação de
natureza eminentemente processual, matéria que deve ser regulada por lei de
competência privativa da União, na forma do art. 22, I, da Constituição.
Vale ressaltar que o art. 10 da Resolução no 59/2008 impõe que o magistrado
deverá fazer constar expressamente de sua decisão que será sempre escrita e
fundamentada: a indicação da autoridade requerente; os números dos telefones
ou o nome de usuário, e-mail ou outro identificador no caso de interceptação de
dados; o prazo a interceptação; a indicação dos titulares dos referidos números;
a expressa vedação de interceptação de outros números não discriminados na
decisão; os nomes das autoridades policiais responsáveis pela investigação e que
terão acesso às informações; e os nomes dos funcionários do cartório ou secretaria
responsáveis pela tramitação da medida e expedição dos respectivos ofícios,
podendo reportar-se à portaria do juízo que discipline a rotina cartorária.
A Seção IV trata, em seu único art. 11, da expedição de ofícios às operadoras,
determinando que esses ofícios devem ser gerados pelo sistema informatizado
do respectivo órgão jurisdicional ou por meio de modelos padronizados a serem
definidos pelas respectivas Corregedorias locais e devem fazer constar: o número
do ofício sigiloso; o número do protocolo; a data de distribuição; o tipo de ação;
o número do inquérito ou processo; o órgão postulante da medida (Delegacia
de origem ou Ministério Público); o número dos telefones que tiveram a
interceptação ou quebra de dados deferida; a expressa vedação de interceptação
de outros números não discriminados na decisão; a advertência de que o ofícioresposta deverá indicar o número do protocolo do processo ou do Plantão
Judiciário, sob pena de recusa de seu recebimento pelo cartório ou secretaria
judicial; e a advertência da regra contida no art. 10 da Lei no 9.296/96, segundo
o qual constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de
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informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial
ou com objetivos não autorizados em lei.
Deve ser registrado não consta do art. 11 que o ofício deva mencionar o prazo
de interceptação determinado pelo juiz.
Interessante que, conquanto o CNJ não tenha nenhuma atribuição
para regulamentar atos a serem praticados por quem não está vinculado
funcionalmente ao poder Judiciário, a Seção V dispõe sobre as obrigações das
operadoras de telefonia, em seu art. 12, o que, por via obtusa, seja uma espécie de
reconhecimento da atribuição às mesmas de importante papel no sistema penal.
De acordo com este artigo as operadoras deverão, após receber o ofício da
autoridade judicial, “confirmar com o juízo os números cuja efetivação fora
deferida e a data em que foi efetivada a interceptação, para fins do controle
judicial do prazo” (grifo nosso).
Não se pode deixar de ressaltar que o ofício que deve ser expedido à operadora
não contém o prazo de execução da medida, bem como não está entre as obrigações
da operadora de telefonia controlar o prazo de execução da medida. Ao contrário,
de acordo com a parte final do caput do art. 12 da referida Resolução, destacada no
parágrafo anterior, o controle do prazo é judicial, portanto não cabe à operadora
de telefonia, nem à autoridade policial, nem ao ministério público, mas ao juiz.
Ainda segundo os parágrafos do art. 12, as operadoras de telefonia deverão
enviar ofício semestralmente à Corregedoria Nacional de Justiça indicando os
nomes das pessoas, com a indicação dos respectivos registros funcionais, que
por força de suas atribuições, têm conhecimento de medidas de interceptação
telefônica deferidas, bem como os nomes dos responsáveis pela operacionalização
das medidas, comunicando, ainda, qualquer alteração no quadro de pessoal,
arquivando-se o ofício na própria Corregedoria.
Na Seção VI, em seu art. 13, a Resolução regula a atuação do plantão, devendo ser ressaltado que o pedido de prorrogação de prazo de medida cautelar
de interceptação de comunicação telefônica, telemática ou de informática não
será admitido durante o plantão, a não ser na hipótese de risco iminente e grave
à integridade ou à vida de terceiros. É difícil imaginar como uma medida de
interceptação da qual o interceptado não tem conhecimento possa impedir que
se cause dano à alguém que se encontre em iminente e grave risco, mas é o que
diz o dispositivo.
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i encontro de internacionalização do conpedi
A Seção VII prevê, em seu art. 14, que os pedidos de prorrogação de prazo
pela autoridade competente deverão se fazer acompanhar dos áudios em CD ou
DVD com o inteiro teor das comunicações interceptadas (sempre que possível
encriptados), as transcrições das conversas relevantes à apreciação do pedido de
prorrogação e o relatório circunstanciado das investigações com seu resultado.
A Seção VIII regula, no art. 15, como se deve realizar o transporte dos autos
para fora das unidades do Poder Judiciário, definindo uma rotina a ser obedecida.
Deve ser ressaltado que esta Seção não cria uma rotina para recebimento,
movimentação e guarda das mídias de áudio ou audiovisual, com o objetivo de
definir um procedimento que garanta a segurança da cadeia de custodia dentro
dos órgãos e serventias do Poder Judiciário. A rotina definida no art. 15 destinase apenas a disciplinar o transporte dos autos para fora das unidades do Poder
Judiciário.
A mais próxima menção à tramitação dos documentos (se é que podemos
fazer uma interpretação extensiva e considerar as mídias em que estão gravados
os áudios e vídeos como documentos) é o que consta do art. 16 (Seção IX) da
Resolução, que determina às unidades do Poder Judiciário que tomem as medidas necessárias para o recebimento, a movimentação e a guarda de feitos e
documentos atenda às cautelas de segurança previstas na própria Resolução, sem
contudo, como já dito, definir as rotinas de movimentação e guarda das mídias.
No mais, a Resolução afirma a responsabilidade, “nos termos da legislação
pertinente”, dos servidores que fornecerem informações de elementos sigilosos
contidos em processos ou inquéritos regulados pela Resolução (art. 17) e atribui
aos juízes a obrigação de informar mensalmente à Corregedoria Nacional de
Justiça, por via eletrônica, a quantidade de interceptações em andamento (art. 18).
Não há, nessa Resolução, qualquer regulamentação de procedimento que
determine como deva ser a cadeia de custódia das mídias ou do próprio sistema de
tecnologia da informação (TI) que trata os dados colhidos dos monitoramentos
das comunicações que garanta às partes o direito de conhecer às fontes de prova.
Isso implica em que é ao juiz, na bojo da decisão que defere a medida cautelar
de interceptação das comunicações, que cabe a definição dos meios de execução
e fiscalização das mesmas.
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i encontro de internacionalização do conpedi
Resta saber de que forma funcionam os sistemas de tecnologia da informação
(TI) que tratam os dados colhidos dos monitoramentos das comunicações para
verificar sua compatibilidade com a Constituição e a lei, bem como a possibilidade
de que estes sistemas garantam uma cadeia de custodia confiável.
3.sistemas de tecnologia da informação (ti) que
captam e armazenam os dados colhidos dos monitor amentos das comunicações
3.1.identificação dos sistemas de recepção e armazenamento de dados
Pelo que se tem notícia, há no Brasil basicamente três sistemas de TI utilizados
para recepção e armazenamento dos dados objetos de monitoramento: o Sistema
Guardião desenvolvido e comercializado pela empresa Dígitro Tecnologia Ltda.,
o Sistema Sombra desenvolvido e comercializado pela empresa Federal Tecnologia de Software Ltda.-EPP e o Sistema Wytron desenvolvido e comercializado
pela empresa Wytron Technology Corp. Ltda.
Dados colhidos do Processo no 0.00.000.001328/2012-95, que tramitou
junto ao Conselho Nacional do Ministério Público e se tratava de um Pedido
de Providência formulado pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados
do Brasil, consistente no requerimento de auditoria e inspeção nos sistemas de
escuta e monitoramento de interceptações telefônicas utilizados pelas unidades
do ministério público brasileiro19, mostram que, a partir das consultas feitas às 30
unidades do ministério público brasileiro, 8 (oito) adquiriram o Sistema Guardião
(o ministério público federal e o ministério público dos estados de Goiás, Mato
Grosso, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, São Paulo, Santa Catarina e
o Distrito Federal); 6 (seis) adquiriram o Sistema Wytron (o ministério público
dos estados de Alagoas, Amapá, Ceará, Maranhão, Pará e Rondônia); 3 (três)
adquiriram o Sistema Sombra (o ministério público dos estados da Bahia, Mato
Grosso do Sul e Paraíba); 4 (quatro) utilizam o Sistema Guardião disponibilizado
ou cedido por órgãos do Poder Executivo (o ministério público dos estados do
Espírito Santo, Minas Gerais, Amazonas e Tocantins); 9 (nove) não possuem ou
19 Disponível em http://s.conjur.com.br/dl/relatorio-guardiao-mp-cnmp.pdf. Acesso em 16 de
junho de 2014.
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não têm acesso a qualquer um desses sistemas (o ministério público militar, o
ministério público do trabalho e o ministério público dos estados de Sergipe,
Pernambuco, Acre, Paraná, Piauí, Roraima e Rio de Janeiro).
Portanto, das 30 (trinta) unidades do ministério público, 21 (vinte e uma)
adquiriram ou utilizam sistemas de TI que se destinam a receber e armazenar
dados obtidos de interceptações telefônicas ou de dados. Destas 21 (vinte e
uma) unidades que operam sistemas de monitoramento de comunicações, 12
(doze) “não dispõem de ato normativo versando sobre procedimentos e rotinas
adotadas”20 e 18 (dezoito) recorrem a policiais civis e/ou militares na operação.
Quanto à aquisição desses sistemas pelos Departamentos de Polícia Federal
dos Estados não há dados tão precisos quanto esses constantes do processo que
tramitou no Conselho Nacional do Ministério Público, mas dados do Portal da
Transparência do governo federal demonstram que as empresas Dígitro Tecnologia
Ltda., Federal Tecnologia de Software Ltda.-EPP e Wytron Technology Corp.
Ltda. comercializaram com o Departamento de Polícia Federal, sendo, ademais,
amplamente divulgada a contratação do Sistema Guardião pelas Superintendências da Polícia Federal de Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro.
3.2.oper ação da interceptação
Quanto à operação desses Sistemas, a Dígitro e a Federal afirmam que seus
sistemas, Guardião e Sombra, respectivamente, não permitem a interceptação
telefônica sem a participação das operadoras de telefonia, portanto só realizam
monitoramento passivo, são as operadoras de telefonia que encaminham as
informações interceptadas ao Sistema de monitoramento.
Na prática, as operadoras “abrem um link” de tal forma que a chamada
telefônica ou o fluxo de dados seja desviado para um outro canal de recepção
diverso do destinatário e o direciona para o sistema de TI utilizados para recepção
e armazenamento dos dados objetos de monitoramento (Guardião, Sombra ou
Wytron, por exemplo).
20 Decisão proferida no processo 0.00.000.001328/2012-95, que tramitou junto ao Conselho
Nacional do Ministério Público. Disponível em http://s.conjur.com.br/dl/relatorio-guardiaomp-cnmp.pdf. Acesso em 16 de junho de 2014.
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Assim, se o interlocutor A (não interceptado) liga para o interlocutor B
(interceptado), esta ligação irá se completar, mas o fluxo se duplicará em dois
links, um para o interlocutor, outro para o sistema de TI responsável pelo
monitoramento.
Aqui está um primeiro, porém muito grave problema. É que diversamente do
que consta da legislação, quem verdadeiramente conduz a interceptação não é a
autoridade policial, como determina o art. 6o da lei no 9.296/96, mas a operadora
de telefonia. São precisamente as concessionárias de serviço público de telefonia
ou os provedores de acesso (no caso de desvio de dados) que controlam quem
será objeto de interceptação e qual a duração, pois, uma vez que os sistemas de
monitoramento são passivos, é a operadora que abre e fecha o link e, portanto,
determina o tempo de interceptação.
Diante das informações prestadas pelas empresas desenvolvedoras dos sistemas de TI responsáveis pelo monitoramento das comunicações, as operadoras
de telefonia e os provedores de acesso desempenham, na prática, um papel
proeminente na execução das medidas cautelares de interceptação. No entanto, o
sistema legal ignora esse novo ator desse subsistema probatório, não dispensando
sequer uma única regulamentação para sua atuação, muito menos discutindo a
adequação ou inadequação da sua posição protagonista na coleta de informações
dentro da investigação penal.
Ademais, as operadoras de telefonia também não fazem o desvio da chamada
para o canal de recepção do sistema de TI dedicado ao monitoramento das
comunicações sem o auxílio de uma ferramenta. Há um sistema chamado Vigia,
desenvolvido pela empresa Suntech que gerencia “todo o processo de interceptação
legal e retenção de dados para qualquer serviço ou subsistema de comunicação de
qualquer tecnologia ou vendedor”. De acordo com o desenvolvedor, “com o Vigia
é possível interceptar a comunicação em praticamente todos os tipos de rede e
reter dados de comunicação sem notificar os assinantes ou prejudicar o serviço”21.
Desta forma, o Sistema Vigia e os sistemas de TI dedicados ao monitoramento
das comunicações (Guardião, Sombra ou Wytron) não se sobrepõem, ao contrário,
são complementares. Na verdade o Sistema Vigia é o sistema ativo, ele é quem
21Disponível em http://www.suntech.com.br/pt/solucoes/lawful-interception/vigia/. Acesso
em 16 de junho de 2014.
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de fato realiza a interceptação e o desvio da chamada para o sistema passivo que
recebe e armazena os dados.
Importa ressaltar que os Sistemas passivos de TI que recebem e monitoram
os dados interceptados são adquiridos e operados pelas autoridades públicas
responsáveis pela investigação (ministério público, polícia federal, secretarias de
segurança dos estados, etc.), ao passo que o Sistema Vigia tem como clientes
exatamente as operadoras de telefonia (Claro, Oi, Vivo, Tim, Nextel, Embratel,
GVT, Movistar), o que aliás é divulgado em seu sítio eletrônico na internet22. Isso
apenas corrobora o fato de que operadoras de telefonia e provedores de acesso são
atores do sistema penal e precisam ser assim compreendidos para que suas ações
sejam excluídas ou regulamentadas.
É ainda imprescindível que se compreenda quais as possibilidades de que
os operadores das empresas desenvolvedoras desses sistemas (aqui leia-se todos
eles, Vigia, Guardião, Sombra, Wytron, ou qualquer outro com a mesma funcionalidade), que prestam serviços de suporte técnico, tenham acesso aos
mecanismos de funcionamento e aos dados armazenados. Isso porque qualquer
um que possa ter acesso, inclusive remoto, ao sistema para solucionar eventual
problema técnico, precisa ser devidamente conhecido para configuração da cadeia
de custódia.
3.3.funcionamento e algumas funcionalidades dos
sistemas de recepção e armazenamento de dados
Em nossa pesquisa tivemos acesso ao Manual de Configuração e Operação do
Sistema Guardião (Versão Release 1.6.8 e Versão do Aplicativo 3.2.8.78 – julho
de 2013) da empresa Dígitro Tecnologia Ltda.
Importa dizer que este trabalho não pretende fazer qualquer apanhado sobre
o funcionamento do sistema informático, mas apenas traçar em linhas gerais
algumas funcionalidades que interessam para garantia dos direito fundamental
à prova.
Assim, as chamadas direcionadas pela operadora de telefonia ou os dados
desviados ingressam na plataforma que realiza a gravação em um determinado
22 Disponível em http://www.suntech.com.br/pt/clientes/. Acesso em 16 de junho de 2014.
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suporte (HD) e as informações referentes àquela chamada são armazenados em
um banco de dados relacional, que podem ser acessados e manipulados. Em
outras palavras, o Hard Disk (HD) em que ficam armazenados os áudios é diverso
daquele em que estão armazenados os dados (metadados), mas são relacionados
de tal forma que para cada áudio há os correspondentes dados do metadados que,
quando acionados remetem por hiperlink diretamente ao áudio vinculado. Isso
implica em que, malgrado se afirme que não é possível fazer exclusão de um áudio
do sistema, qualquer alteração de dados na base gera um apagamento lógico, ou
seja, não havendo mais relação entre dados e áudio o acionamento do hyperlink
não será direcionado ao áudio e, portanto, o áudio fisicamente existe, mas não é
encontrado.
Ademais, o módulo de backup do sistema permite alguns tipos de backup
(manual ou por agendamento), mas se não gerado é possível que haja sobrescrição,
ou seja, a gravação por cima, o que implica também na possibilidade de perda
definitiva de áudios. Isso fica muito claro quando no início do Manual a Dígitro
informa que não se responsabiliza por perdas de informações, devido a não
observação por parte do cliente, de procedimentos de backup, orientando para
que regularmente armazene os dados também em mídia eletrônica (CD, DVD,
etc.), de forma a possuir contingência externa.
É possível inserir no sistema durante a operação alguns dados cadastrais, como
os alvos do monitoramento, os telefones monitorados, os alvarás judiciais que
autorizam a interceptação com a data da expedição, o período e a data de validade.
Todavia, esse cadastro, como já dito antes, não torna o sistema ativo, porquanto
ele não irá captar as chamadas de determinados alvos e telefones, que continuam
a depender do desvio a ser realizado pela operadora de telefonia.
O problema é que o cadastro de alvará judicial não permite ao sistema bloquear
a gravação das chamadas após o término do período de validade da autorização
judicial, de tal sorte que esta gestão do período de interceptação fica a cargo
exclusivo das operadoras de telefonia.
Há no sistema a possibilidade de ter acesso aos logs de eventos que, segundo o
manual, se selecionada essa opção, será apresentada uma janela com informações
estratégicas da execução do programa, recolhidas durante a utilização do Guardião,
que são utilizadas para que se possa fazer a telemanutenção do sistema.
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Essa funcionalidade, embora não tenha finalidade de controle da utilização
do sistema para rastreamento das fontes de prova, deveria ser utilizado para tal.
Alie-se essa ferramenta aos logs de gravação, que fornecem o histórico de gravações
e revelam qualquer problema no processo de conversão das gravações, bem como
ao histórico de backup, teremos um rastreamento pelo próprio sistema.
Ocorre dois problemas: o primeiro é que esse rastreamento só forneceria
informações até o backup e o segundo é que não há sequer notícia de uma única
autorização judicial conhecida que dê à defesa (ou seus eventuais assistentes
técnicos) acesso ao sistema de logs do sistema.
Com efeito, rastrear apenas até o backup é insuficiente quando nos deparamos
com perda de áudios nas medidas cautelares de interceptações telefônicas e nos
obriga à voltarmos à questão da cadeia de custódia. Em outras palavras, ainda que
o sistema de TI responsável pela recepção e armazenamento das ligações telefônicas
ou dados interceptados permita rastrear as etapas da operação até a geração do
backup para assegurar a integridade do procedimento probatório, é imprescindível
que após a geração seja criada uma rotina por lei ou fixada na decisão que defere
a interceptação, para permitir à defesa do acusado rastrear as fontes de prova e
exercer o seu direito ao contraditório e à defesa. A não observância da rotina,
implica na quebra da cadeia de custódia e, por conseguinte, na perda da prova.
Ainda que a exata rotina de custódia da fonte de prova fosse definida, seria imprescindível que o acesso ao sistema de TI responsável pela recepção e
armazenamento das ligações telefônicas ou dados interceptados fosse garantido
à defesa. No entanto, ao argumento de que não se pode dar acesso do sistema à
defesa por colocar em risco o sistema e o sigilo de outras operações em andamento
(numa presunção de má-fé da defesa e seus eventuais assistentes técnicos), nega-se
tal direito sem sequer conceber a criação de mecanismos que possam garantir esse
acesso sem prejuízo dos demais interesses envolvidos.
4.conclusões
Diante de tudo que se expôs é adequado apontarmos algumas conclusões:
1) O avanço tecnológico promove mudanças nos métodos de obtenção de informações nas persecuções penais com o aporte de técnicas como a interceptação
das comunicações telefônicas e de dados quem vem sendo utilizados em profusão;
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i encontro de internacionalização do conpedi
2) Esses novos meios de prova colocam em xeque os direitos fundamentais,
em especial o direito ao contraditório (vez que a defesa não toma parte na sua
produção) e a imparcialidade da jurisdição (já que o juiz submete sua consciência
aos elementos cognitivos unilateralmente produzidos);
3) A legitimidade das decisões penais está condicionada à verdade empírica de
suas motivações;
4) O processo, sob uma perspectiva metodológica, é um modelo epistemológico do conhecimento dos fatos com base nas provas, que são materiais semióticos
que representam a única via de acesso da consciência ao conhecimento;
5) Como em todo procedimento de caráter epistêmico, as provas no processo
devem observar estritamente os métodos de produção e utilização;
6) As interceptações das comunicações telefônicas e de dados são provas produzidas por métodos ocultos cuja definição dos meios de execução e fiscalização
são deixados pelo art. 5o da Lei no 9.296/96 à definição do juiz;
7) A Lei no 9.296/96 traz à cena dois novos atores para o sistema penal: (1)
as concessionárias de serviço público de telefonia e provedores de acesso e (2)
o sistema de tecnologia da informação (TI) que trata os dados colhidos dos
monitoramentos das comunicações (e seus operadores privados);
8) Diante da inexistência de definição de procedimentos para execução da
medida de interceptação das comunicações, o Conselho Nacional de Justiça criou
o Sistema Nacional de Controle de Interceptações Telefônicas e editou a Resolução no 59, de 09 de setembro de 2008, com o objetivo de disciplinar e uniformizar
as rotinas visando ao aperfeiçoamento do procedimento de interceptação
telefônica nos órgãos jurisdicionais do Poder Judiciário;
9) A preservação de cada uma das etapas da operação que realizou a interceptação das comunicações de um cidadão (cadeia de custódia) é a única
maneira de assegurar a integridade do procedimento probatório, permitindo que a
defesa rastreie e conheça as fontes de prova. Por conta disso é necessário que sejam
preservados os suportes técnicos utilizados na interceptação das comunicações;
10) A Resolução no 59/2008 do CNJ extrapola os poderes conferidos
constitucionalmente ao órgão e dispõe sobre o que deve constar da decisão
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que defere a medida de interceptação das comunicações, bem como regula as
atribuições das operadoras de telefonia, que devem confirmar com o juízo os
números cuja efetivação fora deferida e a data em que foi efetivada a interceptação,
para fins do controle judicial do prazo;
11) A Resolução no 59/2008 do CNJ ainda determina o que deve constar dos
ofícios enviados às operadoras, mas não inclui aí o prazo de interceptação;
12) A Resolução no 59/2008 do CNJ obriga, ainda, as operadoras a enviar ofício semestralmente à Corregedoria Nacional de Justiça indicando os nomes das
pessoas, com a indicação dos respectivos registros funcionais, que por força de suas
atribuições, têm conhecimento de medidas de interceptação telefônica deferidas,
bem como os nomes dos responsáveis pela operacionalização das medidas,
comunicando, ainda, qualquer alteração no quadro de pessoal, arquivando-se o
ofício na própria Corregedoria, o que demonstra a importância da participação
dessas pessoas na execução da medida;
13) A Resolução condiciona a prorrogação da medida a que o pedido se faça
acompanhar dos áudios em CD ou DVD, e cria rotinas para transporte dos autos
para fora das unidades do Poder Judiciário, mas não cria procedimentos para a
guarda dos áudios remetidos aos órgão jurisdicionais, não criando uma cadeia de
custódia uniforme;
14) No Brasil, os órgãos públicos responsáveis pela investigação utilizam
três sistemas de TI para recepção e armazenamento dos dados obtidos pelas
interceptações: o Sistema Guardião desenvolvido e comercializado pela empresa
Dígitro Tecnologia Ltda., o Sistema Sombra desenvolvido e comercializado
pela empresa Federal Tecnologia de Software Ltda.-EPP e o Sistema Wytron
desenvolvido e comercializado pela empresa Wytron Technology Corp. Ltda.;
15) Esses sistemas de TI utilizados para recepção e armazenamento dos dados
obtidos pelas interceptações são passivos, pois quem redireciona a chamada para
suas plataformas são as operadoras de telefonia e os provedores de acesso;
16) O sistema de TI utilizado por todas as operadoras para fazer a gestão da
interceptação é o Vigia, desenvolvido pela empresa Suntech;
17) Embora os sistemas Guardião permite realizar cadastro de dados
referentes ao alvará judicial e sua validade, o sistema não bloqueia o recebimento
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do direcionamento de chamadas após a expiração do prazo, portanto apenas
a operadora de seus empregados controlam a observância do período de
interceptação;
18) Embora as empresas desenvolvedoras dos sistemas de TI utilizados para
recepção e armazenamento dos dados obtidos pelas interceptações afirmem que
o sistema não realiza apagamentos de áudios, no Guardião isso pode ocorrer em
duas hipóteses: apagamento lógico (quando é apagado algum dado relacionado
com um áudio, que passa a não ser mais encontrado) e sobrescrição (quando o
HD excede sua capacidade de armazenamento e os novos áudios começam a
sobrescrever os antigos se não for realizado o procedimento de backup);
19) O Guardião permite o conhecimento de logs de eventos, logs de gravação
acesso ao sistema e o histórico de backups, todavia isso não permite à defesa rastrear
as fontes de prova porque (1) esse rastreamento só forneceria informações até o
backup e (2) não há sequer notícia de uma única autorização judicial conhecida
que dê à defesa (ou seus eventuais assistentes técnicos) acesso ao sistema de logs
do sistema;
20) Portanto, o atual subsistema de prova de interceptação das comunicações telefônicas e de dados introduz indevidamente dois novos atores, cuja atuação
não é regulamentada, e não define procedimentos e rotinas que garantam à defesa
rastrear as fontes de prova para o legítimo exercício do direito ao contraditório e
à ampla defesa.
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i encontro de internacionalização do conpedi
gar antismo, estado democr ático de
direito e princípio da legalidade penal:
limitações ao poder regulamentar do
conselho de controle de atividades
financeir as (coaf)
Bruno Queiroz Oliveira1
Nestor Eduardo Araruna Santiago2
Resumo
O presente artigo aborda os limites do poder regulamentar do Conselho
de Controle de Atividades Financeiras - COAF, na perspectiva do princípio da
legalidade como premissa fundamental do Estado Democrático de Direito, de
acordo, também com os aportes trazidos da Teoria do Garantismo Penal. O
objetivo da pesquisa consiste em analisar o teor de alguns dispositivos das resoluções
emanadas do COAF para verificar sua adequação às limitações decorrentes do
princípio da legalidade. Analisa-se o poder regulamentar no âmbito do Poder
Executivo e as atribuições do COAF como unidade de inteligência financeira
responsável pelo combate à lavagem de dinheiro no Brasil. Por fim, conclui-se
pela necessidade de melhor adequação do teor das resoluções emanadas do COAF
aos princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito, bem como à
teoria garantista.
Palavras-chave
Garantismo; Princípio da legalidade; Poder regulamentar; Limites; Resoluções. Lavagem de Dinheiro.
1 Doutorando em Direito Constitucional pela UNIFOR. Mestre em Direito Público pela
Universidade Federal do Ceará. Professor do Curso de Direito na Unichristus e no Programa
de Pós Graduação Estrito Senso da Escola Superior do Ministério Público no Ceará. Advogado
e presidente da Comissão de Acompanhamento da Reforma do Código Penal da OAB/CE.
2 Advogado Criminalista. Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG). Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) da
Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Líder do Grupo de Pesquisa “Tutela penal e processual
penal dos direitos e garantias fundamentais”, desenvolvido no LACRIM (Laboratório de
Ciências Criminais – UNIFOR). E-mail: [email protected]
volume
15
137
i encontro de internacionalização do conpedi
Abstract
This article discusses the limits of the regulatory power of the Financial
Activities Control Council (COAF), from the perspective of the principle of
Legality as a fundamental premise of the democratic Rule of Law, as well as the
grounds brought by the Theory of Criminal Guaranteeism. The objective of this
work is to analyze the content of some devices of the resolutions issued by the
COAF to verify its suitability to the limitations arising from the principle of
legality. It is also analyzed the regulatory power within the Executive Branch
and the attributions of the COAF as financial intelligence unit responsible for
fighting money laundering in Brazil. Finally, it is concluded by the need to better
match the tenor of the resolutions issued by the COAF to the constitutional
principles of the democratic rule of law and the guaranteeism.
Key words
Guaranteeism; Principle of Legality; Regulatory Power; Limits; Resolutions;
Money Laundering.
1.introdução
Hodiernamente, a temática sobre a lavagem de dinheiro ocupa significativa
pauta no âmbito dos organismos internacionais, haja vista a preocupação das
autoridades com a grande repercussão dos mecanismos de branqueamento
de capitais na estrutura e funcionamento dos grupos criminosos atinentes
à denominada criminalidade econômica, inclusive por organizações cujo
objetivo centra-se na prática de atos de terrorismo com repercussões locais e/ou
internacionais.
No contexto relativo à criminalidade econômica e ao crime organizado, o
fenômeno da lavagem de capitais emergiu de modo relativamente recente no
quadro jurídico, como decorrência do tráfico internacional de entorpecentes,
tendo sido objeto de criminalização pela legislação penal de países diversos,
inclusive o Brasil. Na perspectiva mundial, os instrumentos normativos mais
importantes referentes à lavagem de dinheiro são a Convenção das Nações
Unidas Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e de Substâncias Psicotrópicas
(Convenção de Viena), de 19 de dezembro de 1988, e a Convenção do Conselho
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volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
da Europa (Convenção de Strasbourg), de 08 de novembro de 1990, que também
estabeleceu o mandato de incriminação desta conduta.
Em nosso País, por intermédio da Lei n. 9.613, de 03 de março de 1998,
fora autorizada a criação do Conselho de Controle de Atividades Financeiras COAF, unidade de inteligência financeira do Brasil, subordinada ao Ministério da
Fazenda, cujo objetivo institucional consiste em recepcionar, analisar e retransmitir,
na forma de relatórios de inteligência, aos órgãos públicos competentes para
investigação e persecução criminal, informações estratégicas que configurem
indícios de cometimento do crime de lavagem de dinheiro3.
Desse modo, a implantação da política de prevenção e repressão aos mecanismos de lavagem de dinheiro, no Brasil, depende da colaboração de entidades
públicas e particulares, com vistas a que auxiliem os órgãos administrativos e de
persecução penal mediante a comunicação de atitudes suspeitas, principalmente
em atividades relacionadas a bancos, corretores, comerciantes de bens de alto
valor e atividades semelhantes.
Recentemente, em razão da Lei n. 12.683, de 09 de julho de 2012, a discussão
em torno do delito de lavagem de dinheiro auferiu novos contornos, uma vez
que o referido diploma normativo pretende tornar mais eficaz a persecução penal
para este tipo de atividade delitiva. O COAF, por sua vez, depois da entrada em
vigor da referida lei, emitiu resoluções destinadas a regulamentar a colaboração
de pessoas físicas e jurídicas no combate à lavagem de dinheiro, especialmente
relacionadas às atividades de comercialização de joias, pedras e metais preciosos;
distribuição e dinheiro e quaisquer bens, na exploração de atividades de loterias;
e relativas a empresas que atuem no ramo de fomento comercial.
Mencionadas resoluções impõem a obrigação de comunicação ao COAF de
operações que, consideradas as partes e o modo de realização, possam configurar
3 A expressão lavagem de dinheiro fora empregada inicialmente nos Estados Unidos, com o
objetivo de descrever o método utilizado pelo crime organizado na década de 1930, do século
passado, para justificar a origem dos recursos obtidos com a prática dos ilícitos, no caso, a
exploração de máquinas de lavar roupas automáticas. Atualmente, lavagem de dinheiro é
o ato ou a sequência de atos praticados com a finalidade de mascarar a natureza, origem,
localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, valores e direitos de origem
delitiva ou contravencional, e cujo objetivo final, consiste na reinserção desses valores na
economia formal, com aparência de legalidade (BOTTINI; BADARÓ, 2012, p. 21).
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15
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i encontro de internacionalização do conpedi
sérios indícios de lavagem de dinheiro. Tais diplomas, no entanto, não definem,
de forma objetiva e clara, em que consistem tais indícios. Constam, também, nas
mesmas resoluções administrativas, determinações de que os procedimentos de
apuração devem ser recorrentes, inclusive com a realização de outras diligências
nelas não previstas, o que enseja grande insegurança jurídica para as pessoas
obrigadas, nos termos da legislação.
O objetivo deste ensaio, portanto, gravita à orbita de analisar o teor destes
dispositivos, ante os necessários filtros do princípio da legalidade e da teoria do
garantismo penal, bem como dos limites ao poder regulamentar, no âmbito do
Poder Executivo manifestado no Estado Democrático de Direito. Para tanto, será
necessário analisar a Resolução n. 21, expedida pelo COAF em 22 de dezembro
de 2012, bem como a doutrina administrativista e penal no tocante à abordagem
do princípio da legalidade como premissa necessária para formação e manutenção
do Estado Democrático de Direito, para que, a partir de um raciocínio indutivo,
concluir que ditas resoluções gravitam à margem do princípio da legalidade,
fazendo com que a segurança jurídica, e, por consequência, o garantismo penal,
sejam violados.
2. o princípio da legalidade como premissa no estado
democr ático de direito
O Estado de Direito sempre teve no princípio da legalidade um dos seus maiores sustentáculos, na medida em que o primeiro é subordinado ao ordenamento
jurídico, ou seja, deve respeito a um conjunto de normas que necessariamente
regulamentam sua ação. Fundamentado na supremacia da Constituição, proteção
dos direitos individuais, separação de poderes e superioridade da lei, o Estado de
Direito impõe a si os limites da sua atividade e a esfera de respeito pelas liberdades
individuais.4
Nessa perspectiva, a separação de funções constitui elemento fundamental
para a consolidação do Estado de Direito, pois funciona como mecanismo que
4 A concepção liberal e formalista do princípio da legalidade sempre se destacou como dogma
central do Direito Administrativo. Apesar disso, esta concepção formal jamais correspondeu
à realidade, sob pena de se considerar toda atuação administrativa mecânica e sem qualquer
cunho de caráter criativo, como se os órgãos administrativos apenas executassem aquilo que
já estaria exaustivamente previsto em lei (OLIVEIRA, 2011, p. 141).
140
volume
15
i encontro de internacionalização do conpedi
permite o exercício do poder político, por meio de uma divisão entre órgãos
independentes e autônomos. Cabe ao Parlamento, como instrumento maior da
vontade popular e dentro da lógica de separação de poderes, o primado da elaboração de normas jurídicas, com o objetivo de limitar e preordenar a atuação dos
órgãos administrativos. No primeiro momento, a ideia de legalidade significava,
primordialmente, o necessário cumprimento da lei, de modo praticamente
mecânico, como corolário da ideia de que aos particulares é permitido fazer tudo
o que não esteja vedado pela lei, em respeito à sua autonomia privada, mas à
Administração Pública é licito somente agir de acordo com as prescrições legais
(BINENBOJM, 2006, 10).
Esta carga de valoração da legalidade fora amplamente acatada pela doutrina clássica, no Brasil. Para Celso Antonio Bandeira de Mello, o mencionado
princípio consagra a ideia de que a Administração Pública somente pode ser
exercida de acordo com os ditames legais (BANDEIRA DE MELLO, 2007, p.
97). Também Meirelles (2009, p. 55), em semelhante raciocínio, esclarece que, na
Administração Pública, não há liberdade nem vontade pessoal, ou seja, enquanto
ao particular é permitido fazer tudo o que a lei não proíbe, na Administração
somente é permitido fazer o que a lei autoriza. Eis a concepção clássica do
princípio da legalidade, que, por seu turno, entrou em crise no século XX, por
não ter sido capaz de atender as demandas do Estado Liberal, e, tampouco, do
Estado de Bem-Estar Social. 5 Carvalho Filho (2009, p. 19), por sua vez, lembra
que no Estado moderno são duas as funções estatais básicas: criar a lei e executá-la,
sendo que a última pressupõe o exercício da primeira, colocando-se a atividade de
administrar de forma subjacente à legislativa. Assim, somente “se pode conceber
a atividade administrativa diante dos parâmetros já instituídos pela atividade
legiferante” (CARVALHO FILHO, 2009, p. 19).
Na reflexão de Sundfeld (2002, p. 49), o Estado de Direito evoluiu sistematicamente para o Estado Democrático de Direito ao permitir a participação
do povo como destinatário do poder político, de modo que os agentes políticos
5 Para Medauar (1992, p. 142), esta concepção clássica do princípio da legalidade caracterizou
um grande avanço na perspectiva de garantia, certeza jurídica e limitação do poder, uma
vez que significava a superação da vontade pessoal do Monarca pela segurança da disposição
impessoal e abstrata da lei. Deste modo, o poder se tornava objetivado, ou seja, obedecer à lei
consistia em obedecer à Administração e não à vontade da autoridade.
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i encontro de internacionalização do conpedi
sejam eleitos e renovados periodicamente com a participação popular e de modo a
consagrar a responsabilização desses governantes, em caso de descumprimento dos
preceitos da Constituição. Esta nova concepção do Estado já não se coadunava
ao primado absoluto da lei, como instrumento de controle da atividade dos juízes
e administradores, na perspectiva de que estes atuavam como meros repetidores
do texto legal.
Efetivamente, a ideia de legalidade passa a receber os contornos da noção
de legitimidade, como algo que deve permitir ao aplicador da lei ir muito além
do mero aspecto formal da norma, para fazer valer o teor material do texto
normativo, entendido como a captação política dos interesses da sociedade.
A ideia de legitimidade abarca a perspectiva ético-política e não apenas a
ordem ético-jurídica, atinente à noção clássica de legalidade. Na fase atual, de
constitucionalismo contemporâneo, a noção de Estado de Direito formal deve
ser imediatamente substituída pela de Estado de Direito material, ideia esta
intimamente relacionada à concretização do princípio democrático, pautado na
busca de uma ordem jurídica legítima.
Na Administração Pública, esta superação do paradigma da legalidade como
valor máximo da atuação do administrador, no seu aspecto formal, propiciou o
fenômeno da constitucionalização do Direito Administrativo, de tal modo que a
Constituição e o seu sistema de direitos fundamentais devem guiar o arcabouço
normativo que irradia todo o regime jurídico administrativo. Canotilho (2003,
p. 836) propõe a ideia de que, atualmente, a Constituição funciona como
fundamento primeiro da ação administrativa, vale dizer, a reserva da legalidade
vertical fora substituída pela reserva vertical do texto constitucional.
A própria noção de interesse público como algo que possui prioridade
sobre o interesse particular deve ser entendida apenas como aquilo que tenha
sido definido em lei, de modo que descabe ao administrador invocar de forma
vaga a ideia de interesse público, para com suporte nela, constranger a liberdade
dos administrados, o que não significa, de modo algum, legalismo estrito. A
Administração não há de agir apenas de acordo com a lei, mas sim consoante ao
bloco de legalidade, ou seja, além da autorização legal, o ato administrativo deverá
atentar para a moralidade administrativa, a igualdade, a boa-fé, a razoabilidade, a
boa administração, a eficiência e aos demais princípios que norteiam o conteúdo
dos atos da Administração Pública (SUNDFELD, 1993, p. 33).
142
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i encontro de internacionalização do conpedi
Para Binenbojm (2006, p. 25), a ideia de constitucionalização do Direito
Administrativo, relacionada à superação do paradigma formal da legalidade,
encontra convergência no princípio maior da dignidade da pessoa humana.
O autor ressalta a existência de novas premissas fundamentadoras da relação
entre os cidadãos e o Estado, a seguir expostas: 1) a Constituição, e não mais
a lei, passa a situar-se no epicentro da vinculação administrativa; 2) o conceito
de interesse público e sua propalada supremacia sobre os interesses particulares
deixa de estar ao inteiro arbítrio do administrador e passa a depender de juízos
de ponderação proporcional entre os direitos fundamentais e outros valores
definidos na Constituição Federal; 3) a ideia de discricionariedade abandona a
perspectiva de ser um espaço de livre escolha do administrador para se convolar em
resíduo de legitimação, a ser preenchido por procedimentos técnicos e jurídicos
prescritos na Constituição e nas leis, objetivando o grau de legitimidade da
decisão administrativa; 4) a noção de Poder Executivo unitário cede espaço para a
participação de autoridades administrativas independentes, nomeadas pelo chefe
do Poder Executivo após aprovação pelo Poder Legislativo, para cumprimento
de mandato com estabilidade no cargo, garantindo a noção de independência
política dos dirigentes das denominadas agências reguladoras.
A própria Teoria do Garantismo Penal, desenvolvida inicialmente por Luigi
Ferrajoli para o Direito Penal e o Processo Penal, com o objetivo de buscar uma
aproximação entre a normatividade e a efetividade dos direitos fundamentais,
atualmente encontra guarida nos demais ramos do Direito, inclusive, intensamente, no Direito Administrativo. Ferrajoli (2006, p. 786) desenvolveu
três significações para o termo garantismo. O primeiro significa um modelo
normativo de Direito, cujo escopo, sob a perspectiva epistemológica, caracterizase como sistema cognitivo ou de poder mínimo e, sob o prisma político, é
caracterizado como técnica de tutela idônea a minimizar a violência e maximizar
a liberdade. No plano jurídico, tal modelo funciona como um sistema de vínculos
impostos à função punitiva do Estado em garantia dos direitos dos cidadãos. O
segundo significado designa uma teoria jurídica da validade e da efetividade como categorias não apenas entre si, mas, também e primordialmente, pelo vigor das
normas. Desse modo, o garantismo pugna pela legitimação interna do Direito,
o que requer dos juízes e demais operadores da Ciência Jurídica uma constante
tensão crítica acerca das leis vigentes, tanto no que tange à validade como em
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143
i encontro de internacionalização do conpedi
relação à efetividade das normas jurídicas. A terceira e última perspectiva da
Teoria do Garantismo designa uma filosofia política que requer do Direito e exige
do Estado o ônus da justificação externa com base nos bens e nos interesses dos
quais a tutela ou a garantia constitui a finalidade.
Nessa perspectiva, o juiz, sem qualquer laivo de ativismo judicial, mas, sim,
focado em parâmetros normativos constitucionais, assume a relevante função
de não permanecer inerte ante as violações ou ameaças de lesão aos direitos
fundamentais consagrados. O magistrado assume, portanto, nova função no
Estado Democrático de Direito, de modo que a legitimação da sua atuação deriva
totalmente do modelo constitucional, consubstanciado na necessária proteção
dos direitos fundamentais. A justificação política do Direito é realizada pela legitimação externa, enquanto a legitimação interna busca fundamento na esfera
jurídica do Direito, não apenas no que tange à forma, mas principalmente no que
se refere ao conteúdo. O modelo de legalidade material, denominado legalidade
estrita por Ferrajoli, permite muito mais do que a mera verificação da perfeita
forma da lei. Há um acréscimo ao conceito formal, na sua concepção tradicional,
de modo que a legalidade estrita é o signo de validade das normas positivadas.
Desse modo, a ideia de legalidade se confunde com a própria legitimidade
material, que deve pautar toda a forma de atuar da Administração Pública.6
6 Os chamados pilares da teoria garantista vêm com o objetivo de responder às indagações
de “quando e como punir?” relativas à aplicação da lei penal; de “quando e como proibir?”,
concernentes ao tema da tipicidade das condutas penalmente relevantes; e de “quando e como
julgar?”, intrinsecamente ligada à atividade processual.
Assim, apresentam-se como pilares fundamentais do garantismo penal: 1) princípio da
retributividade ou da sequenciabilidade em relação ao delito consubstanciado na regra
“nulla poena sine crimine”, que determina que não deve haver pena sem crime anterior que
a justifique; 2) princípio da legalidade, nos sentidos lato e estrito, expresso na regra “nullum
crime sine lege”, isto é, não há crime sem lei anterior que o defina; 3) princípio da necessidade
ou economia do Direito Penal, manifestado pelo comando “nulla lex (poenalis) sine
necessitate” e indicativo de que o Direito Penal constitui a “ultima ratio” do ordenamento
jurídico; 4) princípio da lesividade ou da ofensividade do evento (“nulla necessitas sine
injuria”), condicionando a atuação do Direito Penal à existência de lesão ou perigo de lesão
a um bem juridicamente tutelado; 5) princípio da materialidade ou exterioridade da ação
(“nulla injuria sine actione”), que exige a existência de ação ou omissão penalmente relevantes
para a repressão da conduta; 6) princípio da culpabilidade ou da responsabilidade pessoal
(“nulla actio sine culpa”), ou seja, não há responsabilização sem comprovação de culpa ou
dolo; 7) princípio da judiscionariedade no sentido lato e no sentido estrito (“nulla actio sine
judicio”), designando que não há aplicação de pena senão pela autoridade competente; 8)
144
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i encontro de internacionalização do conpedi
A Constituição Federal de 1988 - CF, por sua vez, determinou a todos os
entes e órgãos da Administração Pública obediência à legalidade não apenas no
concernente à concepção formal e clássica deste princípio, mas, principalmente,
como decorrência fundamental do Estado Democrático de Direito e pilastra
essencial dos direitos e garantias fundamentais do cidadão.
3.balizamentos jurídico-constitucionais ao poder
regulamentar na administr ação pública
É inegável a constatação de que uma das principais competências da
Administração Pública consiste em detalhar e especializar os comandos legais,
visando à sua fiel interpretação, aplicação e efetividade. Historicamente, o
poder regulamentar é atribuído ao chefe do Poder Executivo7, em razão da sua
competência para expedir decretos e regulamentos, em todas as esferas federativas.
A própria lei, no entanto, poderá conferir o poder regulamentar, em determinadas
questões, a diferentes órgãos da Administração Pública ou a entidades autônomas
do Estado, como as autarquias, como forma de descentralização administrativa,
exigindo-se, contudo, que o agente competente para a elaboração do ato
administrativo atue dentro da esfera que a lei traçou (CARVALHO FILHO,
2009, p. 101).
Assim, a competência regulamentar da Administração tem o parâmetro da
legalidade como limite e fundamento para sua atividade, vale dizer, o princípio
da legalidade se reveste do caráter de reserva geral da lei, no sentido de que cabe ao
regulamento, ou a qualquer outro instrumento normativo decorrente do poder
regulamentar apenas o detalhamento do diploma normativo oriundo do Poder
princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusação (“nullum judicio sine acusatione”)
apresentando-se como expressão do princípio da obrigatoriedade da ação penal; 9) princípio
do ônus da prova ou da verificação (“nulla accusatione sine probatione”), isto é, a acusação
tem o ônus de provar a responsabilidade do acusado que goza do estado de inocência até que
o contrário seja provado; e 10) princípio do contraditório ou da defesa ou da falseabilidade
(“nulla probatio sine defensione’) indicativo do direito que o réu tem de ter ciência da acusação
e de sobre ela se manifestar por todos os meios de prova admitidos em direito (FERRAJOLI,
2006).
7 O inciso IV do art. 84 da Constituição Federal dispõe que compete privativamente ao
Presidente da República “sancionar, promulgar e fazer publicar leis, bem como expedir
decretos e regulamentos para sua fiel execução.”
