Interacção de alimentos e fármacos nos doentes anticoagulados

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Interacção de alimentos
e
fármacos nos doentes anticoagulados
Introdução
A eficácia preventiva dos anticoagulantes orais está
bem documentada, mantendo-se desde há muitos anos
os antagonistas da vitamina K (AsVK), como a terapêutica
standard na prevenção do tromboembolismo quer venoso
quer arterial e ainda noutras situações de risco como a
fibrilhação auricular ou as próteses valvulares cardíacas.
Os AsVK actuam diminuindo a quantidade de vitamina
K disponível para a activação dos factores de coagulação
II, VII, IX e X(i). Quer a sua eficácia quer a segurança (sobretudo risco de hemorragia) estão relacionadas com o
tempo de protrombina, avaliado pelo INR (intenational
normalized ratio).
O uso clínico dos AsVK apresenta algumas limitações,
como uma estreita margem terapêutica e numerosas
interacções com fármacos ou alimentos. A determinação
do INR tem de ser realizada com frequência, dada a sua
variabilidade inter e intrapessoal, sendo influenciada por
factores como medicamentos, dieta, consumo de álcool,
doenças agudas concomitantes, função hepática(1).
Para se tentar obviar estes problemas, desenvolveram-se novas classes de anticoagulantes orais (ACOs)
que em ensaios controlados se mostraram equivalentes
ou mesmo superiores às AsVK a nível de eficácia, segurança e perfil farmacocinético(ii). Assim, estes novos fármacos apresentam vantagens como um início rápido de
acção e um efeito anticoagulante previsível, sendo de uso
mais fácil para o doente, dispensando a necessidade de
análises frequentes para controle da dose.
Tendo em atenção as extensas interacções da varfarina, o mais usado dos AsVK, justifica-se por questões de
segurança alguma precaução na introdução dos novos
ACOs, devendo-se prestar especial atenção à sua farmacocinética e resposta farmacodinâmica na presença de alimentos ou outros fármacos.
A detecção de interacções entre medicamentos reveste-se de grandes dificuldades, dada a complexidade do
problema, a escassez de métodos disponíveis para o seu
estudo e a constante mudança de alvo, pois a lista de fármacos em causa está em permanente actualização, com a
introdução anual de novas drogas.
O número de interacções é tão grande que nenhum
médico consegue abarcá-las sem recurso a bases de dados
informatizadas; os programas disponíveis não são no entanto facilmente acessíveis para uso corrente, nomeadamente no nosso país. As tabelas publicadas não são
muitas vezes precisas na avaliação da gravidade das interacções, confundindo-se as clinicamente relevantes com
as triviais, sendo frequentes os falsos alarmes.
O conhecimento das interacções medicamentosas
baseia-se essencialmente em casos clínicos individuais reportados pelos médicos ou em ensaios conduzidos em
Daniel Bonhorst *
Consultor de Cardiologia
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Recebido para publicação: Novembro de 2010
Aceite para publicação: Novembro de 2010
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actuam por inibição da recaptação de serotonina pelos
neurónios, visto que também afectam a agregação
plaquetária ao provocarem a depleção da serotonina das
plaquetas.
“A situação é agravada
pelo facto da maioria
dos doentes que toma varfarina
ser idosa, estando muitas vezes
polimedicada e tendo
comorbilidades que aumentam
o seu risco hemorrágico.“
Lesão da mucosa gástrica
Será o caso dos anti-inflamatórios não esferóides
(incluindo os COX 2), que causam erosões da mucosa
gástrica, as quais na presença de varfarina, podem originar hemorragias numa proporção substancial de doentes,
mesmo que o INR esteja em níveis terapêuticos, o que
torna mais difícil o manejo da situação(vi).
Muitas destas drogas também potenciam a anticoagulação por outros mecanismos, devendo ser evitados,
excepto nas raras situações em que se considere que o
benefício que proporcionam ultrapassa o risco hemorrágico.
Redução da síntese de vitamina K pela flora
intestinal
A resposta à terapêutica com varfarina relaciona-se
com o status da vitamina K no organismo, que por sua vez
depende da sua síntese pela microflora intestinal. Muitos
antibióticos alteram o balanço desta flora, potenciando o
efeito da varfarina(vii). A expressão deste mecanismo é variável mas exige precaução na associação de qualquer
antibiótico, se bem que alguns actuem também por
inibição da metabolização hepática da varfarina; os mais
vezes implicados são o co-trimoxazol, o metronidazol, os
macrólidos e as fluorquinolonas.
indivíduos saudáveis. Apesar da sua utilidade, estes métodos têm limitações que impedem que se tirem conclusões seguras, sendo escassos os estudos controlados
disponíveis e faltando bases de dados que permitam estabelecer nexos causais entre as prescrições médicas, os
dados laboratoriais e a evolução clínica.