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Legislativo. Em razão disso, o regulamento não deve funcionar contra legem, ultra
legem, tampouco praeter legem, devendo se legitimar somente quando operar
secundum e intra legem.8
Trata-se, portanto, de uma atividade normativa de caráter secundário,
absolutamente ancorada na lei, em todas as suas matizes, quer no preenchimento
do significado que a amplitude do dispositivo legal requeira, quer no detalhamento
destas disposições.9 Em verdade, sempre que a Administração produz norma
ou regulamenta a lei, ou mesmo quando atua no espaço definido pelo diploma
normativo, isto não significa que a norma decorrente do órgão público terá a
função de detalhar ou especificar o comando normativo, mas, sim, guardar o
limite da não contradição e da não inovação (MIRAGEM, 2011, p.84). Sarlet
(2008, p. 9) leciona que, tradicionalmente, o poder regulamentar possui três
funções essenciais no sistema jurídico: a) solucionar a execução da lei, sempre
que for o caso; b) especificar e facilitar a execução da lei, de modo prático, além
de acomodar a estrutura da administração para fiel observância da legislação; c)
incidir no campo da discricionariedade técnica, como, por exemplo, no caso da
legislação ambiental.
De modo geral, o poder geral regulamentar da Administração Pública
encon-tra duas vertentes quanto aos limites de sua atuação. Em primeiro plano,
a concepção mais conservadora do poder regulamentar, caracterizada pela
vinculação negativa da Administração, sob o entendimento de que a lei não é
o pressuposto da atividade administrativa, mas apenas o seu limite. A segunda
8 A Constituição Federal, em hipótese excepcional, conforme o artigo 84, VI, “a” dispensa
a necessidade de lei para o tratamento da organização da Administração Pública Federal,
matéria atualmente disciplinada por decreto. De acordo com o princípio da simetria, tal regra
é aplicável aos estados, Distrito Federal e municípios.
9 Sergio Ferraz firma entendimento no sentido de que regulamento é o ato administrativo,
de caráter normativo, com a finalidade de especificar os mandamentos da lei ou de prover
situações especiais ainda por ela não especificadas. Para esse autor, o poder regulamentar é
amplo. Assim, a tradicional afirmação de que tal poder deve ser integralmente submetido
aos ditames da lei deve ser encarada com reservas ( FERRAZ, 1977, 111). Em igual sentido,
ganha espaço, na doutrina, o entendimento de que o ingresso, no ordenamento jurídico
brasileiro, das agências administrativas reguladoras, permitiu, ante a chamada “ reforma
administrativa”, maior poder de regulação normativa para estas entidades, pois se, antes,
a legislação buscava tão-somente descentralizar a Administração Pública, e, na maioria das
vezes, manter a concentração da titularidade da competência para o exercício da função
administrativa, atualmente, tal fenômeno não ocorre ( MOREIRA, 2007, 14).
146
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i encontro de internacionalização do conpedi
linha de pensamento, mais moderna e atual, considera a lei como aspecto de
vinculação positiva do poder regulamentar. Em decorrência desse entendimento,
a Administração somente poderá agir de acordo com o que a lei estabeleça.
Consequentemente, é possível asseverar sobre a existência do âmbito material
da lei e do regulamento, de modo que são reservados à lei, em sentido formal,
normas de proibição que possam interferir nas liberdades dos administrados,
assim como restrições de direitos ou imputações de sanções criminais ou
administrativas, sempre com obediência ao Princípio da Anterioridade.10 Desse
modo, regulamentos ou normas semelhantes que estabeleçam limitações aos
direitos fundamentais sem respaldo na legislação não encontram guarida no
ordenamento jurídico pátrio. De igual modo, tal proibição também diz respeito
à imputação de sanções, inclusive multas administrativas, especialmente aquelas
cominadas mediante decretos regulamentares, mesmo naquele em que a conduta
seja proibida por lei.
Na perspectiva de Streck, Sarlet e Cléve (2005, p. 15), mesmo o Conselho
Nacional de Justiça – CNJ e o Conselho Nacional do Ministério Público - CNMP,
cujos conjuntos de atribuições possuem matrizes oriundas diretamente da CF, não
poderiam inovar o ordenamento jurídico mediante o seu poder regulamentar. Para
os citados autores parece equivocada a ideia de que tais órgãos possam substituir
a vontade geral oriunda da manifestação do Poder Legislativo, por intermédio da
expedição de atos regulamentares, porquanto, no Estado Democrático de Direito,
não se pode admitir que um órgão administrativo possa emitir resoluções cujos
reflexos possam atingir ou macular os direitos fundamentais previstos na CF.
10 Bandeira de Mello (2007, p. 338) esclarece que toda a disciplina jurídica atinente ao
regulamento, inclusive pertinente aos limites do poder regulamentar, aplica-se, ainda com
maior razão, a instruções, portarias, resoluções, regimentos ou quaisquer outros atos gerais
do Poder Executivo. Afirma anda que na pirâmide jurídica, alojam-se em nível inferior ao
próprio regulamento. Enquanto este é ato do chefe do Poder Executivo, os demais assistem a
autoridades de nível mais baixo e, por consequência, investidas em funções de menor relevância.
Tratando-se de atos subalternos e expedidos, portanto, por autoridades subalternas, por via
deles, o Executivo não pode exprimir poderes mais dilatado que os suscetíveis de expedição
mediante regulamento. Desse modo, toda dependência e subordinação do regulamento à
lei, bem como os limites em que se há de conter, manifestam-se revigoradamente no caso de
instruções, portarias, resoluções regimentos ou normas semelhantes, o que permite se utilizar
as conclusões deste estudo à disciplina das resoluções do COAF.
volume
15
147
i encontro de internacionalização do conpedi
Desse modo, tais colegiados submeter-se-iam a dois tipos de restrição: a
primeira é no sentido de que não podem expedir regulamentos com caráter geral
e abstrato, em face da reserva da lei; a segunda diz respeito à impossibilidade
de ingerência dessas resoluções nos direitos e garantias fundamentais, inclusive
diante da cláusula de proibição de restrição a tais direitos, a qual encontra guarida
na reserva lei, também garantia constitucional (STRECK, SARLET, CLÈVE,
2005, p. 15).
Não obstante, no julgamento da Ação Direta de Constitucionalidade n.° 12,
o Supremo Tribunal Federal – STF decidiu pela constitucionalidade da Resolução n. 7/2005, a qual vedou a prática do nepotismo no Brasil no Poder Judiciário,
posteriormente amplificada para as outras esferas das funções do Estado e
cristalizada na Súmula Vinculante n.° 13, do mesmo Tribunal. De acordo com o
voto proferido pelo relator, Ministro Carlos Britto, a resolução apenas debulhou
os próprios conteúdos lógicos dos princípios constitucionais de regência da atividade administrativa do Estado, dentre os quais merecem destaque impessoalidade,
eficiência e igualdade. Desse modo, no caso das resoluções do CNJ, o STF decidiu
que são diplomas normativos primários, dotados de generalidade, impessoalidade e abstratividade11.
11 Evidentemente, não se deve estender a conclusão do Supremo Tribunal Federal, no julgamento
da ADC n. 12, aos diplomas normativos expedidos por outros órgãos da Administração
Pública, os quais não possuem fundamento de validade decorrente diretamente da
Constituição Federal. Veja-se a ementa: “EMENTA: AÇÃO DECLARATÓRIA DE
CONSTITUCIONALIDADE, AJUIZADA EM PROL DA RESOLUÇÃO Nº 07,
de 18.10.05, DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. ATO NORMATIVO
QUE “DISCIPLINA O EXERCÍCIO DE CARGOS, EMPREGOS E FUNÇÕES
POR PARENTES, CÔNJUGES E COMPANHEIROS DE MAGISTRADOS E DE
SERVIDORES INVESTIDOS EM CARGOS DE DIREÇÃO E ASSESSORAMENTO,
NO ÂMBITO DOS ÓRGÃOS DO PODER JUDICIÁRIO E DÁ OUTRAS
PROVIDÊNCIAS”. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. 1. Os condicionamentos impostos
pela Resolução nº 07/05, do CNJ, não atentam contra a liberdade de prover e desprover
cargos em comissão e funções de confiança. As restrições constantes do ato resolutivo são,
no rigor dos termos, as mesmas já impostas pela Constituição de 1988, dedutíveis dos
republicanos princípios da impessoalidade, da eficiência, da igualdade e da moralidade.
2. Improcedência das alegações de desrespeito ao princípio da separação dos Poderes e ao
princípio federativo. O CNJ não é órgão estranho ao Poder Judiciário (art. 92, CF) e não
está a submeter esse Poder à autoridade de nenhum dos outros dois. O Poder Judiciário
tem uma singular compostura de âmbito nacional, perfeitamente compatibilizada com
o caráter estadualizado de uma parte dele. Ademais, o art. 125 da Lei Magna defere aos
148
volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
Assim, somente deve ser admitida a edição de regulamentos autônomos em
relação a matérias não sujeitas à reserva legal nas hipóteses em que a Administração
Pública tiver como objetivo o atendimento de mandamentos constitucionais.
4.o conselho de controle de atividades financeir as (coaf) e sua atuação no combate à lavagem de
dinheiro
O COAF, unidade de inteligência financeira do Brasil, fora criado pela Lei
n. 9.613, de 03 de março de 1998, com vistas a disciplinar, aplicar penas administrativas, receber, examinar e identificar as ocorrências suspeitas de atividades
ilícitas previstas na referida lei. Trata-se de órgão público de deliberação coletiva,
com subordinação direta ao Ministério da Fazenda e jurisdição administrativa
em todo o território nacional. A função principal deste órgão consiste em reunir
informações acerca de atividades suspeitas da prática de lavagem de dinheiro e,
desde então, efetivar os encaminhamentos pertinentes aos órgãos de persecução
penal.12
Tal órgão funciona como unidade de inteligência financeira de caráter
administrativo, vale dizer, como órgão técnico, sob a supervisão de uma entidade
que não se pode considerar como autoridade coercitiva ou judicial. Atua,
portanto, de modo a estabelecer uma interface importante do setor financeiro
Estados a competência de organizar a sua própria Justiça, mas não é menos certo que esse
mesmo art. 125, caput, junge essa organização aos princípios “estabelecidos” por ela, Carta
Maior, neles incluídos os constantes do art. 37, cabeça. 3. Ação julgada procedente para:
a) emprestar interpretação conforme à Constituição para deduzir a função de chefia do
substantivo “direção” nos incisos II, III, IV, V do artigo 2° do ato normativo em foco; b)
declarar a constitucionalidade da Resolução n. 07/2005, do Conselho Nacional de Justiça.”
(BRASIL, 2009, online)
12 Conforme o artigo 16, da Lei n. 9613/1998, o COAF será composto por servidores públicos
de reputação ilibada e reconhecida competência, designados em ato do ministro de Estado
da Fazenda, dentre os integrantes do quadro de pessoal efetivo do Banco Central do
Brasil, da Comissão de Valores Mobiliários, da Superintendência de Seguros Privados, da
Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, da Secretaria da Receita Federal do Brasil, da
Agência Brasileira de Inteligência, do Ministério das Relações Exteriores, do Ministério
da Justiça, do Departamento de Polícia Federal, do Ministério da Previdência Social e da
Controladoria Geral da União, atendendo à indicação dos respectivos ministros de Estado.
Além disso, é importante mencionar que o presidente do COAF será nomeado pelo presidente
da República, por indicação do Ministro da Fazenda.
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i encontro de internacionalização do conpedi
com as autoridades responsáveis pelo poder de coerção do Estado. O COAF,
portanto, não tem atribuição para iniciar diretamente qualquer investigação,
suspender operações ou sequestrar ativos (CARLI, 2012, p. 244).
As primeiras unidades de inteligência financeira foram criadas para dar
cumprimento às deliberações da Convenção de Viena, no início da década de
1990.13 Surgiram como importantes instrumentos de prevenção e repressão à
lavagem de dinheiro em muitos países, principalmente em razão do aumento
da sofisticação dos mecanismos utilizados por criminosos para garantir o
encobrimento do produto de ilícitos decorrentes do crime organizado e do
terrorismo.
Além da Convenção de Viena, cujo escopo principal consistia em conjugar
esforços internacionais para o combate ao tráfico internacional de entorpecentes
e substâncias psicotrópicas, também merece destaque a instituição do Grupo
de Ação Financeira Internacional - GAFI, organismo de caráter internacional,
gestado em 1989, sob a coordenação das sete nações mais industrializadas (G7), para maximizar o combate à lavagem de dinheiro. Referido grupo publicou
40 recomendações, com o objetivo de regulamentar questões de natureza
financeira, penal e de cooperação internacional. Entre tais recomendações, consta
a necessidade de fortalecimento da cooperação internacional por intermédio
das unidades de inteligência financeiras dos países participantes do organismo,
independentemente de participação do Poder Judiciário, uma vez que a legislação
de alguns países somente permite esse intercambio de informações com autorização judicial (BONFIM; BONFIM, 2005, p. 20).
Ainda no âmbito internacional, merece destaque a Convenção do Conselho
da Europa relativa à lavagem de dinheiro, mais conhecida como Convenção de
Estrasburgo, em cujas diretivas ficaram reconhecidas a necessidade da adoção
de medidas mais eficazes no combate a este tipo de criminalidade, assim como
13 O Brasil ratificou os termos da Convenção de Viena, conforme o Decreto n. 154, de
26.06.1991, mas somente sete anos depois o projeto de lei que tratava do crime de lavagem
de dinheiro fora transformado em lei. Precedente à lei brasileira, outros países, igualmente
signatários da Convenção de Viena, modificaram suas legislações penais para introduzir o
crime de lavagem de dinheiro, a exemplo de Alemanha, Bélgica, França, México, Portugal e
Suíça (BARROS, 2004, p. 88).
150
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i encontro de internacionalização do conpedi
o estabelecimento de medidas legais de embargos e confisco, com o escopo de
privar os criminosos do proveito econômico dos ilícitos penais.
A transmissão de informações estratégicas, por sua vez, decorre de obrigação administrativa de pessoas físicas ou jurídicas, bem como de entidades do setor
privado - bancos, empresas securitizadoras, organizações que atuem no ramo
de bens de alto valor ou que possuam, de alguma forma, contato com a movimentação econômica de outras pessoas atuantes nesses ramos - de comunicar
tais operações à unidade de inteligência financeira, sob pena de responsabilização
de caráter administrativo, especialmente multas, e, também, em alguns casos,
responsabilização de natureza criminal.
Após a fase da transmissão das informações, o que deve ocorrer sempre de modo
sigiloso e de sorte a resguardar o nome da pessoa responsável pela comunicação,
a unidade de inteligência financeira deverá analisar o material recebido e emitir
relatório, com o objetivo de confirmar ou não a ocorrência da suspeita de lavagem
de dinheiro. Para tanto, devem ser confrontadas as informações com outros dados,
decorrentes de comunicações de outras instituições, inclusive informações de
unidades de inteligência financeira de outros países, hipótese permitida em virtude
da atual fase de colaboração internacional no combate à lavagem de capitais.
Em linhas mestras, a legislação comporta três categorias de obrigações,
direcionadas a diversos entes, ou seja: a) identificação de clientes e manutenção de
cadastro atualizado; b) manutenção do registro de transações efetivados com tais
clientes, por prazo determinado e comunicação de operações suspeitas de lavagem
de dinheiro. Para permitir a execução e acompanhamento dessas obrigações, a
Lei n. 9.613/1998 atribuiu ao COAF poder funcional de analisar, receber e
identificar ocorrências suspeitas de lavagem de dinheiro; poder funcional de
aplicar multas administrativas e poder funcional regulamentar. Assim, o COAF
deve regulamentar o tema lavagem de dinheiro para as entidades abrangidas pela
lei, mesmo que não estejam sujeitas a nenhum regulador ou fiscalizador específico,
como, por exemplo, os bancos, os quais estão sujeitos às normas que emanam do
Banco Central.
Indiscutivelmente, o COAF constitui importante mecanismo na estrutura
de combate à lavagem de dinheiro no Brasil. Tal asserção decorre dos recursos
humanos e diversificados que compõem o mencionado órgão e que fornecem
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i encontro de internacionalização do conpedi
aos órgãos de persecução penal importantes informações capazes de desvendar
delitos em distintas operações financeiras, muitas vezes, inseridas em engrenagens negocias de alta complexidade.
5.consider ações sobre as resoluções emanadas do
coaf à luz do princípio da legalidade
O poder regulamentar do COAF constitui importante ferramenta para
disciplina das obrigações administrativas, de pessoas físicas ou jurídicas que
executem atividades abrangidas pelas áreas de interesse dos órgãos de fiscalização
do Estado, especialmente os que atuam no combate à lavagem de dinheiro.
Desde a sua criação, o COAF emitiu 27 resoluções, com disciplina acerca dos
atos de comunicação de ilicitudes no mercado financeiro e sanções administrativas
em caso de descumprimento.14 Mencionadas normas disciplinam diferentes ramos
de atividades e profissões. Bottini e Badaró (2013) esclarecem que as obrigações
decorrentes do poder regulamentar do COAF podem ser divididas em três grandes
grupos: a) de registro; b) de comunicação; c) de compliance. O primeiro grupo é
atinente à coleta de dados sobre clientes, operações comerciais e seus beneficiários.
O segundo compreende a comunicação de atos suspeitos às autoridades públicas.
O terceiro concerne à compliance, ou seja, diz respeito à criação de mecanismos de
controle internos preventivos e de combate à lavagem de dinheiro. As resoluções,
assim, detalham a forma de cumprimento das obrigações estabelecidas em lei, de
modo que o cumprimento das obrigações delas decorrentes é fundamental para
preservar os dirigentes de qualquer responsabilidade administrativa ou criminal.
Na concepção de Bottini e Badaró (2013), justamente ao tratar da política de
compliance, o COAF emite, sistematicamente, resoluções genéricas e inespecíficas,
sem a correta indicação das medidas a serem adotadas pelos obrigados, o que enseja
grande insegurança jurídica em torno do tema, afetando, por sua vez, um dos pilares
da teoria garantista, qual seja, a necessidade de uma lei clara e específica quanto à
conduta a incriminar, bem como à sanção a ser imposta (FERRAJOLI, 2006).
14 A Resolução n. 27, de 6 de novembro de 2013, revogou as Resoluções n. 3, n. 5 e n. 22.
A íntegra dos textos das Resoluções encontram-se em: http://www.coaf.fazenda.gov.br/
legislacao-e-normas/normas-do-coaf.
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i encontro de internacionalização do conpedi
A Resolução n. 21, de 20 de dezembro de 2012, dispõe sobre procedimentos a
serem adotados por empresas de fomento comercial. Tal norma tem por objetivo
estabelecer normas gerais de prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo, sujeitando-se ao seu cumprimento as empresas de fomento
comercial ou mercantil (factoring), em qualquer de suas modalidades, inclusive a
securitização de ativos, títulos ou recebíveis mobiliários e gestoras afins.
Após tecer uma série de obrigações de registro e comunicação de informações, a referida Resolução estabelece que “as pessoas obrigadas devem estabelecer
procedimentos adicionais de verificação” nos casos de dúvida em relação à
veracidade das informações prestadas pelos clientes. Na sequência, a Resolução
obriga a adoção de “medidas adequadas” para compreensão da composição
acionária e da estrutura de controle dos clientes pessoas jurídicas. Mais adiante,
dispõe que, nas hipóteses em que não for possível identificar o destinatário final,
as pessoas obrigadas devem “dispensar especial atenção” à operação, avaliando a
conveniência de sua realização. 15
Na visão de Batista (2002, p. 65), o princípio da legalidade, também conhecido como princípio da reserva legal “constitui a chave mestra de qualquer sistema
penal que se pretenda racional e justo”, vez que estabelece o limite do poder
estatal perante o indivíduo, conferindo previsibilidade suficiente da intervenção
do Estado na liberdade individual, o que, automaticamente, remete à ideia de
segurança jurídica. Numa das funções atribuídas ao princípio da legalidade,
estabelece-se a proibição de incriminações vagas e imprecisas (“nullum crimen
15 “Art. 8º Para a realização das operações de que trata esta Resolução, as pessoas de que trata
o art. 1º deverão assegurar-se de que as informações cadastrais do cliente estejam atualizadas
no momento da realização do negócio.
Art. 9º As pessoas de que trata o art. 1º devem adotar procedimentos adicionais de verificação
sempre que houver dúvida quanto à fidedignidade das informações constantes do cadastro ou
quando houver suspeita da prática dos crimes previstos na Lei nº 9.613, de 3.3.1998, ou de
situações a eles relacionadas.
Art. 10. As pessoas de que trata o art. 1º devem adotar medidas adequadas para compreenderem
a composição acionária e a estrutura de controle dos clientes pessoas jurídicas, com o objetivo
de identificar seu beneficiário final.
Parágrafo único. Quando não for possível identificar o beneficiário final, as pessoas de
que trata o art. 1º devem dispensar especial atenção à operação, avaliando a conveniência
de realizá-la ou de estabelecer ou manter a relação de negócio.” (BRASIL, 2012a, online). volume
15
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i encontro de internacionalização do conpedi
nulla poena sine lege certa”), exigindo-se, assim, um preceito incriminador de
conteúdo certo, exato e específico, com total precisão semântica, de modo a
pautar a conduta do cidadão-administrado, pois há, segundo Batista (2002, p.
80), o direito público subjetivo de qualquer pessoa de conhecer o crime.
Uma parte da doutrina penal reconhece este princípio como o da taxatividade, exigindo do legislador precisão na formulação do tipo penal e da respectiva
sanção, para que “a lei enuncie, mediante a indicação dos diversos caracteres da
conduta delitiva, a matéria de proibição a fim de que os limites entre o lícito
e o ilícito não fiquem à mercê da decisão judicial” (LOPES, 1999, p. 85). Ou
seja, trata-se de um mandato de certeza, compatível com a ideia de garantismo,
preservando, também, a ideia de separação de poderes. Como chama a atenção
Schmidt (2001, p. 118), a “manutenção da liberdade dos cidadãos” tem como
pressuposto a edição de leis “por um poder que não seja o responsável pela
administração do Estado (e vice-versa), já que poderia este editar leis abusivas com
a finalidade de abusivamente, administrar o ente público, e, ademais, de isentarse à sua própria obediência”. Mais adiante, o mesmo Schmidt amplia a noção de
quebra de separação de poderes mediante a aplicação do princípio da taxatividade
como limitação do ato de julgar, pois o juiz, ao avocar para si a responsabilidade
de delimitar o conteúdo de um tipo legal, está exercendo o papel de legislador e
utilizando “a analogia como forma de adequação típica” (2001, p. 123).
Desta maneira, não há duvidas de que o COAF extrapola as suas funções no
que tange ao poder regulamentar que lhe fora deferido no âmbito de compliance,
uma vez que a utilização de expressões genéricas para descrição das obrigações
a que estão sujeitas pessoas físicas e jurídicas não oferece a necessária segurança
jurídica decorrente do princípio da legalidade. Além disso, o não cumprimento
dessas obrigações poderá acarretar o pagamento de pesadas multas administrativas.
Em outras situações, poderá implicar até mesmo responsabilização criminal, caso
os órgãos de persecução enquadrem o responsável pelo setor de compliance na
figura da omissão penalmente relevante, tudo de acordo com o artigo 13, § 2. °,
do Código Penal brasileiro.16
16 “Art. 13. O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe
deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o crime não teria ocorrido.
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Aliás, no julgamento da Ação Penal n. 470/MG pelo STF (Caso Mensalão),
os ministros reconheceram a responsabilidade criminal dos dirigentes do Banco
Rural (núcleo financeiro do esquema criminoso), pelo crime de lavagem de
dinheiro, em razão do descumprimento das normas de compliance decorrentes da
obrigação de comunicar transações suspeitas ao COAF, ou seja, restou constatado
que os saques em espécie efetuados na “boca do caixa” não eram objeto de registro
e comunicação adequadas aos órgãos fiscalizadores.17
No caso em tela, os ministros ressaltaram que não há ilegalidade alguma
na realização de saques em espécie, ainda que vultosos. O STF ressaltou que
transações vultosas, envolvendo quantidades expressivas de dinheiro, são
usualmente realizadas por meio de cheques ou transferências bancárias, de conta
para conta. Por ocasião do julgamento da referida ação penal, o STF considerou
incomum a realização de transações elevadas em espécie, entre outros motivos
por riscos óbvios de segurança. E não raramente esses saques vultosos em espécie
não têm razão senão dificultar o rastreamento bancário e a identificação do
beneficiário da transação.18
[...]
§ 2. ° A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o
resultado. O dever de agir incumbe a quem:
a) tenha por lei obrigação de cuidado, guarda e vigilância;
b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado;
c) com o seu comportamento anterior, criou o riso da ocorrência do resultado.”
17 Ainda em relação ao julgamento da ação penal n. 470/MG, do Supremo Tribunal Federal,
houve uma subsunção praticamente automática, na qual a violação do dever de informar
as operações suspeitas determinava a condenação, ante o descumprimento de deveres (non
compliance). Tal interpretação se confirmou, não apenas no que tange às condenações,
na medida em que as estratégias de defesa ocuparam-se de demonstrar a ausência de
irregularidades nos programas de compliance e a simples inexistência do dever de comunicar
fundamentou algumas absolvições, no referido julgamento (SAAD-DINIZ, p. 161, 2013).
18 Não por acaso, no acórdão publicado no dia 22.04.2013, fora citada a Carta-Circular n.
3.098 do Banco Central, datada de 11.06.2003, que estabeleceu mecanismos de controle sobre
elevadas transações em espécie. A medida visa a prevenir a realização de operações da espécie
para lavagem de dinheiro. O ato normativo exige que as instituições financeiras comuniquem
obrigatoriamente ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF, operações
de depósito, saque ou provisionamento de saques em espécie de valor igual ou superior a R$
100.000,00. Tal comunicação ao COAF é efetuada mediante registro eletrônico da operação
no Sistema do Bacen – SISBACEN, juntamente com os dados exigidos na mencionada
circular, dentre eles os relativos à identificação completa do beneficiário da transação.
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Desta feite e em arremate, a ausência de taxatividade nas obrigações impostas
nos diplomas normativos emanados do COAF torna inconstitucionais as resoluções objeto da presente análise, principalmente em razão dos contornos delimitadores do princípio da legalidade, baseados no garantismo penal, e também
em decorrência do fenômeno da constitucionalização do Direito Administrativo.
6.conclusões
A nova feição dos princípios constitucionais e o fenômeno do constitucionalismo contemporâneo exigem outra perspectiva em relação ao princípio da
legalidade. Se, no primeiro momento, a legalidade formal caracterizou um grande
avanço no que tange ao subjetivismo decorrente do absolutismo monárquico,
na quadra atual, o princípio da legalidade se confunde com a própria ideia de
legitimidade, numa perspectiva de respeito e concretização dos direitos e garantias
fundamentais, previstos na CF.
O poder regulamentar da Administração Pública não deve inovar o
ordenamento jurídico, mas apenas especificar o cumprimento das leis, sempre
de modo a respeitar os direitos fundamentais positivados como garantia para o
cidadão. Além disso, o poder regulamentar dos órgãos do Estado deve obediência
ao princípio da legalidade como decorrência da constitucionalização do Direito
Administrativo, no sentido de que os atos normativos emanados do exercício
desse poder devem obediência também aos postulados da proporcionalidade,
publicidade, moralidade, impessoalidade e eficiência, paradigmas fundamentais
da Administração Pública, no contexto atual.
O COAF, como unidade de inteligência financeira, exerce atividade
fundamental no combate à lavagem de dinheiro e insere o Brasil no âmbito atual
das políticas internacionais, para o efetivo controle desse tipo de criminalidade.
A Resolução n. 21, anteriormente analisada, peca pela ausência de clareza em
alguns dispositivos, o que torna passível de acarretar a imputação de graves
Com esse mecanismo, toda transação bancária em espécie no valor igual ou superior a R$
100.000,00 gera uma comunicação obrigatória à unidade de inteligência instituída no Brasil
para prevenção à lavagem de dinheiro, propiciando seu encaminhamento, após a análise da
informação, aos órgãos competentes para investigação e persecução criminal, se for o caso.
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i encontro de internacionalização do conpedi
sanções de ordem administrativa e criminal para as pessoas obrigadas a colaborar
com o Poder Público. A configuração genérica dos dispositivos analisados permite
a conclusão de que tais resoluções não se adequam aos limites decorrentes do
poder regulamentar da Administração Pública, e, por consequência, maculam o
princípio da legalidade em sua perspectiva garantista, que, por sua vez, remetem
seus postulados à disciplina constitucional.
Desse modo, mister se faz uma urgente reformulação nos dispositivos emanados das resoluções do COAF, de modo a possibilitar que as empresas e profissionais insertos no processo de colaboração com o poder Público possam exercer
suas atividades de modo adequado, mas, sempre, com a necessária segurança
jurídica inerente ao Estado Democrático de Direito.
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15
159
i encontro de internacionalização do conpedi
justiça restaur ativa como via de
minimização do processo de vitimização
Daniela Portugal1
Geovane Peixoto2
Resumo
A investigação da pesquisa recai sobre a possibilidade da justiça restaurativa ser
uma alternativa ao sistema penal útil na diminuição do processo de vitimização
do sujeito ofendido. São analisados os marcos legais, como a Resolução da ONU
sobre justiça restaurativa e as possibilidades de adoção deste modelo de justiça
no Brasil com legislação vigente. É apresentado um estudo sobre os diferentes
estágios de vitimização enfrentados pelo agredido a partir da ocorrência do delito.
As conclusões, necessariamente provisórias, apontam que, por enquanto, a justiça
restaurativa é uma possibilidade complementar ou auxiliar ao sistema penal,
sendo um veículo útil para uma melhoria do tratamento destinado à vítima do
delito, minimizando, sobretudo, o processo de vitimização secundária.
Palavras-chave
Justiça restaurativa; Sistema Penal; Vitimologia.
1 Doutora em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (UFBA/Edital 003/2010).
Possui graduação em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA/2004-2008) e
mestrado em Direito Público por esta mesma instituição (UFBA/2009-2011). É professora
Assistente de Direito Penal da Faculdade de Direito UFBA. É professora colaboradora do
curso de Especialização em Ciências Criminais da Fundação Faculdade de Direito da UFBA;
da Escola de Magistrados da Bahia (EMAB); da Pós-Graduação da Universidade Católica do
Salvador (Ucsal); da Pós-Graduação do Centro de Estudos Jurídicos de Salvador (CEJUS);
da Faculdade Baiana de Direito (FBD); da graduação e da Pós-Graduação da Universidade
Salvador (UNIFACS). É membro do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP);
do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito no Brasil (CONPEDI) e da
Comissão de Defesa do Concurso Público da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção do
Estado da Bahia (OAB/BA). Advogada criminalista.
2 Doutorando em Direito Público pela UFBA. Mestre em Direito Público pela UFBA (2012).
Mestre em Políticas Sociais e Cidadania pela UCSAL (2009). Graduado em Direito pela
Universidade Federal da Bahia (1998). Atualmente é professor adjunto da Universidade
Salvador- Graduação e Pós-Graduação. Professor Assistente da Faculdade Baiana de Direito.
Professor Substituto da UFBA. Procurador do TJD/FBF. Membro do Instituto Baiano
de Direito Desportivo. Membro do Conselho Consultivo do Instituto Baiano de Direito
Constitucional. Advogado e Consultor Jurídico.
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i encontro de internacionalização do conpedi
Abstract
The investigation of the research focuses on the possibility of restorative justice
as an alternative to the criminal justice system useful in decreasing the process
of victimization of the victim. Legal frameworks such as the UN Resolution
on restorative justice and the possibilities of adopting this model of justice in
Brazil with current legislation are analyzed. A study on the different stages of
victimization faced by abused from the occurrence of the crime appears. The
findings, necessarily provisional, indicate that, for now, restorative justice is a
complementary possibility or assist the criminal justice system, being a useful tool
for improving care for the victim of the crime, minimizing especially the process
of secondary victimization.
Key words
Restorative justice; Penal system; Victimology.
1. introdução
O problema central do qual parte o presente estudo é a maior efetividade da
justiça restaurativa como veículo redutor do processo de vitimização secundária
vivenciado pelo sujeito ofendido a partir da ocorrência do crime. Deste modo,
tem como tema central a justiça restaurativa e, mais especificamente, delimita-se
pela elaboração de uma análise vitimológica acerca da solução restaurativa.
A hipótese que orienta o presente estudo a demonstração de que a justiça
restaurativa corresponde a meio mais eficaz no combate ao processo de
sobrevitimização que o sistema penal tradicional, no qual a vítima acaba por
ocupar posição distanciada, funcionando, somente, como meio de prova.
Justifica-se a relevância do presente estudo diante da urgente necessidade de
reaproximação da vítima na solução do conflito no qual figurou como sujeito
ofendido, apresentando-se a justiça restaurativa como forma de resgate atenção
que merece ser dispensada ao ofendido, sem que tal processo represente um
retorno aos tempos históricos de vingança privada.
Para tanto, o presente artigo aborda, inicialmente, quais são as características
da justiça restaurativa, enfatizando em que medida diferem do sistema penal
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i encontro de internacionalização do conpedi
tradicional, enfatizando a participação voluntária da vítima como um dos
protagonistas na busca pela solução do conflito instaurado a partir da ocorrência
de um delito.
Posteriormente, apresenta-se de que forma a justiça restaurativa tem sido
acolhida internacionalmente, quando se dará ênfase ao marco legal definido pela
Resolução da ONU. Em seguida, passa-se a tratar dos marcos legais que figuram
referência legal da adoção da prática restaurativa no sistema jurídico brasileiro.
Em seguida, são apresentados alguns exemplos práticos de adoção da prática
restaurativa no Brasil.
Mais adiante, relaciona-se a justiça restaurativa e o processo de vitimização.
Deste modo, inicialmente, apresenta-se o objeto de estudo da vitimologia e,
em seguida, os diferentes estágios de vitimização sofridos pelo ofendido a partir
da ocorrência do delito. Por fim, são apresentadas as razões pelas quais a justiça
restaurativa corresponde a um veículo útil na minimização da sobrevitimização
quando comparada ao modelo penal tradicional de solução.
2.justiça restaur ativa: uma alternativa ao sistema
penal tr adicional de solução de conflitos
A justiça restaurativa mais do que uma teoria, mesmo que ainda em formação,
tem se caracterizado como um conjunto de práticas em busca de uma teoria
(SICA, 2007, p.10). Isto torna a tarefa de conceituação extremamente complexa,
ante a inexistência de uma teoria, dogmas e princípios, sobre o tema, “devido
a suas origens muito plurais, ambigüidade de metas e contraditória instrumentação técnica” (MOLINA; GOMES, 2006, p. 398).
Qualquer prática destinada a promover a reparação do dano causado pela
conduta desviante pode ser considerada como justiça restaurativa lato sensu.
De forma mais específica apresenta-se como a “proposta de promover entre os
verdadeiros protagonistas do conflito traduzido em um preceito penal (crime),
iniciativas de solidariedade, de diálogo, e, contextualmente, programas de
reconciliação” (SICA, 2007, p. 10).
A Justiça Restaurativa baseia-se num procedimento de consenso,
em que a vítima e o infrator, e, quando apropriado, outras pessoas
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ou membros da comunidade afetados pelo crime, como sujeitos
centrais, participam coletiva e ativamente na construção de
soluções para a cura das feridas, dos traumas e perdas causados
pelo crime.
[...], um acordo objetivando suprir as necessidades individuais e
coletivas das partes e se lograr a reintegração social da vítima e do
infrator. (PINTO, 2005, p. 20)
O objetivo deste tipo de prática é buscar a reparação do dano causado3, com o
fim de restabelecer-se na sociedade a paz. Desta forma, a justiça restaurativa “não
gira em torno da idéia excludente e obsessiva do castigo, mas da reparação com a
conciliação e com a pacificação” (MOLINA; GOMES, 2006, p. 404).
[...] é um provimento relegitimante, que restabelece a confiança
da coletividade no ordenamento muito mais do que a ilusão
preventiva derivada da cominação da pena, além de afastar o
direito penal do papel de vingador público. (SICA, 2007, p. 5)
A participação da vítima e do infrator no modelo da justiça restaurativa é
primordial para sua realização, sem esta participação, que deve ser espontânea,
não há possibilidade da instauração desta prática. Quais seriam as conseqüências
da inserção de cada um destes atores no processo de mediação e conciliação4?
As medidas adotadas pelo sistema penal e o papel destinado à vítima dentro
deste são completamente desvinculados de uma preocupação humanista. As
3 Não se trata de uma mera reparação civil do dano ou um simples ressarcimento de ordem
econômica. Sobre o tema Antonio García-Pablos de Molina (2006, p. 404) afirma que: “esse
novo paradigma diferencia-se muito, no entanto, da imagem preconceituosa que alguns lhe
atribuem, no sentido de que seria um desatinado “ajuste privado” ou mera “composição”, que
resolve o crime pela via reparadora mais antiga que conhece a humanidade: o pagamento de
uma quantia em dinheiro. Evidentemente não se trata disso. Aqueles que propugnam por esse
novo paradigma advertem que ele potencializa o lado interpessoal do conflito criminal, a sua
dimensão histórica, real e concreta, em toda sua complexidade, confiando na capacidade dos
indivíduos implicados para resolvê-los (...)”.
4 Entre as práticas utilizadas para efetivação da justiça restaurativa destacam-se a utilização
da mediação e conciliação. “A expressão mediação, do latim antigo mediare (dividir, abrir
ao meio) é adaptada para indicar a finalidade de enfrentar dinamicamente uma situação
problemática e abrir canais de comunicação bloqueados; refere-se a uma atividade em que
uma parte terceira, neutra, ajuda dois ou mais sujeitos a compreender o motivo e a origem de
um conflito, a confrontar os próprios pontos de vista e encontrar uma solução sob a forma
de reparação simbólica, mais do que material”. (SICA, 2007, p. 46). A conciliação ocorre
quando a mediação é conduzida por agente do Estado (Juiz ou Conciliador).
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respostas alcançadas pela justiça penal tradicional não possuem a preocupação
de identificar a dor e o sofrimento destas, e na maioria das vezes o sentimento,
mesmo após a condenação do ofensor, é a da concretização de uma injustiça.
Em relação ao papel assumido pelo ofensor, este deixa de estar diante de
instância “alheia” ao fato, que tem como finalidade a imposição de uma punição,
que deve lhe impor dor e sofrimento, pela própria etimologia da palavra pena,
como já conceituado anteriormente.
O ofensor deve, dentro do modelo da justiça restaurativa, enfrentar diretamente as conseqüências do seu ato, sendo colocado diante da vítima para que
possa ver e sentir a dor e o dano acarretado com seu comportamento desviante.
Diante desta situação, ele deverá discutir com o ofendido a melhor forma de
reparação, para aquele caso. Ressalte-se que não existem modelos de respostas
pré-concebidos nestas práticas, o caso concreto é que irá determinar a solução.
A justiça “restaurativa” é, paradoxalmente, mais exigente com
o infrator, pois não se contenta com que este cumpra o castigo
merecido, nem sequer com que repare o mal que causou a sua
vítima e à comunidade. Pretende, sobretudo, que ele se envolva
ativa e responsavelmente na busca negociada de uma solução
válida. Que assuma a realidade do dano causado e sua própria
responsabilidade. Que se comprometa na solução do conflito, sem
relatar um (dano) ou outra (responsabilidade) com perniciosas
técnicas de neutralização ou autojustificação. (MOLINA;
GOMES, 2006, p. 405).
O ofensor deve assumir a responsabilidade pelo seu comportamento desviante, não faz parte do processo garantir-lhe o direito de se defender, através
de construções argumentativas e retóricas que tentam dissimular a verdade. O
importante na justiça restaurativa é a ocorrência de um ato que lesionou alguém
(moralmente, patrimonialmente, fisicamente, etc.), e que requer, portanto, uma
reparação.
A conciliação e a mediação têm o papel de possibilitar os envolvidos (ofensor
e vítima) através de processo comunicacional, desenvolvido dentro de um
paradigma democrático participativo, a composição ou reparação do dano,
“propõe-se, pois, a intervir no conflito construtiva e solidariamente, sem metas
repressivas, procurando soluções” (MOLINA; GOMES, 2006, p. 404).
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Mesmo diante da incerteza gerada pelo fato do modelo restaurativo encontrarse em construção, e das realidades diversas que circundam estas práticas, Leonardo
Sica (2007, p. 33) elenca três princípios norteadores da justiça restaurativa que são:
• o crime é primariamente um conflito entre indivíduos, resultando em
danos à vítima e/ou à comunidade e ao próprio autor; secundariamente, é uma transgressão da lei;
• o objetivo central da justiça criminal deve ser reconciliar pessoas e reparar os danos advindos do crime;
• o sistema de justiça criminal deve facilitar a ativa participação de vítimas, ofensores e suas comunidades.
Para que este modelo encontre terreno fértil para se desenvolver é necessário
aproximar o direito penal do debate democrático, vez que a sua implementação
requer o aprimoramento do Estado Democrático de Direito, com a formulação
de políticas públicas que tendam a democratizar o sistema judiciário.
Apresenta-se a justiça restaurativa como possível alternativa ao sistema penal,
a partir da construção de formas de justiça participativa e comunitária, mais
próximas das relações privadas e distantes do modelo processual sancionatório
controlado pelo Estado. É também uma forma de criticar o maniqueísmo
característico do sistema penal e pugnar por um modelo de justiça que fortalece
os laços comunitários.
O objetivo daqueles que defendem a justiça restaurativa é romper com o
afastamento completo da população dos mecanismos engendrados pelo sistema
penal, que é basicamente “Estatal”, e passa a ser, portanto, monopolizado por
aqueles que detêm o poder e dominam os mecanismos de produção, dentro de
uma sociedade capitalista.
Reivindica-se a participação popular, dentro de um Estado Democrático,
como política criminal, requerendo, portanto, a efetivação de mecanismos da
democracia direta.
A ausência do estado, o seu afastamento, e a transposição do poder decisório
exclusivamente para a população, todavia, é uma proposta muito perigosa, pois
pode abrir espaço para outros atores assumirem o seu lugar.
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A transição para este modelo no Brasil, então, não poderia ser repentino. É
necessária a intermediação e participação do Estado. Não dá para defender, por
enquanto, a perda de espaço para o domínio completo da sociedade, em relação à
mediação e conciliação, envolvendo os comportamentos desviantes. Diante deste
argumento, esta pesquisa prioriza a análise dos projetos de justiça restaurativa que
envolve o Estado.
Antes de continuar, porém, a análise da justiça restaurativa, será demonstrada
a relação entre sistema penal e cidadania, para compreender se há terreno fértil
para justiça restaurativa, se há efetivamente espaço para o desenvolvimento de
uma teoria cidadã no direito penal.
2.1. a justiça restaur ativa no contexto internacional
e o marco legal internacional da resolução da
onu
As práticas de justiça restaurativa são muito antigas e estão baseadas nas
tradições de muitos povos no oriente e no ocidente. Princípios restaurativos
teriam mesmo caracterizado os procedimentos de justiça comunitária na maior
parte da história dos povos do mundo. Essas tradições, todavia, foram substituídas
paulatinamente pelo modelo dominante de justiça criminal, tal como dissertado,
que se configura hodiernamente. De fato, a idéia de justiça criminal como o
equivalente de “punição” parece já assentada no senso comum, mesmo o teórico,
como já foi defendido, o que é o mesmo que reconhecer que ela já se tornou parte
de nossa cultura.
O país considerado como um dos pioneiros na (re)implementação do modelo de justiça restaurativa é a Nova Zelândia. A origem desta prática neste Estado deve-se “à reivindicação da população maori, em vista da desproporcional
taxa de encarceramento de membros dessa comunidade em relação à população
branca de origem européia, na aplicação de métodos menos invasivos no
tratamento de menores infratores [...]” (SICA, 2008, p. 82).
Como resultado, foi editado o Estatuto das Crianças, Jovens e suas Famílias
(Children, Young Persons and Their Families Act), em 1989, que rompeu radicalmente com a legislação anterior e que visava responder ao abuso, ao abandono
e aos atos infracionais.
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i encontro de internacionalização do conpedi
A responsabilidade primária pelas decisões sobre o que seria feito
foi estendida às famílias, que receberiam apoio em seu papel de
prestações de serviços e outras formas apropriadas de assistência.
O processo essencial para a tomada de decisões deveria ser a
reunião de grupo familiar, que visava incluir todos os envolvidos
e os representantes dos órgãos estatais responsáveis (bem-estar
infantil para casos de cuidados e proteção e a polícia nos casos de
infrações). (MAXWELL, 2005, p. 280)
Além do modelo neozelandês, na Oceania, merece destaque o modelo
australiano de justiça restaurativa, implementado a partir da década de 90, do
século passado. Seguindo a tendência da experiência neozelandesa a eleição
da aplicação deste modelo recaiu sobre a Justiça da Infância e da Juventude,
dispersos em programas por toda a Austrália. O público jovem atingido pela
justiça restaurativa neste país tem em média entre 10 e 17 anos.
A infração, geralmente sujeita a este procedimento, são: o roubo, o furto, o dano e as chamadas condutas desordeiras, estão, todavia excluídas as lesões de ordem
sexual e os homicídios, além das condutas relacionadas com as drogas.
O procedimento é conduzido, na maioria dos casos, pela polícia, e excepcionalmente pelos magistrados, quando antes de prolatar uma decisão
determina-se a realização de uma conferência com a finalidade de se realizar uma
mediação. Além da participação da polícia e de magistrados, podem participar
destas conferências a família do jovem, advogados, a vítima e seus apoiadores.
Outro referencial em matéria de justiça restaurativa é o Canadá, apontado
como o local onde se realizaram, inclusive, as primeiras experiências dessa sorte.
Uma reforma no Código Penal canadense inseriu o dispositivo 718.2 (e), que
possibilita a aplicação de todas as sanções alternativas ao encarceramento, desde
que razoáveis, devem ser consideradas para todos os acusados (SICA, 2008, p. 98).
Nos Estados Unidos da América, mesmo mantendo sua tendência de políticas reificadoras do encarceramento, iniciou-se o projeto de reconciliação entre
vítima e ofensor com um projeto do Condado de Elkhart, no Estado de Indiana,
entre os anos de 1977 e 1978. “Embora as abordagens e nomes variem, há hoje
mais de cem programas nos Estados Unidos usando algum tipo de mediação
vítima-ofensor” (ZEHR, 2008, p. 150).
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i encontro de internacionalização do conpedi
Percebe-se, por esta breve exposição, que a justiça restaurativa, nos exemplos
apresentados, tem ficado adstrita, sobretudo a casos que envolvem crianças
e adolescentes, ou quando envolvem adultos, na maioria das vezes por crimes
praticados contra o patrimônio, no intuito de reparar a lesão.
Como marco legal internacional identifica-se a Resolução 2002/12, do
Conselho Social e Econômico, da Organização das Nações Unidas – ONU,
elaborada com a finalidade de desenvolver princípios e procedimentos para
utilização da justiça restaurativa. Esta Resolução reporta-se a duas anteriores que
tinham como finalidade estimulara a utilização da justiça restaurativa em sede de
processos penais, quais sejam as Resoluções 1999/26 e 2000/145.