Interacções das antivitaminas K
A problemática das interacções reveste-se de particular importância no caso da varfarina, o mais utilizado
dos AsVK, reconhecida como a droga que mais vezes está
implicada neste tipo de problemas, estando descritas interacções com centenas de outros fármacos, incluindo aqueles que não necessitam de prescrição médica e muitas
vezes considerados inócuos.
Apesar de reconhecido há muitos anos o problema das
interacções da varfarina, só em 1994 foi publicada a primeira revisão sistemática sobre o tema(iii).
As interacções da varfarina com outros fármacos podem ter consequências graves, podendo precipitar hemorragias que podem ir de ligeiras a graves, por vezes
potencialmente fatais.
Felizmente a maior parte das interacções clinicamente
relevantes com a varfarina envolve um pequeno número
de classes de fármacos, através de mecanismos pouco diversificados, podendo ser consideradas as seguintes classes
principais de interacção(iv):
Interferência com o metabolismo da varfarina
A varfarina comercializada é uma mistura racémica de
dois isómeros opticamente activos – a S e a R varfarina. O
primeiro é aproximadamente cinco vezes mais activo que o
segundo, sendo metabolizado pelo citocrómio P450 (CYP),
isoenzima 2C9(viii). Muitas das drogas identificadas como
potenciando o efeito da varfarina inibem esta enzima
(amiodarona, fluconazol, metronidazol, fluvastatina,
fenilbutazona, isoniazida, lovastatina, fenilbutazona, seretalina, fluvoxamina) potencial desta forma os efeitos da
varfarina. As drogas que induzem o CYP2C9 (rifampicina,
secobarbital), pelo contrário diminuem o efeito da varfarina.
O R-enantiómetro da varfarina é metabolizado sobretudo por duas outras enzimas do sistema CYP450, o
CYP1A2 e o CYP3A4; os fármacos que inibem estas
enzimas podem também afectar a anticoagulação, mas
têm efeitos em geral menos significativos (quinolonas,
macrólidos, antifúngicos do grupo dos “azois”).
Interferência com a função plaquetária
Todos os antiagregantes plaquetários (por ex. aspirina,
clopidogrel, ticlopidina) aumentam o risco hemorrágico
em doentes que tomam varfarina, o que acontece sem
que se verifique aumento do INR(v). Também será este o
mecanismo de interferência com os antidepressivos que
Interferência com o ciclo da vitamina K
A farmacodinamia da varfarina pode ser influenciada
pelos fármacos ou alimentos que afectam a vitamina K.
É o caso de mudanças bruscas das fontes dietéticas desta
vitamina, por exemplo a ingestão de folhas verdes ou de
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Interacção de alimentos e fármacos nos doentes anticoagulados
suplementos dietéticos.
O acetaminofeno inibe a carboxilase vitamina
K-dependente que é uma enzima chave no ciclo da vitamina K; por esta razão alguns doentes que fazem varfarina
têm uma subida rápida do INR quando tomam esta droga.
Usado com precaução é no entanto o analgésico de escolha em doentes que usam varfarina, pois a potenciação
que provoca é moderada.
Há outros mecanismos de interacção com a varfarina
menos importantes, como a interferência com a absorção
intestinal da varfarina (caso da colestiramina) ou a ligação
às proteínas plasmáticas, mas num número apreciável de
casos desconhece-se o mecanismo.
Muitas das interacções são evitáveis, constituindo
muitas vezes o uso concomitante de um anti-inflamatório
clinicamente necessário um dilema clínico.
Da grande maioria das interacções resultam hemorragias, havendo em muitos casos mas não todos uma
elevação do INR que nos alerta para o problema e que
permite ajustar a dose da varfarina enquanto o doente
está a tomar a terapêutica concomitante.
A falta de evidência científica, faz com que tenhamos
de considerar que nenhuma droga é completamente segura quando associada à varfarina. O doente deve portanto ser avisado que, sempre que iniciar uma nova
terapêutica, deverá questionar o médico sobre as suas
possíveis interacções com a varfarina. Em muitos casos os
fármacos não estão contra-indicados, requerendo apenas
ajustamentos da posologia e controlo mais frequente do
INR; os mesmos cuidados deverão ser tidos em conta
quando se interrompem essas terapêuticas.