A partir a justificativa referida no preâmbulo da Resolução, são construídos
os princípios e entabuladas as ideias centrais para elaboração dos procedimentos,
respeitando-se, porém, a soberania legislativa de cada Estado para estipulara estas
regras.
Aplica-se a ideia de justiça restaurativa, segundo esta Resolução da ONU, a
qualquer processo no qual a vítima e o ofensor, e, quando apropriado, quaisquer
outros indivíduos ou membros da comunidade afetados por um comportamento
5 A ideia central da Resolução que justifica a sua edição está descrita no seu preâmbulo, que
assim dispõe: “Considerando que tem havido um significativo aumento de iniciativas com
justiça restaurativa em todo o mundo. Reconhecendo que tais iniciativas geralmente se
inspiram em formas tradicionais e indígenas de justiça que vêem, fundamentalmente, o crime
como danoso às pessoas/ Enfatizando que a justiça restaurativa evolui como uma resposta ao
crime que respeita a dignidade e a igualdade das pessoas, constrói o entendimento e promove
harmonia social mediante a restauração das vítimas, ofensores e comunidades/ Focando o
fato de que essa abordagem permite que as pessoas afetadas pelo crime possam compartilhar
abertamente seus sentimentos e experiências, bem assim seus desejos sobre como atender
suas necessidades/ Percebendo que essa abordagem propicia uma oportunidade para as
vítimas obterem reparação, se sentirem mais seguras e poderem superar o problema, permite
os ofensores compreenderem as causas e consequências de seu comportamento e assumir
responsabilidade de forma efetiva, bem assim possibilita à comunidade a compreensão das
causas subjacentes do crime, para se promover o bem estar comunitário e a prevenção da
criminalidade/ Observando que a justiça restaurativa enseja uma variedade de medidas
flexíveis e que se adaptam aos sistemas de justiça criminal e que complementam esses
sistemas, tendo em vista os contextos jurídicos, sociais e culturais respectivos/ Reconhecendo
que a utilização da justiça restaurativa não prejudica o direito público subjetivo dos Estados
de processar presumíveis ofensores/ Reconhecendo que a utilização da justiça restaurativa
não prejudica o direito público subjetivo dos Estados de processar presumíveis ofensores”.
(PINTO, 2009)
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desviante, equivocadamente denominado naquele texto como “crime”, conforme
entendimento da Criminologia Crítica participa ativamente na resolução das
questões oriundas deste comportamento.
Os processos restaurativos podem incluir a mediação, a conciliação, a reunião
familiar ou comunitária e círculos decisórios. A partir da Resolução das Nações
Unidas, alguns países já introduziram a justiça restaurativa em sua legislação,
destacando-se a Colômbia, que a inscreveu, inclusive, na própria Constituição
(art. 250) e na legislação infraconstitucional (Art. 518 e seguintes, do Novo
Código de Processo Penal), e a Nova Zelândia, que desde 1989 já introduziu na
legislação infanto-juvenil.
2.2.marcos legais de referência da pr ática restaur ativa no br asil
É preciso ressaltar inicialmente que o procedimento restaurativo ainda não é
expressamente previsto em lei, em sentido formal, a sua possibilidade decorre da
interpretação da legislação existente, nas situações anteriormente discutidas.
A previsibilidade para implantação de práticas restaurativas, todavia, encontra
sede na própria Constituição Federal de 1988, ao prever que:
Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os
Estados criarão:
I – juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e
leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução
de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de
menor potencial ofensivo6, mediante os procedimentos oral e
sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação
e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau.
Após a determinação constitucional da instalação no Brasil de juizados
especiais, com competência, em tese, para prática da justiça restaurativa,
6 A definição de crime de menor potencial ofensivo encontra-se em dois diplomas legais, quais
sejam a s Leis nº 9.099/95 e 10.259/2001. A primeira instituiu os Juizados Especiais na esfera
Estadual e a segunda instituiu na esfera Federal. A redação do art. 61 da Lei nº 9.099/95
encontra-se atualmente subsumido pela redação do Art. 2º, parágrafo único, que traz a
seguinte definição: “Consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos
desta Lei, os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa”.
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foram editadas duas leis federais, a 9.099/95 e a 10.259/2001, que criaram,
respectivamente, os juizados especiais estadual/distrital e federal7.
Com essa inovação da Constituição de 1988, e o advento, principalmente,
da Lei 9.099/95, abriu-se uma pequena janela, no sistema jurídico pátrio, para a
acomodação sistêmica do modelo restaurativo no Brasil, mesmo sem a edição de
uma lei direta sobre a matéria, com a prática da mediação, a partir da exegese dos
seguintes dispositivos:
Art. 72. Na audiência preliminar, presente o representante do
Ministério Público, o autor do fato e a vítima e, se possível, o
responsável civil, acompanhados por seus advogados, o juiz
esclarecerá sobre a possibilidade da composição dos danos e da
aceitação da proposta de aplicação imediata de pena não privativa
de liberdade.
Art. 73. A conciliação será conduzida pelo juiz ou por
conciliador sob sua orientação.
Parágrafo único. Os conciliadores são auxiliares da justiça,
recrutados, na forma da lei local, preferencialmente entre bacharéis
em Direito, excluídos os que exerçam funções na administração da
Justiça Criminal. (grifou-se)
Da leitura dos dispositivos transcritos depreende-se a possibilidade real de
encaminhamento dos processos que envolvam os denominados crimes de menor
potencial ofensivo a um núcleo restaurativo, para tentativa de mediação, conforme
expressa disposição legal. Será necessário, para tanto, que as legislações de cada
Estado disciplinem esta prática.
Além dessa possibilidade, cita-se o Estatuto do Idoso, Lei nº 10.741/2003,
que prevê o seguinte:
Art. 94. Aos crimes previstos nesta Lei, cuja pena máxima
privativa de liberdade não ultrapasse 4 (quatro) anos, aplicase o procedimento previsto na Lei nº 9.099, de 26 de setembro
de 1995, e. subsidiariamente, no que couber, as disposições do
Código Penal e do Código de Processo Penal.
7 Tratam dos crimes de menor potencial ofensivo, conforme nota anterior.
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Fica, então, previsto que na prática dos crimes tipificados na referida Lei, que
não ultrapassem o limite da pena quantificado, deve-se aplicar o procedimento da
Lei dos Juizados Especiais, portanto com a aplicação da possibilidade de mediação
já discutida.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069/1990, enseja e
recomenda, de forma implícita, o uso da prática restaurativa, em alguns dispositivos, particularmente quando dispõe sobre a remissão, no art. 126, e diante
da amplitude das medidas socioeducativas previstas no art. 112 e seguintes deste
diploma legal, que na sua quase totalidade são diversas da reclusão, demonstrando
as possibilidades existentes ao sistema de encarceramento.
A aceitação pelas partes da alternativa restaurativa não pode ser imposta,
nem direta, nem indiretamente. As partes devem ser informadas, de forma clara
que se trata de uma ferramenta alternativa posta à disposição delas, e que sua
aceitação pode ser revogada a qualquer momento, e a participação deverá ser
sempre voluntária.
2.3.diferentes pr áticas de justiça restaur ativa no
br asil
A justiça restaurativa também encontrou adeptos no Brasil, a partir de algumas práticas e projetos, no início do século XXI, por enquanto em pequena
quantidade, mas que merecem a atenção desta pesquisa, incluindo, principalmente, o projeto de Salvador, Bahia.
O Ministério Público do Distrito Federal iniciou projeto de justiça restaurativa
na circunscrição jurisdicional da cidade satélite de Gama (MARÇAL JUNIOR,
2008), para casos que envolviam violência doméstica, amparado pela legislação
federal, Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, que prevê:
Art. 29. Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a
Mulher que vierem a ser criados poderão contar com uma equipe
de atendimento multidisciplinar, a ser integrada por profissionais
especializados nas áreas psicossocial, jurídica e de saúde.
Art. 30. Compete à equipe de atendimento multidisciplinar, entre
outras atribuições que lhe forem reservadas pela legislação local,
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fornecer subsídios por escrito ao juiz, ao Ministério Público e à
Defensoria Pública, mediante laudos ou verbalmente em audiência,
e desenvolver trabalhos de orientação, encaminhamento,
prevenção e outras medidas, voltados para a ofendida, o
agressor e os familiares, com especial atenção às crianças e aos
adolescentes. (grifos do autor)
O município de Guarulhos, em São Paulo tem o seu projeto de justiça restaurativa direcionado para as crianças e adolescentes, como proposta interdisciplinar vocacionada para educação.
O Projeto de Mediação da Vara da Infância e da Juventude de Guarulhos
foi firmado em parceria com as Faculdades Integradas de Guarulhos – FIG, e
aprovado pelo Tribunal de Justiça, inicialmente pelo período experimental de um
ano, e consistia na capacitação de grupos de mediadores voluntários, para atuar
nas causas processuais da Vara da Infância versando sobre: 1) atos infracionais de
natureza leve; e 2) conflitos familiares (MADZA, 2007).
O projeto de mediação já tinha o enfoque das Práticas Restaurativas, desde a
sua concepção, especialmente no que tange aos atos infracionais de natureza leve,
nos quais se realizava a mediação entre vítima e ofensor (MADZA, 2007).
Passado o período experimental, e constatada a eficiência do sistema
implementado, o projeto foi definitivamente aprovado pelo Tribunal de Justiça
para funcionar em caráter permanente, com a celebração de convênio entre o
Judiciário Estadual e a Instituição de Ensino supra mencionada, isto em outubro
de 2006, passando a denominar-se de “Setor de Mediação de Guarulhos”
(MADZA, 2007).
A prática da justiça restaurativa foi instituída no município de Joinvile,
Santa Catarina, pelo Juiz de Direito Alexandre Morais da Rosa, através da Portaria nº 05/2003, também direcionada para o público infanto-juvenil, dando
aplicabilidade ao Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), com a
finalidade de promover a mediação na prática de atos infracionais.
A referida Portaria regulamenta a formação de uma equipe interprofissional,
que será colocada à disposição da Vara da Infância e da Juventude no âmbito da
Comarca de Joinville-SC, nos casos de apuração de atos infracionais cometidos
por crianças e adolescentes, bem como a aplicação de técnicas de mediação.
volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
Esta equipe interprofissional é formada por profissionais qualificados na área
de serviço social, orientação, educacional, direito e psicologia, dentre outras
especialidades, considerando-se como seus integrantes as Assistentes Sociais
Forenses, os Comissários da Infância e da Juventude, Educadoras Educacionais,
Psicólogas e demais profissionais atuantes nesta área, todos indicados pelo Juiz de
Direito.
Não existe quantificação de resultados da experiência de Joinvile, todavia o
autor da Portaria, o Juiz Alexandre Morais da Rosa (2008, p. 211), traz o seguinte
relato:
Os resultados são animadores. (...) Há uma preocupação, também, contra o perigo da monetarização dos relacionamentos
intersubjetivos, a saber, de se quitar as culpas com dinheiro, uma
vez que a psicanálise bem sabe o que significa: te pago para que
não nos relacionemos.
O projeto piloto de justiça restaurativa de Porto Alegre, Rio Grande do
Sul, de acordo com Beatriz Aguinsky e Leoberto Brancher (2009), também foi
direcionado para a infância e juventude, para pacificação de situações de violência
envolvendo crianças e adolescentes, implementado na 3ª Vara da Infância e da
Juventude de Porto Alegre/RS.
Este projeto foi denominado de “Justiça para o Século 21”, e consiste
numa experiência que objetiva a adaptação, teste, avaliação, sistematização
e incorporação institucional de procedimentos, valores e ideias sobre a justiça
restaurativa, focado na realidade local (AGUINSKY; BRANCHER, 2009).
Entre as justificativas do projeto é ressaltada a necessidade de superar
políticas públicas que retro alimentam um sistema que não observa as demandas
do público infanto-juvenil, quando este pratica algum tipo de comportamento
desviante (AGUINSKY; BRANCHER, 2009).
O projeto de justiça restaurativa da capital baiana foi elaborado em março
de 2009 pela Juíza de Direito da Extensão do 2º Juizado Especial Criminal, da
Capital baiana, coordenadora do projeto, conjuntamente com a Desembargadora
Presidente do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, o Secretário de Reforma
do Judiciário do Ministério da Justiça e o Diretor Superintendente do Instituto
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i encontro de internacionalização do conpedi
Pedro Ribeiro de Administração Judiciária - IPRAJ, que é a instituição gestora
financeira do projeto.
O novo modelo funciona no Juizado Especial Criminal, situado no Largo
do Tanque, com o objetivo de instalar o Programa de Justiça Restaurativa, em
Salvador, na zona de periferia, com abrangência na região suburbana de Lobato,
Plataforma, Coutos, Escada, Periperi e Paripe, além dos Bairros da Liberdade,
São Caetano, Fazenda Grande, Uruguai e Bonfim. A ideia é aplicar a pratica da
mediação em conjunto com a Lei nº. 9.099/95, que cuida dos crimes de menor
potencial ofensivo.
Estão envolvidos no projeto além do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia,
o Ministério Público Estadual, a Defensoria Pública, a Ordem dos Advogados
do Brasil, a Universidade Salvador, a Secretaria de Segurança Pública do Estado
da Bahia, a Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania, a Academia
da Polícia Civil da Bahia, a Sociedade Protetora dos Desvalidos, o Centro de
Estudos e Terapia do Abuso de Drogas, Centro de Saúde Mental Dr. Álvaro
Rubin de Pinho, Associação Cultural Bloco Carnavalesco Ilê Aiyê, Universidade
do Estado da Bahia e União Metropolitana para Desenvolvimento da Educação
e da Cultura.
3. a justiça restaur ativa e o processo de vitimização
Uma vez apresentada a justiça restaurativa, cumpre agora delimitar o enfoque de abordagem, enfatizando o posicionamento da vítima no referido modelo
em comparação ao tradicional sistema de solução de conflitos. Para tanto, inicialmente, pretende-se examinar o conceito de vitima, para, em seguida,
apresentar o objeto de estudo da vitimologia. Isto porque se intenta analisar a
justiça restaurativa a partir do olhar da vitimologia e da diretriz geral de maior
proteção ao sujeito ofendido.
Elías Neuman (1994, p. 27) trabalha a evolução gramatical do conceito,
atentando, inicialmente, para o sentido etimológico do vocábulo “vítima”, que
teria sua origem em duas variações - vincire e vincere. O primeiro vocábulo estaria
relacionado ao sacrifício de animais como oferenda para os deuses, ao passo que
vincere teria o condão de representar o sujeito vencido.
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i encontro de internacionalização do conpedi
Esclarece Lélio Braga Calhau (2002, p. 22), neste sentido, que o conceito
de “vítima” pode ser extraído de diferentes linhas conceituais, destacando-se a
gramatical ou literária, a vitimológica e a jurídica.
Em todos os campos semânticos, pode-se ver que, gramaticalmente, a vítima
é aquele que sofre uma lesão ou perda. É por esta razão que se vê, na língua
portuguesa, o amplo uso da palavra “vítima”, bem como a manutenção das mesmas
origens terminológicas em outros idiomas, tal como ocorre com “victim”, em
inglês; “victime”, em francês e “vittima”, em italiano (NEUMAN, 1994, p. 27).
Ainda quanto ao sentido etimológico, Jaume Solé Riera (1997, p. 20) acrescenta
se tratar daquele que sofre um dano em virtude de culpa alheia ou de caso fortuito.
A criminologia, ao tratar da origem do crime, investigando suas possíveis
causas, demorou a voltar atenção para o estudo da vítima. Primeiramente, a
criminologia positivista promoveu um enfoque bioantropológico para examinar
o fenômeno criminoso, o qual era compreendido como um dado ontológico, isto
é, uma realidade pré-constituída - anterior, portanto, à reação social e ao direito
penal (BARATTA, 2004, p. 34).
Com a criminologia crítica, o enfoque deixa de ser o sujeito criminoso
e passa a ser o próprio processo de criminalização, abandonando-se a ideia de
“delito natural” em prol do exame dos mecanismos seletivos que determinam a
criação das normas penais, originando, com isso, o crime - passando este a ser
compreendido como fruto do controle social (BARATTA, 2004, p. 34).
Nota-se, portanto, que o estudo criminológico não atentou, em princípio,
para um “conceito” próprio de vítima, uma vez que esta não consistia seu objeto
específico de estudo, já que a origem do delito esteve, durante muito tempo,
relacionada às características do criminoso e, após, com a criminologia crítica,
relacionada à seleção dos tipos penais.
Resta saber, uma vez compreendido o conceito de vítima, qual a importância
e o tratamento que a esta têm sido dispensados pelo ordenamento jurídico,
examinando quais vantagens a solução restaurativa apresenta em comparação à
ao modelo punitivo tradicional de solução.
3.1. a vitimologia e a proteção do ofendido
A análise crítica proposta pelo presente projeto fundamenta-se na evolução
dos estudos atinentes à vitimologia, cuja tradicional definição é dada como “o
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i encontro de internacionalização do conpedi
estudo científico das vítimas do delito”, em que se vinculou a análise, por parte
do julgador, do comportamento da vítima à necessidade de uma nova atitude
garantista de proteção e de ajuda moral e material perante o ofendido8, conforme
ensina Elias Neuman (1994, p. 23).
De acordo com Tony Peters (2001, p. 208), os primeiros estudos vitimológicos subordinavam a análise do ofendido do delito às questões etiológicas
então objeto de estudo da criminologia positivista, contexto que marca o surgimento da vitimologia etiológica. Esclarece o autor que, somente a partir da década
de quarenta, passou-se a atentar para o papel assumido pela vítima quando da
realização do delito.
Sobre as origens do pensamento vitimológico, Gerardo Landrove Díaz (1990,
p. 26) esclarece que, apesar de o estudo da vítima, em geral, tratar-se de um tema
tão antigo quanto a própria humanidade, a aproximação científica relacionada
ao tema se produz, basicamente, em um contexto posterior à segunda guerra
mundial.
Aponta como um dos pioneiros da nova ciência o criminólogo alemão exilado
nos Estados Unidos Hans Von Hentig (1948, p. 383), que publicou, no final
da década de quarenta, o estudo “The criminal and his victim” - obra em que
se apresenta a primeira classificação geral de vítimas e um estudo de seus tipos
psicológicos.
Em sua obra, Hans Von Hentig (1948, p. 383) dedica capítulo específico para
tratar da vítima, centralizando o estudo no exame da contribuição do ofendido
para a gênese do crime, expondo, com isso, que sempre há dois sujeitos ligados
ao crime - aquele que perpetra a lesão e a vítima, quando já assinalava que o
consentimento daquele que sofre a lesão teria força para transformar um ato
criminoso em um ato legal.
Para Ester Kosovski e Elida Séguin (2000, p. v), a vitimologia é uma ciência
nova, que, em sua origem, fora considerada um campo paralelo à criminologia,
adquirindo, posteriormente, maior abrangência. Possui um campo de estudo
8 NEUMAN, Elias. Victimología: El rol de la víctima en los delitos convencionales y no
convencionales. (tradução livre) Buenos Aires: Editorial Universidad, 1994, p.24.
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i encontro de internacionalização do conpedi
interdisciplinar, verificando-se uma vinculação estreita com a Medicina; Psicologia; Assistência Social; Direito, dentre outros ramos integrantes deste campo
multidisciplinar de atuação.
Questiona-se o caráter científico autônomo da vitimologia, ou se esta corresponderia a um ramo integrante da criminologia. Para Heitor Piedade Júnior
(2001, p. 64), trata-se de um desdobramento da criminologia, uma vez que,
do crime, resulta, necessariamente, uma vítima; acrescenta, outrossim, que a
vitimologia corresponde a um ramo do conhecimento interdisciplinar, cujo
diálogo com outros campos do conhecimento é indispensável para uma tutela
substancial do ofendido, destacando-se o direito constitucional; penal; processual
penal; civil e processual civil.
Esclarece Ester Kosovski (2000, p. 21) que a vitimologia tem como objetivos
principais o desenvolvimento de estudo e pesquisa sobre as vítimas; a mudança
da legislação e a assistência e proteção do ofendido. Em linhas gerais, supera a
tradicional prevalência de atenção centralizada no sujeito delinquente e no fato
criminoso a fim de incluir, também, a abordagem vitimológica.
A vitimologia, de acordo com Hilda Marchiori (1996, p. 13), é uma disciplina
que tem como objeto o estudo científico das vítimas do delito, considerando-se
vítima, na mesma linha do quanto já tratado, a pessoa que sofre uma lesão em
seu corpo, sua propriedade, ou outro bem. Assim, vítima é a pessoa que padece
de um sofrimento físico, psicológico ou social em razão de uma conduta agressiva
de outrem.
A autora esclarece que toda espécie de vitimização produz, em maior ou
menor grau, uma diminuição do sentimento de segurança individual e, também,
coletivo. Isto porque a agressão antissocial afeta não só o sujeito passivo, enquanto
vítima direta, como também sua família e sua comunidade social e cultural
(MARCHIORI, 1996, p. 14).
Neste sentido, os estudos de vitimologia têm observado que a ocorrência do
delito gera um trauma para a vítima, sobretudo pelo fato de a lesão romper com
uma comum sensação de inviolabilidade e de imunidade comum a todos aqueles
que (ainda) não haviam sofrido delito algum (MARCHIORI, 1996, p. 14).
Gerardo Landrove Díaz (1990, p. 34) aponta a década de setenta como o
marco contextual de consolidação da vitimologia enquanto uma disciplina
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volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
científica nova, autônoma e paralela à criminologia. Alerta que a criminologia
tradicional pouco demonstrou, em seus mais variados trabalhos, interesse para
com o sujeito passivo do delito, de modo que a vitimologia assumiria a árdua
tarefa de superar este vazio científico.
De acordo com Antonio Garcia Pablos de Molina (2008, p. 134), a moderna
vitimologia não tem como pretensão um retorno ao passado paradigma de
vingança privada ou “idade de ouro” da vítima, uma vez que a resposta ao delito
não pode seguir os impulsos emocionais do ofendido.
Não se trata, também, de contrapor os interesses da vítima aos direitos e garantias do delinquente. O que se busca, por meio do novo movimento vitimológico,
é uma redefinição global do status de vítima e, com isso, o estabelecimento de
uma nova relação entre esta e o delinquente; e o sistema legal; e a sociedade; e os
poderes públicos, modificando, com isso, as ações políticas voltadas para a vítima,
especialmente as de assistência (MOLINA, 2008).
Com isso, os novos estudos em torno do ofendido passam a observar o
trauma pós-lesão como consequência vitimológica do delito, particularmente
caracterizado por um sentimento de vulnerabilidade provocado no sujeito
passivo do crime, o que acarreta, por consequência, sentimentos de angústia,
desconfiança, bem como insegurança individual e social. O crime significa, a um
só tempo, um dano e um perigo - dano em razão da lesão já ocorrida; perigo em
razão da possibilidade de uma nova vitimização futura. (MARCHIORI, 1996)
Pedro Moura Ferreira (1997), ao examinar o processo de vitimização desde
a fase juvenil, atenta para a importância do papel da escola no processo de
vitimização. Segundo o autor, cerca de 60% dos casos de vitimações já se inicia no
espaço escolar, especialmente por se tratar de uma ambiência que reúne, por um
longo período, sujeitos extremamente diversificados, e que nem sempre oferece
condições de segurança e vigilância necessárias à efetiva prevenção de lesões.
Demais disso, acrescenta que a supervisão familiar do desenvolvimento juvenil
figura variável crítica de forte impacto sobre o processo de vitimização. De acordo
com o autor, o papel da família, apesar de limitado - haja vista, sobretudo, o fato
de a vítima não passar a maior parte de seu dia em direta vivência familiar -, tem o
papel de exercer a supervisão e o acompanhamento do desenvolvimento do jovem
(FERREIRA, 1997).
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i encontro de internacionalização do conpedi
É fácil observar, todavia, que o papel familiar de fiscalização, no âmbito
das relações pós-modernas, mormente tem sido deixado de lado, sem o efetivo
cumprimento, não raro com o fundamento na “inocente” crença de transferência
para as demais instâncias diretas de convívio com o jovem - destacando-se aqui o
próprio ambiente escolar. O resultado disso é o desenvolvimento de grande parte
dos jovens já em um ambiente de descuido, gerando-se um ambiente favorável à
vitimização. O principal problema, neste caso, é a incorporação do processo de
vitimização como parte inerente ao convívio social9.
3.2.sobre os diferentes estágios de vitimização
Os estudos de vitimologia apontam para a existência de diferentes formas e
fases de vitimização. Assinala James Dignan (2005, p. 23) que a vitimização é
um processo complexo marcado por vários elementos, pois abrange o momento
vivenciado durante o cometimento da ofensa; compreende, também, a reação da
vítima à ofensa, incluindo suas mudanças internas decorrentes da interação com
o fenômeno criminoso; o processo complexo ainda abarca a interação da vítima
com terceiros, especialmente os agentes da justiça criminal.
É por esta razão que os estudos vitimológicos apontam a existência de diferentes estágios de vitimização. A vitimização primária, de acordo com Gerardo
9 Disto o autor diverge. Após entrevistar diversos jovens vítimas e não vítimas das mais
variadas lesões, concluiu que, “o acompanhamento mais intenso da atividade escolar dos
filhos, aparentemente, não implica qualquer segurança adicional no que respeita ao controlo
que sobre os adolescentes é exercido, indicando que a vitimização é independente do
empenhamento com que os pais seguem a educação escolar dos filhos”. Cabe aqui discordar.
A pesquisa feita pelo autor foi orientada a partir de entrevista objetiva, na qual a pergunta que
avaliou o item em debate foi formulada da seguinte forma: “Os teus pais costumam estar a
par da tua vida escolar?”. (FERREIRA, 1997, p. 166). Com o mencionado questionamento,
a semelhança do percentual de vítimas e de não vítimas entrevistadas que respondeu “Muito”
ao referido questionamento levou o autor à conclusão de que o acompanhamento familiar
não gera um acréscimo de segurança para os filhos enquanto estão fora de casa. Não nota o
autor, todavia, que, ainda que não se possa falar em uma maior possibilidade de prevenção
de agressões por meio da fiscalização pela família, o tratamento posterior de eventuais danos
sofridos é imprescindível para a não ocorrência da banalização do processo de vitimização.
Em outras palavras, ainda que a fiscalização familiar não seja capaz de prevenir lesões, o
acompanhamento pela família é importante para o tratamento adequado do processo de
vitimização, desde o momento de sua primeira ocorrência, de forma a evitar a sua perpetuação
na formação social do jovem vitimado.
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i encontro de internacionalização do conpedi
Landrove Díaz (1990, p. 43), reflete a experiência direta do ofendido com as
consequências prejudiciais primárias produzidas pelo delito. Estes danos diretos
podem se apresentar por meio das mais variadas naturezas, compreendendo desde
a ofensa em si ao bem jurídico lesionado, até os danos psicológicos, econômicos
e sociais imediatamente decorrentes do crime (DÍAZ, 1990).
Assim, a ansiedade decorrente do medo de que o delito não se repita; o
abatimento psicológico decorrente da lesão; a mudança de hábitos do ofendido
e, consequentemente, a alteração da sua forma de relação social, são mostras do
processo de vitimização primária (DÍAZ, 1990). Por esta razão, James Dignan
(2005, p. 23) atenta para a necessidade de se distinguir os efeitos do crime em si
dos impactos decorrentes do crime na vida da vítima.
Para Jaume Solé Riera (1997, p. 27), o fato de o atual modelo de garantias
protecionistas ser pensado, basicamente, para a figura do imputado, deixando de
lado as vítimas dos delitos, faz aparecer o conceito de vitimização secundária. Tratase, pois, de um efeito da neutralização hoje enfrentada pelo ofendido. Consiste
no fato de a vítima experimentar o que o autor denomina um plus negativo ante
o aparato estatal, sem que se lhe dispense a atenção jurídica necessária, o que se
soma à já dramática situação de vida suportada pelo sujeito agredido em razão do
delito sofrido.
Este processo de vitimização secundária é vivenciado não só no processo penal, como também na fase pré-processual, quanto da busca por amparo junto aos
aparatos estatais de controle. Esclarece Elena Larrauri (1992) que os estudos de
vitimização foram úteis, sobretudo, para a constatação de que existe um número
significativo de casos que sequer chega a fazer parte das estatísticas policiais.
Raul Cervini ( 1992, p. 129) atenta para o processo de vitimização, pontuando que a vítima sofre não só com o fato punível em si, mas também com
a reação formal e informal derivada do delito - quando se extraem danos
psicológicos, físicos, sociais, econômicos, dentre tantos outros. Acrescenta o autor
que, frequentemente, a vítima é pensada tão somente como um instrumento
processual de busca da verdade, ou, pior, como o verdadeiro acusado em lugar do
autor do fato.
É diante do referido contexto que se observa o processo de vitimização
secundária ou sobrevitimização, materializado no dano adicional sofrido pela
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i encontro de internacionalização do conpedi
vítima em razão da própria mecânica do (mau) funcionamento da justiça penal
formal (CERVINI, 1992, p. 129).
Ana Isabel Pérez Cepeda (2001, p. 475), consciente dos prejuízos que a vítima sofre com o cometimento do delito, bem como durante sua investigação e
persecução criminal, afirma dever existir uma intervenção positiva dos particulares
e dos poderes públicos direcionada à satisfação das necessidades e expectativas
do ofendido.
Esclarece Raul Cervini (1992) que a vitimização secundária se manifesta,
inicialmente, já no momento em que a vítima busca o amparo da polícia. O
autor aponta o despreparo de agentes policiais para com o amparo à vítima como
um problema comum aos mais diversos ordenamentos, uma vez que a atuação
da polícia está, ordinariamente, voltada à identificação do responsável pelo crime,
não aos cuidados com o ofendido.
Para além das dificuldades oriundas do descaso normalmente enfrentado em
delegacias de polícia, a sobrevitimização também se substancializa nos diversos
entraves burocráticos relacionados ao início do processo e, em seguida, no
curso da própria persecução criminal, especialmente em razão da longa demora
processual (CERVINI, 1992, p. 131).
Enfatiza Selma de Santana (2010) que a vitimização secundária se manifesta
no tratamento impessoal das instâncias de controle social; na excessiva
burocratização do sistema, o que antecede a fase processual. Já no curso do
processo, a vitimização secundária se prolonga em uma série de outras situações,
especialmente na frequente desqualificação do sujeito ofendido como estratégia
defensiva (SANTANA, 2010).
Para além dos estágios de vitimização primária e secundária, cabe atentar,
também, para os processos de vitimização terciária e quaternária. Explica Jorge
Luis Nassif Magalhães Serretti que a vitimização terciária está relacionada à
rejeição da vítima junto ao seu grupo social em razão do próprio processo de
vitimização. Deste modo, a vítima passa a ser alvo de um juízo social de censura,
sofrendo, portanto, uma nova vitimização.
De acordo com Ana Sofia Schmidt de Oliveira (1999, p. 114), o sentimento
social de rejeição voltado contra a vítima deriva, sobretudo, de uma não
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i encontro de internacionalização do conpedi
identificação com a infração sofrida ou, pior, de uma repulsa inconsciente a uma
identificação com atributos socialmente negativos percebidos na vítima. Este
processo, segundo a autora, é extremamente comum nos crimes sexuais, em que
uma eventual identificação percebida pelo indivíduo que divida com a vítima um
mesmo ambiente social é, inconscientemente, transformada em repulsa.
A vitimização quaternária, por seu turno, manifesta-se no medo da vítima em
ser, novamente, vitimizada (SERRETTI, 2011). Para Elena Larrauri (1992), o
temor vivenciado pela vítima tem como uma de suas principais razões o fato desta
dividir, frequentemente, o mesmo ambiente social que o seu agressor, consoante
apontam os estudos vitimológicos.
Tony Peters (2001, p. 221) adverte se tratar de um equívoco a valoração das
consequências da vitimização a partir da gravidade do delito, acrescentando que,
em grande parte, os processos de vitimização decorrem de delitos de pequena
gravidade. Significa então dizer que o impacto da vitimização está mais relacionado
às características pessoais do ofendido; ao seu comportamento; ao seu contexto
social; ao tratamento dado pelas instâncias de controle, do que à espécie delitiva
sofrida.
3.3. a vitimização secundária e a solução restaur ativa
A partir do quanto já foi exposto, há que se atentar, especialmente, para
o processo de vitimização que se inicia a partir do sofrimento direto com o
cometimento do delito. Sendo a decidibilidade de conflitos no campo da dogmática penal uma forma de intervenção essencialmente tardia - cabe notar que
não há que se falar no exercício do poder punitivo antes da ocorrência de uma
lesão ou, ao menos, de um perigo concreto de lesão a um bem jurídico -, o Estado
deve voltar sua atenção à continuidade do processo de vitimização que se dá para
além da ocorrência do crime.
Observando a realidade brasileira, vale destacar, como forma de minimização
do processo de vitimização secundária, a criação de delegacias especializadas,
aparelhadas para um atendimento mais adequado à vítima. Além disso, citase, também, a consolidação do entendimento jurisprudencial a respeito da
desnecessidade de representação formal para os crimes processados por meio
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de ação penal pública condicionada à representação, quando será bastante a
manifestação de vontade do ofendido para que seja apurada a responsabilidade
do autor do fato (STJ, HC 15391 / DF, 5ª Turma, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ
27/08/2001 p. 360).
No entanto, em que pese os avanços destacados, ainda há um longo caminho
a se percorrer na busca por soluções do processo de vitimização secundária do
ofendido. A justiça restaurativa, nesse sentido, é o modelo que mais se aproxima
de um resgate cidadão da vítima após o sofrimento da lesão.
De acordo com Antonio Scarance Fernandes (2001, p. 2), no processo penal
tradicional, a vítima assume o mero papel de informante, sendo considerada uma
colaboradora do sistema, assumindo condição semelhante à de uma testemunha.
Para o processo penal, o lesado, sujeito passivo do crime, não é considerado quer
sujeito passivo principal, quer secundário, da ação penal.
Significa dizer que, pelo entendimento tradicional10, apesar de a vítima sofrer
com a prática do delito, o seu interesse jurídico somente repercute na esfera cível,
não chegando à órbita penal.
Vale citar, como forma de tornar claro o descaso para com a vítima observado
no processo penal tradicional, o teor do art. 201 do Código de Processo Penal
brasileiro, que determina a condução coercitiva da vítima que não comparece
para prestar declarações:
Art. 201. Sempre que possível, o ofendido será qualificado e
perguntado sobre as circunstâncias da infração, quem seja ou
presuma ser o seu autor, as provas que possa indicar, tomando-se
por termo as suas declarações. (Redação dada pela Lei nº 11.690,
de 2008)
10 Entendendo o assistente de acusação como sujeito incompatível com o sistema acusatório
processual penal, tem-se Aury Lopes Jr. (2010, p. 44); em sentido oposto, sustentando que
é legítimo o interesse jurídico do ofendido na aplicação justa da pena, afirma Guilherme
de Souza Nucci (2010, p. 558). Ressalte-se, por fim, que o entendimento jurisprudencial
acerca da matéria foi parcialmente pacificado por meio da súmula 210, do Supremo Tribunal
Federal, segundo a qual “O assistente do Ministério Público pode recorrer, inclusive
extraordinariamente, na ação penal, nos casos dos arts. 584, § 1º, e 598 do Código de
Processo Penal”.
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§ 1o Se, intimado para esse fim, deixar de comparecer sem motivo
justo, o ofendido poderá ser conduzido à presença da autoridade.
(Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)
Deste modo, o processo penal tradicional funciona como meio de perpetuação
dos estágios de vitimização impostos ao sujeito ofendido, tratando-o como mero
objeto, sem colocar à disposição instrumentos adequados e eficientes de proteção
e amparo, especialmente após a vivência do trauma ocasionado após o delito.
Raul Cervini (1992, p. 126) trata, ainda, do papel da vítima na políticacriminal tradicional como um sujeito informal de controle do delito, aparecendo,
primeiramente, com a mera função de noticiar o evento criminoso. Uma vez dado
o conhecimento às autoridades do cometimento do delito, caberia ao Estado o
controle do procedimento, entretanto, a comum demora e excesso de burocracia
procedimental acabavam por promover um “adormecimento” das denúncias
(CERVINI, 1992, p. 126).
É em razão da morosidade do Judiciário que as vítimas, caso desejassem a efetiva satisfação do direito substancial, deveriam assumir a função de impulsionamento do feito, não mais podendo aguardar a atuação de ofício por parte
dos sujeitos formais do processo (CERVINI, 1992). É esse um dos fatores que
contribui para uma nova compreensão da vítima - não como parte formal do
processo, mas como instrumento de estímulo da movimentação processual.
Para Antonio Scarance Fernandes (2001, p. 8), apesar de, atualmente, já
se verificar uma certa redescoberta processual da vítima, ainda há muito a ser
melhorado. De acordo com o autor, deve-se buscar uma dignificação do papel da
vítima no processo penal, de modo que o ofendido tenha legitimidade quer para
a defesa de interesses civil, quer para a busca da “justa condenação do réu”.
A mencionada redescoberta deve-se, sobretudo, ao crescimento da chamada
“justiça consensual”, em que são buscadas, em um novo modelo processual
penal, a solução material do problema da vítima, voltando-se, sobretudo, para a
reparação do dano sofrido. No Brasil, em matéria penal, esta nova dimensão da
importância processual e substancial da vítima ganha corpo, sobretudo, com o
advento da já referida Lei dos Juizados Especiais Criminais.
Antonio Beristain (2000, p. 140) aponta a necessidade de evolução do atual
programa de política criminal para um novo modelo de política vitimal, o qual
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estaria voltado ao estudo e à compreensão tanto do delinquente enquanto vítima
da sociedade, quanto das vítimas diretas e indiretas do delito.
Como é possível perceber do quanto foi apresentado, a inserção da vítima
no processo restaurativo retira-a do local tradicionalmente definido pelo sistema
penal, qual seja à margem do processo, como se mero objeto fosse, para dar-lhe
voz e permitir-lhe que se aproprie do conflito.
A conciliação atende melhor às necessidades reais da vítima,
sejam materiais, sejam morais, e evita a perniciosa vitimização
secundária. Facilita a efetiva reparação dos danos (reparação não
necessariamente econômica ou pecuniária) e proporciona um
positivo mecanismo de comunicação recíproca entre infrator e
vítima, que melhora, inclusive, as atitudes desta última, de tal
modo a se encontrar a correta solução do conflito. (MOLINA;
GOMES, 2006. p. 406)
A mudança de papel da vítima é fundamental na concretização da cidadania,
a mutação do seu papel tem entre outras finalidades reduzir o seu sofrimento, o
que deveria ser o foco da justiça penal, todavia o sistema penal acaba utilizando-o,
ao invés de saná-lo, pois ele “atrai um interesse pernicioso da mídia e, por
consequência, também atrai a atenção de políticos, especialmente durante as
campanhas eleitorais” (SICA, 2007, p.173).
Explica Selma de Santana (2010, p. 22) que a vitimologia encontra importância ao modificar o enfoque de análise lançado pelos pioneiros da criminologia, representantes da Escola Positiva italiana, todos com o olhar debruçado
sobre a figura do criminoso. Passa, portanto, a voltar atenção não para aquele
que pratica o crime, mas para o sujeito que sofre imediata e mediatamente com
a ação criminosa.
É com esse enfoque que a vítima deixa de ser compreendida como mero
sujeito passivo do crime e meio de prova para o processo penal, passando a ser
vista, a partir dos estudos vtimológicos, como o sujeito titular do valor violado
por meio do crime, é dizer, o titular do bem jurídico ofendido pela conduta
delitiva (SANTANA, 2010).
É, portanto, esta percepção vitimológica alcançada pela justiça restaurativa
que, por sua vez, reorienta o programa político-criminal de tutela vigente,
186
volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
passando esse a transcender a essência punitivista do direito penal para que se
passasse a buscar programas de amparo ao ofendido; modelos de compensação de
dados e, de um modo geral, ações institucionais voltadas à redução do processo de
vitimização que se alastra para além do sofrimento direto quando da ocorrência
do delito (SANTANA, 2010).
4.conclusões
A esclerose do sistema de justiça formal acaba gerando mais violência,
pois quando os cidadãos percebem que o sistema formal de justiça não está
funcionando, como eles desejam, podem buscar a justiça alternativa, não aquela
que se discutiu neste trabalho, mas outras formas, inclusive os meios ilegais e
violentos de se obter justiça.
O resultado é a vingança privada em lugar da retribuição estatal legítima
ou da justiça socialmente consensual e democrática. Tais práticas não são complementares, mas antitéticas em relação ao sistema de justiça formal, e são em
especial destrutivas para o tecido social das comunidades. Elas não melhoram o
acesso à justiça para os cidadãos e comunidades desprovidos de poder, mas sim
fornecem uma justiça torpe de cidadãos privados, vingativos, que normalmente
corresponde àquela parcela da sociedade destituída de poder, que acabam se
tornando as vítimas principais do próprio sistema.
A justiça restaurativa destaca-se por possuir um viés preventivo e educativo,
principalmente em relação a adolescentes e jovens. Como foi descrito no trabalho,
tanto as práticas internacionais, como a maioria das práticas brasileiras foi
direcionada para o público infanto-juvenil, com resultados a priori satisfatórios
no efeito educacional, e como consequência prevenindo ocorrências futuras.
A implementação da justiça restaurativa deve, necessariamente, ocorrer
através da elaboração de políticas públicas com essa finalidade. Essas, por
sua vez, não podem perder de vista que a concretização de práticas de cunho
restaurativo demanda um procedimento particular, com ambiente favorável para
recomposição de danos, e que, principalmente, os mediadores não devem ser
da área jurídica, pela falta de qualificação específica para a tarefa, que é afeita a
psicólogos e assistentes sociais.
volume
15
187
i encontro de internacionalização do conpedi
A inclusão do cidadão e a possibilidade de recomposição de danos (materiais e
morais) intermediada pelo Estado podem gerar a recomposição da imagem deste
perante a sociedade, tão abalada pela crise ética vivenciada pelas instituições.
O direito penal não pode desenvolver um programa de tutela que se volte,
apenas, para a proteção impessoal de bens jurídicos, devendo atentar, ainda, para a
necessidade de proteção do sujeito lesionado, de modo que o tratamento criminal
do fenômeno criminoso não poderá contar, unicamente, com uma análise
dogmática do evento.
A decidibilidade de conflitos deve abrir espaço para a vitimologia, cabendo
ao sistema penal o desenvolvimento de um programa de proteção atento para
a necessidade de se afastar o processo de vitimização que se estende para além
da prática do crime, não cabendo mais falar em uma dogmática pura, insensível
às necessidades de proteção da vítima, bem como ao respeito às garantias
fundamentais do acusado.
A justiça restaurativa, diferentemente do modelo penal tradicional, resgata a
importância do papel da vítima na solução do conflito, sem que tal fato represente
um retorno à vingança privada. Com isso, passa a acolher o sujeito ofendido
como parte integrante da construção da reparação do dano, não mais como mero
elemento probatório.
Esse processo de acolhimento e amparo do ofendido minimiza, de forma
significativa, o processo de vitimização perpetuado ao longo do processo penal
tradicional, uma vez que o ofendido volta a ser elemento de atenção do Estado,
reduzindo-se, assim, o desamparo atualmente vivenciado por aquele que busca o
auxílio protetor da justiça penal tradicional.
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i encontro de internacionalização do conpedi
liber alismo e pena: montesquieu,
beccaria, mar at, romagnosi,
feuerbach e carr ar a
Ellen Rodrigues1
Mara Conceição Vieira de Oliveira 2
Será que a liberdade é uma bobagem?...
Será que o direito é uma bobagem?...
A vida humana é que é alguma coisa a mais que
ciências, artes e profissões.
E é nessa vida que a liberdade tem um sentido,
e o direito dos homens.
A liberdade não é um prêmio, é uma sanção.
Que há de vir.
Mário de Andrade, poeta brasileiro
Resumo
Objetiva-se, aqui, estabelecer um diálogo entre o pensamento político
que norteou o ideário liberal clássico e o discurso jurídico-penal que floresceu
no período iluminista, o chamado penalismo ilustrado. No âmbito teóricoconceitual, metodologicamente, descrever-se-á noções acerca das transformações
nas relações de poder na modernidade, demarcando-se, como suporte teórico as
contribuições de Max Weber, Michel Foucault, Jüngen Habermas e Vera Malaguti, bem como outros autores que propiciaram a reflexão acerca dos limites ao
poder punitivo naquela conjuntura, com destaque para Montesquieu, Beccaria,
Marat, Romagnosi, Feuerbach e Carrara. Consubstanciando fundamentação de
conclusão destaca-se que, ao revisitar as abordagens dos penalistas da conjuntura
liberal clássica, o estudo não pretende aventar uma visão romantizada das agências
1 Advogada; Doutoranda em Direito Penal – UERJ; Mestre em Ciências Sociais – UFJF;
Especialista em Direito Público – UCAM; Bacharel em Direito – UFJF; Professora de Direito
Penal e Criminologia – UFJF.
2 Professora de Língua Portuguesa; Doutora em Letras – UFF; Mestra em Teoria Literária UFJF; Professora no Curso de Direito da Estácio de Sá de Juiz de Fora.
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i encontro de internacionalização do conpedi
responsáveis pela execução do poder punitivo à época das luzes, mas sim remontar
o espírito combativo e politizado dos teóricos que, longe de serem lembrados
como membros de uma dada escola penal, são homens que souberam retratar o
espírito revolucionário de uma época. No resultado desta pesquisa, entende-se
que a política criminal que marca o nosso tempo é contrária à lógica sobre a qual
o Direito Penal moderno repousa, segundo a qual a função desse ramo do Direito
deve ser a redução e a contenção do poder punitivo, sendo – neste sentido – um
apêndice indispensável ao Estado de Direito.
Palavras-chave
Liberalismo; Pena; Política criminal; Direito penal.
Resumen
Se objetiva, aquí, establecer un diálogo entre el pensamiento político que basó
el ideario liberal clásico y el discurso jurídico penal que floreció en el período
iluminista, lo que se denominó el penalismo ilustrado. En el ámbito teórico
conceptual, metodológicamente, se describirá nociones sobre las transformaciones
en las relaciones de poder en la modernidad, demarcándose, como soporte teórico
las contribuciones de Max Weber, Michel Foucault, Jüngen Habermas y Vera
Malaguti, además otros autores que propiciaron la reflexión sobre los límites al
poder punitivo en aquella coyuntura, con destaque para Montesquieu, Beccaria,
Marat, Romagnosi, Feuerbach y Carrara. Al consustanciar fundamentación
de conclusión se destaca que, al revisitar los abordajes de los penalistas de la
coyuntura liberal clásica, el estudio no pretende plantear una visión romantizada
de las agencias responsables por la ejecución del poder punitivo a la época de las
luces, sino remontar el espíritu combativo y politizado de los teóricos que, lejos
de hacerse acordados como miembros de una escuela penal, son hombres que
supieron retratar el espíritu revolucionario de una época. En el resultado de esta
investigación, se entiende que la política criminal que marca nuestro tiempo está
contraria a la lógica sobre la cual el Derecho Penal moderno reposa, según la cual
la función de ese ramo del Derecho debe ser la reducción y la contención del
poder punitivo, siendo – en este sentido – un apéndice indispensable al Estado
de Derecho.