Na prática deve-se recomendar especiais precauções
nalgumas famílias de medicamentos, por exemplo qualquer antibiótico (especialmente os macrólidos as quinolonas e os azois), muitas drogas cardiovasculares (estatinas, fibratos, aspirina, amiodarona), os AINEs (incluindo
os COX2 selectivos) e ainda o omeprazol, o álcool, os
esteróides anabolizantes(4).
Calcula-se que cerca de 20% da população toma este
tipo de suplementos e que oito dos dez suplementos mais
utilizados pode interferir com a varfarina, assim como
35% dos quarenta mais populares(9). A glucosamina, os
ácidos gordos essenciais, os produtos multiherbáceos ou o
óleo de prímula podem aumentar o tempo de protrombina enquanto a coenzima Q, a soja, a melatonina, o
ginseng, a ginkgo biloba e a erva de S. João podem fazer
descer o tempo de protrombina.
Por sua vez os complexos multivitamínicos, muitas
vezes utilizados em prescrição médica, podem incluir
vitamina K interferindo com a eficácia da varfarina ao
passo que os anti-oxidantes em doses elevadas podem ter
uma acção anti-plaquetária, aumentando o risco hemorrágico em doentes que tomam anticoagulante oral.
Na sua prática clínica, os médicos ao questionarem os
doentes sobre os fármacos que tomam, esquecem-se em
geral deste este tipo produtos e os doentes não os referem por não os considerar medicamentos.
Interacções dos novos anticoagulantes orais
Já introduzidos na profilaxia dos fenómenos tromboembólicos em cirurgia ortopédica e esperando-se em
breve autorização para a sua utilização na fibrilhação
auricular, poder-se-á esperar para o dabigatrano etexilato
e o rivaroxabano, eventuais interacções com outros medicamentos ou alimentos, tendo em vista os antecedentes
dos AsVK.
O dabigatrano etexilato é uma pró-droga, rapidamente
absorvida e convertida num inibidor directo da trombina,
o dabigatrano(x). Vários ensaios clínicos investigaram a sua
eficácia e segurança em ortopedia e mais recentemente
na fibrilhação auricular(xi).
O rivaroxabano é um inibidor oral directo selectivo do
facto Xa da coagulação, tendo também a sua eficácia e
segurança sido testadas na prevenção tromboembólica
em cirurgia ortopédica e na terapêutica das tromboses das
veias profundas dos membros inferiores(xii).
Tendo-se comprovado que muitas das interacções da
varfarina se relacionam com as suas vias metabólicas de
eliminação ou com a competição a nível da ligação à albumina plasmática, foi-se investigar se a metabolização
dos novos anticoagulantes se processava igualmente a nível do citocrómio hepático CYP450. Este sistema enzimático desempenha um papel importante no metabolismo de muitas drogas utilizadas na clínica, constituindo
a sua via principal de eliminação(xiii). As enzimas deste
sistema são susceptíveis de inibição ou indução competitiva por drogas, com importantes consequências
adversas, incluindo toxicidade medicamentosa ou redução
do efeito terapêutico. Com efeito, ao serem administradas
duas drogas, pode ocorrer a redução da metabolização de
uma delas, com subida potencialmente tóxica dos seus
níveis séricos, ou aumento da metabolização, com rápido
Interacções com alimentos e suplementos alimentares
São vários os alimentos que podem alterar a farmacocinética da varfarina, por exemplo o abacate, os espinafres, os bróculos ou outros alimentos ricos em vitamina K,
que podem inibir o efeito anticoagulante se forem ingeridos em quantidades substanciais; pelo contrário o alho
pode reduzir as concentrações da varfarina.
A segurança da varfarina pode ser comprometida, por
outro lado, pelo uso concomitante de suplementos muito
populares usados nas medicinas alternativas, sejam
herbáceos ou não herbáceos(ix). Destes, por exemplo o
sumo de mirtilo, o alho, o gingko, o palmetto, foram
relacionados com alterações do tempo de protrombina e
problemas hemorrágicos, obrigando a ajustamento das
doses da varfarina.
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Revista Factores de Risco, Nº20 JAN-MAR 2011 Pág. 34-42
declínio desses níveis.
Verificou-se nos estudos farmacocinéticos que as
enzimas da CYP450 também estão envolvidas na metabolização dos novos anticoagulantes orais, podendo-se
esperar eventuais implicações a nível das suas interacções
medicamentosas.