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i encontro de internacionalização do conpedi
Palabras clave
Liberalismo; Pena; Política criminal; Derecho penal.
1.introdução
Na manhã de 15 de janeiro de 2013 a OAB/RJ publicou em seu sítio virtual3
a notícia de que “em São Paulo, internação à força de viciado deve começar”,
expondo aos advogados associados e à comunidade, que o plantão judiciário
na cracolândia, no centro da cidade de São Paulo, que atuará nas internações
compulsórias de usuários de drogas, está previsto para começar a funcionar
na próxima semana. Ou seja, pouco tempo depois da limpeza promovida pela
prefeitura do Rio de Janeiro, agora é a vez de o governo paulista adotar uma
política de atenção aos dependentes de drogas baseada na internação compulsória.
O referido projeto foi discutido pelo governo do Estado e contará com a
cooperação do Tribunal de Justiça, Ministério Público e Ordem dos Advogados
do Brasil. A reportagem informa, ainda, que o programa destina-se a dependentes
químicos com estado de saúde considerado grave e sem consciência de seus atos,
o que deve ser devidamente atestado por um psiquiatra. Ao final do texto, a
secretária responsável afirma não ser este “um projeto higienista nem de internação
em massa”.
Num contexto democrático, é de causar espanto uma notícia desta natureza
- que tanto demonstra o avanço arbitrário do poder em detrimento do cidadão
(embora o usuário e o dependente de crack não sejam percebidos como tais) estar sendo divulgada pela Ordem dos Advogados do Brasil. Conforme insculpido
no art. 133 da Carta da República, “o advogado é essencial à administração da
justiça”. Tal dispositivo, arrolado no Capítulo IV do texto constitucional, indica
as funções essenciais à justiça, dentre elas o Ministério Público, a Advocacia e a
Defensoria Pública. A inserção da advocacia como função essencial à administração
da justiça visa garantir que os valores que norteiam a atividade advocatícia no país
estejam em consonância com os ditames constitucionais. Tal compromisso foi
reiterado na Lei 8906/94 que traduz, em seu artigo 44, o compromisso da OAB
3http://www.oabrj.org.br/detalheNoticia/77308/Em-SP-internacao-a-forca-de-viciado-devecomecar-segunda.html
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i encontro de internacionalização do conpedi
em defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado Democrático de Direito,
os direitos humanos e justiça social.
O fato de violações às garantias fundamentais decorrentes das referidas internações compulsórias não estar sendo questionado pela OAB e outros órgãos
atinentes à justiça, demonstra o esvaziamento do papel desses órgãos na luta
contra o arbítrio do poder em detrimento dos cidadãos brasileiros, no caso, os
usuários e dependentes de crack.
As práticas compulsórias de recolhimento desses cidadãos afrontam o fator
mais relevante para o tratamento da dependência: a vontade. Sendo esta uma
das manifestações da liberdade, não pode ser vilipendiada por políticas públicas
numa ordem democrática. O drama que circunscreve a vida dos dependentes
de crack não se lhes retira o poder de decisão sobre si mesmos. A opção pelo
confinamento forçado diz proteger aqueles a quem pretende neutralizar, prática
nada original na mecânica de poder capitalista.
O crack apenas atualiza dispositivos historicamente acionados pelos agentes
de poder contra as populações marginalizadas, tidas como temíveis e esteticamente
contrárias aos padrões burgueses. A limpeza dos centros urbanos em cidades como
Rio de Janeiro e São Paulo demonstra a permanência histórica das intervenções
autoritárias que, transformadas em plataformas políticas tendentes a sensibilizar a
sociedade quanto a sua eficiência na resolução do problema das populações de rua,
obscurece a real e permanente função das medidas de contenção nas sociedades
capitalistas.
Foucault, no seu Em defesa da sociedade, explica que na passagem do século XVIII
para o XIX a humanidade contou com o aparecimento de mecanismos, técnicas e
tecnologias de poder que podem ser consideradas como uma “biopolítica” da espécie
humana, que consiste em técnicas de racionalização de um poder que se devia
exercer, da maneira menos onerosa possível, mediante todo um sistema de vigilância
e controle da população. Além da higiene pública e medicalização da população,
outro campo de intervenção da biopolítica vai ser todo um conjunto
de fenômenos dos quais uns são universais e outros acidentais,
mas que, de uma parte, nunca são inteiramente compreensíveis e
acarretam consequências de incapacidade, de pôr indivíduos fora
do circuito, de neutralização, etc. (...) (FOUCAULT, 2000, p. 291)
196
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i encontro de internacionalização do conpedi
Essas técnicas de poder, formuladas a partir de bases utilitaristas e positivistas,
demandaram a organização de discursos legitimadores de suas práticas. A partir
do século XIX - ao contrário dos ideais de liberdade propugnados nas revoluções
burguesas do século XVIII - o poder tomou posse da vida. Ressalta-se, contudo,
que tal esbulho não alcança igualmente a todos. A seletividade com que o poder
passou a engendrar suas técnicas de controle social terminou por aumentar o
fosso das desigualdades e exclusões nas democracias liberais.
No contexto neoliberal, como assinala Wacquant4, esta mecânica de poder que
- através da microfísica (FOUCAULT, 1979) das instituições do Estado - articula
políticas de segurança pública, econômicas e assistenciais, revelou um incremento
sem precedentes quanto à policização5 dos programas sociais de assistência social6.
Para o autor, a articulação das preocupações com o controle e administração
das categorias despossuídas mudou o formato da paisagem social e recriaram o
próprio Estado, o qual não somente faz o uso legítimo do monopólio da violência
material (Weber), mas também o da violência simbólica (Bourdieu). O conceito
bourdiesiano de violência simbólica esclarece como a violência, obscurecida
através de discursos e práticas legitimantes, é naturalizada pela sociedade, e
termina por não ser percebida como violência. É esse mecanismo que faz com que
as internações compulsórias citadas acima não sejam percebidas como violentas
por boa parte da população brasileira.
Os efeitos da naturalização dessa violência são percebidos por Vera Malaguti
Batista como uma espécie de adesão subjetiva à barbárie que, grosso modo,
consiste numa crescente demanda coletiva por instrumentos de controle social
cada vez mais ofensivos, que convive com
4 Nas obras Punir os Pobres, As prisões da miséria e Os condenados da Cidade Loïc Wacquant
faz uma vigorosa crítica sobre as políticas criminais levadas a efeito no capitalismo tardio,
analisando os impactos da estratégia de prisionização estadunidense na passagem do Estado
previdenciário ao que ele chama de “Estado punitivo”.
5 http://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista61/revista61_237.pdf,
(LIBANO, 2013), Estado Penal versus Estado Democrático de Direito: A Hipertrofia do
Poder Punitivo e a Pauperização da Democracia
6 http://www.ess.ufrj.br/monografias/105119407.pdf, (Coelho, 2009), Democracia e
aprisionamento: duas questões atravessadas pelo não encontro. Capítulo 1: O avanço da
política penal e a policização da “questão social”, p. 11-33.
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[...] a neutralidade técnica das governamentalidades sociológicas.
Os efeitos estão por aí e doem: a expansão da prisão, sua teia
ampliada de justiças alternativas, terapêuticas, restauradoras, a
vigilância reticular, o controle a céu aberto, a transformação das
periferias em campos [...]. (BATISTA, 2012, p. 309-310)
As estratégias seletivas de controle social que vêm arrasando os contingentes
mais vulneráveis na atualidade fazem parte da história das sociedades modernas.
No entanto, a força empreendida por elas na atualidade é assustadoramente mais
ampla, posto que os índices de encarceramento e outras formas de privação e
liberdade com os mais diversos nomes alcançam níveis nunca antes percebidos na
história da humanidade.
No Brasil, como alerta a Professora Vera Malaguti em suas obras e nos cursos
de Criminologia na UERJ, na transição da ditadura para a democracia na
década de 1980, a face autoritária do poder punitivo foi atualizada na política de
segurança pública e, sob o signo do medo, vai - através de alianças com as agências
econômicas – amalgamando outros setores, até mesmo a Academia e forças
políticas da administração da Justiça, que deveriam ser um núcleo de resistência.
Diante desse cenário aterrador de nossos dias, retomar discursos que sustentavam a limitação do poder punitivo e a busca por espaços de liberdade
parecem impropérios quase sujeitos à criminalização. Afinal, liberdade e punição
são, de fato, palavras antagônicas. Para compreender como termos tão distintos
puderam ser reunidos na conjuntura social do século XVIII, é preciso buscar um
momento anterior na história das ideais.
O momento atual é de completo declínio das promessas de liberdade e
igualdade defendidas pelos filósofos e demais pensadores daquela conjuntura
revolucionária, bem como de enfraquecimento da noção de Estado e garantias
do modelo liberal clássico. Tal cenário, contudo, não deve ser capaz de apagar
um momento histórico da civilização ocidental, no qual indivíduos ávidos por
liberdade desafiaram a ordem dominante.
Os desdobramentos desses acontecimentos e as formas com que o poder se
reinventou7 nos séculos seguintes não têm o condão de apagar esta página da
7 Menegat, M. O sol por testemunha. In Batista, V.M. Loïc Wacquant e a questão criminal no
capitalismo neoliberal. Rio de Janeiro: Revan, 2012.
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história. Por isso, o presente estudo - embora aborde as transformações políticas
e sociais que subjazem à conjuntura liberal clássica de forma ampla – tem como
principal objetivo refletir sobre o pensamento de autores que se dedicaram à
construção dos limites para o exercício do poder punitivo.
Ao longo do texto, procurar-se-á destacar que mediante o protagonismo da
multidão que se opunha ao absolutismo e identificação das massas (tendentes às
manifestações revolucionárias) para com os destinatários da implacável tirania
levada a efeito entre as camadas urbanas pobres e famintas, os agentes de poder
precisaram engendrar novas técnicas e novos discursos para o controle social da
concentração de pobres que a acumulação de capital provocou (BATISTA, 2011).
É nessa conjuntura que o penalismo ilustrado (BATISTA, 2004) despontou
como discurso jurídico limitador do poder punitivo no Antigo Regime, o qual sob a égide da legalidade, da proporcionalidade, da determinação das penas e de
outros princípios e garantias que comporiam o núcleo duro do direito penal no
Estado de Direito – estabeleceu formalmente limites para a produção da verdade
e aplicação das penas.
Não obstante, destaca-se que, ao revisitar as abordagens dos penalistas da
conjuntura liberal clássica, o estudo não pretende aventar uma visão romantizada
das agências responsáveis pela execução do poder punitivo à época das luzes, mas
sim remontar ao espírito combativo e politizado dos teóricos que, longe de serem
lembrados como membros de uma dada escola penal, são homens que souberam
retratar o espírito revolucionário de uma época.
2. poder punitivo, direito penal e política criminal
Os estudos acerca de Política Criminal realizados na pós-graduação em Direito Penal da UERJ, oferecidos pelo professor Nilo Batista, acenaram para tanto
para o tema “Liberalismo e Pena”, quanto para outros clássicos da ciência política.
Ao longo do curso, no entanto, foi possível perceber que o tema escolhido era um
dos mais postos à prova na atualidade, haja vista que o estudo deveria revelar o
ouro garantista (BATISTA, 2011) do direito penal na confluência revolucionária
do século XVIII, o qual, atualmente, é pouco ou nada reluzente.
Em face dos desdobramentos da sociedade capitalista após as revoluções
burguesas do século XVIII e do distanciamento sistemático do ideário iluminista
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no pensamento político e jurídico-penal na atualidade, seria um desafio remontar
o cenário em que Beccaria, Romagnosi, Marat, Feuerbach e seus contemporâneos
escreveram, de modo a compreendê-los como homens do seu tempo, um tempo
grávido de futuro (BATISTA, 2004).
Insta reconhecer que tais pensadores - embora não tenham empreendido a crítica da razão punitiva - ofereceram importantes contribuições à limitação do poder
de punir no Antigo Regime a partir das noções de legalidade, proporcionalidade
e humanidade, como é até hoje o liberalismo garantista (BATISTA, 2011).
Para compreender as mudanças em torno da política criminal no período iluminista e as rupturas percebidas atualmente em relação a ela faz-se necessário remontar à natureza política da punição. Segundo professor Nilo, a política criminal deve
ser lida como a ciência política do poder punitivo, sendo inaceitável metodologicamente uma política criminal que funcione como mero “diário de bordo” da dogmática
jurídico-penal, sem maior contato com a ciência política (o que terminaria por
obscurecer os diferentes processos de criminalização das relações sociais)8.
No seu O Inimigo no Direito Penal, Zaffaroni explica como o poder punitivo
sempre discriminou os seres humanos e lhes conferiu um tratamento punitivo
seletivamente distribuído entre os que considerava como entes perigosos ou
daninhos. Tais seres humanos são assinalados como inimigos da sociedade. Esse
exercício de poder punitivo é característico dos Estados Absolutos, ou Totalitários
e contrários à lógica do Estado de Direito.
Para compreender a confluência social que determinou as mudanças no
exercício do poder punitivo no século XVIII e o compromisso das elites intelectuais e jurídicas com a demanda por ordem9 daquela conjuntura é preciso recuar
à ambiência do liberalismo clássico.
3. a conjuntur a liber al do século xviii
A crise do século XIV abalou profundamente a sociedade feudal da Europa
Ocidental, abrindo caminho para a desintegração do modo de produção feudal
8 Neste sentido também Fragoso (2004, p.23), para quem a política criminal não seria uma
ciência propriamente dita, mas uma técnica que, aproximando-se da ciência política, discute,
reflete e critica a oportunidade e conveniência de medidas e tendências do direito penal.
9 Pavarini, M. (1983), Control y Dominación: teorias criminológicas burguesas y proyecto
hegemonico. Mexico: Siglo Veinteuno Editores.
200
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e sua superior superação pelo capitalismo, que somente se consolidará no século
XVIII, com as Revoluções Burguesas e a Revolução Industrial. Essa superação, que
resultou numa nova ordem, foi marcada pelo surgimento do Estado Moderno.
Segundo Anitua (2008, p.37), o surgimento do Estado – com sua primeira expressão nas monarquias absolutistas – não pode passar despercebido, nem ser
analisado como elemento de transição para o capitalismo. Estado e capitalismo
estão intrinsecamente unidos, já que constituem dois aspectos de uma nova forma
de exercício de poder racionalizado10.
A partir do século XIV, com o fortalecimento das monarquias nacionais, houve
uma retração dos fundamentos de legitimidade do poder, baseados no ideal de fé
universal e centralizante postulado pela Igreja. A aliança entre os Reis e a Igreja
persistiu durante toda a Idade Média, outorgando um sentido de unidade, o qual,
não poucas vezes, foi posto em xeque na luta entre o poder político e o religioso.
A tensão entre tais poderes, a qual já havia sido questionada pelo humanismo
renascentista, será a marca do republicanismo de Maquiavel11. Como ensina
10 Importante destacar o pensamento de Tomás de Aquino (XIII), que teria realizado a maior
tarefa racionalizadora e de síntese em sua Suma Teológica, mediante a união do pensamento
aristotélico com o cristão. A partir da racionalização do poder da Igreja, o pensador justifica-o
como poder divino, e o poder do Monarca seria o poder terreno. O primeiro derivaria do
direito divino, ou lei eterna, que emanava diretamente da razão de Deus, sendo, portanto,
somente entendível pelos santos e clérigos; já o segundo relaciona-se a um direito natural que
deriva do direito humano orientado para a ideia de justiça como bem, conforme Aristóteles.
Neste constructo, o delito seria percebido como uma violação desse direito natural que
determina que se deve praticar o bem e evitar o mal, noção a partir da qual opera-se a perfeita
associação entre delito e pecado. É desta forma que a noção de delito ingressa nos pensamentos
ocidentais no século XIII (ANITUA, 2008, p. 49).
11 Através da obra de Maquiavel O príncipe o republicanismo ganhou feições modernas. Alguns
princípios foram conservados, outros reformulados e outros completamente abandonados.
Para o florentino, os Estados deveriam ser organizados como principados ou repúblicas,
de acordo com o número de pessoas que detém o poder. Destacando o primeiro modelo,
Maquiavel analisa as condições de ação política, suas possibilidades, seus limites a partir
da figura do príncipe, o qual deveria ser o responsável pela instauração de uma nova ordem
política. Os meios materiais que o príncipe deveria dispor para agir seriam as leis e as armas,
devendo se preocupar também com a arte do governo, a qual é adquirida pelo conhecimento
do ser humano. Os homens são vistos como ingratos, volúveis, covardes e movidos pelo
interesse pessoal, por isso o príncipe não pode governá-los com bondade, devendo usar,
portanto, a força. Num contexto de mudanças e luta pelo poder absoluto, Maquiavel reúne
as estratégias e métodos para a conquista a manutenção do poder, legitimadas pela noção de
bem comum e ordem pública, definindo, assim, uma visão moderna de governamentalidade.
volume
15
201
i encontro de internacionalização do conpedi
Foucault (1979, p.278), a intensidade e multiplicidade que caracterizam o
século XVI se situam na convergência de processos de governamentalidade
que envolvem: superação de estruturas feudais; instauração de grandes Estados
territoriais, administrativos, coloniais; crescimento comercial e urbano; reação da
Igreja frente a tais transformações; dissidências e dispersões religiosas.
As transformações religiosas do século XVI, comumente conhecidas como
Reforma Protestante, são parte de um processo que marca o avanço do espírito
capitalista que já vinha sendo gestado no Ocidente desde o século XIV, conforme
percebido por Max Weber12. O ethos capitalista, que mais tarde se converterá na
mola propulsora do liberalismo, é lido por Jessé Souza (2006) como característico
de um “racionalismo de dominação do mundo”. Este pode ser definido como
uma atitude instrumental em relação às diferentes dimensões da ação humana,
a qual será orientada sob os signos da liberdade (a princípio liberdade comercial
e de pensamento), tolerância religiosa, defesa da propriedade privada, limitação
do poder da Igreja e, posteriormente, do Estado em face dos cidadãos e
individualismo (que advém da noção de liberdade natural ou o espaço de arbítrio de cada indivíduo). Esse ethos será essencial para o desenvolvimento do
liberalismo econômico, que se opõe à intervenção política nos negócios13.
Conforme as contribuições de Charles Taylor em As fontes do self (apud Souza,
2006), nesse contexto, no espaço do senso comum e da vida cotidiana, passa a ser
O governante teria por marca a virtù - uma qualidade política e não moral que o impendia à
tomada e manutenção do poder, uso da violência, astúcia e força (Ramos, Melo e Frateschi,
2012).
12 Como assinala Jessé Souza (2006, p.11), a importância da variável religiosa na constituição do
racionalismo Ocidental é heurística e visa a revelar como uma ética religiosa que condena a si
mesma e cria (sem ter tido a intenção) as condições do mundo secular, dominado agora pelo
mercado competitivo e pelo Estado racional centralizado. Weber (2004) não reduz, assim, a
importância dos outros fatores, apenas indica que para melhor “compreender” a passagem da
sociedade tradicional para a moderna, no Ocidente, é preciso perceber como a racionalização
religiosa cria precondições de sua própria morte, ao menos como única instância produtora
de sentido, e cria as condições “simbólicas” para o surgimento da sociedade secular.
13 Os primeiros teóricos a se insurgirem contra o controle da economia foram os fisiocratas,
que, sob o lema laissez faire, defendiam que não há lugar para a ação econômica do Estado,
devendo este garantir a livre-concorrência entre as empresas e o direito à propriedade privada
quando esta for ameaçada. Destaque para Adam Smith (1723-1790), que partia do princípio
de que cada homem é adequado a julgar suas ações, tendo o Estado o papel de proteger as
atividades espontâneas dos indivíduos.
202
volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
orientada uma nova noção de virtude ocidental a partir da redefinição das esferas
práticas do trabalho e da família, retirando, assim, o sagrado como mediador
privilegiado das relações sociais. Os suportes sociais dessa nova concepção de
mundo são as classes burguesas da Inglaterra, EUA e França, disseminando-se
depois por diversos países. O vínculo social adequado às relações pessoais passou a
ser de tipo contratual, o que – a partir de um direito racional formal14 – ensejará,
por extensão, a democracia liberal contratual como forma de governo.
A noção de contrato nasce, portanto, da necessidade de basear as relações sociais e políticas num instrumento de racionalização - o direito -, sendo o pacto a
condição formal da existência jurídica do Estado. A tese contratualista, conforme
Limongi (apud Ramos, Melo & Frateschi, 2012, p. 98) implica que a política
se funde sobre uma relação jurídica, haja vista que o próprio contrato – que dá
início à associação política – é um ato jurídico.
Segundo Foucault,
na teoria jurídica clássica o poder é considerado como um direito
de que se seria possuidor como um bem e que se poderia, por
conseguinte, transferir ou alienar, total ou parcialmente, por
um ato jurídico ou um ato fundamentador de direito, que seria
da ordem da cessão ou do contrato. O poder é o poder concreto
que cada indivíduo detém e que cederia, total ou parcialmente,
para constituir um poder político, uma soberania política. Neste
conjunto teórico, a constituição do poder político se faz segundo
o modelo de uma operação jurídica que seria da ordem da troca
contratual. Por conseguinte, analogia manifesta, que percorre
toda a teoria, entre poder e os bens, o poder e a riqueza (Foucault,
1979, p.174),
Na busca do fundo jurídico sobre o qual se assentam as relações políticas,
o contratualismo liberal prolonga, a seu modo, a tradição do direito natural,
14 O direito racional formal é percebido como fundamental para o desenvolvimento da sociedade
moderna e do capitalismo, por sua maneira calculável e sua previsibilidade, essenciais ao
crescente mercado competitivo, baseado em princípios impessoais. A criação de tal tipo de
direito foi possível pelo fato de o Estado moderno aliar-se aos juristas para fazer valer suas
pretensões de poder. O Ocidente, que já dispunha de um direito formalmente estruturado
– produto do gênio romano –, e os funcionários formados nesse direito superavam, como
técnicos administrativos, todos os demais, permitiu que a aliança entre o Estado e a
jurusprudência formal beneficiasse o fortalecimento daquele (SOUZA, 2006, p.95).
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i encontro de internacionalização do conpedi
apontando para certos critérios de legitimação das relações políticas que preexistem a essas mesmas relações ou que não dependem diretamente delas para se
fazer valer.
No século XVII, a partir do inglês Locke (1632/1704), o pensamento liberal
se consolida na Filosofia Política, com destaque para Dois tratados sobre o governo
civil, de 1690, em que são trabalhados os grandes temas do liberalismo clássico:
o respeito à vida e à propriedade; a tolerância política e religiosa; a separação dos
poderes do Estado; as liberdades civis e políticas.
Locke se contrapõe à concepção de Hobbes15 (para quem o contrato é concebido como uma ficção jurídica, uma realidade de pensamento e um ente de razão),
quando trabalha com a noção de contrato social como uma realidade histórica que
simboliza o acordo entre indivíduos visando garantir a liberdade e a propriedade,
que seriam direitos naturais, anteriores ao contrato. No contratualismo de Locke,
o direito político, no entanto, assim como em Hobbes, é fundamentado não na
história, mas na razão – a qual será necessária para o conhecimento do direito
natural. A partir da perspectiva lockeana de direito natural – que separa moral e
direito16 - os conceitos de pessoa, trabalho e propriedade estão relacionados entre
15 O contratualismo de Hobbes propõe que o contrato só é capaz de fundar o corpo político
enquanto um sistema de direitos e deveres se for sustentado por um soberano. Esse poder
figura como espécie de caução ao contrato, que só é válido na condição de haver esse poder
(cap. XIV do Leviatã). A ideia de reciprocidade está presente na estrutura contratual, de
modo que a função do soberano no contrato é garantir que as partes cumpram os contratos,
coagindo aqueles que violaram sua fé, sendo tal coação o fundamento de validade das
relações sociais, possibilitando a criação de vínculos jurídicos e obrigações a partir das quais
os homens regularão suas condutas. Hobbes põe, ainda, a noção de contrato a serviço de uma
justificação da soberania do Estado, o qual é esse poder soberano instituído por e derivado
do contrato. O poder do Estado é, ao mesmo tempo, que criado juridicamente pelo contrato
é condição dos contratos que cria, de modo que o campo jurídico em que consiste o Estado
é sustentado politicamente pelo poder do Estado. (Limongi apud Ramos, Melo, Frateschi,
2012, p.110).
16 Rompendo com a ideia de direito natural que se baseava em um idealismo transcendente
(Santo Agostinho, São Tomás de Aquino), o pensamento liberal clássico invoca o direito
natural a partir do processo de laicização da cultura, elegendo a razão como guia das ações
humanas, com destaque para Hugo Grócio (XVII – Delft, Holanda). Tal concepção de
direito traz as ideias de autonomia da vontade e do contrato. A tensão entre ética e mundo,
rompida a partir da crítica liberal burguesa, opera a separação entre moral e direito, buscando,
acima do sistema racional normativo e positivo, um “direito de razão”, aceitável para todos,
porque fundado na natureza (e não nas diferentes religiões que àquele momento rivalizavam).
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i encontro de internacionalização do conpedi
si, evidenciando que cada indivíduo é, por natureza, proprietário de certos bens.
Cada homem teria direito sobre sua própria pessoa, ou seja, cada pessoa pertence
a si mesma e não a outrem nenhum soberano ou igreja. Logo, além de ter direito
à autodeterminação, o homem também teria o direito natural ao produto de seu
trabalho.
Para assegurar esses direitos, Locke constrói um modelo de contrato a partir
do qual os homens instituem um governo civil visando garantir o direito à propriedade17. O contrato figura como um mecanismo para a constituição desse
governo civil, não como condição dos vínculos de direitos e deveres, mas como
poder executivo de um conjunto de vínculos que preexistem à sua instituição e,
contra os quais, não pode dispor sem se colocar em guerra com seus súditos. Nesse
sentido, a lei natural é para Locke um instrumento de limitação do poder político.
O liberalismo político seria o correlato, na política, do individualismo e subjetivismo na teoria do conhecimento (racionalismo/empirismo), que marca
um desdobramento da libertação da razão no século XVII (MARCONDES,
2001). O racionalismo moderno, influenciado de forma marcante por Descartes, enfatiza a razão humana no processo de conhecimento e na possibilidade de
justificação e fundamentação definitiva e concludente dos sistemas teóricos. Tal
empreendimento foi possível porque, embora as transformações políticas e sociais
tenham imposto pesados sofrimentos ao contingente miserável, a burguesia
letrada promovia, como detalhou Habermas (1984), uma mudança estrutural na
esfera pública. Além da política e da economia, o projeto burguês de modernidade
manifesta-se também nas artes, nas letras e na filosofia, promovendo, ao mesmo
tempo, a ruptura com as categorias de pensamento do passado e os pontos de
partida para o Iluminismo.
Em seu Imperium circa Sacra, Grócio busca na natureza humana o fundamento do poder do
rei sobre as questões religiosas que interessam ao Estado (à maneira de Bossuet) (De Cicco,
2006, p.128-135).
17 Para Locke, antes mesmo da constituição do corpo político, existe uma comunidade natural,
concebida como estado de natureza, o qual não é tomado como um estado de dispersão, mas
um estado no qual os homens estão naturalmente ligados por vínculos racionais do direito
natural, que institui a todo homem, pelo uso da razão, o dever de constituir e respeitar a
propriedade. O contrato para Locke, não cria, portanto, os deveres e obrigações, pois estes
são anteriores a ele. A função do contrato é evitar que tais relações deixem de ser a pauta de
suas relações recíprocas, o que ocorre quando o estado de natureza se degenera num estado de
guerra (Limongi apud Ramos, Melo, Frateschi, 2012, p.110).
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i encontro de internacionalização do conpedi
O ideário iluminista reflete o contexto político e social da conjuntura liberal
clássica, abrangendo não somente o pensamento filosófico, como também as artes,
a literatura, as ciências, a teoria política e a doutrina jurídica. Segundo Anitua
(2008, p.125), o Iluminismo foi o momento em que a burguesia empreendeu
claramente sua luta contra os poderes tradicionais, apoiada num jusnaturalismo
que - rompendo com o idealismo transcendente, e emergindo de um processo de
laicização da cultura moderna - elegeu a razão como guia das ações humanas. Para
Jessé Souza, foi o
otimismo do Iluminismo que, acreditando na harmonia dos
interesses, assumiu a herança do ascetismo protestante no âmbito
da mentalidade econômica; conduziu as ações dos príncipes,
estadistas e escritores no final do século XVIII e começo do século
XIX. O ethos econômico gerou-se da base do ideal ascético;
mais tarde foi despojado de seu sentido religioso. Isso acarretou
consequências graves. (SOUZA, 2006, p.127)
Dentre as principais consequências do processo ao qual Jessé se refere, destaca-se o incremento de poder nas mãos da burguesia. Como ensina a professora
Vera Malaguti (2011, p.32), essa nova classe social, a burguesia - composta
pelos detentores dos meios de produção no interstício entre o clero, a nobreza
e os pobres – vai produzir saberes de modo a atender suas necessidades e à
eficiente racionalização do poder (ou, como prefere Foucault: poder-saber) e,
paralelamente, oferecer novos compêndios pedagógicos ao mundo desencantado.
O desencantamento do mundo propiciou o desenvolvimento da ciência e
da técnica modernas e do capitalismo, sob a metáfora do esclarecimento, que
visava oferecer oposição ao obscurantismo da Idade Média, à ignorância e às
superstições religiosas as elites intelectuais buscaram enfatizar a necessidade do
desenvolvimento da consciência como único meio de conquistar autonomia
individual.
Entre as armas utilizadas pela burguesia para redefinir a consciência coletiva,
ressalta-se a educação, com destaque para a Enciclopedia de Diderot e Dalembert,
cuja publicação se iniciou em 1751 e sintetizava todo o saber da época, tornando-o
potencialmente acessível a todos os indivíduos (todos os que liam, ou seja:
a burguesia). Depreende-se daí o caráter pedagógico e seletivo do iluminismo
enquanto projeto de formação dos indivíduos na sala de estar da modernidade,
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i encontro de internacionalização do conpedi
uma vez que os dispositivos acionados para a dita emancipação individual, a
despeito do arcabouço axiológico propugnado, não são acessíveis a todos.
Como visto em Foucault, o pensamento politico liberal justifica um Estado não apenas limitado pela lei, mas com propensão econômica favorável
aos detentores dos meios de produção e particularmente repressivo para com
aqueles que não têm propriedade. Tais questões não ficaram obscurecidas
aos problemas teóricos e práticos da organização social e dos fundamentos
do poder, tendo sido objeto das reflexões combativas de muitos pensadores
iluministas.
Nesse sentido, o movimento iluminista, à luz da filosofia política liberal,
constrói a crítica ao Antigo Regime e ao poder ilimitado dos soberanos que,
ao ofender os direitos naturais dos homens, era tomado como arbitrário. O
Iluminismo volta-se contra toda autoridade que não esteja submetida à razão,
que recorra ao medo, à superstição, à força, à submissão, como afirma Kant em
Wie ist die Aufklärung? – o iluminismo tem um caráter ético e emancipador que
visa retirar o homem do seu estado de menoridade.
Nessa conjuntura, o poder de punir e a natureza das punições não tardaram
a ser alvos das críticas esclarecidas, que visavam à imposição de limites ao Estado
em seu exercício de poder punitivo. Decorrem daí as novas concepções acerca do
direito penal e, com elas, as possibilidades de manutenção do exercício do poder
punitivo pelo Estado, erigidas de modo a adequar-se às limitações que se lhes
impunham.
A reflexão sobre esses temas por parte dos penalistas da época permitiu o
desenvolvimento da noção de legalidade, proporcionalidade e garantias – as
quais são invocadas na tentativa de impor limites aos métodos desumanos de
persecução penal, averiguação da verdade e imposição de penas. Como destaca a
professora Vera,
A ascensão da burguesia contra a figura do monarca absoluto vai
ensejar novos discursos criminológicos, novas instituições, novas
políticas, a partir do enquadramento cartesiano e iluminista do
mundo. A prisão [...] se converte na principal pena do mundo
ocidental. O delito passa a ser definido juridicamente. (BATISTA,
2011, p. 26)
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4. a escola clássica ou o penalismo ilustr ado
No constructo de racionalizações da filosofia política liberal para o exercício
do poder em face dos cidadãos, os Estados absolutistas racionalizaram os castigos,
o que foi levado a efeito, conforme Anitua (2008), através de intelectuais e
funcionários e toda uma hierarquia de serviços especializados na manutenção da
ordem – daí as figuras da polícia, promotores, advogados, juízes, serventuários
da justiça, entre outras – organizando o que mais tarde seria chamado de sistema
penal.
Dentre os especialistas que passariam a fazer parte do aparelho estatal,
destacam-se os juristas, dada a necessidade do Estado moderno de aliar-se a este
setor para que, de forma racionalizada, fizesse valer suas pretensões de poder.
Todos os que fossem contemplados com tais cargos deveriam ser fiéis aos objetivos
dos monarcas, sob pena de perderem seus empregos.
A atualização do poder punitivo nesse período assinala a busca de novas
legitimações para o controle social. O dilema da ordem consistia em justificar a
criminalização de condutas levadas a efeito pelo contingente empobrecido, sem
instrução e com potência revolucionária que colocavam em risco os interesses
sociais dominantes.
Com a desintegração do modo de produção feudal, acompanhada pela
expropriação dos produtores diretos, formou-se uma classe de trabalhadores
destituídos dos meios de produção que, expulsos de suas terras, formariam a
multidão faminta a ocupar os núcleos urbanos. Aos camponeses expulsos de suas
terras não restavam alternativas senão a mendicância e os ofícios degradantes
em troca de comida, passando a ser alvo de perseguições sanguinárias que, mais
tarde, converter-se-ão em técnicas de disciplinamento para o trabalho e grandes
internamentos em instituições do Estado:
O poder punitivo em formação não é etéreo, nem ontológico.
Ele se relaciona intimamente com o processo de acumulação
de capital em curso: a crise do sistema de exploração feudal, a
expulsão dos camponeses, o crescimento das cidades e mercados,
novas e crescentes necessidades [...] para a empresa guerreira,
burocracias nascentes, manufaturas, comércio. [...] Os Estados
absolutistas que aparecem nessa conjuntura racionalizaram o
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sistema de castigo e adestraram intelectuais e funcionários para
esses misteres: aprimoraram o controle da população, as técnicas
de governo, o utilitarismo social e econômico (BATISTA, 2011,
p. 32-34).
Dado o grande número de miseráveis nos patíbulos, as massas famintas
com eles se identificavam, o que acirrava as insatisfações quanto aos métodos
de punição utilizados – uma herança do medievo. Desde o século XIII, o poder
punitivo vinha exercendo, sob a influência da Igreja, atrocidades contra os
contingentes que ameaçassem a ordem e os dogmas religiosos: bruxas, hereges,
mulheres e pensadores. Por meio de processos de desumanização, seguidos de
demonização, a seletividade do controle social era imposta. A ideia de penitenciária
vem desta época, tendo sido feito largo emprego da tortura, escrevendo, conforme Fragoso (2004, p.41) negra página na história do direito penal18.
Até a transição para o direito penal de cunho liberal, o sentido geral das
leis penais era o da repressão arbitrária. Com o confisco do conflito das partes
envolvidas a partir do século XIII, que consolida o exercício da punição ao poder
público, este o exerceu em nome da defesa do Estado e da religião, em detrimento
dos seus destinatários, criando em torno da justiça punitiva uma atmosfera de
incerteza, insegurança e terror, devidamente legitimada pelos que detinham o
poder punitivo e com ampla desigualdade e seletividade na aplicação. Os proces18 O processo inquisitório levado a efeito pela Igreja surgiu com o Concílio de Latrão (1215
– século XIII) e possibilitava o procedimento de ofício, sem prévia acusação – pública ou
privada – e sem meios de defesa para o réu. Com o fortalecimento do poder político entre
os povos germânicos a partir do século XII, o sentido público do crime e da pena – em
detrimento da Igreja – adquire relevo, o que culmina com a edição do Constitutio Criminalis
Carolina em 1532 (XVI), no reinado de Carlos V. A importância da Carolina reside no fato
de atribuir definitivamente ao Estado o poder punitivo. Com a fragmentação do império
alemão, surgem após a Carolina – entre os séculos XVI e XVIII – numerosas ordenações
criminais, na Áustria, na Saxônia, na Baviera, na Prússia, etc.; as quais já eram legislações
atrasadas para o seu tempo, haja vista as transformações sociais, econômicas, filosóficas e
políticas ocorridas no período. Na península ibérica, ocupada pelos visigodos no período
bárbaro, existia a lei Visigothorum, que vigorou no século VII. Esta legislação ficou conhecida
como Fuero Juzgo (foro justo) e apresentava o sentido geral da legislação germânica, com
forte influência do direito canônico. No século XIII, com Afonso X, aparece o Fuero Real,
que unificou a legislação do Reino e significava grande passo no sentido da pena pública e
afastamento da faida e da vingança de sangue, bem como da Lei das Sete Partidas (1256-1265)
(FRAGOSO, 2004).
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sos eram inquisitórios e secretos, com emprego de tortura e sem qualquer espécie
de garantia para a defesa (ZAFFARONI, 2008).
Esse modelo inquisitivo segue até o século XVIII. Com o enfraquecimento
do Estado Absoluto, enquanto agente responsável pelo equilíbrio social, a
utilização da pena como instrumento político entra em crise. A legitimidade do
Estado Absoluto para a continuidade da imposição de pena passa a ser também
questionada em razão da realidade aviltante da aplicação seletiva das normas
penais que contrariavam o discurso liberal.
Nesse cenário de crise, diferentes alternativas teóricas no plano da filosofia
do direito e da dogmática penal foram erigidas, no sentido de tentar “refundar”
o direito penal, marcando a insurgência de intelectuais contra os preconceitos,
convenções e tradições, insistindo no livre pensamento até então incriminável
(Thomas Greenwood apud FRAGOSO, 2004, p.47).
Embora - como demonstrado por Foucault (1979), tenha sido a partir das
racionalizações de matriz liberal que o poder punitivo engendrou uma tecnologia
de poder dirigida às populações que deverão ser vigiadas, treinadas e punidas,
ampliando o alcance do controle social pela via do sistema penal, com destaque
para Bentham – interessa-nos aqui trazer à baila um momento anterior a esse, em
que o direito penal foi pensado como instrumento de defesa da sociedade.
As ideias básicas do Iluminismo em matéria penal são a proteção da liberdade
individual contra o arbítrio judiciário; a abolição da tortura; abolição ou limitação
da pena de morte; afastamento da ideia de pena vinculada à Igreja ou puramente
à moral – fundadas especificamente na ideia de retribuição e expiação.
Tais ideias produziram resultado na legislação penal, como, por exemplo,
com Catarina II, na Rússia - 1767, e Leopoldo II, na Toscana – 1786; Frederico,
o grande, na Prússia; José II, na Áustria e, sobretudo na França, com a Revolução
Francesa e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, bem como nos
Códigos Penais de 1791 e 1810. Destaca-se, contudo, como assinala Heleno
Fragoso (2004:50), que tal movimento reformador não pode ser reunido em
uma dita escola – a teria ficado conhecida como “clássica”, uma vez que é difícil
reunir os diferentes pensamentos dos juristas à época em um corpo de doutrina
comum.
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4.1. o ouro gar antista
Conforme o magistério de Fragoso (2004), o jusnaturalismo de Hugo Grócio inspirou o reexame das ideias políticas dominantes, impondo um dever
aos penalistas da época, o de buscar um fundamento racional para a pena. O
jusnaturalismo ilustrado caminhou também com Puffendorf, Thomasius e Wolff
– que fundamentavam o direito do Estado na razão, e não na força, reconhecendo
na pena um caráter utilitarista e não meramente retributivo, pois era útil ao equilíbrio social. Nas obras de Hobbes e Locke, guardadas as diferenciações quanto à
natureza e justificação do contrato social, havia a ideia de pena teleologicamente
pensada a partir da obediência dos súditos em favor da segurança de todos, com
caráter preventivo geral.
Tendo em vista que não é adequado tratar o pensamento dos penalistas do
período iluminista como pertencentes a uma única escola – dada a diversidade e
originalidade do pensamento de cada autor – ao se observar seus pontos comuns,
verifica-se que todos consideravam o crime como mera infração à lei, sem entrar
no ponto de vista do autor ou sua realidade social. Tais pensadores partem da
premissa de que o cometimento do crime é uma decisão soberana, livre e racional
do infrator. A noção de homem universal e racionalmente livre permeia esse
arcabouço jurídico-penal, marcado também pela visão utilitária da sanção (uma
vez que à pena não era atribuído qualquer caráter correcional ou, em termos
penais, preventivo especial) – sendo o delito entendido como uma abstração
jurídico-formal.
Segundo Baratta (2002), o delito era jurídico-penalmente definido como
violação de um direito e também do pacto social. O delito, fruto do livre-arbítrio
do indivíduo, e não de causas patológicas, tinha no elemento volitivo o vínculo
com responsabilidade moral imposta às ações do criminoso.
Sob a lógica da defesa social, o direito penal e a pena não eram considerados
como meios para intervir no indivíduo, mas para defender a sociedade do
crime, o que era realizado a partir de uma contramotivação à prática do delito,
consubstanciada na ideia de prevenção geral.
Os limites da cominação e da aplicação da sanção penal, assim como o exercício do poder punitivo do Estado, eram assinalados pela necessidade e utilidade da
pena e pelo princípio da legalidade.
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Entre diversos discursos legitimadores do poder punitivo, passando pelos
diferentes modelos – desde os mais autoritários (Hobbes) aos mais liberais
(Locke) é em Montesquieu que o direito penal moderno vai deitar suas raízes.
No Espírito das Leis, de 1748, Montesquieu trabalha a ideia de harmonia social
e liberdade política e econômica dos indivíduos através de um equilíbrio que
permita a aceitação das diferentes situações sociais, reduzindo, assim, a violência,
sem recorrer à própria violência. Embora sua obra contenha aspectos sociológicos,
o maior desiderato de Montesquieu é político, num esforço para construir bases
para uma sociedade que – sob o império das leis, dos direitos e garantias – teria
como se defender da tirania e do sofrimento (encravado na ideia de pena desde
Aristóteles19).
No seu conceito de república, promove a retomada do conceito clássico de
virtude, dotando-o, porém, de uma versão mais liberal: a virtude política. A virtude
é concebida como amor à pátria, o mesmo que amor à igualdade. Essa virtude
republicana que faria mover a monarquia. A república deveria ser composta por
homens de bem (livro terceiro), o qual não precisa ser cristão, mas sim político:
ama as leis, seu país e age por amor a tais leis.
Numa franca rejeição aos dogmas religiosos, Montesquieu revela um jusnaturalismo que concebe direitos naturais anteriores à formação das sociedades.
Para combater a inclinação do estado de guerra, que emerge da saída dos homens
do estado de natureza quando das relações em sociedade, são necessárias leis
positivas de modo a regular as condutas e estabelecer limites ao poder em face
dos cidadãos.
No livro sexto da obra em tela, o autor trata das leis civis e criminais,
destacando nestas o estabelecimento das penas. A severidade das punições, a ideia
de proporcionalidade, defesa social e críticas à tortura dão a tônica do discurso de
Montesquieu sobre o direito penal:
A severidade das penas convém melhor ao governo despótico, cujo
príncipe é o terror, do que à monarquia ou à república, as quais têm
por princípio a honra e a virtude. [...] um bom legislador dedicarse-á menos em punir os crimes que em preveni-los; aplicar-se-á
19 Aristóteles. Ética a Nicomano, Livro X.
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mais em fortalecer os costumes que em infligir suplícios. [...] A
experiência tem feito notar que, nos países em que as penas são
mais brandas, o espírito do cidadão é atingido por elas, como
também o é pelas leis severas. Quando algum inconveniente se
dá em um Estado, um governo violento procura imediatamente
corrigi-lo; e [...] estabelece uma pena cruel que detém o mal
imediatamente. Todavia, assim, desgastam-se as bases do governo
(MONTESQUIEU, 2007, p.96).
A técnica legislativa de organização das leis penais e a graduação das penas,
descritas no item XVI do mesmo título, aduz que crimes mais graves devem
ter penas mais incisivas; os crimes devem ser organizados de acordo com seu
potencial ofensivo, e são considerados mais graves os crimes que prejudicam mais
a sociedade, os quais devem ser alvo de prevenção maior.
As penas pecuniárias utilizadas entre os povos germânicos também foram
objeto de reflexão de Montesquieu no item XVIII do mesmo livro sexto. O
autor propõe que a imposição das penas pecuniárias varie conforme a fortuna do
condenado, do contrário, seriam meramente simbólicas (o que até hoje suscita
discussões em nossos tribunais).
A obra de Montesquieu reclama a separação de poderes. No livro décimo
primeiro o autor exprime sua teoria da separação dos poderes, propondo a subordinação dos juízes à lei. Tal medida visa garantir a segurança jurídica, de modo
que o cidadão saiba se seu comportamento é ou não conforme a lei. Em meio à
narrativa de episódios da república romana e de reis gregos, o autor discorre sobre
seu conceito de liberdade, cuja palavra, conforme ele mesmo reconhece, é dotada
de grande plurivocidade. Para ele, na democracia a liberdade é um conceito
político, que não consiste em fazer aquilo que se quer, mas sim fazer o que se deve
querer e não ser constrangido a fazer o que não se deve desejar. A noção de dever
permeia, portanto, o ideal de liberdade. Tais deveres estão insculpidos nas leis,
que conferem o direito de fazer o que elas lhe facultam, segundo sua vontade.
A noção de legalidade pode ser aí percebida, bem como da necessidade de uma
constituição para a efetiva limitação do poder:
Para que não possa haver abuso de poder, é preciso que, pela
disposição das coisas, o poder contenha o poder. Uma constituição
pode ser feita de tal forma, que ninguém será constrangido a
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i encontro de internacionalização do conpedi
praticar coisas que a lei não obriga, e a não fazer aquelas que a
lei permite. Há em cada Estado três espécies de poder: o poder
legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito
das gentes, e o poder executivo daquelas que dependem do
direito civil. Pelo primeiro poder, o príncipe ou magistrado cria
as leis [...]. Pelo segundo, determina a paz ou a guerra, envia ou
recebe embaixadas, estabelece a segurança, previne as invasões.
Pelo terceiro, pune os crimes ou julga as questões dos indivíduos
(MONTESQUIEU, 2007, p. 164-167).
Depreende-se, assim, que, no contexto liberal clássico, Montesquieu apresentou como característica das reivindicações políticas da burguesia a moderação
e o desejo de imposição de limites ao Estado. Essas características configuram seu
ideal de equilíbrio político com o modelo da Inglaterra à época. No que concerne
ao pensamento criminológico, a obra de Montesquieu antecipa os critérios
popularizados por Beccaria - autor que persegue em sua obra a ideia de liberdade
por ele formulada.
Em 1764 Beccaria publica em Milão o seu Dos delitos e das penas, no qual
assenta – inspirado pelas ideias de Montesquieu e Rousseau - as quais muitas
vezes apenas reproduz – as bases da reforma do direito penal vigente, escrevendo
páginas corajosas, conforme Fragoso (2004, p.48), contra a tirania que vigorava
à época. Já no parágrafo 1º da obra, o autor afirma que contra as desigualdades
e abusos do poder somente boas leis poderiam impedir a tendência contínua
de concentração de privilégios nas mãos de poucos e a reprodução da miséria.
Chama atenção, também, para o fato de que as rupturas produzidas pelo ideário
iluminista ainda
estão muito longe de ter dissipado todos os preconceitos que
alimentávamos. Não houve um que se erguesse, senão fracamente,
contra a barbárie das penas que estão em uso em nossos tribunais.
Não houve quem se ocupasse em reformar a irregularidade dos
processos criminais, essa parte da legislação tão importante quando
descurada em toda Europa. Raramente se procurou desarraigar,
em seus fundamentos, as séries de erros acumulados desde há
muitos séculos; e muito poucas pessoas procuraram reprimir, pela
força das verdades imutáveis, os abusos de um poder ilimitado,
e extirpar os exemplos bem comuns dessa fria atrocidade que os
homens poderosos julgam ter direitos. Contudo, os dolorosos
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i encontro de internacionalização do conpedi
gemidos do fraco, que é sacrificado à ignorância cruel e aos ricos
covardes; os delitos não provados, ou em quiméricos; a aparência
repugnante dos xadrezes e das masmorras, cujo horror é ainda
aumentado pelo suplício mais insuportável para os desgraçados,
que é a incerteza; tantos métodos odiosos, difundidos por toda
parte, teriam por força que despertar a atenção dos filósofos,
essa espécie de magistrados que orientam as opiniões humanas.
(BECCARIA, 2008, p.16-17)
Ao retomar as ideias contratualistas de Montesquieu, no parágrafo 3º de sua
obra, traduzindo-as na noção de legalidade no âmbito penal, Beccaria assevera que
apenas as leis podem indicar as penas de cada delito e que o direito de estabelecer
leis penais não pode ser senão da pessoa do legislador, que representa toda a
sociedade ligada por um contrato social. Chama atenção a vedação para decisões
judiciais mais gravosas que as leis defendendo que
o magistrado, que é parte da sociedade, não pode com justiça
aplicar a outro partícipe dessa sociedade uma pena que não esteja
estabelecida em lei; e a partir do momento em que o juiz se faz
mais severo que a lei, ele se torna injusto, pois aumenta um novo
castigo ao que já está prefixado. (BECCARIA, 2008, p. 20).
Ao falar sobre a necessidade de divisão de poderes para evitar injustiças,
Beccaria defende que o soberano, por representar a sociedade, tem competência
para fazer as leis, mas não para julgá-las, o que deve ser feito por um magistrado
que, dotado de imparcialidade, decidirá sem apelo se houve ou não a ocorrência
do crime previsto em lei.
Já no parágrafo 4º, critica o processo de interpretação das leis por parte dos
juízes, sintetizando a necessidade de vinculação do juiz à legalidade, de modo a
evitar inseguranças. Segundo Beccaria, não há nada mais perigoso do que o axioma
comum, de que é necessário consultar o espírito da lei, pois isso implicaria a quebra
de todos os diques e abandonaria as leis à torrente de opiniões. Somente com leis
fixas e literais, cabendo ao magistrado a missão de examinar os atos dos cidadãos,
não se verão mais cidadãos submetidos ao poder de uma multidão de ínfimos
tiranos, tanto mais intoleráveis quando maior a desigualdade social entre eles.
A expressa vinculação à lei advém da desconfiança dos opositores aos desmandos do poder, entendendo que somente com leis cumpridas à risca o cidadão pode
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i encontro de internacionalização do conpedi
calcular exatamente os inconvenientes de uma ação reprovável o que, com base na
escolha racional, seria útil à sociedade, pois esse conhecimento poderá fazer com
que ele se desvie do crime, funcionando, assim, como uma contramotivação. A
pena é vista, portanto, como instrumento de defesa social, fundada na utilidade,
e o crime como quebra da lógica do contrato social.
Toda a obra de Beccaria expressa a confluência da filosofia politica do Iluminismo europeu, além de fornecer pressupostos para uma concepção pragmática
do delito e da pena baseada no principio utilitarista da maior felicidade para
o maior número de pessoas, à luz do contrato social e da divisão de poderes
preconizados por Montesquieu.
Com base no referido princípio utilitarista, Beccaria defende que a
medida da pena seja o mínimo sacrifício necessário da liberdade individual que
ela implica. Daí retira-se a relação entre pena e liberdade, pois, segundo o autor,
somente a necessidade obriga os homens a cederem uma parcela de sua liberdade;
disso advém que cada qual apenas concorda em pôr em depósito comum a menor
porção dela possível, ou seja, exatamente o que era necessário, de modo que as
penas que vão além do necessário são injustas por natureza.
Revela notar o caráter arrojado do autor que em uma passagem do parágrafo
4º denuncia a falta de comprometimento dos agentes de poder para com as
mudanças almejadas. Vejamos:
Esses princípios irão, sem dúvida, desagradar aos déspotas
subalternos que se arrogaram o direito de esmagar os seus inferiores
como o peso da tirania que suportam. Eu poderia temer tudo, se
tais tiranos se lembrassem de ler o meu livro e compreendê-lo; mas
os tiranos não lêem. (BECCARIA, 2008, p. 24)
Para Beccaria, o contrato social estaria na base da autoridade do Estado e das
leis, derivando sua função da necessidade de defender a coexistência dos interesses
individualizados no estado civil, constituindo, assim, o limite lógico de todo
sacrifício legítimo da liberdade individual mediante a ação do Estado, em especial
no exercício do poder punitivo. Como ensina a professora Vera,
foi o Marquês de Beccaria que produziu a primeira exposição
global e articulada entre política criminal, direito penal e processo
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penal em seu livro Dos delitos e das penas. Tendo o contratualismo
como base ideológica, e o contrato social e o utilitarismo como
pressupostos, Beccaria faz uma defesa da coexistência do Estado
sem conflito, presente na maneira de pensar de Hobbes, Locke e
Rousseau, com todas as suas nuances. A pena, aqui, se contrapõe
ao sacrifício da liberdade. O juiz deverá subordinar-se à lei, e não
ao soberano. A ideia de dano social e de defesa social (incólumes
até os dias de hoje) são elementos fundamentais dessa teoria.
(BATISTA, 2011, p.39)
Merece destaque o parágrafo XII, no qual Beccaria discorre sobre os absurdos
da tortura, passagens tão vívidas que – sem prejuízo de seu valor argumentativo
ou de protesto – podem ser manejadas atualmente ante aos abusos nos quais
o poder punitivo continua a incorrer. Há também a exaltação da ideia de não
culpabilidade ou presunção da inocência, numa denúncia à reação social ao delito
à época – questão que continua tão atual:
É uma barbárie consagrada pelo uso da maioria dos governantes
aplicar a tortura a um acusado enquanto se faz o processo, seja
para que ele confesse a autoria do crime, seja para esclarecer as
contradições em que tenha caído, seja para descobrir cúmplices.
[...] Um homem não pode ser considerado culpado antes da
sentença do juiz; e a sociedade apenas lhe pode retirar a proteção
pública depois que seja decidido que ele tenha violado as normas
de tal proteção que lhe foi dada. (BECCARIA, 2008, p.37)
Ao longo da obra, o autor segue no seu brado combativo, denunciando a
desproporcionalidade das penas; os erros e injustiças das legislações; a necessidade
de clareza das leis e dos comandos normativos; a inflação penal; a necessidade de
formação para a liberdade como medida preventiva do cometimento de crimes
e, finalmente, a necessidade de que as penas sejam curtas, públicas e adequadas.
Se na formação dos juristas da atualidade, ao invés de compêndios de direito
penal descomplicado fosse exigida a leitura deste pequeno, e ao mesmo tempo,
tão rico livro de Beccaria, nossos tribunais funcionariam, certamente, como um
caixa de ressonância dos pleitos inquestionáveis do pensador milanês que, por
conta de suas ideias, foi taxado de fanático, impostor e, como não poderia deixar
de ser, perigoso.
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i encontro de internacionalização do conpedi
Outro personagem que, assim como Beccaria, foi tido como perigoso foi
Jean-Paul Marat, memorável revolucionário francês que em seu Plano de Legislação Criminal (1779) oferece uma crítica à ordem vigente à época e lança, como
alerta Salo de Carvalho, algumas sementes do socialismo utópico.
Marat estudou medicina em Paris e Bordéus, terminando o curso na Inglaterra, onde doutorou-se em 1775. De volta à França, foi nomeado médico
da guarda pessoal do conde d’Artois. Em razão de suas ideias, foi considerado
subversivo pelo governo. Em 1789, na conjuntura revolucionária da França,
fundou o jornal L’Ami du Peuple, tornando-se conhecido como defensor das
causas populares. Em razão de sua insurgência contra o governo e sua vinculação
ao partido jacobino, Marat foi acusado e condenado por vários crimes.
Como visto acima, o contratualismo foi o pensamento que serviu à burguesia
industrial em sua luta crescente contra a nobreza hegemônica. Mas nem todos os
pensadores do período, contudo, condunaram-se a tais premissas, entre os quais
merece destaque Marat, personagem pouco citado do penalismo ilustrado, que
escreveu sua obra formulando uma crítica revolucionária à pena.
Marat aceitava a tese de que os homens se reuniam em sociedade para garantir seus direitos, mas reconhecia que a primitiva igualdade social propugnada era
negada no plano dos fatos, mediante a violência que os homens exerciam uns
sobre os outros.
Numa crítica intestina à sociedade da época, o autor denuncia a famigerada
aliança da alta burguesia com os agentes de poder do Estado, destacando a
ausência de contenção à concentração de renda nas mãos de famílias abastadas e
fortunas levantadas à custa de exploração dos mais fracos.
Antecipando questões até hoje não respondidas pela teoria do delito (sob o
ponto de vista da teoria crítica), Marat questionava a legitimidade da punição
em relação aos pobres (compreendidos por Marat como em estado de natureza)
e também a necessidade de os mesmos respeitarem as leis. Esse homem natural,
cuja direitos precedem às leis, não pode estar por elas dominado, sendo livre para
resistir ou ceder. Entende que o homem seria mais forte, sem amarras, totalmente
livre, pois do contrário, estaria em situação de escravidão e dominação, tornandose fraco por estar dependente.
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i encontro de internacionalização do conpedi
Herdeiro do espírito revolucionário que se insurgiu em meio às manipulações
políticas e ideológicas, Marat – cujo pensamento não foi colonizado – sofreu
grande influência do pensamento rousseauneano e, embora sua obra não tenha
maiores reflexões jurídicas ou filosóficas, representa um esforço louvável de
deslegitimação do poder punitivo.
Como é comum às vozes dissonantes, Jean-Paul foi violentamente silenciado,
sendo assassinado a punhaladas pelo girondino Charlotte Corday na banheira de
sua casa. Sua morte, retratada por Jacques-Louis David em 1793, tornou-se um
dos marcos iconográficos mais emblemáticos do contexto da Revolução Francesa.
Outro nome que merece destaque é Giandomenico Romagnosi que em
1791 publicou na Itália o seu Genesi del Diritto Penale, obra na qual fundamenta
a pena como um direito de defesa da sociedade em face do comportamento
criminoso. Assim compreendida, a pena figura como um “contraestímulo” à
prática do crime. A partir da ideia de coação-psicológica pode-se aventar certa
entre a fundamentação da pena em Romagnosi com as formulações de Feuerbach, como se verá à frente (ZAFFARONI, 2008, p.525).
Vista como “contraestímulo” e não mera retribuição do crime já cometido,
a pena perderia seu sentido se, depois do primeiro delito, existisse uma certeza
moral de que não ocorreria nenhum outro, e a sociedade não teria direito algum
de punir o delinquente. Tal pressuposto coloca em xeque a noção de prevenção
geral levado a efeito na atualidade, além de oferecer um contraponto que denota
o caráter limitado do direito penal em face da conflitividade social. A afirmação
se faz sentir mais plenamente pela consideração de que, conforme Baratta (2002),
para Romagnosi a pena não seria o único meio de defesa social, a qual também
deveria ser promovida através do melhoramento e desenvolvimento das condições
de vida social.
Segundo Romagnosi, os homens devem formar um modelo de sociedade
de modo que tenham direitos iguais e que nenhum deles possa, em absoluto,
pretender maior porção de segurança, bem-estar e deferência, posto que essa é a
necessária convergência das ações de cada indivíduo para o bem-estar de todos
(parágrafos 197, 199, 201).
O caráter liberal e utilitário é percebido a partir das ponderações de que as leis
penais seriam legítimas quando obrigadas pela necessidade, como meio de dirigir
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i encontro de internacionalização do conpedi
as ações dos homens para a realização da ordem moral racional e, portanto, ao
seu bem-estar. Conforme Baratta (2002, p.34), para Romagnosi, a verdadeira
independência natural do homem pode ser entendida como superação natural
da dependência humana da natureza através do estado social, que permite aos
homens conservar mais adequadamente a própria existência e realizar a própria
racionalidade.
Assim como Romagnosi, Anselm Von Feuerbach trabalhou a ideia de pena
como “coação psicológica”, sendo esta medida preventiva e não retributiva. Autor
do Código Penal Bávaro em 1813, Feuerbach influenciou fortemente os códigos penais do seu tempo.
O referido código previa, em parágrafo 1º, o princípio da legalidade, de
acordo com a fórmula nulla poena sine lege, segundo a qual todo aquele que
cometesse uma ação ou omissão não permitida, para a qual uma lei cominou um
determinado mal, estaria sujeito a este mal legal como sua pena.
Em seu Tratado de Direito Penal, publicado em 1801 na Alemanha, o autor,
mantendo a separação jusnaturalista entre direito e moral, apresenta a primeira
definição moderna de crime: uma ação antijurídica, cominada em uma lei
penal. Em sua obra Anti-Hobbes (1797), Feuerbach se distancia de Hobbes e
Kant, aproximando-se das concepções lockeanas, sob o argumento de que o ser
humano não só tem direitos que antecedem o contrato, como também, mediante
sua razão, ele sabe ou pode saber quais são esses direitos. Partindo da ideia de
direito natural pré-contratual, trabalhou a diferença entre a razão prático-moral
(que permitia conhecer o dever moral) e a razão prático-jurídica (que pretendia
conhecer os direitos).
O princípio da reserva legal foi desenvolvido de maneira criteriosa através dos
postulados Nulla poena sine lege; Nulla poena sine crimine; Nullum crimen sine
poena legali, os quais permanecessem vigorosos no Ocidente até os nossos dias.
Conforme assinala Anitua (2008), sua intenção de aprofundar as diferenças
entre moral e direito visava à fundamentação de um fim prático à pena, tendo
cumprido este desiderato a partir da ideia de “coação-psicológica”, embora não
tenha conseguido resolver as contradições de seu pensamento.
Outra grande contribuição para a formulação do conceito de crime foi
oferecida por Carrara, que em seu Programa del Corso di Diritto Criminale, de
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1859, concebe o crime como um ente jurídico e defende que a responsabilidade
penal seja fundada no livre-arbítrio. A pena, assim, deveria ser tomada como
retribuição jurídica que, também, possibilita o restabelecimento da ordem
externa violada pelo delito. Utilizando o método lógico-abstrato no estudo do
direito penal, Carrara reconhece, ao analisar o conceito de crime, elementos
de força física e força moral, o que chamaríamos hoje de elemento objetivo e
subjetivo.
Evitando deter-se nas distinções e aproximações entre direito e moral,
mas, ainda assim, fundamentando-se no direito natural, considera que – 1)
em abstrato, o direito de punir seria de origem formulada por Deus, ligado à
ideia de justiça; mas – 2) no plano prático seu fundamento é de defesa social.
Assim, tem-se o direito de punir fundado no principio da justiça e limitado pela
necessidade.
Com absoluto rigor lógico, o penalista italiano elaborou, portanto, três postulados para a racionalização do delito e da pena:
1) o crime é um ente jurídico, logo o crime é a violação do direito. Sendo
assim, o crime é tão somente uma infração à lei – a qual é promulgada
para proteger os cidadãos;
2)a responsabilidade penal é fundada no livre arbítrio (é indispensável
uma vontade livre e consciente orientando a realização da conduta, a
qual constitui seu elemento subjetivo);
3)a pena é a retribuição jurídica e restabelecimento da ordem externa
violada pelo delito (função preventivo geral).
Para Baratta (2002), a importância de Carrara se deve ao fato de haver posto
a base lógica para uma construção jurídica e coerente do sistema penal. No plano
teórico, Carrara trabalha com a verdade, a qual é dada pela natureza das coisas;
no plano prático, trabalha com o fundamento de autoridade da lei positiva. Nesse
dualismo reside um modelo integrado do direito penal, o qual visa apreender
uma verdade superior e independente da contingente autoridade da lei positiva.
Dessa forma, o delito não é percebido como mero dano social, mas como fato
juridicamente qualificado como violação do direito.
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i encontro de internacionalização do conpedi
5.conclusões
Como ensina o professor Salo de Carvalho, as teorias humanistas propugnadas pelo discurso liberal clássico fornecerão as bases para a estrutura principiológica do direito e do processo penal moderno, que faz emergir, no plano formal,
um poder punitivo dotado de autonomia e imparcialidade, acomodando o direito
e processo penal em um programa político-criminal minimalista.
O que o penalismo ilustrado não enfrentou foi com o fato de que nas
racionalizações de viés humanista ofereceram novo aparato legitimador para o
exercício do poder punitivo, o qual vai se espraiar assustadoramente no século
seguinte. Para Nilo Batista, essa é a contradição do liberalismo penal fundacional
que propiciou a brecha por onde penetrou todo o autoritarismo que o vem
demolindo desde então.
Daí a importância das lições de Fragoso (2004, p.19) no sentido de alertar os
penalistas, entusiastas da dogmática, que seguir buscando novas e mais refletidas
racionalizações legitimantes para o poder punitivo pode levar à perda dos
primeiros esforços à sua limitação no século XVIII. Porque quando a dogmática
e a atividade jurídica que perdem contato com a realidade social conduzem o
direito, como no dizer de Bettiol, ao “esplêndido isolamento”. Ao penalista é
essencial, portanto, uma postura crítica perante o sistema vigente, para continuar
a marcha das rupturas que uma política criminal progressista implantou no marco
inicial do penalismo do século XVIII.
Os discursos ora produzidos em matéria penal, conforme denuncia Zaffaroni (2007), têm revelado uma notória transformação regressiva no campo da
chamada política criminal ou, mais precisamente, da política penal, pois do
debate entre políticas abolicionistas e reducionistas passou-se, quase sem solução
de continuidade, ao debate da expansão do poder punitivo.
Para o jurista argentino, tal movimento engendra um avanço contra o penalismo ilustrado ou de garantias, consistindo na antecipação das barreiras de punição
(até os atos preparatórios); desproporção das consequências jurídicas (penas como
medidas de contenção sem proporção com a lesão realmente inferida); debilitação
das garantias processuais e identificação dos destinatários mediante um forte
movimento para o direito penal de autor.
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A política criminal que marca o nosso tempo é contrária à lógica sobre a qual
o direito penal moderno repousa. A função do direito penal (dogmática penal)
em todo Estado de direito deve ser a redução e a contenção do poder punitivo,
sendo – neste sentido – um apêndice indispensável do direito constitucional do
Estado de direito. Dada essa função política, o direito penal nunca pode ser neutro
ou despolitizado, devendo buscar sempre a contenção das pulsões absolutistas,
num esforço para aperfeiçoar as garantias dos cidadãos como limites redutores das
pulsões do Estado de polícia.
Eis nossa tarefa. Eis nossa inquietação. Pretender contribuir para o penalismo
do nosso tempo implica ter a coragem de sairmos de nossos gabinetes e larçarmonos nos embates sociais. Mister nada tranquilo para os que ainda dormem o sono
de cúmplices. Mas, como não nos deixa escapar o inquieto Zaffaroni,
nossos próceres não tiveram vidas tranquilas e, justamente por
isso, Spee correu o risco de acabar na fogueira, Beccaria publicou
seu livro anônimo, Pagano foi fuzilado, Marat morreu apunhalado
na banheira, Rossi esfaqueado, circulou a lenda de que Feuerbach
foi morto por envenenamento, Romagnosi foi processado,
Camignani condenado ao desterro, Mello Freire denunciado à
Inquisição, Lardizabal defenestrado e ignorado. Nada disso foi
gratuito, mas deveu-se ao fato de que nenhum deles se curvou ao
Zeitgeist (ZAFFARONI, 2007, p.176).
Sabemos que mudanças radicais e recuo do poder punitivo não são tarefas do
direito penal, dadas as limitações deste na mecânica de poder na atualidade. O
que compete ao direito penal é tentar promover uma passagem do poder punitivo
do modo menos irracional possível, na tentativa de frear a imposição de dores e
sofrimentos aos seus destinatários tão bem escolhidos.
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i encontro de internacionalização do conpedi
política no criminal y proceso penal:
la intersección a partir de las falsas
memorias del testigo y su posible
impacto carcelario
Gustavo Noronha de Ávila1
Érika Mendes de Carvalho2
Resumen
La prueba testimonial es una de las más utilizadas en el ámbito procesal.
Sin embargo, las entrevistas pueden formar un escenario sugestionable al testigo,
que puede redundar en falsas memorias. Falsas memorias consisten en recuerdos
de situaciones que, en verdad, nunca han ocurrido. Pueden surgir de dos formas:
espontáneamente o a través de una sugerencia externa. El artículo pretende discutir
las vinculaciones de esta situación procesal penal con las políticas criminales
contemporáneas. Para eso, nos valdremos de un referencial teórico crítico para
pensar en formas efectivas de reducir la posibilidad de falsas memorias. Se hace
necesario discutir el propio catálogo de tipos penales disponibles, tal vez, la principal
manera de alejar posibles contaminaciones a resultaren en privaciones de libertad.
Palabras clave
Falsas memorias; Prueba testimonial; Política criminal; Sugestionabilidad.
Abstract
Eyewitness evidence is one of the most used in procedural framework.
Moreover, the witness interviews may suffer from suggestibilities, which can
1 Doctor en Ciencias Criminales por la Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul. Máster en Ciencias Criminales por la Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul. Profesor de Derecho Procesal Penal del Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter)/
Laureate International Universities. Profesor de Criminología de la Especialización de
Derecho Penal y Derecho Procesal Penal del UniRitter/IBCCrim. Profesor de Criminología
de la Especialización en Ciencias Penales de la Universidade Estadual de Maringá (UEM).
2 Doctora en Derecho Penal por la Universidad de Zaragoza. Investigadora de la Fundación
Araucária de Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Estado do Paraná. Profesora de
Derecho Penal de la Universidade Estadual de Maringá (UEM).
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227
i encontro de internacionalização do conpedi
result in false memories. False memories consist on the remembrance of facts that
never happened. It may occur spontaneously or by external suggestion. The paper
discusses the linkages of this criminal procedural situation with contemporary
criminal policy. To do so, it is used a critical framework as a manner of thinking
about effective ways to reduce the possibility of false memories. It is necessary to
discuss the existing catalog of crimes itself, perhaps the main way to move away
from possible contaminations that may result in deprivations of liberty.
Key words
False memories; Eyewitness evidence; Criminal policy; Suggestibility.
1.introducción
En una sociedad compleja, acelerada, veloz y de valores indeterminados,
promover garantías es un desafío cada vez más importante. Aunque sepamos de
sus limitaciones3, siguen como un instrumento democrático fundamental en la
defensa de la libertad.
La sociedad brasileña, en general, clama por más penas, más puniciones y más
Estado. Paradoxalmente, es una sociedad que no quiere prisiones cerca de sus
casas. Del mismo modo, cree que ‘nadie es detenido’, aunque nuestros cárceles
estén colmados de gente.
En el curso de un proceso penal formal e de su (siempre) frustrado intento
de reconstrucción vamos a tener en la excesiva confianza en la memoria un
problema crucial. Sabemos que la fenomenología4 identifica la importancia de
los referenciales en el proceso de descripción, pero del mismo modo sabemos que
estas diferencias las normas no las consiguen captar, puesto que su contenido es
invariablemente universal.
Las sugestionabilidades y sus posibles resultantes, las falsas memorias,
constituyen uno de los grandes problemas del proceso de criminalización. Este
3 Véase ÁVILA, Gustavo Noronha de. Falsas Memórias e Sistema Penal: A Prova Testemunhal
em Xeque. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.
4 V. MERLEAU-PONTY, Maurice. A fenomenologia da percepção. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2006.
228
volume
15
i encontro de internacionalização do conpedi
aspecto encuentra su punto neurálgico en la prueba testimonial. Habitualmente,
se trabaja con propuestas de reducción de daños para atenuar posibles efectos
negativos en la libertad del sujeto pasivo de la investigación o reo.
En estas breves líneas, discutiremos las posibilidades de pensar más allá de
las medidas reformistas procesales penales, vinculando la cuestión también a las
políticas criminales. ¿Hasta qué punto una sociedad punitiva influencia en la
propulsión de sugestionabilidades? ¿Hay posibilidad de pensar en políticas no
criminales? ¿Cuáles serían los efectos de ellas para las sugestionabilidades?
Son algunas de las cuestiones que, lejos de la pretensión arrogante de agotar,
pretenderemos abordar y problematizar con nuestro lector.
2.las falsas memorias como problema del proceso
penal
Históricamente5, los juristas se preocupan con la cuestión de la memoria.
Como el testigo es una prueba fundamental para el gran catálogo de delitos que
hay, su estudio presenta una relevancia singular.
Probar es (intentar) llegar a la verdad, siempre incompleta, necesariamente
contingente y que depende de referencias (tiempo, espacio y lugar). Todo ese
espectro será fundamental para comprender el fenómeno de las falsas memorias.
En los procesos que intentan la (re)construcción del hecho criminoso pretérito, pueden existir artimañas del cerebro, informaciones almacenadas como
verdaderas, o inducciones de los entrevistadores, de otras personas y/o de los
medios de comunicación que, sin embargo, no condicen con la realidad. Estas
son las llamadas falsas memorias, proceso que puede ser agravado, cuando son
usadas técnicas por repetición, como las utilizadas de forma notoria en el ámbito
criminal.
El cerebro reúne percepciones por la interacción simultánea de conceptos enteros, de imágenes enteras. En lugar de usar la lógica predicativa de un ordenador,
de un chip, el cerebro es un procesador analógico, lo que significa, esencialmente,
5 V. GORPHE, François. La crítica del testimonio. 5 ed. Madrid: Reus, 1971.
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15
229
i encontro de internacionalização do conpedi
que él funciona por analogía y metáfora. Relaciona conceptos completos unos
con los otros y trata de establecer las similitudes, diferenciaciones o tipos de
relaciones entre ellos. No hace el montaje de pensamientos y sentimientos a partir
de pequeños fragmentos de datos6.
Nuestra memoria trabaja con tres procesos básicos: adquisición, consolidación y evocación7. El primero trata de la forma como aprehendemos determinado hecho/situación. Seguramente, nuestros esquemas cognitivos son necesarios
para codificar a un evento y después pasar a la siguiente fase.
Falsas memorias consisten en recuerdos de situaciones que, en verdad, nunca
han ocurrido. La interpretación equivocada de algo que se sucedió puede ocasionar la formación de falsas memorias. Aunque no presenten una experiencia
directa, las falsas memorias representan la verdad como los individuos las
recuerdan8. Pueden surgir de dos formas: espontáneamente o a través de una
sugerencia externa.
Alfred Binet condujo los primeros estudios específicos sobre falsas memorias.
Ellos versaban sobre las características de sugestionabilidad de la memoria, o sea,
la incorporación y el recuerdo de informaciones falsas, sean ellas de origen interna
o externa, que el individuo se acuerda como siendo verdaderas9.
Con el fin de ilustrar tal situación, interesante citarse el experimento realizado
por Walter Lippmann, en el año de 1922, en el no Congreso de Psicología en
Gottingen, hecho, por lo tanto, bajo la mirada de personas entrenadas y acostumbradas a la observación:
Desde un lugar cercano al recinto donde ocurría el congreso,
había una fiesta, un baile de máscaras. Súbitamente, una puerta
del salón se abre abruptamente y un payaso entra corriendo,
perseguido, locamente, por un afro descendiente con un arma
6 RATHEY, John J. O cérebro – um guia para o usuário. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p. 13.
7 Véase TULVING, E. Elements of episodic memory. Boston: Oxford Clarendon Press, 1983.
8 BARBOSA, Cláudia. Estudo experimental sobre emoção e falsas memórias. Porto Alegre: PUCRS,
2002. Dissertação (Mestrado em Psicologia), Faculdade de Psicologia, Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul, 2002, p. 26.
9 BINET, A. La suggestibilitie. Paris: Scheicher, 1900, apud NEUFELD, Carmem Beatriz;
BRUST, Priscila Goergen; STEIN, Lilian Milnitsky. Compreendendo o fenômeno das falsas
memórias. In: STEIN, Lilian Milnitsky. Falsas memórias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010.
230
volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
en la mano. Ellos se paran en el medio del salón peleándose. El
payaso se cae. El afro descendiente salga sobre él y le dispara.
Ambos salen rápidamente del salón. Todo el incidente dura más o
menos 20 segundos.
El presidente del congreso pide a los presentes que sean testigos
del hecho, una vez que todo seguramente iba a ser objeto de
investigación judicial y testigos iban a ser necesarios. Cuarenta
testimonios le llegan a las manos. Sólo uno tenía menos de un
20% de errores en relación a los hechos. Catorce tenían entre un
20 y un 40 % de errores, doce tenían de 40 a 50 % de errores y
trece tenían más de un 50 % de errores. En 24 de los reports, 10
% de los hechos relatados eran pura invención. Sobre ¼ de los
testigos eran falsos. No hace falta decir que toda la escena fue
planeada como un experimento. Toda la escena fue fotografiada.
De los falsos reports, 10 podrían clasificarse como leyendas o
cuentos, 24 podrían considerarse como algo fantasiosos y sólo 6
de ellos tenían algún valor probatorio10.
Falsas memorias de las más diversas se han implementado en estudios
científicos. Desde la introducción de aliens11, besos en sapos12 hasta incluso una
petición de mano hecha por una máquina de venta de gaseosas de Pepsi13, no
parece haber límites para las invenciones. Los estudios demuestran la necesidad
de comprender mejor el problema y, para ello, comprender cómo funciona el
almacenamiento de recuerdos, muchas veces traumáticos, como son aquellos en
los que hay violencia. En estos, los testigos son fundamentales para entender el
hecho y sus circunstancias.
Necesario tenerse en cuenta el hecho del experimento haber contado con
participantes entrenados a la observación que, cuando puestos en situación
de relatar el evento, tienden a presentar informaciones diversas/equivocadas en
relación al ocurrido.
10 LIPPMANN, Walter. Public opinion. 50. ed. New Jersey: MacMillan, 1991, p. 82.
11 V. CLARK, Steven E.; LOFTUS, Elizabeth F. The Construction of Space Alien Abduction
Memories. Psychiological Inquiry, v. 7, n. 2, p. 140-143, 1996.
12 Véase LOFTUS, Elizabeth F. Memory faults and fixes. Issues, p. 41-50, 2002.
13 V. SEAMON, John G.; PHILBIN, Morgan M.; HARRISON, Liza G. Do you remember
proposing marriage to the Pepsi machine? False recollections from a campus walk. Psychonomic
bulletin & review, v. 13, n. 5, p. 752-756, 2006.
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15
231
i encontro de internacionalização do conpedi
Llamamos de proceso “todo lo que se refiere a la prueba”14 y, etimológicamente,
esta palabra evoca un examen o una selección de algo. Los procesos son “máquinas
retrospectivas”, así, basados en varias hipótesis históricas, propuestas por las
partes. Es necesario, entonces, verificarlas. Las pruebas son la manera por la cual
realizaremos esa tarea15. Para Taruffo16, la noción de prueba se encuentra en la
fundamentación de esta concepción.
La dificultad de evaluarse la prueba y su voluntad de verdad17, especialmente
a través del testigo, ya eran preocupaciones de Carnelutti. Dice el autor que “las
pruebas son, por lo tanto, los objetos con los cuales el juez obtiene las experiencias
que le sirven para juzgar”18.
Más allá de la concepción narrativa, ya se había percibido la preocupación de
que el testimonio constituyera mucho más de que describir: constituía, sí, una
verdadera manera de transmitir una experiencia19. Como forma de trascender
su objetificación, se haría necesario también entender menos el contenido en
comparación al que podría traerse al proceso añadido a su vivencia y como esta
puede influenciar su forma de interpretar el mundo.
La posibilidad de ocurrencia de las falsas memorias también puede actuar
de forma precaucional, impidiendo al magistrado que imponga condenas, como
corolario de los principios del in dubio pro reo y estado de inocencia.
La calidad de la prueba puede estar comprometida también cuando del
transcurso excesivo entre la recopilación de las declaraciones de policiales y los
testimonios judiciales, favoreciendo la producción de memorias falsificadas. Fue
lo que reconoció el Juez de Segunda Instancia del Tribunal de Justicia, Estado
do Rio Grande do Sul, Gaspar Marques Batista: “Parte de la prueba oral tomada
en juicio, cinco años después, seguramente se ha comprometido por la acción
14 CORDERO, Franco. Procedimiento penal. Tomo II. Bogotá: Themis, 2000, p. 4.
15 En un sentido extrajurídico, “sería todo lo que nos convence de la existencia de un hecho, de
alguna cosa o de algún ser, sea del presente, sea del pasado” (TOVO, Paulo Cláudio. Estudos
de direito processual penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, v. 2, p. 202).
16 TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos. 3. ed. Madrid: Trotta, 2009, p. 327-328.
17 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 2003, p. 142.
18 CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o processo penal. Campinas: Bookseller, 2004, v. 1, p.
275.
19 Ibidem, p. 289.
232
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i encontro de internacionalização do conpedi
del tiempo, que contribuye para el olvido de los hechos e incluso para las falsas
memorias”20.
Sobre el testigo y su memoria del evento, los efectos del tiempo son nefastos.
El intervalo entre la declaración en investigación policial y el interrogatorio, como
testigo en el proceso, puede tardar años. Así, “la correspondencia entre lo que el
testigo vio, el imagen que registró en su consciencia y lo que va a narrar al juez
sufren fuerte influencia del tiempo”21.
Mirar, a través de los ojos del testigo: he aquí uno de los desafíos comunes al
juez durante el proceso penal. A pesar de esta dificultad y de todas las posibles
“impurezas”, advenidas de este tipo de prueba, no es posible prescindir de su
existencia22. Esto porque hay crímenes, especialmente los materiales, que
difícilmente podrán ser analizados de otra forma que no por el testigo. El
homicidio es un claro ejemplo de esta situación.
Pero, ¿cómo el juez podría utilizarse de esta experiencia del testigo? La respuesta, inicialmente, nos parece bastante compleja. La simple relación causal,
base do cartesianismo, será absolutamente insuficiente para contornar la cuestión.
El Derecho es heredero directo de la tradición racionalista, que reduce el conocimiento al mundo binario de la validad/invalidad. De este modo, la acción
será procedente/improcedente, una medida legal/ilegal (constitucional/inconstitucional). Con base en la naturalizada igualdad, el Derecho intencionalmente
intenta forjar un mundo para allá de las impurezas, muy lejos de la verdad, ya que
el falso sólo sirve de modo a confirmarla.
Respecto a la utopía del “mundo perfecto”, afirma Gauer que “la modernidad
ha disciplinado no solo a los hombres, sino también a todas las cosas que puedan
estar fuera de su sitio”23. Todas las impurezas deberían ser higienizadas, y la razón
20RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Apelação criminal 70020430146/RS.
Juzgado en: 29/11/2008. Diário de Justiça do Rio Grande do Sul, em 08/11/2007. Acesso em:
15 nov. 2008. Disponible en: <http://www.tj.rs.gov.br/site_php/consulta/exibe_documento<.
php?ano=2007&codigo=1382594>. Aceso en: 3 fev. 2014.
21 THUMS, Gilberto. Sistemas processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 51.
22 CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o processo penal. Campinas: Bookseller, 2004, v. 1, p.
292.
23 GAUER, Ruth Maria Chittó. Da diferença perigosa ao perigo da igualdade: reflexões em torno
do paradoxo moderno. Civitas, v. 5, n. 2, p. 401, 2005.
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i encontro de internacionalização do conpedi
era la forma de filtrar, binariamente, los conocimientos válidos e inválidos. Así
siendo, “el mundo perfecto, la utopía de los iluministas, sería totalmente limpio e
idéntico a él mismo, transparente y libre de contaminaciones”24.
Al presenciar el ocurrido, seguramente, el testigo lo interpreta, de acuerdo
con su propia vivencia que, en la mayoría de las veces, no es la misma del juez.
Alexandre Morais da Rosa nos plantea una posibilidad interesante: “La mejor
manera de juzgar un proceso penal es imaginar el guión sin el acto violento o
criminalizado”25. Luego, hace falta un cierto alejamiento para conseguirlo26.
Aquí lo dejamos bastante evidente que no es el caso de sólo evaluar las actuaciones del organismo acusatorio y de la magistratura, pero, necesariamente,
de todos ellos que tendrán participación activa en la (re)construcción del hecho
pasado. Por lo tanto, procesos que generen falsas memorias no dependerán
solamente de quien tiene la función de acusar y a quien juzga, sino también, de
aquellos defensores que, en contradictorio, se valdrán de las mejores estrategias
para evitar distorsiones.
El sistema de oír a los testigos, adoptado en la legislación brasileña, a partir
de la reforma procesal de 2008, es semejante al cross examination (o examen
directo y cruzado27) norteamericano, ya que, en ambos, la acusación y la defensa
hacen sus preguntas directamente a los testigos. En esta forma, las partes se
encuentran sujetadas al contrainterrogatorio de su oponente. Sin embargo, existe
importante diferencia: el proceso penal brasileño no ha limitado la actuación del
juez, en el sentido de sólo presidir el acto, sino también le ha permitido a él la
posibilidad de complementar la inquisición acerca de los puntos no aclarados28.
24 Ibidem, p. 401.
25 MORAIS DA ROSA, Alexandre. Quando se fala de juiz no novo CPP de que juiz se fala?
In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti
Castanho de. O novo processo penal à luz da Constituição (Análise crítica do Projeto de Lei nº.
156/2009, do Senado Federal). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 128.
26 Ibidem, p. 128.
27 GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Provas. In: MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis
(Coord.). As reformas no processo penal: as novas Leis de 2008 e os projetos de reforma. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 284.
28 DI GESU, Cristina Carla. Prova penal e falsas memórias. Dissertação (Mestrado em Ciências
Criminais) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre: 2008, p. 102.
234
volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
El artículo 212 del CPP presenta algunas limitaciones a las preguntas realizadas.
Estas no podrán inducir respuesta, ni tener relación con la causa e importar en
repetición, siendo el magistrado responsable por fiscalizar la inquisición29. En este
punto, constatamos importante dificultad de nuestro reglamento legal: no existen
definiciones de lo que serían preguntas que inducen a la respuesta.
Como posible forma de atenuación del problema se apuntan medidas de
reducción ante la imposibilidad de otra solución30. Para tanto, se presentan las
siguientes sugerencias:
a) la toma de los testimonios en un plazo razonable, con el objetivo de disminuir la influencia del tiempo (olvido) en la memoria;
b)la adopción de técnicas de interrogatorio y de la entrevista cognitivas, con
el objetivo de obtener informaciones cuantitativas y cualitativamente
superiores a las de las entrevistas tradicionales, altamente sugerentes;
c)la grabación de las entrevistas, lo que permite al juez de segunda instancia conocer el modo como las cuestiones han sido elaboradas, además
de las reacciones de los entrevistados;
d) la realización de las preguntas por las partes mismas, después del relato libre del entrevistado (víctima o testigo), complementando, el magistrado,
ulteriormente, las cuestiones;
e) el rechazo de los relatos (testimonios) contaminados directa e indirectamente;
f ) la formación multidisciplinar de los profesionales encargados de la realización de los interrogatorios, con actualizaciones constantes;
g)la explotación de otros supuestos, distintos del acusatorio, por parte del
entrevistador, que puede plantear otros aspectos presentados por la víctima o por los testigos, en el momento de los testimonios31.
29 GIACOMOLLI, Nereu José. Reformas (?) do processo penal – Considerações críticas. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2008, p. 57.
30GIACOMOLLI, Nereu José; DI GESU, Cristina Carla. Fatores de contaminação da prova
testemunhal. In: GIACOMOLLI, Nereu José; MAYA, André Machado (Orgs.). Processo penal
contemporâneo. Porto Alegre: Núria Fabris, 2010, p. 23.
31 Ibidem, p. 38-39.
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15
235
i encontro de internacionalização do conpedi
Primeramente, trabajar con la idea de lo que sería plazo razonable parece bastante movediza. El contenido dependerá siempre de un referencial, dificultando de
forma determinante la aplicación de los postulados universalizadores del Derecho.
Con relación a las prácticas de entrevista cognitiva, se hacen necesarias algunas consideraciones. Los diez problemas más comunes de los entrevistadores
forenses fueron relacionados a seguir: 1) no explicar el propósito de la entrevista;
2) no explicar las reglas básicas de la sistemática de la entrevista; 3) no establecer
rapport (la empatía con el entrevistado); 4) no solicitar el relato libre; 5) basarse en
preguntas cerradas y no hacer preguntas abiertas32; 6) hacer preguntas sugestivas/
confirmatorias; 7) no acompañar lo que dijo recién el testigo; 8) no permitir
pausas; 9) interrumpir al testigo cuando este se encuentra hablando; y 10) no
promover el cierre de la entrevista33.
El objetivo principal de la entrevista cognitiva es obtener mejores declaraciones, o sean, ricas en detalles y con mayor cantidad y precisión de informaciones.
Está basada en los conocimientos científicos de dos grandes áreas de la psicología:
psicología social e psicología cognitiva. Respecto a la psicología social, integran los conocimientos de las relaciones humanas, particularmente el modo de
comunicarse efectivamente con un testigo y, en el campo de la psicología cognitiva, se suman los saberes que los psicólogos adquirieron sobre la manera como
nos acordamos de las cosas, o sea, como nuestra memoria funciona34.
A pesar de que las técnicas cognitivas sean importantes aliadas en países donde
las pesquisas sobre testimonio tienen mayor tiempo de desarrollo, no es posible
afirmar el alejamiento de los protagonistas/entrevistadores de concepciones punitivistas del sistema y que influencian también la forma de obtención de esas
32 Preguntas abiertas permiten que la persona que está contestando dé más informaciones (e.g.
“¿qué ha visto cuando entró en la tienda?”. Las cerradas, generalmente, solamente presentan
dos alternativas posibles de respuesta: “sí” o “no” (e.g. “¿era mañana, tarde o noche cuando
el crimen ocurrió?”) (FEIX, Leandro da Fonte; PERGHER, Giovanni Kuckartz. Memória
em Julgamento: técnicas de entrevista para minimizar as falsas memórias. In: STEIN, Lilian
Milnitsky (Org.). Falsas memórias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010, p. 220).
33 FEIX, Leandro da Fonte; PERGHER, Giovanni Kuckartz. Memória em Julgamento: técnicas
de entrevista para minimizar as falsas memórias. In: STEIN, Lilian Milnitsky (Org.). Falsas
memórias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010, p. 211.
34 FEIX, Leandro da Fonte; PERGHER, Giovanni Kuckartz. Memória em julgamento: técnicas
de entrevista para minimizar as falsas memórias. In: STEIN, Lilian Milnitsky (Org.). Falsas
memórias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010, p. 210.
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i encontro de internacionalização do conpedi
informaciones. Esta observación también sirve para el carácter multidisciplinar
de la formación de los actores: de nada resuelve si no hay comprometimiento con
garantías fundamentales dentro del proceso penal.
Tampoco se puede ignorar la existencia de una cultura autoritaria tocante a
las policías y a la dificultad de implementación de las estrategias de inquisición.
La comprobación de eso son los resultados tímidos de la incorporación de
valores constitucionales, a despecho de más de 25 años de vigencia de nuestra
Constitución Federal.
La grabación de las entrevistas nos parece mecanismo bastante interesante, de
forma a ampliar el debate en segunda instancia. Problema fundamental, sin embargo,
es identificar la insuficiencia del método para las instancias superiores en virtud de
la vigencia del paradigma de relación jurídica de acción penal. Aquí, distinguimos
hecho y derecho, como si fuera posible el juzgamiento relativo a solamente una de
esas circunstancias. Luego, la eficacia de la estrategia también podría estar limitada.
El relato libre de víctima y testigo es fundamental. Pero, la complementación
de los cuestionamientos por parte del magistrado revela flagrante ofensa al
principio acusatorio. Además: es bastante temeraria la hipótesis, admitiéndose la
posibilidad de preguntas de carácter confirmatorio por parte de alguien (o que
debería ser) visto por el inquirido como un tercero imparcial.
De otra parte, es necesario que nos preguntemos si ¿una concepción de
política criminal conservadora (como la del Derecho Penal del Enemigo) no
puede permitir un sistema más propicio a la sugestionabilidad mientras se
oigan las declaraciones de las personas (en fase policial y judicial) y que puede
materializarse en falsas memorias?
Importante indicativo podemos tener, a partir de las encuestas de Azevedo en
relación a la actuación de los procuradores públicos en Rio Grande do Sul y de
los miembros del Ministerio Público Federal. Con relación a los primeros, 54%
consideraron que poseían más afinidad con la política criminal de “Tolerancia
Cero” como forma de contestar a los índices de criminalidad. La concepción
garantista apareció con solamente 8% de adeptos35.
35 AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. Ministério Público Gaúcho: quem são e o que pensam
os promotores e procuradores de justiça sobre os desafios da política criminal. Porto Alegre:
Ministério Público do Rio Grande do Sul, 2005.
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15
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i encontro de internacionalização do conpedi
Respecto a la encuesta realizada con os miembros del Ministério Público
Federal (Ministerio Fiscal)36, 67,6 % de los entrevistados consideran la legislación penal y procesal penal brasileña blanda o excesivamente blanda. Aún:
en relación a las concepciones de política criminal, 34,7% de los miembros
están de acuerdo con los dictámenes de la “defensa social” y 12,6%, con la
“Tolerancia Cero”. Con todo, 13,2% se dicen adeptos al garantismo penal y 0,6
% al abolicionismo penal.