O dabigatrano(xiv) é primariamente metabolizado a nível do plasma e fígado por hidrólise catalisada pela esterase, não desempenhando o CYP450 um papel muito
significativo. Contudo, esse fármaco actua como substrato
tivamente à quinidina, a amiodarona e verapamil; pelo
contrário são indutores destas substâncias a rifampicina, o
pantoprazol e a erva de São João. No respeitante ao
rivaroxabano, os autores apontam como inibidores do
CYP3A4 e da P-glicoproteína, os antifúngicos da classe dos
“azois”, o antivírico ritonavir e o antibiótico claritromicina;
são indutores destes substratos a rifampicina, a erva de
São João, a fenitoína a carbamazepina e a fenobarbitona.
Os dois novos anticoagulantes orais poderão ter outras
interacções, de natureza farmacodinâmica, condicionando
“Na prática deve-se recomendar especiais precauções nalgumas
famílias de medicamentos, por exemplo qualquer antibiótico
(especialmente os macrólidos as quinolonas e os azois),
muitas drogas cardiovasculares (estatinas, fibratos, aspirina,
amiodarona), os AINEs (incluindo os COX2 selectivos)
e ainda o omeprazol, o álcool, os esteróides anabolizantes.”
potencial risco hemorrágico, como será o caso dos AINEs
ou dos antiagregantes plaquetários. Uma interacção do
mesmo tipo foi encontrada relativamente aos opioides(13).
Nenhuma destas novas drogas interagiu significativamente com a atorvastatina, a ranitidina ou a digoxina.
Pelo contrário, sendo o dabigatrano pouco solúvel para pH
acima de 4 a sua combinação com pantoprazol ou outros
inibidores da bomba de protões pode diminuir a sua
biodisponibilidade, reduzindo os seu níveis plasmáticos;
contudo nos ensaios clínicos este efeito não foi clinicamente relevante(13).
Neste momento recomenda-se precaução nestas associações, só se considerando como contra-indicaões a associação de dabigatrano com quinidina e do rivaroxabano
com os antivíricos inibidores da HIV-protease (como o ritonavir) e os antimicóticos da família dos “azois”.
Poderá haver interacção com outros anticoagulantes,
com potencial efeito hemorrágico, o que deve ser levado
em consideração na transição entre as diferentes drogas.
Por fim, tal como com a varfarina, há potencial para
interferência com suplementos dietéticos, nomeadamente
herbáceos ou produtos da medicina natural; até agora há
poucas referências a interferência destes novos fármacos
com os alimentos.
da P-glicoproteína transportadora, substância que está envolvida no transporte sérico de muitos fármacos, podendo
assim ocorrer interacções medicamentosas pela sua
inibição ou indução por outras drogas em doentes que
tomam dabigatrano; sabe-se que 85% desta substância é
eliminado na urina e 6% por via fecal.
Quanto ao rivaroxabano(xv) dois terços são excretados
pelo rim, contribuindo a excreção fecal para o terço
restante. Dois terços do medicamento são metabolizados
antes da eliminação renal, pelas enzimas CYP3A4 e
CYP2J2, e a restante por mecanismos independentes do
sistema CYP450. Tal como o dabigatrano, também esta
droga é substrato para a P-glicoproteína transportadora.
Assim, no estado actual do conhecimento, parece justificar-se alguma precaução na combinação de dabigatrano ou do rivaroxabano com inibidores ou indutores
potentes da p-glicoproteína. Este último fármaco por sua
vez, tem potencial para interacção com drogas que inibem
a enzima CYP3A4.
Com base nos estudos disponíveis Walenga JM e
Adiguzel C13 elaboraram um quadro em que no respeitante
ao dabigatrano apontam potencial para interacção com
inibidores do CYP3A4 e da P-glicoproteína, como é o caso
da claritromicina, ou só desta última proteína como rela-
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Interacção de alimentos e fármacos nos doentes anticoagulados
Conclusão
9. Strohecker JL; Smith MB, Christensen N, et al. Significant
interactions with the most commonly used herbal and nonherbal supplements impact warfarin safety and efficacy. Heart
Rhythm Society 2010, Scientific Sessions; May 13, Denver,CO
Considerando as extensas interacções da varfarina
com alimentos ou drogas, deve haver especiais precauções na prática clínica com o uso dos novos anticoagulantes orais. Deverão ser levados em consideração
vários parâmetros que poderão influenciar a farmacocinética destas novas drogas, como alterações do pH gástrico, da mobilidade intestinal e da sua absorção a nível da
mucosa digestiva, podendo ocorrer interferências com alimentos ou outras drogas.
Deve também valorizado no metabolismo e eliminação desta drogas a possibilidade de interferências medicamentosas a nível da ligação às proteínas séricas, da
metabolização hepática ou da eliminação renal.
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