Por cierto, estos datos son de gran relevancia, sin embargo revelan
solamente el actuar penal de una de las partes implicadas en el sistema penal.
Provisionalmente, sería posible pensar que encuestas en este sentido pueden
ser importantes no solo para los titulares de la acción penal (por excelencia),
como también, para los jueces, abogados (que igualmente pueden justificar
su actuación con base en concepciones político-criminales conservadoras) y
comisarios de policía.
Las falsas memorias existen, tienen repercusión crucial (incluso judicial, como
ya visto) y son de difícil identificación, pues quien relata cree verdaderamente en
su versión. A pesar de existir métodos/técnicas para intentar atenuar sus efectos,
tenemos que la grande cuestión debe ser afrontada no solo con la promoción
de garantías procesuales penales, sino principalmente por un debate político
criminal sobre la necesidad de existencia del proceso de criminalización mismo.
Solamente de esta forma, tal vez podremos efectivamente impedir errores
judiciales traducidos en insoportables privaciones de libertad.
3. política criminal br asileña: rumbo a un millón de
presos?
Si los procesos de criminalización son los responsables primeros por la
exposición a la una falsa memoria, cabe discutir el papel de la política criminal
brasileña en este contexto. Para Delmas-Marty política criminal significa “el
36 AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. Perfil socioprofissional e concepções de política criminal
do Ministério Público Federal. Brasília: Ministério Público Federal, 2009. Disponible en: <http://
escola.mpu.mp.br/linha-editorial/outras-publicacoes/Perfil_ebook.pdf>. Ac. en: 14 Jan. 2014.
238
volume
15
i encontro de internacionalização do conpedi
conjunto de los procedimientos por los cuales el cuerpo social organiza las respuestas al fenómeno criminal”37.
No hay, actualmente, en Brasil, estadística de cuál sería el número de presos
por prueba contaminada con falsas memorias. A pesar de la dificultad de
comprobar la distorsión, podríamos pensar en la utilización de la prueba técnica
(DNA) para desmentir la construcción procesal pasada.
Esta comparación se viene haciendo en Estados Unidos de América, por medio de una acción denominada Innocence Project. A través de una acción llamada
de “exoneración”, se hace la comparación entre el material encontrado en la escena
del crimen (para aquellos ocurridos cuando no había tecnología disponible) y de
la persona condenada, no raro a la muerte.
Actualmente, hay 258 casos de exoneración38 en Estados Unidos, basados en
DNA. En promedio, la persona exonerada pasa trece años en la prisión antes
de ser liberada. En 70% de los casos, la persona exonerada formaba parte de un
grupo de minoría racial. Los errores de identificación de los testigos oculares
contribuyen en más de 75% para los casos de encarcelamiento indebido, en
Estados Unidos39.
Es posible percibir la tendencia de una política criminal expansionista en
nuestro país. Aunque el fracaso histórico de las prisiones haya sido exhaustivamente denunciado por los más diversos sectores de la doctrina penal, la gana de
segregación sigue igual.
Nuevos bienes jurídicos, surgimiento de nuevos riesgos, institucionalización
y sensación social de inseguridad, descrédito de las instancias de protección,
gestores atípicos de la mortal (ecologistas, feministas, consumidores, vecinos,
etc.) y la llamada izquierda punitiva son frecuentemente presentados40 como una
de las causas para políticas criminales represivas.
37 DELMAS-MARTY, Mireille. Os Grandes Sistemas de Política Criminal. São Paulo: Manole,
2004, p. 16.
38 Acción semejante a nuestra revisión criminal, es decir, una forma de intentar alterar el
resultado de una decisión definitiva.
39INNOCENCE PROJECT. Eyewitness identification reform. Disponível em: <http://www.
innocenceproject.org/Content/Eyewitness_Identification_Reform.php>. Aceso en: 12 jul. 2013.
40 SILVA-SÁNCHEZ, Jesús María. A Expansão do Direito Penal. 3a ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2013, p. 18.
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i encontro de internacionalização do conpedi
La selección de lo que proteger no siempre está clara o sigue criterios mínimamente científicos41. Ejemplo de esto es la ausencia del homicidio de la redacción
original de la legislación de crímenes hediondos42.
Editada en el año de 1990, fue una de las grandes responsables por el extraordinario incremento carcelario que tuvimos, conjuntamente a la legislación de
drogas (Ley 11.343/2006). El proceso de encarcelamiento desvela aún otras
finalidades ocultadas. En las palabras de Bauman:
(...) el incremento de la imposición de la prisión en las sociedades
contemporáneas se relaciona a la incapacidad de los excluidos de
participaren del juego del mercado, de aquellos cuyos medios
no están a la altura de los deseos e de aquellos que rechazan la
oportunidad de vencer mientras participaban del juego de acuerdo
con las reglas oficiales. Bauman destaca que el sistema hoy se
resume a separar de modo estricto el ‘desecho humano’ del resto
de la sociedad, excluyéndole y neutralizándole. Pues el desecho
humano debe encerrarse en un conteiner cerrado, y el sistema
penal ofrece dicho conteiner.
Las prisiones que teóricamente funcionaban como mecanismos de
corrección y resocialización, hoy se conciben como un mecanismo
de exclusión y de control.
Lo principal y tal vez el único propósito de las prisiones no es
ser únicamente un basurero cualquiera, sino el depósito final,
definitivo. Una vez desechado, siempre desechado.43
Vivimos la llamada era del Gran Encarcelamiento44, época paradójica por
naturaleza. Si, de un lado, tenemos presidios invariablemente apiñados y en
condiciones intolerables, de otro existe un sentimiento social generalizado
relativamente a las demandas punitivas: penas más severas y construcción de
41 SÁNCHEZ-OSTIZ, Pablo. Fundamentos de política criminal. Madrid: Marcial Pons, 2012,
p. 24-48.
42 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 11a ed. Rio de Janeiro: Revan,
2007, p. 21; PINTO, Nalayne Mendonça. Recrudescimento penal no Brasil: Simbolismo e
punitivismo. In: MISSE, Michel (Org.). Acusados e acusadores: estudos sobre ofensas, acusações
e incriminações. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 250.
43 BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 107.
44 En este sentido: BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de
Janeiro: Revan, 2011, p. 27.
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i encontro de internacionalização do conpedi
nuevos establecimientos carcelarios. A estos movimientos, inspirados por teorías
identificadas con ideas de defensa social (especialmente el ‘derecho penal del
enemigo’ y la ‘law and order’), se ha dado el nombre de populismo punitivo45.
Aunque considerada superada teóricamente, esta concepción político-criminal
aún encuentra espacio en el sentido común. Por lo tanto, aunque que hay
resistencias, la permeabilidad de la política criminal legislativa acaba haciendo
con que tengamos el movimiento como de un péndulo46.
Este cuadro se ha fomentado por la transición del llamado “estado de bienestar
social” para un “estado policial”, es decir: por “el paso del modelo de comunidad
incluyente del ‘Estado Social’ para un Estado excluyente, ‘penal’, orientado
para la ‘justicia criminal’ o para el ‘control del delito”47. Dentro del paradigma
actual, el sistema penal se convierte en “el territorio sagrado del nuevo orden
socioeconómico”48.
Esto se agrava en países como Brasil, en los cuales la desigualdad social aún
constituye gravísimo problema estructural. De este modo, las prisiones acaban por
convertirse en grandes depósitos donde los excluidos49 socialmente son abrigados.
Producto y a la vez combustible de la lógica punitivista es la cultura del
miedo50. Existe un sentimiento generalizado de victimización, reproducido a
partir de un maniqueísmo social, según lo cual,
45 LARRAURI, Elena. Populismo punitivo... y como resistirlo. Revista de Estudos Criminais,
Sapucaia do Sul, Notadez n.25, abr./jun, 2007.
46 CHRISTIE, Nils. Los limites del dolor. Trad. de Mariluz Caso. Ciudad del México: Fondo de
Cultura Económica, 1988, pp. 71 y 95.
47 BAUMAN, Zygmuth. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p. 86.
48 BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p.
100.
49 PASTANA, Débora Regina. Estado punitivo e encarceramento em massa: retratos do Brasil
atual. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 77, p. 316317, mar./abr. 2009.
50 Utilizamos aquí el miedo en los términos trabajados por Débora Pastana: “Entendemos el
miedo, en esta investigación, como una forma de exteriorización cultural, principalmente
se llevamos en cuenta las transformaciones que él desencadena. Como vimos en el capítulo
anterior, hay un cambio en el comportamiento del individuo en casa y en la calle, un cuidado
mayor con sus bienes (consumo de pólizas, por ejemplo), la producción y el consumo de los
más variados productos de seguridad privada (alarmas, coches blindados y clases de defensa
personal, por ejemplo), una falta de confianza generalizada entre los individuos” (PASTANA,
Débora Regina. Cultura do medo: reflexões sobre violência criminal, controle social e
cidadania no Brasil. São Paulo: IBCCRIM, 2003, p. 92). Véase BAUMAN, op. cit., p. 65-66.
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i encontro de internacionalização do conpedi
los buenos se transforman en víctimas indefensas de los malos,
entre los cuáles se incluyen, en esta última categoría, los supuestos
responsables por la seguridad de todos. De ahí las expresiones:
impunidad, ineficacia de las normas y del poder judicial. La
sociedad se siente víctima del delincuente y el Estado incompetente
o poco opresor51.
Sospechas se proyectan en privaciones, especialmente de la libertad. Síntoma
de este contexto es la población carcelaria brasileña. Hoy, se estima que tengamos
más de 715.000,00 (setecientos quince mil) presos52. Y este número sólo crece.
Aunque existan medidas político-criminales con finalidad declaradamente desencarcelizadores, las consecuencias prácticas de su aplicabilidad son muy tímidas.
Y ello porque el subjetivismo53, en ciertas categorías-clave (como el requisito del
“orden pública” en sede de prisión cautelar), convierte fácilmente en reversibles
los objetivos originales.
Brasil es el cuarto país del mundo en población carcelaria. Se encuentra atrás
de EUA, Rusia y China. Datos presentados por el Instituto Avante Brasil54,
apuntaron el aumento de 508% en la población carcelaria brasileña entre 1990
e 2012, mientras la población nacional creció 31%. Christie considera el número
de presos a cada 100.000 habitantes como un importante dato para medir el
nivel de punición de determinado país55. En el nuestro, en 2012, la cifra de
presos fue 283 para cada 100.000 habitantes, teniendo en cuenta la población
51 PASTANA, Débora Regina. Cultura do medo: reflexões sobre violência criminal, controle
social e cidadania no Brasil. São Paulo: IBCCRIM, 2003, p. 108-109.
52 Véase KAWAGUTI, Luis. Brasil tem 4a maior população carcerária do mundo e déficit de 200
mil vagas. Disponible en: <http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/05/120529_
presos_onu_lk.shtml>. Acceso en: 06 jun. 2012. En el mundo, se estima que tengamos más de 10
millones de personas en prisión: INTERNATIONAL CENTRE FOR PRISION STUDIES.
World Prison Population List. Disponible en: <http://www.prisonstudies.org/info/downloads.
php?searchtitle=&type=3&month=1&year=2009&lang=0&author=&search=Search>. Acesso
em: 12 jun. 2012.
53 Véase especialmente LOPES JÚNIOR, Aury. O novo regime jurídico da prisão processual,
liberdade provisória e medidas cautelas diversas: Lei 12.403/2011. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2011.
54INSTITUTO AVANTE BRASIL. Levantamento do Sistema Penitenciário em 2012.
Disponible en: <http://institutoavantebrasil.com.br/levantamento-do-sistema-penitenciariobrasileiro-em-2012/> Acesso em 01 de Fev. de 2014.
55 CHRISTIE, N., Indústria do Controle, p. 40.
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i encontro de internacionalização do conpedi
de 193.946.886 habitantes estimada por IBGE para 2012. Mientras la población
creció 1/3, la población carcelaria más que sextuplicó56.
A pesar de la expansión aturdida del número de encarcelados, esto no significa
un mayor sentimiento de seguridad. Al contrario. El primer millón de presos no
se encuentra lejos. En este sentido, nunca es demasiado acordarnos de Christie:
“en las sociedades modernas, el mayor peligro del delito no es el delito mismo,
sino que la lucha contra él conduzca las sociedades hacia el totalitarismo57”.
4.posibilidad de pensar una política no criminal:
¿por dónde?
Tal vez la única forma efectiva de disminución de falsas memorias, durante los procesos de criminalización, sea precisamente acotar el catálogo de crímenes disponibles.
Desde ahí la necesidad de una política no criminal. Trataremos, en este punto, de las
propuestas existentes para la (re)valorización de la libertad aun considerando los
resquicios importantes de una sociedad en grande medida disciplinar58.
Las elecciones de la política criminal son culturales59, desvelan un área inundada de cuestiones morales profundas, que no pueden resumirse a especialistas
y mensajeros de la Verdad. Según Christie, “debe haber un coro de voces que
introduzcan inúmeras preocupaciones de difícil solución y sobre las cuales no hay
unanimidad. Cuanto más se ve el campo como cultural, menos espacio sobra para
soluciones simplificadas60”.
56INSTITUTO AVANTE BRASIL. Levantamento do Sistema Penitenciário em 2012.
Disponible en: <http://institutoavantebrasil.com.br/levantamento-do-sistema-penitenciariobrasileiro-em-2012/> Acesso em 01 de Fev. de 2014.
57 CHRISTIE, Nils. La Industria del Control del Delito – La Nueva Forma del Holocausto?
Buenos Aires: Editores del Puero, 1993, p. 24
58 No se ignoran los nuevos controles planetarios, de menor repercusión en el sistema penal,
pero de gran importancia para entender la transmutación de la biopolítica en ecopolítica.
En este sentido, imprescindibles las siguientes lecturas: PASSETTI, Edson. Ecopolítica:
procedências e emergência. In: Guilherme Castelo Branco; Alfredo Veiga-Neto. (Org.).
Foucault, filosofia & política. Belo Horizonte: Autêntica, 2011, v. 1, p. 127-141, FOUCAULT,
Michel. O nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008; y DELEUZE, Gilles.
Conversações. São Paulo: 21, 2004.
59 CHRISTIE, Nils. Uma Quantidade Razoável de Crime. Rio de janeiro: Revan, 2012, p. 50.
60 CHRISTIE, Nils. Uma Quantidade Razoável de Crime. Rio de janeiro: Revan, 2012, p. 130.
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i encontro de internacionalização do conpedi
Existe cierto consenso sobre las (im) posibilidades de la cárcel. En las palabras
de Ferrajoli, más relevante es saber cómo castigar es tratar del tema del la
substitución de la cárcel, una invención moderna, considerada como una gran
conquista de los ideales humanitarios del iluminismo y como alternativa a la pena
de muerte, a los suplicios, a la tortura y a otros horrores del derecho penal premoderno. Con la prisión, sigue Ferrajoli, la pena vuelve a los ideales de igualdad
y de legalidad pre-determinada, siempre pasibles de medición y de cálculo,
aplicada por el juez según la gravedad – en abstracto y en concreto – de los delitos
cometidos. Sin embargo, destaca que hoy es posible dar un “salto de civilización”,
quitando el protagonismo de la pena de reclusión y reduciendo drásticamente du
duración. Así, la prisión se convierte en una sanción excepcional, limitada a las
ofensas más graves contra los derechos fundamentales (como la vida, la integridad
personal y similares), las únicas que capaces de justificar la privación de la libertad
personal (también un derecho fundamental). Luego, concluye que el modelo
actual conserva múltiplos elementos de sufrimiento físico, que se extienden
durante todo su ejecución61.
Como alternativa concreta, Ferrajoli defiende la reducción del límite máximo
de la pena privativa de libertad, que debería ser de 10 años62. Malaguti defiende
las siguientes propuestas:
• cambio radical en la política criminal de drogas, con la elaboración de
políticas colectivas de control por la legalidad;
• despenalización de los delitos patrimoniales sin violencia contra la persona, como el hurto;
• abertura de los muros de las prisiones para su comunicación con el
mundo, con sus amores, con sus familias, con sus amigos, con sus cronistas;
• no punir a la familia de los prisioneros, que ya sufre con la estigmatización;
61 Véase FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón. 9. ed. Madrid: Trotta, 2009, p. 203-204.
62 FERRAJOLI, Luigi. Democracia y Garantismo. 2. ed. Traducción de Perfecto Andrés Ibáñez.
Madrid: Trotta, 2010, p. 416-418.
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i encontro de internacionalização do conpedi
• convertir la ideología del combate en grandes mediaciones horizontales
en el sentido del desarmamiento;
• disminuir el número de policías, desarmándoles y transformándoles en
agentes colectivos de defensa civil, con la cambio de sentido de la seguridad pública de la lucha contra los pobres para el amparo a los efectos
de las ruinas de la naturaleza sobre el juzgo del capital.
• Legalización del segundo empleo de policías y bomberos.
• Ampliación y fortalecimiento de la Defensoría Pública.
• Fin de la exposición de los sospechosos para la prensa y restricciones al
noticiero emocionado de los casos criminales, que aniquila el derecho a
un juicio imparcial”63.
Son políticas concretas y que tiene como fin último la cárcel. Tal vez se pueda
trascender a Ferrajoli y pensar no solamente en el “¿cómo?”, sino también en el
“¿por qué?”. Olvidamos nuestro número vergonzoso de presos, las cifras ocultas
exorbitantes para crímenes de homicidio, los aturdidos niveles de reincidencia y
el simbolismo (sólo para los clientes no habituales) del sistema penal.
En un contexto de cifras ocultas significativas, donde la punición se vuelve
excepcional, lo que crea un abolicionismo de hecho64, el proceso se convierte en la
arena de Kafka. La igualdad moderna no es sino una promesa. Pese a que las cifras
ocultas, especialmente para el delito de asesinato, se consideren altas en nuestro
país65, es precisamente en el acto formal de la criminalización que una segunda
ruptura a la pretensión de igualdad moderna66 puede ocurrir, pues no todos son
punidos de la misma forma y es imposible plantear dicha posibilidad.
Es necesaria atención para muchas de las alteraciones legislativas. Muchas
veces reformar significa mantener como está. Alterar la superficie, sin que se
63 BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan,
2011, p. 115
64 Cf. HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas: o sistema penal em
questão. 2. ed. Rio de Janeiro: LUAM, 1997.
65 FERRAZ, Taís. A investigação de homicídios no Brasil. Disponible en: <http://www.cnmp.
mp.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=1264:a-investigacao-dehomicidios-no-brasil&catid=9:destaques&Itemid=229>. Acesso en: 15 de mayo de 2014.
66 GAUER, Ruth M. Chittó. A Fundação da Norma. Porto Alegre: Edipucrs, 2012, p. 168-169.
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i encontro de internacionalização do conpedi
toque en el fondo. Trascender a la crisis presente, articulándose ya la próxima.
Sujetada al control. Preferencialmente penal.
Hacer lo posible es tan seductor cuanto el populismo punitivo. Es la salida.
La vía de sentido único que justifica la ausencia de libertad del otro con el
mantenimiento de la propia libertad. Paradojo del propio sistema penal: al dolor
sufrido, dolor impuesto.
Se hace necesario pensar sobre la posibilidad de alteraciones estructurales,
manifestadas en una deseable política no criminal. Esta seria realizable a partir de
la lectura de las categorías del sistema penal desde la reducción de dolor. ¿Cómo?
Sólo a través de un amplio debate, solamente posible tras la concientización de los
actores político-criminales de los efectos de la cultura punitiva en nuestro medio.
Precisamos reflexionar sobre la real utopía: ¿descriminalización de conductas
o el autofágico y suicida67 sistema penal (omni) presente?
5.conclusiones
Aunque esté todavía bajo los efectos de recesión económica, hablándose
globalmente, causados por la crisis del mercado inmobiliario, especialmente desde
el año de 2007, la Industria del Control del Crimen sigue en franca expansión.
No sólo: presentase como un negocio muy lucrativo.
La seguridad es la mercancía de la vez. Impulsada por nuestros miedos y
falta de creatividad en contestar al desafío desde hace mucho lanzado por Gustav
Radbruch. Esperamos demasiado tiempo. Vidas fueron segadas, familias (de
víctimas y ofensores) aniquiladas y el sistema penal sigue su marcha de expansión
en ritmo vertiginosamente acelerado.
A pesar de las fracturas del sistema penal, entre ellas la fragilidad de los
testimonios en función de las sugestionabilidades en las entrevistas policiales y
forenses, la marcha punitiva sigue su (dis)curso. Sus rodillas no tienen condiciones
de sustentar el cuerpo, sin embargo, la metafísica (en la cual se encuentra basada
67 En este sentido, ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de
Direito Penal Brasileiro – Volume 1 – Parte Geral. 9a edição. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2011, p. 78.
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i encontro de internacionalização do conpedi
grande parte de las justificaciones de la pena) hace con que siga difundiendo dolor
y sufrimiento. ¿Hasta cuándo?
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i encontro de internacionalização do conpedi
psicopatia e responsabilidade penal:
novos desafios diante dos avanços
neurocientíficos
Mirentxu Corcoy Bidasolo1
Denise Hammerschmidt 2
Resumo
O texto compreende ligeira incursão a respeito dos avanços da biotecnologia
e, principalmente, das neurociências, e de sua relevante contribuição à revisão
de conceitos jurídico-penais. No particular, desenvolve o tema da imputabilidade penal, com o recorte da culpabilidade do psicopata, cuidando do
tratamento da psicopatia como transtorno de personalidade que se reflete na
base comportamental do indivíduo afetado. Desenvolve os desdobramentos teóricos que fundamentam a responsabilização criminal atenuada dos psicopatas,
indicando, com luzes num futuro não muito distante, a probabilidade dos estudos
neurocientíficos justificarem a eliminação de sua imputabilidade penal. Assim,
esse recorte do transtorno de personalidade do psicopata contextualizado na
temática da responsabilidade penal, oferece elementos instigantes para o debate
acadêmico acerca da complexa problemática da ponderação de valores entre a
modernidade e os postulados éticos regentes do ordenamento jurídico, alguns
dos quais explorados no texto. Permeia toda reflexão justamente nesse substrato
1 Dra. en Derecho. Catedrática de Derecho Penal de la Universitat de Barcelona. Magistrada.
Directora del Máster de Bioética de la Universidad Pública de Navarra. Miembro del
Observatori de Bioètica i Dret. Profesora del Máster en Bioética y Derecho: Problemas de
Salud y Biotecnología, Universitat de Barcelona.
2 Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (1988), mestrado em
Direitos da Personalidade pelo Centro Universitário de Maringá (2006) e mestrado em Direito
Penal Supra-Individual pela Universidade Estadual de Maringá (2005). Máster Oficial em
Criminología y Sociología Jurídico-Penal pela Universidade de Barcelona (Espanha - 2011).
Doutoranda em Direito e Ciência Política pela Universidade de Baracelona (2011 - 2015).
Especialista en Neurociências pela Universidade de Salamanca (2013). Atualmente é Juíza
de direito em 2º grau do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, com atribuições fixas
na 3a Câmara Cível. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito, atuando
principalmente nos seguintes temas: meio ambiente, biossegurança, transgênicos, intimidade
genética, discriminação genética, execução penal, banco de dados de perfis genéticos de
criminosos e neurociências.
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i encontro de internacionalização do conpedi
ético que deve guiar o caminho desses avanços tecnológicos a serviço da ciência
jurídico-penal.
Palavras-chave
Genética; Neurociência; Culpabilidade; Imputabilidade; Vontade humana;
Psicopatia; Psicopata.
Abstract
The study comprises a brief incursion about the advances of biotechnology
and, especially, of neuroscience, and its significant contribution to the revision
of legal and criminal concepts. Particularly, the theme of criminal responsibility
is addressed, highlighting the guilt of the psychopath, treating the psychopathy
as a personality disorder which reflects in the behavior of the affected individual.
Are developed the theoretical deployments that underlie the attenuated criminal
responsibility of psychopaths, indicating, in a soon to be future, a likelihood of
the neuroscientific studies justify the elimination of the criminal responsibility
in this cases. Thus, this note about the personality disorder of the psychopath,
contextualized on the topic of criminal responsibility, covers interesting elements
to the academic debate on the complex issue of weighting values between
modernity and the predominant ethical principles of the legal system, some of
which are explored in the text. All of the reflection on display is permeated on this
ethical substratum that should guide the way these technological advances must
work in the service of the criminal law science.
Key words
Genetics; Neuroscience; Culpability; Liability; Human Will; Psychopathy;
Psychopath.
1.introdução
A humanidade tem experimentado nas últimas décadas de desenvolvimento
uma verdadeira revolução provocada pela biotecnologia3, pela psicologia, pela
3 Dividindo-se a palavra nas duas que lhe derem origem, bio e tecnologia, tem-se a seguinte
definição: “biotecnologia: uso dos organismos vivos para solucionar problemas ou desenvolver
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i encontro de internacionalização do conpedi
ética e pela neuroética que afeta, de modo direto e sem precedentes, diferentes
ramos do conhecimento humano, provocando uma série de perguntas e
questionamentos antes inimagináveis. O homem começa a interferir em processos
até agora monopolizados pela natureza, inaugurando uma nova era que poderá
se caracterizar pelo controle de certos fenômenos até esse momento fora de seu
domínio.
Inicia-se o século XXI já com uma descrição completa do material humano,
vale dizer, um “livro de receita para fazer um ser humano”4, o mapa do genoma
humano. A cartografia genética permite agora a análise do conhecimento individualmente, de todos e de cada um dos componentes minúsculos que conduzem a novas qualidades e disposições, nossas limitações e defeitos, com o que, em
princípio, será possível para a humanidade viver mais e melhor, lutando contra
sua própria enfermidade, inclusive antes do nascimento, por meio da engenharia
genética.
Sem embargo do grande feito da identificação de cem mil genes implicar
num gigantesco passo em benefício do gênero humano, esse progresso não está,
porém, isento de riscos, já que o estudo da genética, que vem dando muitos frutos
positivos para a humanidade, também pode ser utilizado contra ela mesma, se se
ignoram os princípios éticos.
As inovações genéticas e também neurocientíficas apresentam, com efeito,
uma série de problemas específicos, incluídas as questões éticas inerentes à própria
investigação biotecnológica. Neste sentido, o Projeto Genoma Humano, ao tempo
em que se propõe a obter a designação e a assimilação do mapa genético humano,
suscita questões delicadas como a da violação da intimidade e outros direitos
produtos novos e úteis” (KREUZER, Helen; MASSEY, Adrianne. Engenharia genética e
biotecnologia. 2ª ed, Tradução Ana Beatriza Gorini da Veiga. Porto Alegre: Artmed, 2002,
p. 17. Assim, com essa inspiração etimológica, conceitua-se biotecnologia como “ a tecnologia
que utiliza as propriedades dos seres vivos para gerar produtos ou modificar processos, ou modificar
propriedades dos organismos (microorganismos, plantas ou animais), com fins específicos e
determinados’. MUÑOZ, Emilio. Implicaciones socio-econômicas de la biotecnologia: nueva
política científica e novos contextos cognitivos. In: BERGEL, Darío Salvador; DIAZ, Alberto
(Orgs.). Biotecnologia y sociedad.Buenos Aires: Ciudad Argentina, 2001, p.372
4 Expressão usada por ROMEO CASABONA, Carlos María, em sua primeira obra, Del Gen
al Derecho, Bogotá:Universidad Externado da Colombia, 1996.
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i encontro de internacionalização do conpedi
fundamentais, discriminações, projeções de comportamentos, entre outras que
incidem sobre o direito e, em particular, sobre o direito penal.
O conhecimento e compreensão dos mecanismos fundamentais da vida
abrem novas possibilidades de intervenção dentro dos organismos vivos, de seu
funcionamento mental, e, com elas, aplicações em benefício da humanidade, mas
estas atuações também podem desenvolver-se de forma a majorar riscos e perigos
para o homem e o equilíbrio do mundo vivo.
Portanto, os progressos da biotecnologia e das neurociências devem acompanhar-se de uma reflexão ética destinada a garantir os princípios e valores sobre
os quais se fundamentam nossa sociedade e a dignidade dos seres humanos,
especialmente protegidos, em tese, pelo sistema jurídico-penal.
Tem-se, aqui, especial interesse pelos reflexos dos avanços neurocientíficos5
no âmbito forense, em particular na área da responsabilidade penal. Como a
utilização dessas modernas técnicas podem afetar as bases teóricas do direito
penal, reflexionando em que medida as mais recentes conquistas das neurociências
influenciam a administração da justiça penal de forma compatível com os direitos
fundamentais é, deste modo, um dos principais focos da investigação científica
nessa importante área do saber da psiquiatria penal. No caso deste ensaio, no que
toca em especial ao âmbito da responsabilidade e imputabilidade penal6.
5 “Las neurociencias, en gran medida gracias a las enormes posibilidades que ofrecen los nuevos
métodos de experimentación y neuroimagen –tomografía axial por emisión de positrones (PET),
la tomografía computerizada por emisión de fotones simples, resonancia magnética funcional o
nuclear (RM o fMRI), magnetoencefalografía, etc.-, han sufrido un avance espectacular en los
últimos años y nos han abierto la ilusionante posibilidad de conocer mejor lo que denominamos
‘naturaleza humana’. De tal manera que algún autor no ha tenido reparos en hablar de
una ‘revolución neurocientífica’” (FEIJOO SÁNCHEZ, Bernardo José. Derecho penal y
neurociencias. ¿una relación tormentosa?, In: FEIJOO SANCHEZ, Bernardo José (Ed.).
Derecho Penal de la Culpabilidad y Neurocienciass. Cizur Menor (Navarra): Ed. Thomson
Reuters/Aranzadi/Civitas, 2012. p. 71).
6 “La ciencia del Derecho penal se ve sometida por la discusión de la biología humana a una específica
presión e inmersa en una relación asimétrica; ambas cosas no le convienen. Los neurocientíficos
han alcanzado con su trabajo conocimientos que, en caso de que sean correctos e idóneos, sustraen
la base a buena parte de nuestros puntos de partida sobre el Derecho penal y su mundo; esto explica
las características de las reacciones desde la ciencia del Derecho Penal. No es posible ver una línea
en ellas. Llegan desde un distanciamiento lúdico en el plano de la teoría de la ciencia, pasando por
profundos programas alternativos que quieren establecer un cortafuegos salvador entre los cantos
de sirena y la dogmática jurídico-penal de la culpabilidad, mostrando un
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i encontro de internacionalização do conpedi
Pontua-se, desde logo, como linha nuclear do desenvolvimento desse tema, a
importância da intimidade, como bem de macro grau axiológico, na dimensão
hierárquica da dignidade humana. A abordagem neste singelo texto quer apenas
lançar ligeiros lampejos sobre as preocupações que os experimentos da neurociência podem causar, através de suas ferramentas de análises, à eventual mudança dos
conceitos básicos capazes de aferir e determinar a responsabilidade humana, por
vincular-se à estrutura da personalidade ou da conduta dos indivíduos.
No caso, recorta-se, para reflexão, a questão referente à imputabilidade do
psicopata.
2. responsabilidade penal
O real sentido da expressão culpabilidade penal pode ser buscado desde a
representação grega da pena, passando pela racionalidade do sistema jurídico
romano, até a preocupação atual, nunca ausente, da incessante busca de
proporcionalidade entre crime e pena, decorrente da lógica entre o dano causado
e sua reparação, daí o permanente esforço dessa mesma racionalidade que se
encontra na base de qualquer reflexão moderna acerca do juízo de culpabilidade
jurídica.
Tem-se, porém, de modo geral, a culpabilidade associada ao conjunto de
condições que dão ao sujeito imputado capacidade de lhe ser atribuída responsabilidade penal. Ou seja, em outras palavras, culpabilidade refere-se ao indivíduo,
ou melhor, à sua capacidade individual de responder pelas consequências
decorrentes de seus atos, de prestar contas pelos efeitos nefastos da conduta que
praticou. Diferentemente, pois, do conceito moral, que mais concerne ao foro
íntimo da pessoa.
Se buscássemos um sentido até mesmo metafísico, poderíamos relacionar a
culpabilidade com o indivíduo que compõe, em termos genéricos, a comunidade
Desesperado empeño en mantener con vida el Derecho penal de la culpabilidad aun bajo los golpes
de la biología humana, hasta llegar a la candorosa exhortación a la ciencia del Derecho penal
de “no hacerse artificialmente la ciega y sorda”, sino de “aprovechar la oportunidad de repensar
la atribución jurídico-penal de culpabilidad y responsabilidad”(HASSEMER, Winfried.
Neurociencias y culpabilidad en Derecho Penal. Revista depara el análisis del Derecho InDret,
abril, 2011, p. 4).
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15
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i encontro de internacionalização do conpedi
humana na trágica categoria de sua finitude ou imperfeição e que, por isso mesmo,
lhe impõe o princípio da solidariedade.
Culpabilidade, em suma, é reprovabilidade pessoal pela realização de uma
ação lesiva, em termos penais, típica e ilícita, ou seja, um juízo de reprovação ou
de censura pessoal endereçado ao agente por não ter agido conforme a norma,
quando podia fazê-lo.
Daí a exigência de se comprovar a capacidade ou possibilidade da pessoa agir
de forma diversa, ou seja, de absorver ou assimilar a mensagem normativa.
É por isso mesmo que qualquer sistema penal clássico recorre preponderantemente à inevitável constatação, até então contida na cláusula salvadora, de que
tanto o determinismo quanto o indeterminismo não podem ser cientificamente
comprovados, dispensando à sua legitimação o sistema jurídico-penal de uma
verificação empírica do livre-arbítrio humano. Em outras palavras, como esse
fundamento não se acha cientificamente consolidado, pouco significado vinha
tendo para os padrões do direito, menos como categoria científico-natural, e
muito mais como objeto de natureza cultural governado por referenciais diversos.
Se bem que isso passa agora a ser desafiado pelos novos postulados da ciência,
como já se abordou e adiante se concluirá.
De qualquer modo, prevalece a fundamentação da culpabilidade na capacidade humana de poder atuar de maneira diferente. Como anota Régis Prado:
É certo que a liberdade humana, como dado real do existir como
expressão de um sentido na ordem social, está na base da construção
normativa jurídica e tem reconhecimento constitucional expresso.
A responsabilidade jurídica não tem nenhum sentido senão em
relação à liberdade jurídica7 – indissociável de pessoa livre, única
7 Nessa perspectiva, impende examinar os três sentidos de liberdade: liberdade de eleição;
liberdade moral e liberdade social, política e jurídica. A liberdade de eleição ou liberdade
psicológica é um dado antropológico da condição humana, que diferencia os homens dos
outros animais e que possibilita o ato de escolha entre diversas alternativas ou possibilidades,
constitutiva, por isso, da noção de pessoa. De sua vez, a liberdade moral seria a meta do
dinamismo da liberdade que arranca da liberdade psicológica e que supõe a eleição livre de
planos de vida, de estratégias de felicidade, ou, referido de maneira mais tradicional, de ideias
de bem ou de virtude, como a moralidade privada de cada um (PECES-BARBA, Gregório.
“La Libertad del Hombre y El Genoma”. Revista del Instituto Bartolome de Las Casas, Madrid:
258
volume
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i encontro de internacionalização do conpedi
capaz de responder por suas ações -, e que vincula reciprocamente
o indivíduos. Isso significa, em outro dizer, que a evitabilidade
individual (= poder agir de outro modo), de base ontológica,
pressupõe sempre e exatamente a liberdade de poder se comportar
de acordo com a norma (= liberdade de escolha, livre-arbítrio),
visto que não teria sentido formular uma censura jurídica ou moral
contra um acontecimento determinado pela lei da causalidade, e
que se produz, por isso, de forma necessária. Em consequência,
o sentido social do atuar é determinado segundo a direção da
vontade e o resultado (...). O conceito de culpabilidade penal é,
portanto, de natureza jurídica (ético-existencial-jurídico) e não
ético-moral ou religioso8.
O desiderato desse critério é o de propiciar o maior grau possível de segurança
jurídica, de modo a que se aproxime a teoria do crime quanto mais da realidade
para que seus parâmetros não contenham matiz aleatório, ou seja, de mera
“conveniência ou de autoridade. Trata-se, na verdade, de um problema epistemológico
do que pode ou não pode ser conhecido. A resposta a essa interrogação depende dos
mais variados fatores, históricos, culturais, sociais, políticos, de uma postura éticoindividual e de sua relação com os valores ético-sociais”9.
A noção moderna de culpabilidade penal, pois, acaba sendo conquista cada
vez mais ligada a um direito penal que tem no homem integrado socialmente seu
desiderato maior.
Universidad Carlos III de Madrid, n. 2, out./mar., 1994, p. 32. Tradução nossa) No que toca à
liberdade jurídica, a dialética autonomia-universalidade exige que esse plano de vida, necessite
da aceitação de cada sujeito (autonomia) e ao mesmo tempo seja suscetível de generalização,
de uma oferta que se possa converter em lei geral (universalização)- noções jurídicas da
liberdade. Cumpre notar que a liberdade jurídica é sempre liberdade por meio do Direito.
Configura-se juridicamente “como valor ou princípio jurídico e desenvolve-se através dos
direitos fundamentais e dos princípios de organização e constitui o que podemos chamar
de moralidade pública legalizada, que estabelece como objetivo central do Direito, ele que
organiza a sociedade de tal maneira que cada um possa escolher livremente sua ética privada.
À luz dessa diretriz, convém destacar que, integrando a ideia de liberdade dentro dessa três
dimensões, se preconiza que “a liberdade jurídica é o instrumento para construir na vida social,
a liberdade moral de cada homem, fazendo possível o mais pleno e completo exercício da liberdade
de eleição” (PECES-BARBA, Gregório. Op.cit, p. 32-33, Tradução nossa).
8 PRADO, Luiz Régis. Curso de direito penal brasileiro. vol. 1, São Paulo: RT, 2010, p. 385.
9 SERRANO MAÍLLO, A. Ensayo sobre el Derecho Penal. p. 337. Apud: PRADO, Luiz Régis.
Op. cit., p. 385.
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i encontro de internacionalização do conpedi
Mas, isso tende a se alterar ligeiramente, quando se integram a esses aspectos
conceituais os contributos científicos antes abordados. Desde essa perspectiva e
a traspondo ao âmbito estritamente jurídico-penal, se pode afirmar que determinadas técnicas permitem encontrar novas alternativas para uma explicação que
normativamente alguns anos antes teríamos tratado definitivamente como delito atribuído a agente imputável, justificando a reação penal e, portanto, social.
É porque há meio século, esse homem tido como culpável, havia sido rotulado
como “malvado”, como alguém que pode decidir livremente sobre sua conduta e,
assim, por ela ser responsável.
Talvez, hoje, um neurocientista pudesse afirmar com quase absoluta probabilidade de certeza que aquele pobre homem não passava mais de um enfermo,
e que sua suposta maldade, assim, decorria dessa sua enfermidade, pela qual não
se lhe podia atribuir responsabilidade, já que seu agir, liberto do claustro psicológico que não atuou como mecanismo de normalidade mental, não foi livre.
E se fosse, ao contrário, penalmente responsabilizado, não estaria sendo tratado
de maneira justa, quem sabe como as sociedades vinham fazendo, em virtude dos
limites de nossos conhecimentos científicos.
E aqui está a diferença que pode revolucionar conceitos na área da culpabilidade penal, ou seja, entre a do homem do exemplo e a maioria dos seres humanos,
pois neste caso se poderia detectar a principal causa de sua atuação, muito ao
reverso da maior parte dos nossos comportamentos que têm sua origem ligada a
fatores prévios muito mais difusos e nem sempre sujeitos a uma explicação tão
clara e precisa.
Mas, é justamente nesta dimensão, em pegadas abertas pelas novas tendências
teóricas da neurociência, que se pode desenvolver atenta e madura reflexão sobre
muitas das bases filosóficas em cima das quais se vem construindo durante séculos
o sistema de imputação jurídico-penal, questionando sua validade ainda que
relativa, pois fundadas sobre pressupostos possivelmente errôneos.
Como ensina Bernardo Feijoo Sánchez:
(...) ostentar que a culpabilidade é uma construção social não
significa, desde logo, que o juízo de culpabilidade possa ser
incompatível com nossos conhecimentos empíricos, incluindo
os provenientes das neurociências, isto é, que aludidos referentes
empíricos não determinam nem resolvem diretamente o problema
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i encontro de internacionalização do conpedi
normativo, mas que devem ser processados pelo sistema jurídicopenal de acordo com sua função social10.
3. psicopatia e imputabilidade
Como se sabe, a psicopatia é um transtorno da personalidade11 que incide
indistintamente sobre a população, independentemente de classe social, cor,
sexo ou outra qualquer predeterminação. Reputa-se, assim, devido ao perfil
comportamental de seus portadores, mais um transtorno de personalidade que
propriamente uma doença mental, por não se manifestar por meio de sintomas,
mas sim de comportamentos antissociais, isso sem embargo do dissenso científico a respeito do tema.
A psiquiatria considera personalidade como “padrões de pensamento, sentimento e comportamento que caracterizam o estilo de vida e o modo de
adaptação único de um indivíduo, os quais resultam de fatores constitucionais,
do desenvolvimento e da experiência social”, ou ainda “padrões de perceber,
relacionar-se e pensar sobre o ambiente e sobre si mesmo”, ocorrendo transtorno
da personalidade quando “os aspectos referidos se tornam rígidos, inflexíveis e
mal adaptativos”12.
De fato, a capacidade de culpabilidade dos psicopatas não é, efetivamente,
tema pacífico. No caso do direito brasileiro, dos critérios de aferição da
imputabilidade – biológico, psicológico e misto –, adota-se base biopsicossocial
para aferição de imputabilidade ao serem previstas circunstâncias especiais nas
quais a responsabilidade penal pode ser reputada diminuída, quando afetada por
condições pessoais capazes de provocar modificação das capacidades éticas ou de
determinação, em graus variáveis.
Como se reputa a psicopatia, então, não uma doença mental, mas mais uma
forma de ser no mundo, uma certa maneira da pessoa se expressar, podendo
tomar a forma de transtornos variados, há quem não a considere capaz de afastar
10 FEIJOO SÁNCHEZ, Bernardo José. Op. cit. p. 124. Tradução nossa.
11 O.M.S. Entidade nosológica codificada pela Organização Mundial da Saúde. CID-10:
classificação estatística internacional de doenças e problemas relacionados à saúde. 9ª ed.
Revisada. São Paulo: Ed. USP, 2003.
12 BERTOLOTE, J.M. (org) Glossário de Termos de Psiquiatria e Saúde Mental da CID-10 e seus
derivados. Porto Alegre: Ed. ArtMed, 1997.
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i encontro de internacionalização do conpedi
a capacidade de culpabilidade do sujeito. É que o psicopata sequer seria portador
de doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado, porquanto
sua perturbação psíquica não teria o condão de afastar ou diminuir sua capacidade
ética ou de determinação. Sabe-se, contudo, que mesmo alguns transtornos de personalidade podem
adquirir maior relevância no âmbito da psiquiatria forense, por reconhecidamente
colocarem seus portadores em situações de direto confronto com os códigos legais
e, em consequência com o sistema de justiça.
E estudos mais recentes demonstram que indivíduos que padecem desses
transtornos de personalidade do tipo antissocial, ou que apresentam uma estrutura de personalidade conhecida como psicopatia, tendem a adotar comportamento criminal, que é multidimensional.
E é por isso mesmo que se tem assistido ao crescimento do interesse por
pesquisas psiquiátricas na crescente busca por uma maior compreensão desse
fenômeno, ou seja, o das características de condutas propensas à violência, ao
cometimento de crimes, à insensibilidade à dor alheia e à aparente indiferença às
punições e sanções penais.
Essa certa confusão conceitual, envolvendo o encaixe da psicopatia ou
do transtorno antissocial da personalidade na categoria de causas de afetação
da responsabilidade criminal, tem suscitado o debate e a revisão dos mais recentes estudos tendentes a discutir o estágio atual de conhecimento do tema,
especialmente diante dos recentes avanços das neurociências.
A evolução da metodologia de pesquisa tem tornado possível, assim, a criação
de instrumentos padronizados na tentativa de quantificar e classificar tais afetações
psíquicas, sendo certo que, até agora, a tendência da psiquiatria forense é a de
considerar os TPs – transtornos de personalidade – como uma perturbação da
saúde mental, condição clinicamente menos grave que a doença mental. Advertese, com efeito, que a apresentação de um transtorno mental nem sempre é tão
óbvia, podendo passar despercebida por pessoas leigas em psiquiatria, o que leva
à manutenção de muitos indivíduos em ambientes prisionais sem receber a devida
atenção psiquiátrico-forense13.
13 TABORDA, José G.V; ABDALLA FILHO, Elias; CHALUB, Miguel. Psiquiatria Forense. 2ª
ed, Porto Alegre: Artmed, 2012, pp. 431-449.
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i encontro de internacionalização do conpedi
Importante, aqui, a referência a respeito do tratamento psiquiátrico indicado. O consenso internacional é que, até hoje, não há tratamento eficaz que
leve à cura dos transtornos de personalidade antissocial ou da psicopatia. É
que esses transtornos psíquicos representam fator prognóstico negativo em
muitos contextos, embora isso não signifique que algumas técnicas terapêuticas
não possam gerar algum benefício. Desse modo, mesmo que a eficácia para a
psicopatia ainda não esteja clara, comportamentos antissociais podem responder
favoravelmente a várias intervenções programáticas, como diversos tipos de
psicoterapia e tratamento medicamentoso, embora, repita-se isso esteja distante
do que pudesse ser considerado cura14.
Independentemente, porém, dessas abordagens terapêuticas, o fato é que tais
transtornos, porque situados numa região de fronteira entre a doença mental
e a mera perturbação psíquica, representam um grande desafio no âmbito da
responsabilidade penal, criando enormes dificuldades ao psiquiatra forense. É que
seus portadores não apresentam alterações significativas do funcionamento mental,
como, por exemplo, o esquizofrênico agudo. É que o psicopata não tem o mesmo
prejuízo na avaliação da realidade como tem, por exemplo, o esquizofrênico.
Antes, ele (psicopata) continua sendo capaz de entender e distinguir, entre suas
ações, as que são consideradas lícitas e as que não o são.
Assim, se ele possui capacidade de entender e aprender regras sociais, tal
qual indivíduos capazes e racionais, sua decisão de se comportar em desacordo
com as normas, por não ser considerada doença mental, ainda que associada à
criminalidade, poderia ser vista como mais uma inclinação, da mesma forma que
outras características predispõem outras pessoas a serem religiosos ou leigos, por
exemplo. E tal seria tratada como uma escolha, de domínio não público, própria
das sociedades liberais.
Ou seja, indivíduos humanos que vivem em sociedade, basicamente se dividem
em dois grupos: aqueles que têm restrições morais suficientes para não se engajar
em ações criminosas e os que não têm. A pena criminal é desnecessária para os
14 HESSE, M. What should be done with antisocial personality disorder in the new edition of
the Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-V)?. BMC Medicine, v. 8;
2010. p. 66.
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i encontro de internacionalização do conpedi
primeiros e inútil para os últimos, desde que estes sejam considerados incapazes
por falta de motivação moral. Esse argumento em favor da responsabilização dos
psicopatas defende que todos os criminosos têm, para o crime específico que
cometeram, diminuição das restrições morais.
Contudo, as pesquisas mais atuais apontam características genéticas, além
de morfológicas e funcionais, do sistema nervoso central e periférico, associadas
à psicopatia15. Uma das mais importantes implicações práticas dessa literatura
referente aos avanços neurobiológicos comportamentais é a possibilidade de
usar seus resultados como atenuantes da responsabilidade dos indivíduos
afetados, por se concluir que tais pessoas, por serem portadoras de determinadas
características biológicas, deveriam receber tratamento terapêutico em lugar de
pena criminal.
Mas, é de suma importância ressaltar, a esta altura, como os autores a seguir
citados o fazem peremptoriamente, não ter nenhum estudo, até o momento,
identificado uma relação causal entre estas alterações e as características do
comportamento desses indivíduos.
Além disso, estas diferenças (biológicas, anatômicas, funcionais)
encontradas entre psicopatas e não psicopatas são modestas,
apresentam grande área de intersecção de resultados e são baseadas
em estudos com base que no número de indivíduos, o que não
permite a generalização dos resultados. Assim, tanto psicopatas
como não psicopatas podem apresentar estas alterações. Tal
perspectiva nos remete a um risco de (mal) utilizar as medidas
de estruturas anatômicas cerebrais como uma reedição de uma
15 “O exame de neuroimagem funcional em indivíduos normais engajados na efetuação de
julgamentos morais revela a ativação das mesmas áreas cerebrais que, quando lesadas, dão
origem à condição de sociopatia adquirida. Essas áreas compreendem o polo e a base dos
lobos frontais e a parte mais anterior dos lobos temporais, principalmente o direito. Tais
resultados, embora ainda preliminares, indicam que o cérebro humano é dotado de redes
neurais diretamente envolvidas com o julgamento moral (Raine, 2002) Estudos cada vez
mais recentes mostram o envolvimento do córtex pré-frontal no comportamento antissocial,
indicando redução do metabolismo em regiões frontais. Além do envolvimento do lobo
frontal, especialmente regiões mediais e laterais, também têm sido descritas reduções do
metabolismo em estruturas subcorticais do sistema límbido, amígdala, hipocampo e núcleo
caudado” (TRINDADE, Jorge. Manual de Psicologia Jurídica para operadores de direito. 5ª ed.
Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011, p. 165).
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i encontro de internacionalização do conpedi
avaliação ‘lombrosiana’ dos indivíduos, agora intracerebral e
revestida de tecnologia contemporânea16.
Em síntese, embora a psicopatia não pertença ao núcleo duro de enfermidades
ou anomalias mentais que têm sido à exaustão investigadas e plenamente descritas
pela ciência médica, no dizer de Manuel Cancio Meliá17, quase toda investigação
estritamente médica sobre o fenômeno é muito recente e está em acesa discussão
e suas bases empíricas ainda não submetidas, totalmente, à comprovação.
No momento, portanto, o diagnóstico e, em consequência, a definição da
psicopatia depende de instrumentos de análise externa da conduta, em particular
da “psychopathy checklist/revised (PCL-R)”, elaborada pelo psicólogo canadense
Hare, mediante a qual se obtém uma pontuação (em princípio, sobre 20 itens), em
atenção a que concorram na pessoa determinadas características de personalidade
que se expressam em sua conduta18.
Não se pretende, neste espaço, entrar nos pormenores deste método diagnóstico, nem nas características específicas da psicopatia. Para o que aqui interessa,
basta referir-se a que a psicopatia consiste em uma completa ausência de empatia,
o que conduz o psicopata a uma disposição anormal que se pode qualificar como
uma espécie de “daltonismo moral”, na feliz expressão do mesmo autor espanhol
citado Cancio Meliá: “os psicopatas apresentam uma completa ausência de freios
inibitórios a respeito da realização de comportamentos socialmente desvalorados”19.
E segundo parece, a psicopatia é uma constante antropológica, incidente em
percentual estável em todas as épocas e em todas as culturas.
Todas essas novas características da psicopatia, descobertas e aclaradas, mesmo que ainda em debate e sem embargo de sua identificação como doença mental,
16 SCHOPP, R.F.; SLAIN, A. J. Psychopathy, Criminal Responsibility and Civil Commitment
as a Sexual Predator. Behav, Sci. Law, 2000. FELTHOUS, A; HENNING, S. Introduction
to this issue: Internacional Perspectives on Psychopathi: an update. Behav, Sci. Law, 28,
2010, pp. 121-128 Tradução nossa..
17CANCIO MELIÁ, Manuel. Psicopatía y Derecho Penal: algunas consideraciones
introductorias. FEIJOO SANCHEZ, Bernardo José (Ed.). Op. cit. pp. 261-285.
18 HARE, R.D.; NEUMANN, C.S. Psychopathy: Assessment and Forensic Implications. The
Canadian Journal of Psychiatry, v. 54, n. 12, 2009, pp. 791-802.
19 CANCIO MELIÁ, Manuel. Op. cit. pp. 261-285.
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na mais recente bibliografia filosófica e psicológica em inglês, estão dotadas
de fundamentos para conduzir à conclusão de que se tratam, os psicopatas, de
agentes quase irracionais, devido à sua incapacidade para interiorizar valores, e
que, por isso, não existe a possibilidade de se formular um juízo de reprovação
moral, uma vez identificada com precisão a base neurofisiológica da psicopatia e,
assim, uma vez explicada a origem de sua conduta desviada.
Como entende Cancio Meliá:
Ora, em princípio, se pensássemos a culpabilidade como expressão
do caráter da pessoa ou uma emanação de sua personalidade, o
modo de ser do psicopata é o que lhe faz não ter em conta os
demais, não considerar os interesses alheios, e, portanto, delinquir
por uma insignificância contanto que seu interesse egoísta se quede
satisfeito. Sem embargo, desde este ponto de vista aqui adotado –
e com as cautelas antes referidas acerca dos necessários níveis de
certeza no diagnóstico que ainda se devem alcançar -, é necessário
ao menos apresentar outra solução.
Mas, se partirmos para a construção social da culpabilidade – o conceito
funcional de culpabilidade,
de acordo com este ponto de vista, a culpabilidade é uma magnitude
que deriva das necessidades de prevenção geral positiva, vale dizer,
a culpabilidade significa que a explicação da infração da norma
ocorrida é fixada ao infrator, por ausência de uma explicação
alternativa. A consequência é a imposição de uma pena ao
infrator como mecanismo de estabilização contrafática da norma.
Pois bem, se se parte deste conceito funcional da culpabilidade,
desenvolvido por JAKOBS, portanto, esta queda definitiva pela
missão que cumpre. Sua função é a de identificar a motivação
defeituosa do autor como razão do conflito. Sua falta de assunção
do ordenamento é o que explica a existência da violação da norma.
Nesta construção teórica,
a superposição do normativo ao pretendidamente fático-biológico
mostra que se deve avançar até uma definição mais clara das
categorias de culpabilidades implicadas, que tenha em conta
o caráter normativo – devido às condicionantes sociais reais do
sistema de imputação penal – do conceito de culpabilidade, vale
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dizer, até um conceito funcional de culpabilidade. Não importa
a potência do estímulo, senão a competência para ele, e esta se
define em função das necessidades do sistema social. Então, o
que se pode dizer sobre estas bases para nosso problema, o maior
conhecimento das bases neurifisiológicas da psicopatia e sua
possível relevância para a imputabilidade?
Parece claro, em síntese, que, a quem padece psicopatia, não se pode
dissociar de sua conduta e atribuir esta a sua falta de capacidade de
sentir a infração da norma. Não são iguais aos demais. Se pensamos,
como fazem Erickson e Vitacco, que ‘psychopaths presumably obey
conventional norms for the same reason most other people do: they
understand that the law is fundamental about regulating conduct´,
afirmamos que o direito penal sempre significa e só significa elevar
o famoso mastro de Hegel frente ao injusto. E sabemos que as
implicações da afirmação de culpabilidade neste plano do sistema
social vão muito além desse mecanismo20.
4.conhecimentos neurocientíficos – novos par adigmas?
Posto que apontadas as características do funcionamento cerebral de pessoas
diagnosticadas como psicopatas, seria possível afirmar que recentes avanços das
neurociências21 embasariam alguns dos postulados de determinadas concepções
de base antropológica da criminalidade22. Estariam os deterministas situados em
premissas mapeadas em estruturas psicossomáticas de atuações inevitáveis? É
possível afirmar, com base em investigações modernas contempladas em estudos
de neurociência cognitiva, que essas desfuncionalidades comprometem aspectos
comportamentais numa espécie de determinismo neurobiológico?
20CANCIO MELIÁ, Manuel. Psicopatía y Derecho Penal: algunas consideraciones
introductorias. FEIJOO SANCHEZ, Bernardo (Ed.). Op. cit. pp. 281-282. Tradução nossa.
21 Neurociências ou ciências do cérebro, representam o conjunto das ciências que têm por objeto
o estudo do sistema nervoso. (HOTTOIS, Gilbert; MISSA, Jean-Noël. Nouvelle encyclopédie
de bioéthique. Bruxelas: De Boeck Université, 2001).
22 Interessantes estudos sobre a conexão das neurociências com o direito penal podem ser
encontrados no livro DEMETRIO CRESPO, Eduardo (Dir.); MAROTO CALATAYUD,
Manuel (Coord.). Neurociencias y derecho penal – nuevas perspectivas em el ámbito de la
culpabilidade y tratamento jurídico-penal de la peligrosidad. Montevideu/Buenos Aires:
Bdef. 2013.
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Se isso pode soar exagero, não se pode olvidar que tais especulações científicas já nos permitem, definitivamente, explorar melhor a incompletude do conceito de responsabilidade penal, reivindicando uma maior compreensão biopsicossocial capaz de permitir avanços nessa mesma discussão, lançando novas
bases sobre os limites da base de imputabilidade.
Como assentam Silvio José Lemos Vasconcellos et alli23,
(...) afirmar, por exemplo, que um comportamento é neurobiologicamente determinado não é o mesmo que afirmar que esse
mesmo comportamento seja geneticamente determinado. Com
base na primeira afirmação, infere-se que ocorrências cerebrais
específicas geram, por si só, comportamentos específicos. Mas, ao
contrário do que pode ocorrer diante da segunda afirmação, não
se infere que ocorrências cerebrais só possam ser geradas por uma
cadeia de eventos genéticos. Em outras palavras, determinismo
neurobiológico não é o mesmo que determinismo genético e nem
o mesmo que determinismo ambiental. A primeira afirmação
nos remete ao fato de que tudo aquilo que acontece no cérebro é
condição necessária e presumivelmente suficiente para gerar um
comportamento. Independe, por sua vez, do próprio fato de que os
acontecimentos cerebrais tenham sido anteriormente determinados
por fatores genéticos e/ou ambientais. Constata-se apenas, com
base nessas considerações, que todo e qualquer comportamento
é gerado no sistema nervoso central e em nenhum outro lugar.
... De forma mais peremptória, cabe destacar, portanto, que os
achados científicos apresentados não permitem concluir que
psicopatas nasçam psicopatas. Sugerem, de outra forma, que,
tanto por influências genéticas, como por influências ambientais,
os indivíduos com esse transtorno consolidam, ao longo de seu
desenvolvimento, formas mais precárias de processar e fazer uso das
informações que fundamentam os processos de interação social.
Portanto, abstraída a questão ainda irrespondida pelo estágio atual das neurociências - embora o debate em acesa discussão sobre novas bases teóricas -, em
relação aos psicopatas, de um suposto determinismo neurobiológico, o certo é que
determinados psicopatas podem e devem beneficiar-se de um possível diagnóstico
23VASCONCELLOS, Silvio José Lemos; et al. A semi-imputabilidade sob o enfoque da
neurociência cognitiva. Revista de Estudos Criminais, ITEC, nº 38, 2010.
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de seu transtorno da personalidade, de modo a torná-los passíveis nessa categoria
nosológica da condição de semi-imputáveis, mesmo os reconhecendo capazes no
que se refere aos dois postulados clássicos da imputabilidade (intelectivo e volitivo
ou ético e de determinação), e isso quando o grau de descontrole comportamental
em suas interações sociais estiver em relação a uma neuroconectividade alterada
de modo a determinar uma capacidade de autodeterminação efetivamente
diminuída nessas pessoas.
E isso não importará, propriamente, se esses padrões de neuroconectividade estão ligados a uma carga genética exclusivamente, ou também a um fato
ambiental concorrente.
Portanto, à pergunta: o que fazer com o psicopata?, a qual ainda, psicólogos,
sociólogos, psiquiatras e juristas não alcançaram uma resposta definitiva, caberia
acrescentar a reflexão sobre o que há de errado ou aparentemente diferente nele,
posto serem suas características cerebrais essencialmente humanas24.
5.conclusões
Como bem pondera Cancio Meliá25, como sabido,
“nos últimos anos assistimos a um verdadeiro vendaval no marco da discussão filosófico-moral e jurídico penal, vendaval que
tem sido gerado pelos mais recentes avanços nas investigações
das neurociências(...) Como também sabemos, alguns dos
protagonistas da investigação neurocientífica, e alguns penalistas,
pensam que o que se está descobrindo nestes últimos anos acerca do
funcionamento do cérebro, especificamente, acerca de como têm
lugar os processos de tomada de decisões, revelam que nossos pontos
de partida fundamentais na hora de estabelecer a responsabilidade
penal estariam errados. Desde este ponto de vista, o vendaval seria
o anúncio de uma tormenta, de um furacão que transformará
toda nossa imagem sobre a noção de responsabilidade, e, com ela,
modificará para sempre o conjunto do sistema de reação frente
24 HARRIS, Judith R. Não há dois iguais: natureza humana e individualidade. São Paulo: Globo,
2007.
25CANCIO MELIÁ, Manuel. Psicopatía y Derecho Penal: algunas consideraciones
introductorias. FEIJOO SANCHEZ, Bernardo (Ed.). Op. cit. pp. 261-262. Tradução nossa.
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ao comportamento desviado, levando-se consigo o direito penal
tal e como o conhecemos. Sintética e simplificadamente: a noção
jurídico-penal de culpabilidade se assenta na ideia de que o sujeito
que consideramos responsável por seus atos, ao o considerarmos
culpado, é reprovável pelo que fez porque podia atuar de outro
modo. Então, se é certo, como afirmam alguns neurocientistas,
que, na realidade as decisões não se tomam naquele extrato do
cérebro que chamamos “eu”, vale dizer, por parte das estruturais
neurais que configuram a consciência, senão que a decisão na
verdade se acomoda a processos neurais não conscientes, em suma,
se é certo que não “fazemos o que queremos”, senão que “queremos
o que fazemos”, todo o edifício da responsabilidade jurídico penal
deveria cair em sua base e, com ele, todo nosso sistema penal
baseado na liberdade de escolha, a reprovação e a culpabilidade,
e dar seguimento a um novo modo de tratar o comportamento
desviado, assentado sobre a periculosidade e seu tratamento, e não
sobre a culpabilidade e seu castigo”.
E essa advertência, como resposta a esse tão grande desafio, desde a perspectiva histórica da natureza e dos fins da pena, pode levar à afetação dos pilares
essenciais do direito penal e, em particular, remover os fundamentos do conceito
clássico da culpabilidade. E aqui, em especial, encaixa-se o conceito funcional de
culpabilidade que a fundamenta no princípio da prevenção geral positiva e, assim,
busca imunidade às dúvidas semeadas pelas neurociências em torno da existência
de uma liberdade humana no sentido enfático-empírico.
Sem embargo dessa perspectiva ainda não permitir que se formule a grande
questão da abolição da culpabilidade, não significa que todo esse avanço no
conhecimento do funcionamento do cérebro humano resulte irrelevante para o
conceito jurídico-penal de culpabilidade. Muito ao contrário, pode acender – e
está, efetivamente, a lançar – novas e ofuscantes luzes aos seus postulados clássicos,
orientando estandares paradigmáticos na definição da psicopatia e formulando
agudas especulações sobre as consequências que poderão derivar para a prática
forense das investigações neurocientíficas atualmente em curso.
E tudo a ponto de alguns autores, tal como assenta Adrián Marcelo Tenca26,
afirmarem, em seu entendimento, “conforme o atual conceito de enfermidade
26 TENCA, Adrián Marcelo. Imputabilidad del psicópata. Buenos Aires: Astrea. 2009, pp. 182183. Tradução nossa.
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mental, aos aportes das ciências da conduta, que permitem conhecer hoje muito
melhor as características e ilimitadas capacidades dos psicopatas e, particularmente,
frente a um conceito normativo da culpabilidade penal, não me cabe dúvida de que o
psicopata nunca pode ser considerado imputável”. Acrescentando,
parece que as ciências da conduta humana, que outrora haviam
entendido a enfermidade mental como sinônimo de loucura,
vale dizer, como disfunção da esfera individual, e, assim, caído
em um critério de enfermidade só determinado pela inteligência
e seu funcionamento, como derivado de uma visão do mundo
pretensamente cientificista, fundada em um materialismo ingênuo
e mecanicista, em que o primordial era sempre o entendimento
causal dos fenômenos e, por aí, tendiam a ver como enfermo
mental só o incapaz de captar esse processo. Já hoje as ciências
da conduta humana avançaram e esta ideia errônea foi superada,
como também a cosmovisão positivista, não é menos certo que
a “atitude” de muitas pessoas segue arrastando esta visão do
materialismo ingênuo como substrato inconsciente. Daí que
frequentemente seja difícil explicar que tão enfermo é o que padece
de uma disfunção de sua esfera intelectual como o que padece
de uma disfunção de sua esfera afetiva, sem contar com que a
separação resultante de outrora é hoje posta em séria discussão.
Quem sabe, então, possamos chegar ao final deste ligeiro ensaio com a mesma
sensação a que Cancio Meliá chegou, no sentido de que, sobre essa base jusfilosófica, se poderá formular a tese antes anunciada: ao menos em alguns casos,
no sentido de que a psicopatia atuará como causa de inimputabilidade em um
futuro não demasiadamente longo.
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regulação econômica e direito penal
econômico: eficácia e desencontro no
crime de evasão de divisas
Thiago Bottino1
Resumo
O artigo aponta o descompasso entre o direito penal econômico e a realidade
econômica brasileira relativamente ao crime de evasão de divisas e sustenta haver
incongruência na punição dessa conduta à luz das normas administrativas que
regulam essa mesma atividade econômica. Dividido em quatro partes, o texto
aborda a questão do bem-jurídico supraindividual relacionado à evasão de divisas;
analisa o tipo penal previsto no art. 22 da Lei dos Crimes contra o Sistema
Financeiro Nacional; indica os pontos em que a realidade econômica modificouse desde a edição da referida Lei; e, por fim, propõe soluções de interpretação do
art. 22 da Lei 7.492/1986 para a adequação entre o plano dos fatos e o plano das
normas.
Palavras-chave
Evasão de divisas; Direito penal econômico; Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional; Reservas cambiais; Crimes econômicos.
Abstract
The article points out to the gap between criminal law for white- collar crimes
and the Brazilian economy, especially in regards to tax evasion crimes. It argues
that there is an inconsistency in the criminal punishment of this conduct in light
of the administrative rules governing the same economic activity. The paper is
divided in four sections, it addresses the issue of diffuse legal interests; it examines
the offense contained in the art. 22 of the White Collar Crime Law; it also
1 Doutor e Mestre em Direito Constitucional pela PUC-Rio. Professor-adjunto e Coordenador
de Graduação da FGV Direito Rio. Professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro (UNIRIO). Membro efetivo da Comissão Permanente de Direito Penal do
IAB.
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i encontro de internacionalização do conpedi
mentions in which points the economic reality has changed since the enactment
of this law and finally proposes a new interpretation of art. 22 so that facts and
norms are compatible.
Key words
Tax evasion; Criminal law for white-collar crime; Crimes against the National
Financial System; Foreign exchange reserves; Financial crimes.
“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades”
Luís Vaz de Camões (Sonetos).
1. introdução2
O tema não é novo,3 mas é atual. E vem ganhando cada vez mais importância.
Há alguns anos os juristas e os economistas vêm alertando para a incongruência
do crime de evasão de divisas no atual cenário econômico.4
2 Esse artigo é produto das discussões iniciais realizadas no âmbito do projeto “Reforma da
Legislação Penal Econômica”, um dos vários projetos desenvolvidos pelo grupo de pesquisa
“Direito Penal, Economia, Governança e Regulação”. Agradeço integrantes do grupo, em
especial a Luiz Francisco Mota Santiago Filho, Luciana dos Reis Frattini, Heitor Campos
Guimarães e Mariana Barbosa. O grupo desenvolve diferentes pesquisas, todas relacionadas
aos aspectos que aproximam a política econômica, as regras administrativas, as regras de
mercado e o direito penal.
3 Destacam-se, dentre vários outros, os trabalhos inovadores de Nilo Batista (Consumação e
tentativa no crime de evasão de divisas. In: Shecaira, Sérgio Salomão (org.). Estudos criminais
em homenagem a Evandro Lins e Silva. São Paulo: Método, 2001), Ricardo Pieri (Evasão de
divisas? RBCCrim 62/134. São Paulo: Ed. RT, set-out., 2006), Luciano Feldens e Andrei
Zenker Schmidt (O crime de evasão de divisas: a tutela penal do Sistema Financeiro Nacional
na perspectiva da política cambial brasileira. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006) e José Carlos
Tortima e Fernanda Lara Tortima (Evasão de divisas: uma crítica ao conceito territorial de
saída de divisas contido no parágrafo único do art. 22, da Lei 7.492/1986. 2. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2009).
4 Exemplo disso são os recorrentes artigos e editoriais de jornais sobre o tema do repatriamento
de valores, a crescente entrada de dólares na economia brasileira e a descriminalização da
evasão de divisas: José Carlos Tórtima (O Globo, 23.10.2008), Carlos José Marques (IstoÉ
Dinheiro, 03.06.2009), Fausto Martin de Sanctis (Folha de S. Paulo, 06.10.2009, p. A3), José
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Já há, inclusive, projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional5
prevendo anistia para aqueles que repatriarem depósitos mantidos no exterior e
nunca declarados às autoridades brasileiras (mantendo, porém, a incriminação da
conduta para depósitos não repatriados).
Se, por um lado, a discussão avança lentamente no plano legislativo, por outro,
a discussão parece inexistir no plano judicial. Isso quando, há muito tempo, o
tema está pacificado no plano econômico.
A inutilidade de se manter a punição pelo crime de evasão de divisas (art. 22
da Lei 7.492/1986) nos mesmos moldes em que foi concebida na década de 1980
do século passado se insere, obviamente, dentro de um problema mais amplo,
relacionado à necessária reforma da legislação penal econômica em seu conjunto.
Assim como o crime de evasão de divisas, várias outras figuras delitivas perderam
o sentido e a atualidade ou precisam se adaptar aos novos tempos. E não precisa
ser especialista para entender o porquê: a economia brasileira transformouse radicalmente nos últimos 25 anos! Os fantasmas de década de 1980 (dívida
externa, hiperinflação) não são os mesmos de hoje. Mas ainda estamos amarrados
à legislação daquela época.6
Mentor (Folha de S. Paulo, 14.10.2009), Antenor Madruga (Valor Econômico, 10.12.2009,
p. A14), O Estado de São Paulo (A inundação de dólares continua, 11.03.2011), IBCCrim
(Boletim IBCCrim 221, abr. 2011), Carlos Alberto Sardenberg (O Globo, 02.06.2012).
5 No Senado: PL 354/2009, de autoria do senador Delcídio Amaral (PT-MS). Na Câmara: Lei
113/2003, do deputado Luciano Castro (PR/RR) e PL 5.228/2005, do deputado José Mentor
(PT-SP).
6 Ao comentar os 20 anos da Lei 7.492/1986, Luiz Carlos dos Santos Gonçalves apontou a
“morte” da Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional: “A lei não se mostrou
maleável para responder a novas demandas de proteção. Exemplificamos com os seguintes
itens: (a) a falta de transparência na gestão de instituições financeiras e na atuação dos
órgãos de fiscalização; (b) as auditorias negligentes, imperitas ou fraudulentas; (c) a relação
incestuosa entre órgãos governamentais e instituições financeiras públicas ou com capitais
públicos, como bancos oficiais ou fundos de pensão; (d) a gestão de recursos vindos de
agências internacionais de fomento; (e) as taxas extorsivas de juros e o abuso na concessão de
empréstimos; (f) as condutas praticadas por pessoas jurídicas, às vezes, com sede no exterior,
dificultando a individualização da responsabilidade penal; (g) a garantia de ressarcimento
dos poupadores e investidores, quando lesados pela gestão inescrupulosa de instituições
financeiras” (Gonçalves, Luiz Carlos dos Santos. Exame necroscópico da Lei do Colarinho
Branco. In: Rocha, João Carlos de Carvalho et alii (orgs.): Crimes contra o Sistema Financeiro
Nacional – 20 anos da Lei n. 7.492/1986. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 2).
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Essa situação ensejou a criação de projeto denominado “Reforma da legislação
penal econômica” (cujo objetivo é identificar as principais dicotomias entre a
legislação e a realidade econômica que a lei pretende regular) no âmbito do grupo
de pesquisa denominado “Direito Penal, Economia, Governança e Regulação”7
desenvolvido pela Escola de Direito do Rio de Janeiro da FGV.
O horizonte de trabalho é vasto e não faltam desafios. Podemos citar, apenas a
título de exemplo, a necessidade de melhor definir as condutas que caracterizam
os crimes de gestão fraudulenta e temerária; a uniformização do tratamento
legal dos crimes tributários; e o aprimoramento das figuras de insider trading e
manipulação de mercado de capitais, dentre várias outras.
Entretanto, dentre tantos temas existentes, a evasão de divisas se sobressai.
No caso desse delito, a dicotomia entre o plano normativo (leis e portarias) e
o plano fático (a política econômica na gestão e controle das reservas cambiais)
é tão gritante que não havia como iniciar os trabalhos senão por esse tipo
penal. Afinal, se o direito se descola completamente da realidade que pretende
regular, ele perde a capacidade de se justificar perante a sociedade e se torna uma
retórica vazia; por outro lado, concebido apenas como formalização normativa
imutável, o direito deixa de contribuir na construção de um projeto político de
transformação social.
Nesse ponto, o crime de evasão de divisas é, talvez, hoje o exemplo mais
claro de instrumentalização do direito penal para auxiliar a regulação do sistema
financeiro que, ao logo do tempo, desconectou-se da política econômica que
pretendia defender, transformando-se em norma inócua do ponto de vista do
bem jurídico que visava a proteger, restando apenas o efeito perverso inerente
a qualquer norma penal consistente na possibilidade de punição e privação de
liberdade.8
7 O grupo desenvolve diferentes pesquisas, todas relacionadas aos aspectos que aproximam a
política econômica, as regras administrativas, as regras de mercado e o direito penal.
8 “O delito de evasão de divisas tende a desaparecer, perante os interesses do capitalismo
financeiro transnacional que hoje dá as cartas, sendo substituído pela nova estrela da pauta de
políticas criminais do empreendimento econômico internacionalmente dominante: a lavagem
de dinheiro. Enquanto não sobrevém a abolitio criminis, uma aplicação dogmaticamente
correta da lei recomendaria aprofundar a reflexão sobre diversos aspectos técnicos polêmicos,
entre os quais está a tentativa do delito” (Batista, Nilo, op. cit.)
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i encontro de internacionalização do conpedi
A proposta do presente trabalho é apresentar uma solução jurídica que compatibilize os planos da realidade e da legalidade, no que tange ao crime de evasão
de divisas. O texto está dividido em quatro partes: na primeira, é feita uma breve
apresentação sobre o crime econômico e a noção de bem jurídico supraindividual;
a segunda parte dedica-se a apresentar o tipo penal de evasão de divisas tal como
definido no plano normativo (a lei e demais instrumentos normativos que o
complementam) e jurisprudencial (como os tribunais superiores têm aplicado a
lei); na terceira parte, aponta-se a incongruência da norma penal face à realidade
econômica atual; por fim, a quarta e última parte desse trabalho propõe soluções
de interpretação do art. 22 da Lei 7.492/1986 para a adequação entre o plano dos
fatos e o plano das normas.
2. o crime econômico
O conceito de “direito penal econômico” tem sido longamente discutido nos
últimos anos. Surgido no âmbito da criminologia estaduniedense,9 fortemente
associado às características dos seus autores e a problemas de seletividade do
sistema penal,10 o direito penal econômico pode ser definido hoje sob duas
9 A terminologia “crime de colarinho branco” (white collar crime) foi utilizada pela primeira vez
pelo sociólogo estadunidense Edwin H. Sutherland, em 1939 durante a 34.ª conferência anual
da Sociedade Americana de Sociologia. Naquele ano a conferência foi realizada em conjunto
com a 52.ª conferência anual da Associação Americana de Economia. O objetivo da palestra
inaugural proferida por Sutherland era chamar atenção para o exame de uma categoria de
ilícitos que até então era solenemente ignorada nos estudos conduzidos pelos sociólogos e
criminólogos: os crimes praticados por diretores das grandes corporações (Sutherland,
Edwin H.: White collar crime – The uncut version. New Haven: Yale University Press, 1983).
10Uma das questões importantes em relação aos crimes econômicos diz respeito ao
funcionamento do sistema penal. Os meios de comunicação e a sociedade em geral têm
a percepção de que o sistema penal opera de forma seletiva, privilegiando os autores de
crimes econômicos e atuando de forma mais grave e intensa sobre a população sem recursos
econômicos. Esse traço de funcionamento diferenciado já fora identificado por Sutherland,
que explicava que a aplicação diferenciada da lei pode ser debitada a três fatores: (1) status:
o poder imuniza os “homens de negócio” em relação aos crimes, já que incriminá-los
poderá trazer problemas para o incriminador no futuro; (2) homogeneidade cultural: juízes,
administradores, legisladores e homens de negócios possuem a mesma formação cultural,
muitas vezes partilham as mesmas origens sociais e essa homogeneidade faz com que não seja
uma tarefa fácil caracterizar os criminosos econômicos dentro do estereotipo do criminoso
comum; (3) a relativa desorganização na reação aos crimes de colarinho branco: as violações
das leis pelos homens de negócios são complexas e produzem efeitos difusos. Não se tratam
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15
279
i encontro de internacionalização do conpedi
diferentes perspectivas. A primeira, de cunho criminológico,11 observa as condutas praticadas, seus agentes, suas causas e finalidades, além das características
objetivas desses delitos e, por esse critério, define o direito penal econômico
como o ramo do direito penal voltado para a identificação e criminalização de
condutas praticadas nas relações comerciais ou na atividade empresarial, pelos
administradores, diretores ou sócios de empresas, geralmente de forma não
violenta e envolvendo fraude ou violação da relação de confiança.12
No entanto, é possível outra definição, relacionada à dogmática penal,13
tomando por base o bem jurídico protegido, entendido como bem individual
ou coletivo que merece e recebe proteção jurídica e que, quando é especialmente
valioso, pode ser protegido por meio do direito penal.14
11
12
13
14
de agressões simples e diretas de um indivíduo contra outro. Além disso, podem permanecer
por muitos anos sem serem descobertas (Sutherland, Edwin H. op. cit.)
“La criminalidad económica constituye um fenômeno complejo que requiere el conoscimento
de aspectos que no son jurídico penales em sentido estricto” (Bacigalupo, Enrique: Derecho
penal econômico. Buenos Aires: Hammurabi, 2004. p. 29).
“Otra aproximación de carácter clásicamente criminológico acentúa las particularidades del
autor, a quien Sutherland describió como una persona de alta reputación y de ‘cuello blanco’.
Esta explicación basada específicamente en el autor del white collar crime fue ampliada por la
criminología reciente hacia una perspectiva, ya indicada por Sutherland, de la realización de
la conducta en el ejercicio de una profesión (occupational crime). Este tipo de aproximaciones
criminológicas no parecen ser aptas para el derecho penal y, en general, para todo derecho
debido a que, por razones constitucionales de seguridad jurídica, es imprescindible la
descripción legislativa del hecho y no la definición del autor” (Tiedmann, Klaus. Manual de
derecho penal económico. Valencia: Tirant lo Blanch, 2010. p. 57).
“Partindo da teoria criminológica para a teoria da conduta, pode-se afirmar que o direito penal
Econômico representa muito mais do que uma mera especialização do direito penal clássico
ou comum. Na verdade, em torno dele aglutinam-se importantes problemas dogmáticos,
cuja solução se faz relevante para todo sistema normativo penal” (Souza, Arthur de Brito
Gueiros. Da criminologia à política criminal: direito penal econômico e o novo direito penal.
In: ______ (org.). Inovações no direito penal econômico – Contribuições criminológicas, políticocriminais e dogmáticas. Brasília: Escola Superior do Ministério Público da União, 2011. p.
118).
“A noção de bem jurídico, já por muitos tratada, constitui o marco que delimita os extremos
daquilo que legitimamente pode e não pode ser criminalizado. Esta é hoje uma concepção
generalizada. Para a política criminal, é a tutela dos bens jurídicos que simultaneamente define
a função do direito penal e marca os limites da legitimidade da sua intervenção. A dogmática
vê nesta categoria o critério de uma interpretação teleológica assim como o fundamento da
ilicitude material” (Sousa, Susana Alves de: Direito penal das sociedades comerciais. In:
Faria Costa, José de et alii. Direito penal económico e europeu: textos doutrinários. Coimbra:
Coimbra Ed., 2009. p. 436).
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i encontro de internacionalização do conpedi
O Direito penal teria o encargo de proteger a sociedade salvaguardando
os bens jurídicos relevantes aos interesses sociais. Além disso, a noção de bem
jurídico também estabeleceria limites a serem observados pelo jus puniendi do
Estado, que não poderia produzir normais penais as quais não tivessem por
escopo proteger bens jurídicos anteriormente assimilados pelo ordenamento.
Sendo assim, o objeto de proteção penal deveria ser prontamente delimitado,
pois a falta de definição do bem jurídico tutelado acarretaria, indubitavelmente,
a ilegitimidade da própria norma.
O direito penal orienta a escolha dos bens jurídicos a merecerem sua tutela
através da aplicabilidade dos princípios da subsidiariedade e fragmentariedade.
O princípio da subsidiariedade estabelece que o direito penal só deva atuar na
defesa dos bens jurídicos imprescindíveis à coexistência pacífica dos homens e que
não podem ser eficazmente protegidos de forma menos gravosa. Desse modo, a
lei penal só poderá intervir quando for absolutamente necessário para a sobrevivência da comunidade, como ultima ratio.
Já com o postulado da fragmentariedade, tem-se que a função maior de
proteção de bens jurídicos atribuída a lei penal não é absoluta. O que faz com
que só devam eles ser defendidos penalmente ante certas formas de agressão,
consideradas socialmente intoleráveis. Isso quer dizer que apenas as ações ou
omissões mais graves endereçadas contra bens valiosos podem ser objeto de
criminalização.15
Tradicionalmente, a proteção de bens jurídicos por meio do direito penal sempre
esteve restrita a elementos materiais e individuais. Fruto do paradigma moderno
caracterizado pelo racionalismo subjetivista (que coloca a razão humana como único
meio legítimo para explicar a realidade) e pelo cientificismo (que impôs a prevalência
do raciocínio lógico-formal), aliados à lógica utilitarista (de prevalência dos interesses
individuais na atuação social), o direito penal iluminista era fortemente influenciado
pela noção de direitos individuais exigíveis frente ao Estado.
15 Nas palavras de Miguel Reale Jr: “(...) o direito penal tem caráter subsidiário, devendo
constituir a ultima ratio e por isso ser fragmentário, pois o antijurídico penal é restrito em face
do antijurídico decorrente do ordenamento, por ser obrigatoriamente seletivo, incriminando
apenas algumas condutas lesivas a determinado valor, as de grau elevado de ofensividade”
(Reale Jr., Miguel: Instituições de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
vol. 1, p. 25).
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i encontro de internacionalização do conpedi
Segue daí que o direito penal foi utilizado como instrumento para limitar
o poder punitivo do Estado e estabelecer garantias em defesa da liberdade
individual contra projetos estatais que a limitassem em virtude de “interesses
sociais” excludentes e autoritários. A elaboração de um conjunto de regras e
princípios penais (hoje associado ao garantismo)16 visava a afastar a tipificação de
condutas penais por meio de normas que não estejam relacionadas a fatos, mas a
pessoas, “Como as normas que, em terríveis ordenamentos passados, perseguiam
as bruxas, os hereges, os judeus, os subversivos e os inimigos do povo; como as
que ainda existem em nosso ordenamento, que perseguem os ‘desocupados’ e os
‘vagabundos’, os ‘propensos a delinquir’ (...)”.17
Não obstante as mudanças socioeconômicas e tecnológicas nos últimos séculos tenham sido avassaladoras, tanto a soberania popular como a noção de garantias invioláveis dos indivíduos são construções teóricas herdadas da modernidade
que não devem ser solapadas em nome de uma pretensa pós-modernidade,18
sobretudo porque nenhum avanço científico, econômico ou tecnológico foi
capaz de colocar em xeque a justificação racional do poder estatal ou a concepção
ilustrada e democrática de Estado de direito, em que o Estado não é um fim em
si mesmo, mas um meio que tem como fim a tutela da pessoa humana, de seus
direitos fundamentais, de sua liberdade e da segurança coletiva.
Partindo da premissa de que há elementos constitucionais que desempenhariam a função de proteger a comunidade de seus próprios excessos, sem que isso
16 No plano do direito penal material, o sistema garantista impõe as seguintes regras: Nulla
poena sine crimine (retributividade); Nullum crimen sine lege (legalidade); Nulla lex (poenalis)
sine necessitate (necessidade); Nulla necessitas sine injuria (lesividade ou ofensividade do
evento); Nulla injuria sine actione (materialidade); Nulla actio sine culpa (culpabilidade ou
responsabilidade pessoal).
17 Ferrajoli, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Ed. RT, 2002. p. 31.
18 “Como quiera que los ideales de la modernidad fueron los valores ilustrados de la razón, la
libertad, la igualdad y la fraternidad universal, deberíamos ser conscientes que la negociación
posmoderna de la tradición ilustrada comporta un abandono de esos valores que siguen siendo
básicos. Tiene razón Habermas cuando indica que la modernidad constituye un proyecto
inacabado y que, en lugar de abandonar ese proyecto como una causa perdida, deberíamos
aprender de los errores de aquellos programas extravagantes que trataron o tratan de negar
la modernidad” (Perez Luño, Antonio-Enrique. Derechos humanos y constitucionalismo
en la actualidad: ¿Continuidad o cambio de paradigma? In: Perez Luño, Antonio Enrique
(org). Derechos humanos y constitucionalismo ante el tercer milenio. Madri: Marcial Pons,
1996. p. 13).
282
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i encontro de internacionalização do conpedi
signifique impedi-la de construir sua própria história e de exercer sua autonomia
política, defende-se o necessário atrelamento dos bens supraindividuais, notadamente a ordem econômica e o sistema financeiro, a bens individuais.
Já há alguns anos, no entanto, autores defendem a possibilidade de tutela
penal de bens imateriais, do qual seria exemplo a ordem econômica.19 A proteção
da ordem econômica (e, por consequência, do sistema financeiro) seria uma
característica das transformações socioeconômicas pelas quais passaram as
democracias ocidentais nas últimas décadas.
O final do século XX e o princípio do século XXI são caracterizados por
forte expansão nos processos de integração econômica, social e cultural. As grandes distâncias geográficas foram demolidas pelo avanço da tecnologia de comunicação, pelo acesso irrestrito à informação disponibilizada na rede mundial
de computadores e na integração dos sistemas financeiros globais. Essa integração
ocorre no âmbito dos governos nacionais, dos blocos regionais e de forma muito
mais incisiva nas transações comerciais entre indivíduos. A sociedade capitalista
entre em uma nova fase denominada sociedade pós-industrial. Nesse sentido,
os diversos fatores ligados ao complexo funcionamento do mercado mundial
acabaram criando um ambiente fértil para a proliferação dos crimes econômicos.
São características dessa sociedade pós-industrial, além da globalização,
da integração supranacional e dos avanços tecnológicos e científicos, também
o crescimento de um sentimento de insegurança. Os riscos inerentes à nova
19 “A superação da razão moderna há-se passa, primacialmente, pela assunção de uma nova
ética social, dirigida para a vida, para a dignidade da pessoa humana e para a solidariedade.
Os renovados desafios ecológicos, técnicos e sociais – colocados pela pós-modernidade
– tiveram o mérito de elucidar a inadequação da resposta oferecida pela racionalidade
técnico-instrumental. Hoje, porventura mais do que nunca, revela-se de suma importância
uma adequada articulação entre ética, economia e ecologia” (Simões, Pedro Coelho. A
supraindividualidade como factor de superação da razão moderna. In: Costa, José de Faria.
Temas de direito penal económico. Coimbra: Coimbra Ed., 2005. p. 307-308). No mesmo
sentido, afirmava o falecido Prof. João Marcello de Araújo Jr.: “(...) os bens jurídicos a serem
selecionados pela lei penal não se limitam mais aos ‘naturais’ e ao patrimônio individual. A
inserção social do homem é muito mais ampla, abrangendo todas as facetas da vida econômica.
Daí um novo bem jurídico: a ordem econômica, que possui caráter supraindividual e se
destina a garantir a política econômica do Estado, além de um justo equilíbrio na produção,
circulação e distribuição de riqueza entre os grupos sociais” (Araujo Jr., João Marcello. O
direito penal econômico. RBCCrim 25/142. São Paulo: Ed. RT, jan.-fev. 1999).
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i encontro de internacionalização do conpedi
organização econômica e financeira são incomensuráveis e imprevisíveis. É nesse
ambiente global tão hostil a valores como a previsibilidade e a certeza, que o risco
se tornou uma variável a ser considerada no âmbito do direito penal, dado o
sentimento generalizado que marca as sociedades contemporâneas.20
O advento da sociedade de risco ocasionou sérias modificações no tratamento
oferecido à noção de bem jurídico penal. Tal fato está intimamente ligado à
expansão do direito penal e a sua crise. A sociedade contemporânea clama por
um Estado mais enérgico, pelo combate aos crimes econômicos, ambientais e
políticos. Assim sendo, podemos considerar que o direito penal está em crise, mas
ao mesmo tempo, em expansão, como resposta jurídica aos problemas sociais.
Logo, uma característica do direito penal econômico será criminalização de
condutas que não afetam um bem jurídico individual determinado (como vida,
patrimônio, honra), mas conceitos indeterminados e classificados como bens
jurídicos supraindividuais, relacionados à previsibilidade dos comportamentos,
ou ainda, à conformidade dos comportamentos individuais às regras que regulam
a atividade econômica (bom funcionamento do sistema financeiro nacional,
boas condições de concorrência e livre iniciativa, transparência nas operações
financeiras, fiscalização e accountability dos atores econômicos etc.). Evidencia-se,
assim, para alguns autores, o caráter supraindividual do bem jurídico atingido.21
No entanto, a lesão a tais bens jurídicos supraindividuais, por sua natureza
difusa e imaterial, não pode ser mensurada, avaliada e provada senão por critérios
abstratos ou por presunções. Nesse ponto, a forma de avaliar se houve, ou não, a
lesão a tais bens jurídicos se desloca para a observância do próprio direito, nesse
caso o direito administrativo. Em outras palavras, o direito penal econômico se
transforma em instrumento de reforço das normas administrativas que orientam
as atividades econômicas.
20 “Na sociedade de risco, por múltiplas causas os indivíduos experimentam maior intensidade
na dimensão subjetiva dos riscos do que em sua dimensão objetiva” (Pereira, Flávia Goulart.
Os crimes econômicos na sociedade de risco. RBCCrim 51. São Paulo: Ed. RT, nov.-dez.
2004). A respeito do tema, veja-se ainda: Silva Sanchez, Jesús-Maria. A expansão do direito
penal; aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. São Paulo: Ed. RT, 2002.
21“En un sentido dogmático-penal se aprecia hoy en día la peculiaridad de los delitos
económicos y del derecho penal económico, principalmente, en la protección de bienes
jurídicos supraindividuales (sociales o colectivos, intereses de la comunidad)” (Tiedmann,
Klaus, op. cit., p. 58)
284
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i encontro de internacionalização do conpedi
O alvo de tutela penal nesses crimes é o regular funcionamento do mercado
empresarial e, sobretudo, a observância das regras administrativas22 que regulam determinada atividade econômica.23 Nessa linha de raciocínio, mesmo os
comportamentos não repercutam diretamente em aspectos individuais, mereceriam a resposta penal do Estado porque atentariam contra a ordem econômica
ou sistema financeiro, afetação mensurada a partir da violação daquelas regras
voltadas que orientam e regulam a atividade econômica, seja do Estado, seja do
indivíduo.24
Em outras palavras, não se protegem necessariamente interesses individuais
(ou que podem ser individualizados e quantificados), mas sim o próprio
22 Essa aproximação é especialmente relevante para o objeto de estudo desse trabalho, qual seja, o
crime de evasão de divisas, como anotam Luciano Feldens e Andrei Schmidt: “Essa mudança
cultural colaborou para uma significativa ruptura na política criminal contemporânea, pois a
inconveniência (e gradual supressão) dos controles estatais prévios sobre os fluxos econômicos
globais sobrecarregou a missão desempenhada pelos mecanismos jurídicos sancionatórios,
que atuam posteriormente à verificação do desvio. Ao lado do direito administrativo, ganhou
expressão um novo direito penal que, em vez de orientar-se à tutela dos interesses individuais,
veio a reforçar a proteção de interesses difusos. (...) estamos nos referindo a um direito
penal secundário, que sanciona, com penas, violações próprias do direito administrativo,
sendo compreensível, dessarte, que a sanção penal relacionada a delitos econômicos tenha
frequentemente finalidade constitutiva de uma ética-social” (Feldens, Luciano e Schmidt,
Andrei Zenke. O crime de evasão de divisas: a tutela penal do sistema financeiro nacional na
perspectiva da política cambial brasileira. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 149-150).
23 “La criminalidad económica como criminalidad de empresa afecta a la regulación jurídica de
la producción, distribución y consumo de bienes e servicios en cuanto entraña a la actividad
de la empresa como célula esencial en la actividad de carácter económico, y ésta se puede
presentar sin necesidad de la intervención del Estado. La crítica de que esta caracterización
del derecho penal económico es excesivamente amplia y meramente descriptiva porque
carece de la determinación de un bien jurídico protegido no tiene en cuenta la necesaria
referencia político-criminal a la criminalidad económica: el esfuerzo para la contención o la
supresión de la criminalidad en el ámbito de la vida económica.” (Del Valle, Carlos Perez.
Introduccion al derecho penal económico. In: , Enrique. Derecho penal económico. Buenos
Aires: Hammurabi, 2004. p. 33).
24 Por outro lado, há autores que somente admitem que os bens jurídicos supraindividuais sejam
considerados penalmente relevantes caso estejam, na hipótese concreta da ação do agente, violando
simultaneamente bens jurídicos individuais concretamente mensuráveis: “A consequência prática
dessa concepção é que a tipicidade material dos crimes contra o Sistema Financeiro Nacional
exige a existência de lesão ou exposição a perigo concreto dos interesses individuais patrimoniais
protegidos juridicamente. (...) A rigor, a ‘boa execução da política econômica do governo’; a
‘credibilidade do sistema financeiro e de suas instituições’; ‘a boa execução do Sistema Financeiro
Nacional’ etc. não constituem o objeto de tutela penal, e sim a razão (ratio legis) dessa tutela”
(Malan, Diogo. Bem jurídico tutelado pela Lei. 7.492/86. In: Bottino, Thiago; Malan, Diogo
(orgs.). Direito penal e economia. São Paulo: Elsevier, 2012. p. 50).
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sistema financeiro, ao punirem-se comportamentos que podem ou não gerar
dano individual, mas que têm potencial de prejudicar o “sistema”. O objeto de
proteção pelo direito penal são as normas administrativas que orientam aquele
setor da economia, numa modalidade chamada “crimes de perigo”.25 A partir daí,
o direito penal surge como importante meio de reforço das regras que regulam o
funcionamento dos sistemas econômico e financeiro,26 com vistas a assegurar a
“normalidade econômica”.
Indispensável, nesse ponto, o alerta de Heloisa Estellita:
“Ao se pensar na proteção penal de um bem jurídico de caráter
econômico, é imperioso o questionamento acerca do conteúdo
deste bem jurídico e, além disso, de quais seriam os ataques
violentos que as normas sancionatórias de caráter não penal
falharam em evitar. Enfim, é preciso saber da ideal normalidade
econômica para chegar aos desvios causadores da anormalidade
econômica. Enfim, o que se quer evitar e/ou corrigir com a
proteção penal neste campo? Ocorre que esta normalidade ideal
é contingente, historicamente determinada. Trata-se de um valor,
uma aspiração, que sofre contínua mutação influenciada pelos
25 “Os bens jurídicos protegidos em sede de direito penal econômico afastam-se, sem dúvida,
dos clássicos bens jurídicos. É assim, desde logo, numa perspectiva ontológica na medida
em que a sua dignidade não reside numa essência axiológica mas antes numa sedimentação
histórica e social, sendo directamente determinados por uma orientação político-económica.
Também do ponto de vista do titular nos confrontamos, na maioria das vezes, perante bens
supra-individuais. A própria construção da incriminação releva com frequência o privilegiar
do perigo de conduta face à lesão efectiva do bem jurídico”. (Sousa, Susana Alves de, op. cit.,
p. 440).
26 Como bem registra Guilherme Guedes Raposo: “E é exatamente nesse contexto que o Estado,
como ente regulador da vida em sociedade, tem sido chamado a atuar positivamente a fim de
garantir um mínimo de estabilidade social e um sistema de produção de riquezas que assegure
a existência de um futuro para a humanidade. E o direito em geral, por ser um conjunto de
normas de que o Estado se vale para organizar a vida em sociedade com o objetivo de atender
aos anseios de seus integrantes, tem refletido algumas dessas transformações sociais ocorridas
nas últimas décadas. Mais especificamente na teoria do bem jurídico-penal, tem sido possível
verificar que todo esse conjunto de transformações sociais está repercutindo, de forma direta,
na escolha dos interesses merecedores de proteção pelo sistema penal. De fato, se em período
anterior o núcleo do sistema penal era marcado essencialmente por comportamentos lesivos
a bens individuais e concretos, como a vida e o patrimônio, nos últimos anos tem havido
um considerável aumento da tipificação de condutas lesivas a interesses transindividuais e
abstratos” (Raposo, Guilherme Guedes. Teoria do bem jurídico e estrutura do delito. Porto
Alegre: Nuria Fabris, 2011. p. 142).
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i encontro de internacionalização do conpedi
valores de cada sociedade: o que é bom economicamente num
momento não o é em outro.”27
Especificamente quanto ao Sistema Financeiro Nacional, a Lei 7.492/1986,
atualmente em vigor, foi objeto de duras críticas desde o momento de sua
promulgação, seja pelas falhas de técnica legislativa, pela atribuição de
responsabilidade penal objetiva, pelo uso exacerbado de tipos penais em branco
e de perigo abstrato.28
Seguindo a linha daqueles que admitem a proteção de bens jurídicos
“administrativos” defende Luiz Regis Prado29 que o sistema financeiro nacional
constitui um “conjunto de instituições (monetárias, bancárias e sociedades por
ações) e do mercado financeiro (de capitais e valores mobiliários)” que “tem
por objetivo gerar e intermediar créditos (e empregos), estimular investimentos,
aperfeiçoar mecanismos de financiamento empresarial, garantir a poupança
popular e o patrimônio dos investidores, compatibilizar crescimento com
estabilidade econômica e reduzir desigualdades, assegurando uma boa gestão
da política econômico-financeira do Estado, com vistas ao desenvolvimento
equilibrado do País”.
O bom funcionamento do Sistema Financeiro Nacional é, sem dúvida,
fundamental para o desenvolvimento das finanças públicas e da economia
27 Tipicidade no direito penal econômico. RT 725/407. São Paulo: Ed. RT, mar. 1996. Para uma
interessante crítica ao conceito de bem jurídico supra individual ou “espiritualizado”, veja-se o
magistério de Renato de Mello Jorge Silveira: “(...) por um lado, afirma-se pela dificuldade de
determinação do grau de lesividade necessário a cada bem jurídico. Por outro, que não se está
a tratar de uma antecipação da tutela penal de bens essenciais, mas tão só de uma proteção
de bens que, por sua peculiar natureza, já exige o emprego de técnica abstrata. (...) Caso se
venha aceitar uma obrigatoriedade de construção penal para tais situações (com o que aqui,
indiscriminadamente, não se concorda, dando-se preferência a outros postulados), parece
fundamental que, ao lado destes bens, quer espiritualizados, como pressupõe Schunemann,
quer outras tantas interpretações, mesmo restritivas,como sugere Roxin, sejam, por igual,
utilizados critérios de imputação objetiva caso a caso” (Silveira, Renato de Mello Jorge. A
construção do bom jurídico espiritualizado e suas críticas fundamentais. São Paulo: IBCCrim
122, jan. 2003, p. 14).
28 A criação de tipos penais de perigo abstrato vem gerando desconforto e está na pauta do dia
nas principais discussões acerca da expansão do direito penal. Os crimes de perigo abstrato
presumem de forma absoluta a criação do perigo pelo autor da conduta prevista no tipo
respectivo. Isto quer dizer que o agente é punido pela mera desobediência da letra da lei, sem
que se comprove a existência de qualquer lesão ou ameaça de lesão ao bem tutelado, ou seja,
de qualquer resultado jurídico/normativo.
29 Prado, Luiz Regis. Direito penal econômico. São Paulo: Ed. RT, 2010. p. 212.
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nacional. Ao tutelar o regular funcionamento do Sistema Financeiro Nacional,
as normas penais incriminam comportamentos que violam as regras destinadas
a garantir transparência no funcionamento das instituições (e, por conseguinte,
maior segurança dos investimentos e operações realizadas), ações estas que, pelas
suas características, poderiam repercutir de forma sistêmica na própria estabilidade
econômica do país.
Quando se fala em crimes contra o Sistema Financeiro Nacional é fundamental ter em mente que a objetividade jurídica das condutas incriminadas é o prejuízo ao adequado funcionamento do sistema; logo, é tarefa igualmente
fundamental entender e definir quais as características desse regular funcionamento. José Paulo Baltazar Jr.30 relaciona como condições para o bom
desenvolvimento das operações financeiras: “(a) confiança nas instituições; (b)
reforço no cumprimento das regras, como aquelas que tratam da manutenção de
reservas técnicas; (c) transparência dos riscos; (d) baixos custos de transação; (e)
fragmentação da propriedade; (f ) formação eficiente dos preços”.
No entanto, para as finalidades do presente trabalho, não é necessário
aprofundar as discussões acerca da constitucionalidade da política criminal que
admite o uso do direito penal como “instrumento de regulação”.31
Independente de aceitarmos ou não a transformação da concepção moderna
de bem jurídico que admite a supraindividualidade e as modalidades de perigo
abstrato, o fato é que há uma questão muito mais evidente quando falamos do
crime de evasão de divisas, constante na Lei 7.492/1986: como se demonstrará
abaixo, a tutela penal ali prevista não mais se coaduna, hoje em dia, com a
normalidade econômica a que aludiu Heloisa Estellita.
3. a evasão de divisas
O crime de evasão de divisas foi tipificado pela Lei 7.492/1986, a chamada
Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional (também conhecida pela
alcunha de “Lei dos Crimes de Colarinho Branco”).
30 Baltazar Jr. José Paulo. Crimes federais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 269.
31 Malan, Diogo, op. cit.
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É unanimidade na literatura especializada que a motivação da criminalização
da evasão de divisas era o reforço do controle estatal sobre as reservas cambiais:
“O fundamento do controle cambial e, por consequência, da incriminação, é que
as divisas estrangeiras são necessárias para o pagamento das dívidas contraídas no
exterior e para o equilíbrio das reservas cambiais. Por isso é privativo do Bacen
o direito de guardar moedas e divisas estrangeiras, bem como a administração
exclusiva da operação de ingresso e saída dessas do país”.32
Na década de 1980, o controle cambial era tema de suma importância para
a economia brasileira. O milagre econômico da década anterior alimentara-se de
sucessivos empréstimos internacionais, criando dívidas que deveriam ser pagas
ou, ao menos, administradas mediante o pagamento dos juros. Paralelamente,
as reservas cambiais minguavam à medida em que, ao pagamento dos juros dos
empréstimos, somava-se a elevação do preço da principal matérias-primas para o
desenvolvimento industrial brasileiro: o petróleo.
As crises do petróleo ocorridas em 1973 e 1979 transformaram as divisas (e
principalmente o dólar) em um bem escasso e extremamente valioso no Brasil.
Importações eram limitadas, remessas de lucros ao exterior proibidas, viagens
internacionais um luxo para poucos. Qualquer ação que diminuísse as reservas
cambiais brasileiras colocava em risco a possibilidade de pagamento da dívida
externa e o custeio da importação de petróleo. A Lei 7.492/1986, promulgada em
junho de 1986, antecipou em alguns meses a decretação da moratória (suspensão
unilateral do pagamento) da dívida externa brasileira ocorrida em 1987. Naquele
contexto, parecia ser muito apropriada a criminalização das condutas de quem
retirasse divisas do país fora dos canais autorizados. Vejamos o tipo penal:
“Evasão de divisas
Art. 22. Efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de
promover evasão de divisas do País:
32 Baltazar Jr. José Paulo, op. cit., p. 325. No mesmo sentido, afirmam José Carlos Tortima e
Fernanda Lara Tortima: “O alvo da tutela jurídica são as reservas cambiais do País” (Tortima,
José Carlos e Tortima, Fernanda Lara, Evasão de divisas: uma crítica ao conceito territorial de
saída de divisas contido no parágrafo único do art. 22, da Lei 7.492/1986. 2. ed., Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2009), p. 41). Já para Luiz Regis Prado (Direito penal econômico. São Paulo: Ed.
RT, 2012, p. 217) o tipo penal também tutela o erário.
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Pena – Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, a qualquer título,
promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para
o exterior, ou nele mantiver depósitos não declarados à repartição
federal competente.”
O tipo penal de evasão de divisas prevê três diferentes modalidades do crime. Embora possam ser vistas como etapas de um mesmo “processo” (obter
divisas no mercado paralelo; retirar divisas do país; manter ocultas divisas no
exterior), a escolha do legislador foi fazer recair a punição sobre cada momento de
forma independente. Ao “partir” a evasão de divisas em três crimes autônomos,
ampliaram-se as possibilidades de punição.
A primeira modalidade, prevista no caput do art. 22 da Lei 7.492/1986,
consiste na realização de operação de câmbio não autorizada (elemento objetivo)
com a finalidade de promover a evasão (elemento subjetivo). Por operação não
autorizada, entende-se qualquer troca de moeda por divisas em estabelecimento
que não tenha sido autorizado pelo Bacen para realizar esse tipo de atividade, ou
qualquer operação realizada fora das hipóteses autorizadas.
O exemplo mais simples é quando alguém compra dólares com um “maleiro”
no aeroporto antes de embarcar para o exterior.33 O crime está configurado com a
simples operação de câmbio (troca de moeda por divisa), não se exigindo a efetiva
saída da divisa. Basta que a finalidade seja comprovada para a consumação do
crime.
Por sua vez, o parágrafo único prevê como formas equiparadas do crime outras duas modalidades: (a) a saída de moeda ou divisa para o exterior, a qualquer
título; e, (b) a manutenção de depósito no exterior, não declarado à repartição
federal competente. Mais uma vez a péssima técnica legislativa empregada na
33 Veja-se que não há crime se a situação for inversa, de venda ao maleiro dos dólares excedentes
da viagem logo depois de desembarcar, vindo do exterior. Embora presente o elemento
objetivo (realizar operação de câmbio não autorizada) resta ausente o elemento subjetivo do
tipo “com o fim de promover a evasão de divisas”: “De outro lado, no caput do art. 22,
a incriminação só alcança quem ‘efetuar operação de câmbio não autorizada’: nela não se
compreende a ação de quem, pelo contrário, haja eventualmente, introduzido no País moeda
estrangeira recebida no exterior, sem efetuar a operação de câmbio devida para convertê-la em
moeda nacional”. STF, HC 88.087/RJ, 1.ª T., j. 17.10.2006, rel. Min. Sepúlveda Pertence.
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i encontro de internacionalização do conpedi
Lei 7.492/1986 se fez presente, misturando em um único tipo penal condutas
absolutamente diferentes.
A primeira figura do parágrafo único, (promover, sem autorização legal, a saída
de moeda ou divisa para o exterior) é entendida como a saída física do numerário.
Dessa forma, ainda que não seja possível determinar quando/onde/como ocorreu
a operação de câmbio não autorizada, ou ainda que as divisas tenham sido adquiridas de forma autorizada, a lei criminaliza a conduta de quem, efetivamente, retira
do controle brasileiro as divisas, levando-as para o exterior. A imagem associada a
essa modalidade da evasão de divisas é a do sujeito embarcando em um avião com
uma mala cheia de dólares.34
Por outro lado, há outras formas pelas quais as divisas podem ser afetadas que
não estão abrangidas pela lei. Uma das hipóteses é aquela que envolvem operações de importação e exportação, cujos contratos de câmbio não são honrados
ou são fraudulentos. Haveria evasão de divisas na conduta do exportador que
não internaliza o dinheiro recebido pelas mercadorias exportadas, ou seja, é possível equiparar a saída de divisas da sua “não entrada” no Sistema Financeiro
Nacional? A jurisprudência pátria entende que essa interpretação extensiva viola
a taxatividade e considera a conduta atípica.35
Finalmente, a segunda figura do parágrafo único (terceira modalidade de
evasão de divisas) consiste na manutenção de depósito no exterior, sem a devida
34 Hoje em dia, com a facilidade de telecomunicações e os avanços da informática, a quantidade
de serviços financeiros apropriados diversificou-se. É cada vez mais raro ver casos como o
do casal Sonia e Estevam Hernandes, fundadores da Igreja Renascer em Cristo, presos em
09.01.2007, no Aeroporto de Miami, tentando ingressar nos EUA vindos do Brasil com 56,5
mil dólares sem declaração. Nos EUA, o casal foi condenado a 10 meses de prisão (sendo
cinco meses em prisão domiciliar e cinco em penitenciária, de forma alternada), ao passo que
no Brasil a pena aplicada foi de 4 anos de reclusão. Disponível em: [www1.folha.uol.com.br/
folha/especial/2007/prisaonarenascer/]. Acesso em: 21.06.2012.
35 “Não pode o intérprete estender o sentido da norma contida na primeira parte do parágrafo
único da lei em comento, a fim de considerar típica a ausência de internalização do
pagamento recebido, sob pena de absoluto desvirtuamento do comando normativo, o qual
apenas criminaliza a saída de divisas do território nacional.” STJ, REsp 914077/RS, 5.ª T.,
j. 07.12.2010, rel. Min. Jorge Mussi,. “O mero fato de não ter sido liquidado no Brasil o
contrato de câmbio é incapaz de gerar a presunção de que a empresa exportadora recebeu o
pagamento objeto do acordo e o mantém em instituição financeira situada fora do país”. STJ,
REsp 914077/RS, 5.ª T., j. 07.12.2010, rel. Min. Jorge Mussi,; STJ, HC 43688/PR, 6.ª T., j.
05.06.2006, rel. Min. Paulo Medina.
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i encontro de internacionalização do conpedi
comunicação às autoridades brasileira. Trata-se da parte final do “processo” de
evasão. Mesmo que não se consiga identificar o momento em que o sujeito
conseguiu fazer a operação de câmbio irregular com a intenção de evadir divisas
ou, de qualquer modo, conseguiu retirar as divisas do país, bastará que se prove a
existência do depósito para que se caracterize o crime.
Explicada assim, a aplicação do crime de evasão de divisas parece simples.
Contudo, quando se dirige um olhar mais atento à letra da lei, percebe-se que se
trata de tipo penal em branco, isto é, um crime que depende da existência de outras
leis (ou no caso normas administrativas) sem as quais se perde a possibilidade de
impor pena.36 Veja-se os trechos em negrito na redação do tipo penal:
“Art. 22. Efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim
de promover evasão de divisas do País:
Pena – Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, a qualquer título,
promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para
o exterior, ou nele mantiver depósitos não declarados à repartição
federal competente.”
No primeiro caso, já tratado acima, para que haja crime é preciso que a operação de câmbio ocorra sem autorização. Isso inclui o caso de uma operação realizada fora dos estabelecimentos fiscalizados pelo Bacen, bem como uma operação
realizada fora das hipóteses ou dos limites autorizados pela autoridade monetária
nacional. Fica evidente, aqui, que a finalidade subjacente na criminalização (além
da proteção das divisas) é o controle, por parte do Bacen, da própria atividade
financeira realizada pelas instituições autorizadas a operar com câmbio e que
podem compreender não somente bancos, mas ainda casas de câmbio, agências
de viagem e hotéis.
36 “Parece não existir dúvida de que o art. 22 da Lei 7.492/1986, ao definir o delito de evasão de
divisas e manutenção de depósito no exterior, possui a natureza de norma penal em branco,
principalmente porque as elementares especiais de antijuridicidade ‘não autorizada’ (caput), ‘sem
autorização legal’ (1.ª parte de parágrafo único) e ‘repartição federal competente’ (parte final do
parágrafo único) transferem para a legislação extrapenal um dos pressupostos da ação típica.
Significa afirmar, nesse sentido, que parte do conteúdo do art. 22, da Lei 7.492/1986 é dado por
normas administrativas editadas pelo Bacen, a ponto de ser-nos possível antecipar que o delito
de evasão de divisas pressupõe um ilícito cambial, apesar de nem todo ilícito cambial configurar
um delito de evasão de divisas” (Feldens, Luciano; Schmidt, Andrei Zenker, op. cit., p. 155).
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i encontro de internacionalização do conpedi
Os mais velhos devem se lembrar: há alguns anos, para se comprar dólares era
preciso apresentar uma passagem aérea, justificando a compra. Dependendo do
destino do viajante, variava o limite de dólares (ou de qualquer moeda estrangeira)
que poderia ser adquirido. Daí a necessidade de punir quem obtivesse divisas de
forma fraudulenta, seja adquirindo fora dos estabelecimentos autorizados, seja
adquirindo com base em documentos falsos.
No segundo caso, o vocábulo “autorização legal” refere-se ao regime existente
até 1998, segundo o qual era preciso dirigir-se ao Bacen antes de promover a saída
das divisas. Dependendo da hipótese, a saída poderia ser autorizada, negada ou
limitada. Tratamentos de saúde no exterior, muitas vezes, eram custeados graças
ao mercado paralelo de dólares, pois o Bacen não autorizava saídas expressivas
para gastos com pessoas físicas. Foi a partir da Res. Bacen 2.524, de 01.07.1998,
que se aboliu a necessidade de prévia autorização,37 adotando-se o regime da simples declaração.
Por sua vez, a terceira modalidade de evasão de divisas “manutenção de depósito sem declaração” também depende da existência de norma administrativa
que discipline a conduta do agente.
No plano administrativo, a obrigatoriedade de declaração dos recursos mantidos no exterior remonta ao Dec.-lei 1.060/1969,38 o qual exigia que fossem
37 Res. Bacen 2.524: “Estabelece normas para declaração de porte e de transporte de moeda
nacional e estrangeira. O Bacen, na forma do art. 9.º da Lei 4.595, de 31.12.1964, torna
público que o CMN, em sessão realizada em 30.07.1998, e tendo em vista o disposto no art.
65, § 2.º, da Lei 9.069, de 30.06.1995, resolveu: “Art. 1.º As pessoas físicas que ingressarem no
país ou dele saírem com recursos em moeda nacional ou estrangeira em montante superior a
10 mil reais ou ao seu equivalente em outras moedas, nos termos do inc. III do § 1.º do art. 65
da Lei 9.069/1995, devem apresentar à unidade da SRF que jurisdicione o local de sua entrada
no país ou de sua saída do país, declaração relativa aos valores em espécie, em cheques e em
“traveller’s cheques” que estiver portando, na forma estabelecida pelo Ministro de Estado da
Fazenda.”
38 Dec.-lei 1.060/1969: Dispõe sobre a declaração de bens, dinheiros ou valores, existentes no
estrangeiro, a prisão administrativa e o sequestro de bens por infrações fiscais e dá outras
providências.
Os Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar, usando das
atribuições que lhes confere o art. 3.º do Ato Institucional 16, de 14.10.1969, c/c o § 1.º do
art. 2.º do Ato Institucional 5, de 13.12.1968, decretam:
“Art. 1.º Sem prejuízo das obrigações previstas na legislação do imposto de renda, as pessoas
físicas ou jurídicas ficam obrigadas, na forma, limites e condições estabelecidas pelo CMN,
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i encontro de internacionalização do conpedi
declarados ao Bacen os bens e valores existentes no exterior. Esse dispositivo foi
complementado pela Res. CMN 139 que previa a competência do Ministério
da Fazenda na definição de como seria feita a declaração. Essa lacuna só foi
efetivamente preenchida em 1981, por meio do Ato Declaratório 7, da Receita
Federal, o qual previa que as declarações mencionadas no Dec.-lei 1.060/1969 e
na Res. CMN 139 estariam supridas pela declaração de imposto de renda.
Posteriormente, a MedProv 2.224/2001 mudou o regime de declaração.
A informação deveria, a partir de então, ser prestada ao Bacen. A MedProv
2.224/2001 foi complementada por nova Res. CMN 2.911/2001 e por uma
circular do próprio Bacen (3.071/2001), a qual estabelecia forma (modelo de
declaração disponível na Internet), prazo (15.04.2002) e limite mínimo (só seria
necessário realizar a declaração de bens de valores superiores a 100 mil dólares
americanos A partir de então, ano após ano o Bacen edita nova circular alterando
as datas e valores mínimos para declaração,39 os quais já variaram entre 100
mil dólares americanos, 200 mil dólares americanos, trezentos 300 mil dólares
americanos.40 A partir de 2010, foi estabelecida uma obrigatoriedade adicional,
de declaração trimestral para valores acima de 100 milhões de dólares. Como
se vê, o crime de evasão de divisas está intimamente ligado aos instrumentos de
regulação econômica.
4. dilemas de aplicação do crime de evasão de divisas
Nos últimos vinte anos, a economia brasileira sofreu uma transformação
radical: abertura para investimentos internacionais, estabilização da moeda,
a declarar ao Bacen, os bens e valores que possuírem no exterior, podendo ser exigida a
justificação dos recursos empregados na sua aquisição.
Parágrafo único. A declaração deverá ser atualizada sempre que houver aumento ou
diminuição dos bens, dinheiros ou valores, com a justificação do acréscimo ou da redução.”
39 Circulares Bacen 3.110/2002, 3.181/2003, 3.225/2004, 3.278/2005, 3.313/2006, 3.345/2007,
3.384/2008, 3.442/2009, 3.854/2010 (Resolução), 3.523/2011 e 3.574/2012.
40 Em se tratando de norma penal em branco, a jurisprudência mantém posicionamento no
sentido de que vige a regra da ultratividade, segundo a máxima do tempus regit actum. Sendo
assim, as alterações não retroagem para tornar atípicas condutas que, tendo em vista aquele
contexto anterior, eram danosas ao bem jurídico tutelado. STJ, RHC 16172 SP, 5.ª T., j.
22.08.2005, rel. Min. Laurita Vaz; TRF-3.ª Reg. ACR 2003.61.81.004682-0, 2.ª T., j.
23.02.2010, rel. Des. Cotrim Guimarães; TRF-4.ª Reg., ACR 2005.70.00.008903-5/PR, 8.ª
T., j. 11.02.2009, rel. Des. Paulo Afonso Brum Vaz; TRF-4.ª Reg., ACR 2003.70.00.0515398/PR, 8.ª T., j. 06.05.2009, rel. Des. Paulo Afonso Brun Vaz.
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i encontro de internacionalização do conpedi
controle da inflação e equacionamento da dívida externa talvez sejam os exemplos
mais evidentes. Tais mudanças tiveram grande impacto na regulação da economia
brasileira e as regras cambiais não ficaram alheias a essa modificação.
Exemplo concreto desse novo cenário nacional é a evolução das reservas
cambiais brasileiras. Se nas décadas de 1980 e 1990 do século passado era
possível falar em reservas negativas, devido aos pagamentos do serviço da dívida,
hoje o Brasil pode se dar ao luxo de fazer empréstimos ao Fundo Monetário
Internacional.
O gráfico abaixo, elaborado a partir de dados fornecidos pelo Bacen,41 mostra
o crescimento das reservas brasileiras que, em março de 2013, superavam 375
bilhões de dólares.
400
350
300
250
200
150
100
50
Esse crescimento decorre de inúmeros fatores, dentre os quais podemos citar
a elevação do preço das commodities que o Brasil exporta e a diminuição das
importações de petróleo.42
41 Bacen. Disponível em: [www.bcb.gov.br/?RED-SERIERIH].
42 Anuário Estatístico ANP 2007. Gráfico constante da apresentação realizada por Edson Silva
durante o XI Seminário nacional de petróleo e gás natural no Brasil: desafios e oportunidades,
no dia 25.04.2010, em Brasília/DF. Disponível em: [www.acaoresponsavel.org.br].
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i encontro de internacionalização do conpedi
Importação líquida de derivados
Mil bep/d
2.000
Curva de Dependência Externa
1.800
Dep. Externa
100%
1.600
80%
1.400
60%
1.200
1.000
40%
800
Importação líquida de Petróleo
600
400
20%
Produção Nacional
200
0%
2006
2004
2002
2000
1998
1996
1994
1992
1990
1988
1986
1984
1982
1980
1978
1976
1974
1972
-20%
1970
0
Ano
Dependência Externa = Importação Líquida de Petróleo e Derivados/Consumo Aparente
Consumo Aparente = Produção Nacional de Petróleo + Importação Líquida de Petróleo e Derivados
Fonte: Anuário Estatístico ANP, 2007.
Ora, dado o atual cenário econômico, não há como pretender aplicar a Lei de
1986 – elaborada, como se viu, para reforçar a política econômica desenvolvida
na época – sem que se promova ao menos uma adaptação à realidade atual.
Nesse sentido, o presente texto propõe a discussão de novas interpretações
para as figuras típicas de evasão de divisas. Importante que se diga que o presente
texto não advoga a revogação do crime de evasão de divisas, nem tampouco
sustenta que a realidade impôs um comportamento que não merece punição.
Por outro lado, o poder judiciário não pode tapar os olhos para o fato de que esse
crime (como tantos outros da “família” do direito penal econômico) só se justifica
enquanto gera, efetivamente, riscos concretos ou danos para a ordem econômica
e o sistema financeiro.
Do ponto de vista normativo, é preciso e saudável que haja tipos penais que
criminalizem condutas que atentam contra tais bens jurídicos supraindividuais.
Contudo, do ponto de vista judicial, tais tipos penais não podem ser aplicados e
interpretados à revelia da realidade, ou mais precisamente da política econômica
vigente.
As normas administrativas que integram tais tipos penais dão “corpo”
(tipicidade) e “alma” (função social) a esses crimes. Sem elas resta apenas um
formalismo inócuo e incapaz de assegurar o bem social.
296
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i encontro de internacionalização do conpedi
Comecemos pela modalidade constante do caput do art. 22: “Efetuar operação
de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do país”.
Considerando que qualquer indivíduo pode deixar o país com o equivalente a 10
mil reais em divisas sem sequer precisar comunicar ao Estado, ainda faz sentido
punir quem adquire quantia equivalente (ou menor) foram dos estabelecimentos
autorizados a operar com câmbio? Afinal, ao transportar tais divisas ao exterior,
o indivíduo sequer será instado a declarar tal fato, tornando inútil qualquer
preocupação de como foram obtidas as referidas divisas.
Nem se diga que a punição se justifica para o controle da atividade de câmbio,
pois quem vende ou compra as divisas sem a intenção de promover a evasão
de divisas pratica o crime do art. 16 da Lei 7.492/198643 e não o do art. 22
da mesma Lei.44 Com efeito, pune-se de forma diferenciada aquele que opera
(inclusive câmbio) fora das regras e da autorização do Bacen com pena de 1 a
4 anos de reclusão. Completamente diferente (e mais grave) era a punição para
quem adquiria divisas no mercado negro para evadi-las do país, com reclusão de
2 a 6 anos.
Todavia, se na época da edição da lei qualquer aquisição era controlada e
precisava de prévia autorização, hoje a situação é completamente diversa. Além
de ser lícita a aquisição de qualquer quantia, é inócua (já que expressamente
autorizada) a saída de divisas equivalentes a R$ 10.000,00 sem qualquer tipo de
formalidade, mesmo que seja uma simples declaração.
Por conseguinte, impõe-se a aplicação da norma administrativa (Res. Bacen
2.524/1998) no que tange ao valor de 10 mil reais como marco de relevância
penal para a modalidade prevista no caput. Em outras palavras, adquirir dólares
em qualquer situação e para qualquer finalidade, desde que em valor inferior a 10
mil reais é um indiferente penal do ponto de vista das reservas cambiais.
43“Art. 16. Fazer operar, sem a devida autorização, ou com autorização obtida mediante
declaração falsa, instituição financeira, inclusive de distribuição de valores mobiliários ou de
câmbio:
Pena – Reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.”
44 Nesse sentido, vejam-se as recentes decisões do STJ: HC 118992/SP, 5.ª T, rel. Min. Napoleão
Nunes Maia Filho, DJe 03.11.2009 e HC 95487/DF. 5.ª T., rel. Min. Laurita Vaz. DJe
03.08.2009.
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i encontro de internacionalização do conpedi
Resta saber se haveria alguma outra razão que justificasse a punição dessa
conduta. O bem jurídico “controle da informação” ou “controle do fluxo de
capitais” não nos parece atender ao requisito de relevância penal.
O atual marco normativo para operações de câmbio é a Res. 3.568, de
29.04.2008 (dispõe sobre o mercado de câmbio e dá outras providências), onde
está expressamente autorizada a aquisição de divisas em qualquer quantidade.45
A mesma resolução prevê que a operação de câmbio deverá ser registrada no
SISBacen (sistema de informações do Bacen), bem como identificado o comprador/vendedor. Porém, tanto o registro46 como a identificação47 são flexibilizados
para operações de valor até 3.000 mil dólares. Da mesma forma, a movimentação
ocorrida em conta de depósito de pessoas físicas ou jurídicas residentes,
domiciliadas ou com sede no exterior só precisa ser registrada no SISBacen
quando os valores excederem 10.000 mil reais (art. 26, da Res. 3.568/2008).
Portanto, fica evidente que não interessa ao “controle” das informações dos
fluxos cambiais operações de baixo valor. A padronização da relevância penal no
patamar de dez mil reais atende aos interesses de segurança jurídica e objetividade
na construção da tipicidade penal.
A aquisição de dólares fora dos estabelecimentos autorizados pode também
decorrer da intenção do agente de obter uma cotação melhor, em razão do
não pagamento do IOF cobrado pelas casas de câmbio, o que caracterizaria
modalidade de sonegação fiscal (art. 1.º da Lei 8.137/1990, com pena de 2 a
5 anos de reclusão). Assim, uma vez caracterizada a aquisição de dólares sem
pagamento de IOF, cabe a instauração de ação penal pelo crime de sonegação
45 “Art. 8.º As pessoas físicas e as pessoas jurídicas podem comprar e vender moeda estrangeira
ou realizar transferências internacionais em reais, de qualquer natureza, sem limitação de
valor, sendo contraparte na operação agente autorizado a operar no mercado de câmbio,
observada a legalidade da transação, tendo como base a fundamentação econômica e as
responsabilidades definidas na respectiva documentação” (Res. 3.568/2008).
46 “Art. 9.º As operações no mercado de câmbio devem: (...) II – ser registradas no Sistema de
Informações Bacen (SISBacen); Parágrafo único. O Bacen pode definir formas simplificadas
de registro para as operações de compra e venda de moeda estrangeira de até 3 três mil dólares
americanos, ou do seu equivalente em outras moedas.”
47 “Art. 8.º (...) § 5.º Sem prejuízo do dever de identificação dos clientes de que trata o art. 18
desta resolução, nas operações de compra e de venda de moeda estrangeira até 3 três mil
dólares americanos, ou do seu equivalente em outras moedas, é dispensada a apresentação da
documentação referente aos negócios jurídicos subjacentes às operações de câmbio.”
298
volume
15
i encontro de internacionalização do conpedi
fiscal, mas não não se justificaria a punição dessa conduta por evasão de divisas,
eis que já há norma específica para combater a sonegação.48
Já no que tange à segunda modalidade, o caso é de completa perda de
eficácia da norma penal. Afinal, até 1998, a retirada de divisas do país estava
submetida à prévia autorização pelo Bacen. A partir, contudo, da edição da Res.
Bacen 2.524/1998, a saída das divisas passou a prescindir de prévia autorização,
bastando a simples declaração (e mesmo assim, somente para valores superiores
a 10 mil reais).49
A mudança de nomenclatura não é meramente estilística, já que se trata de
normas jurídicas e não literárias. Ao dispensar o cidadão de autorização, fica
evidente a diminuição da importância das divisas como instrumento de política
econômica. Não se poderia falar de afetação das reservas cambiais pela saída das
divisas.
No entanto, o destinatário da informação não é o Banco Central, mas sim
a Receita Federal,50 evidenciando que não se trata de proteger reservas, mas de
48 Na verdade, sequer se justificaria a punição da sonegação fiscal ficaria prejudicada, tendo em
vista o entendimento do STF de que os crimes tributários (sonegação fiscal e descaminho)
de valor inferior a 10 mil reais são insignificantes. HC 102935/RS, 1.ª T., rel. Min. Dias
Toffoli, DJe 22.11.2010 (“1. Nos termos da jurisprudência consolidada nesta Suprema Corte,
o princípio da insignificância deve ser aplicado no delito de descaminho quando o valor
sonegado for inferior ao montante mínimo de 10 dez mil reais legalmente previsto no art. 20
da Lei 10.522/2002, com a redação dada pela Lei 11.033/2004. 2. Ordem concedida.”). No
mesmo sentido: HC 104407/DF, 2.ª T., rel. Min. Ayres Britto, DJ 05.12.2011 e HC 97257/
RS, 2.ª T., rel. Min. Marco Aurélio, DJ 02.12.2010.
49 Importante frisar que mesmo antes de 1998, o art. 65 da Lei 9.069/1995 (lei que instituiu o
Plano Real) já previa que valores em moeda nacional ou estrangeira que entrarem ou saírem do
país não precisariam ser realizadas por meio de estabelecimento bancário e nem necessitariam
que fosse identificado o beneficiário:
“Art. 65. O ingresso no País e a saída do País, de moeda nacional e estrangeira serão
processados exclusivamente através de transferência bancária, cabendo ao estabelecimento
bancário a perfeita identificação do cliente ou do beneficiário.
§ 1.º Excetua-se do disposto no caput deste artigo o porte, em espécie, dos valores:
I – quando em moeda nacional, até R$ 10 (dez) mil reais;
II – quando em moeda estrangeira, o equivalente a 10 (dez) mil reais.”
50 Res. 2.524/1998: “Art. 1.º As pessoas físicas que ingressarem no país ou dele saírem com
recursos em moeda nacional ou estrangeira em montante superior a 10 dez mil reais ou ao seu
equivalente em outras moedas, nos termos do inc. III do § 1.º do art. 65 da Lei 9.069/1995,
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i encontro de internacionalização do conpedi
dificultar a ocultação de recursos não tributados. Mais uma vez, não se justifica
a punição pelo crime de evasão de divisas, que protege as reservas cambiais, em
detrimento da punição própria, que é a sonegação fiscal.51
Nesse caso, apreendem-se os valores, lavra-se um auto e inicia-se um
procedimento administrativo para apurar a licitude dos recursos. Caso se
demonstre a inexistência de atividade lícita que tenha gerado os recursos, punese por sonegação. Mas a evasão de divisas não é mais um comportamento lesivo
aos interesses do Estado na condução da política econômica e muito menos às
reservas cambiais. Não é demais exigir coerência do Estado na aplicação do direito
penal e não se pode punir por um crime quando na verdade se pretende punir
outro.
Em resumo, o fato é que quando a norma administrativa deixou de impor a
necessidade de autorização, a norma penal deixou de contar com um instrumento
normativo que a complementasse.52 Não se pode esquecer que o parágrafo único
devem apresentar à unidade da Secretaria da Receita Federal que jurisdicione o local de sua
entrada no país ou de sua saída do país, declaração relativa aos valores em espécie, em cheques
e em ‘traveller’s cheques’ que estiver portando, na forma estabelecida pelo Ministro de Estado
da Fazenda”.
51 O STF inclusive já admitiu relação entre o crime de evasão de divisas e os crimes contra a
ordem tributária: “(...) Considerados os arts. 22, parágrafo único, da Lei 7.492/1986 e 1.º, §
1.º, da Lei 9.613/1998, está umbilicalmente ligado à acusação decorrente do que estabelecido
na Lei 8.137/1990. Em síntese, vale dizer que a conclusão do processo administrativo fiscal
quanto às infrações versadas nessa lei, sendo acolhida a defesa dos envolvidos, repercutirá
relativamente aos demais crimes, ou seja, a evasão e a conversão de ativos líquidos e a
aquisição, recebimento, troca, negociação, implemento de garantia, guarda em depósito,
movimento ou transferência de valores. Logo, encontrando-se esta em fase de apuração no
campo administrativo fiscal, não se pode partir para a sequência da persecução criminal”.
STF, HC 105.293/RJ, 1.ª T., j. 04.09.2010, rel. Min. Marco Aurélio.
52 Veja-se, a respeito, trecho do excelente trabalho de José Carlos Tórtima e Fernanda Lara
Tórtima: “Agregado ao tipo encontra-se o elemento normativo constituído pela expressão sem
autorização legal, referente à antiga necessidade de permissão oficial, que vigorava à altura da
edição da lei, para que o interessado promovesse a saída do país de importâncias superiores a
determinados limites, fixados de acordo com a natureza da operação e que variavam ao sabor
das vicissitudes cambiais do governo. Naquela época, se alguém pretendesse adquirir moedas
estrangeiras além dos limites estabelecidos pelo Bacen, deveria a este se dirigir, requerendo
autorização especial que poderia ser concedida ou, como quase sempre ocorria, indeferida” (p.
23-24) (...) “Mas suprimidos, como se viu aqueles limites, desaparece logicamente o instituto
da antiga autorização legal e, inexistindo esta, requisitada no tipo penal como seu elemento
normativo, torna-se a conduta, ipso facto, penalmente irrelevante (...) Nada impediria, todavia,
que uma vez restaurados pela autoridade monetária os antigos controles e restrições, que o
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prevê a necessidade de autorização (“Incorre na mesma pena quem, a qualquer
título, promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior”)
e não a simples declaração.
Isso não significa que a norma penal tenha sido revogada.53 Ela apenas não
pode ser aplicada (perda de eficácia) enquanto não for editado novo ato normativo
que a complemente. O mesmo ocorre, por exemplo, com os dispositivos que
incriminam a venda de mercadorias em desrespeito às tabelas oficiais,54 os quais
só têm eficácia se houver norma que fixe preços. Revogada a tabela de preços, a
norma penal perde eficácia, mas continua válida, aguardando que seja novamente
necessária tal intervenção na economia, quando, então, tornará a ter relevância
penal a conduta de violar a tabela de preços.
Por fim, chegamos à terceira modalidade da evasão de divisas, prevista na parte
final do parágrafo único do art. 22, consistente na manutenção de depósito sem a
correspondente declaração à autoridade competente. Trata-se de norma de plena
eficácia (ao contrário da figura anterior) já que complementada pela MedProv
2.224/2001, pela Res. CMN 2.911/2001, e pelas normas anuais do Bacen que
especificam forma, prazo e valores que devem ser declarados.
Aqui, as discussões estão relacionadas à incriminação de comportamentos
que não constem das obrigações impostas pelas normas administrativas.
Tomemos como exemplo a Res. Bacen 3.854/2010 que estabelece as seguintes
obrigações:
rigor da Lei 7.492/1986 fosse, infelizmente para o país, plenamente restabelecido” (p. 51).
(Tortima, José Carlos; Tortima, Fernanda Lara, op. cit.).
53 Fernanda Lara Tortima, contudo, defende tratar-se de hipótese de abolitio criminis: “Por
tudo o que foi exposto, pode-se afirmar que a manutenção das reservas cambiais em níveis
satisfatórios deve ser perseguida através de políticas econômicas bem planejadas. É possível
também afirmar que poucas são as condutas, causadoras de baixas nesses estoques de divisas,
que poderiam, em um Estado que se queira intitular democrático e de direito, vir a ser
coibidas pelo direito, mormente pelo direito penal.(...) A otimização do controle deve ser
perseguida através de fiscalização eficiente por parte dos órgãos administrativos e nunca por
meio do direito penal, que só deve, como se sabe, atuar subsidiariamente” (Tortima, José
Carlos; Tortima, Fernanda Lara, op. cit., p. 30-31).
54 Lei 1.521/1950, “Art. 2.º (...) VI – transgredir tabelas oficiais de gêneros e mercadorias, ou de
serviços essenciais, bem como expor à venda ou oferecer ao público ou vender tais gêneros,
mercadorias ou serviços, por preço superior ao tabelado, assim como não manter afixadas, em
lugar visível e de fácil leitura, as tabelas de preços aprovadas pelos órgãos competentes”.
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(a)pessoas físicas e jurídicas, residentes, domiciliadas ou com sede no país,
que possuam quantia igual ou superior a 100 mil dólares americanos,
ou seu equivalente em outras moedas, na data-base de 31 de dezembro
de cada ano estão obrigadas a declarar tais valores ao Bacen, por meio
de formulário disponível na internet.
(b)na hipótese dos valores excederem 100 milhões de dólares americanos,
ou seu equivalente em outras moedas, nas datas-base de 31 de março,
30 de junho e 30 de setembro de cada ano, essa mesma declaração deverá ocorrer a cada trimestre, por meio do mesmo formulário.
Tomando-se essa norma administrativa como complemento da norma penal,
a punição não pode alcançar hipóteses como (a) a não declaração de valores
inferiores a cem mil dólares em 31 de dezembro,55 (b) a não declaração desses
depósitos à Receita Federal,56 (c) a não declaração bens e direitos não especificados
na Resolução.57
5.conclusões
Ao longo desse trabalho, demonstrou-se que o direito penal econômico é
fruto de transformações na sociedade contemporânea e se respalda na vertente
dogmática que aponta a existência e necessidade de tutela penal de bens jurídicos
supraindividuais. Conceitos como ordem econômica, bom funcionamento do
sistema financeiro nacional, boas condições de concorrência e livre iniciativa,
transparência nas operações financeiras, fiscalização e accountability dos atores
econômicos, adequado desenvolvimento das finanças públicas e da economia
nacional, confiança nas instituições se transformam em bens jurídicos cuja
afetação é capaz de gerar danos irremediáveis e incomensuráveis.
55 Aliás, a própria Res. Bacen 3.854/2010 deixa isso claro: “Art. 2.º (...) § 3.º Estão dispensadas
de prestar a declaração de que trata esta resolução as pessoas que, nas datas referidas no caput
e no § 1.º deste artigo, possuírem bens e valores em montantes inferiores aos ali indicados”.
56 Sem embargo da eventual possibilidade de punição pelo crime de sonegação fiscal, se for o
caso.
57 A resolução prevê, em seu art. 3.º, para efeito de bens e valores que devem ser considerados na
informação: I – depósito; II – empréstimo em moeda; III – financiamento; IV – arrendamento
mercantil financeiro; V – investimento direto; VI – investimento em portfólio; VII – aplicação
em instrumentos financeiros derivativos; e VIII – outros investimentos, incluindo imóveis e
outros bens.
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No entanto, dado o caráter difuso e muitas vezes invisível desse bem jurídico,
a tutela penal não exige a efetiva ocorrência de tais danos, mas é antecipada de
modo a recair sobre o risco criado, criminalizando-se figuras de perigo abstrato.
Revela-se, portanto, a opção de criação de tipos penais que punem o mero
descumprimento de regras administrativas, bem como o uso do direito penal
como instrumento de regulação.
Quanto ao crime de evasão de divisas, evidenciou-se a utilização do direito
penal como mecanismo de reforço das normas administrativas que dão densidade
à política econômica e, especificamente, à proteção das reservas cambiais.
Contudo, passados mais de 25 anos da edição da Lei 7.492/1986, que introduziu
o crime de evasão de divisas no ordenamento, não se pode negar as enormes
transformações pelas quais passou a economia brasileira e, especificamente, as
reservas cambiais (volume, condições de formação, regras de controle etc.).
Nesse ponto, expresso o caráter acessório do crime de evasão de divisas às
regras que definem a política econômica nacional – pois o crime se justifica e se
esgota na proteção específica de uma norma de regulação econômica – é razoável e
adequada uma interpretação que vincule a aplicação do tipo penal a essas mesmas
normas. Em outras palavras, não é possível levar o alcance da norma penal para
além do alcance da regulação administrativa.
Não obstante a indiscutível validade da norma penal no plano jurídico, uma
vez que se apresente sua incompatibilidade com a realidade que a norma buscava
proteger, é necessário que a interpretação jurídica respeite também a interpretação
econômica. Isso significa declarar a falta de eficácia do tipo penal sempre que houver
ausência de correspondência dos comportamentos proibidos e aqueles dotados
de relevância econômica, assim aferidos a partir das normas administrativas que
regulam a atividade econômica. Parafraseando Camões, “mudam-se os tempos,
mudam-se as leis”.
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